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A ferrovia e a modernidade em São Paulo - USP

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há um novo traçado da linha entre a serra e<br />

Santos, uma nova Estação da Luz. A Esta-<br />

ção da Luz se torna uma estação monumen-<br />

tal, imponente e solene. Em boa parte para<br />

atender as d<strong>em</strong>andas de uma sociedade de<br />

elite, com claras distinções estamentais. Os<br />

estamentos não são classes sociais, são ca-<br />

madas sociais nas quais as pessoas estão<br />

situadas por direito de nascimento. Isso foi<br />

muito próprio da Europa medieval, um sis-<br />

t<strong>em</strong>a de classificação social que se prolon-<br />

gou residualmente por muito t<strong>em</strong>po e de que<br />

ainda há evidências fortes nos dias atuais.<br />

O modo estamental de classificação so-<br />

cial das pessoas chegou ao Brasil com o<br />

descobrimento. À estrutura estamental se<br />

acoplou a estrutura social escravista, que é<br />

outro sist<strong>em</strong>a de classificação social. Am-<br />

bos os sist<strong>em</strong>as se combinaram e operaram<br />

conjuntamente na definição de identidades<br />

e direitos. A elite e o povo ainda conservam<br />

traços estamentais muito fortes. Quando<br />

alguém diz “Você sabe com qu<strong>em</strong> está fa-<br />

lando?”, é alguém que se acha nobre ou<br />

que, mesmo não o sendo, invoca critérios<br />

estamentais para distinguir-se do outro não<br />

pela igualdade, mas pela desigualdade de<br />

direitos.<br />

A Estação da Luz foi construída de acor-<br />

do com esses valores estamentais. Por<br />

ex<strong>em</strong>plo, havia a sala para damas de pri-<br />

meira classe, já que qu<strong>em</strong> não era da pri-<br />

meira classe não era dama. Um reconheci-<br />

mento da desigualdade, com base <strong>em</strong> crité-<br />

rios de qualidade social.<br />

Em Paranapiacaba, que a meu ver é o<br />

caso mais interessante, há um traço vitoria-<br />

no na arquitetura das casas, com a distin-<br />

ção de frente e fundo, o que também proce-<br />

de da cultura estamental. Numa parte da<br />

vila há duas ruas, a que passa na frente das<br />

casas e a que passa no fundo das casas. Isso<br />

é muito característico da arquitetura<br />

vitoriana do século XIX. A distinção entre<br />

frente e fundo teve por objetivo introduzir<br />

uma inovação social de enorme importân-<br />

cia, que foi a distinção entre público e pri-<br />

vado. O que deve ser mostrado aos outros<br />

e o que deve ser escondido. A área da apa-<br />

rência e a área do serviço. Em Parana-<br />

piacaba o fundo é por onde entrava o car-<br />

vão, lenha, as coisas sujas, a matéria-prima<br />

da vida cotidiana, e a parte da frente estava<br />

reservada para receber as visitas, o excep-<br />

cional, o não-cotidiano.<br />

Esses são valores da <strong>modernidade</strong> que<br />

estão chegando com a <strong>ferrovia</strong>: o moderno<br />

da máquina, do racional, e o imoderno da<br />

espacialidade estamental. Mas com base<br />

numa outra realidade: o moderno inevitá-<br />

vel e o tradicional necessário. Nas casas de<br />

Paranapiacaba, o moderno chega através<br />

da racionalidade própria da atribuição das<br />

funções subalternas dos serviços e do tra-<br />

balho doméstico ao fundo da casa, modo<br />

estamental também de esconder-lhe a visi-<br />

bilidade. Constitui-se, portanto, a distin-<br />

ção entre frente e fundo, de que nos fala<br />

Erving Goffman <strong>em</strong> suas análises socioló-<br />

gicas, que é a distinção entre público e pri-<br />

vado, necessidade estamental de diferençar<br />

internamente o lugar de viver, preservando<br />

o decoro do visível e ocultando o que é<br />

propriamente o íntimo. Portanto, esses<br />

mecanismos foram formas combinadas de<br />

diss<strong>em</strong>inar nas classes subalternas, entre<br />

os próprios trabalhadores, valores da clas-<br />

se dominante, constituindo no interior da<br />

vida familiar a vida privada. Foi também<br />

forma de estabelecer a contradição do não-<br />

cotidiano da fachada nas próprias vias de<br />

fluência da vida cotidiana que se diss<strong>em</strong>ina<br />

com a <strong>ferrovia</strong> e seus ritmos baseados na<br />

concepção linear do t<strong>em</strong>po, o t<strong>em</strong>po quan-<br />

titativo da eficiência e da reprodução am-<br />

pliada do capital.<br />

A <strong>modernidade</strong> se torna <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ática<br />

nessas polarizações, na medida <strong>em</strong> que<br />

nelas se juntam os t<strong>em</strong>pos históricos do<br />

romantismo pré-moderno e da racionalida-<br />

de industrial moderna. Nelas a própria ar-<br />

quitetura cria a distinção do que deve ser<br />

ocultado e do que deve ser mostrado. Ins-<br />

titui-se, portanto, a necessidade social de<br />

fingir, de representar, de simular, de viver<br />

a vida como um des<strong>em</strong>penho teatral, que<br />

no entanto t<strong>em</strong> suas ocultações, seus espa-<br />

ços de autenticidade escondida. Nessa du-<br />

pla orientação, o medo do visível se instala<br />

e a lógica da aparência se impõe. Os seres<br />

humanos se cind<strong>em</strong> e se divid<strong>em</strong> na unida-<br />

de de autêntico e inautêntico.<br />

REVISTA <strong>USP</strong>, <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong>, n.63, p. 6-15, set<strong>em</strong>bro/nov<strong>em</strong>bro 2004 15

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