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A ferrovia e a modernidade em São Paulo - USP

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De certo modo, a <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong> Railway era<br />

vitoriana. Não por acaso suas estações com-<br />

binaram o tijolo e o ferro, nos adornos de<br />

uma sociedade que, de fato, conservadora-<br />

mente, resistia às simplificações da linha<br />

reta. Com ela chegam el<strong>em</strong>entos de preci-<br />

são nos horários, mas também na tecnolo-<br />

gia do transporte, no encurtamento real das<br />

distâncias pelo encurtamento do t<strong>em</strong>po<br />

necessário para percorrê-las. Mas são reva-<br />

lorizados e adaptados modos e rituais de<br />

deferência dos t<strong>em</strong>pos das viagens a cava-<br />

lo. O que importa é ressaltar que essa ino-<br />

vação tecnológica rearranjou as relações<br />

sociais, os ritos de proximidade e afasta-<br />

mento, o modo de vida, as mentalidades.<br />

Longe de promover uma ruptura súbita e<br />

radical, fez mudanças e rearranjos, promo-<br />

veu adaptações e condutas adaptativas.<br />

Rudyard Kipling, na viag<strong>em</strong> que fez pela<br />

<strong>São</strong> <strong>Paulo</strong> Railway, de <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong> a Santos,<br />

nos anos 20, destaca <strong>em</strong> suas notas de via-<br />

g<strong>em</strong> os cheiros e destaca o t<strong>em</strong>po. Nota a<br />

incrível eficiência e rapidez na substitui-<br />

ção do motor de tração dos carros da ferro-<br />

via, os t<strong>em</strong>pos curtos de minutos. Mas nota<br />

também a d<strong>em</strong>orada dedicação dos passa-<br />

geiros às despedidas, indício de cultura<br />

aristocrática, de qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po para os<br />

rituais da sociabilidade. Percebeu esses<br />

desencontros de t<strong>em</strong>po: o t<strong>em</strong>po aristocrá-<br />

tico abundante do ócio e o t<strong>em</strong>po curto e<br />

<strong>em</strong>presarial do negócio, na <strong>ferrovia</strong>. Sen-<br />

tiu os cheiros da <strong>ferrovia</strong>: de combustível,<br />

de tinta, <strong>em</strong>bora não tivesse notado os chei-<br />

ros da natureza – cafezais, bananais. Sua<br />

atenção se agudiza, por estranha, quando<br />

passa da natureza à indústria. É um estra-<br />

nhamento cultural e de condição social. Sua<br />

classe e sua identificação aristocrática pro-<br />

duz<strong>em</strong> significados que defin<strong>em</strong> uma iden-<br />

tidade social estratificada. O racional e<br />

próprio da t<strong>em</strong>poralidade da indústria e da<br />

<strong>em</strong>presa é estranhado; o natural da nature-<br />

za (bananeiras, vitórias-régias, que confir-<br />

mam o visto <strong>em</strong> livros) e suas formas não<br />

são estranhados. <strong>São</strong> duas modalidades<br />

distintas e opostas de admiração.<br />

Estou falando do moderno e da moder-<br />

nidade, inscritos na estrutura e no funcio-<br />

namento daqueles já citados dois pólos sim-<br />

bólicos da <strong>ferrovia</strong> e por meio dela se di-<br />

fundindo para outras relações sociais, para<br />

o modo de vida da população afetada por<br />

ela. Estou falando das conseqüências so-<br />

ciais e políticas desses dois el<strong>em</strong>entos de<br />

engenharia e das técnicas sociais neles<br />

<strong>em</strong>butidas, técnicas que permitiam a mani-<br />

pulação social e a manipulação política.<br />

A <strong>ferrovia</strong>, por meio dessas inovações<br />

técnicas e sociais, e de outras, teve uma<br />

importância grande na mudança social <strong>em</strong><br />

<strong>São</strong> <strong>Paulo</strong>. Nós estávamos de fato saindo<br />

de uma sociedade escravista e entrando com<br />

relutância na sociedade baseada no traba-<br />

lho livre e na contratualidade das relações<br />

sociais. As duas inovações arquitetônicas a<br />

que me refiro, a Luz e Paranapiacaba, são,<br />

justamente, componentes dessa nova men-<br />

talidade, uma nova concepção da socieda-<br />

de e das relações sociais.<br />

A sociedade escravista era uma socie-<br />

dade baseada no uso de instrumentos físi-<br />

cos de coerção do trabalhador. As pessoas<br />

estavam subjugadas, foss<strong>em</strong> escravos ou<br />

não, pelo fato de que havia uma disciplina<br />

social basicamente implantada pelo chico-<br />

te. Para se sujeitar à disciplina do trabalho,<br />

o escravo precisava de coerção física, ex-<br />

terna, precisava do l<strong>em</strong>brete permanente<br />

do castigo no tronco.<br />

Com acerto, dizia Joaquim Nabuco que<br />

os senhores e os escravos eram profunda-<br />

mente iguais. O senhor era tão vítima da<br />

escravidão quanto o escravo. Era a vítima<br />

oposta, evident<strong>em</strong>ente, uma vez que ele<br />

batia, tinha o monopólio da violência e da<br />

coação física do trabalhador cativo. Mas<br />

era o cativo e o cativeiro que moldavam<br />

sua personalidade, sua visão de mundo, seu<br />

autoritarismo, sua mentalidade. Era víti-<br />

ma, ao mesmo t<strong>em</strong>po, dessa relação social<br />

fundante, que contaminava todas as outras<br />

relações sociais, de cativos e de senhores.<br />

Sua mentalidade expressava esse modo de<br />

ser e de pensar da sociedade de então.<br />

As mudanças que a <strong>ferrovia</strong> trouxe fo-<br />

ram mudanças que substituíram a chibata, o<br />

feitor de escravos por uma outra coisa, que<br />

é o medo difuso, a interiorização da coação<br />

física como coação psicológica. A <strong>ferrovia</strong><br />

trouxe uma disciplina nas relações de traba-<br />

REVISTA <strong>USP</strong>, <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong>, n.63, p. 6-15, set<strong>em</strong>bro/nov<strong>em</strong>bro 2004 13

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