JOSÉ DE SOUZA MARTINS A <strong>ferrovia</strong> e a <strong>modernidade</strong> <strong>em</strong> <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong>: a gestação do ser dividido JOSÉ DE SOUZA MARTINS é professor aposentado do Departamento de Sociologia da FFLCH-<strong>USP</strong> e autor de, entre outros, Vergonha e Decoro na Vida Cotidiana da Metrópole (Hucitec). As ilustrações utilizadas ao longo deste dossiê foram produzidas a partir de fotos de Cristiano Mascaro, as quais pod<strong>em</strong> ser vistas no último texto da seção.
aos poucos nos interstícios dos costumes e repetições. Essa lentidão foi abalada na década de 60 do século XIX quando, com surpreendente rapidez, a <strong>ferrovia</strong> saindo do porto de Santos galgou quase de supetão a serra íngr<strong>em</strong>e do mar e inundou o planalto com seu t<strong>em</strong>po próprio, sua velocidade, sua nova espacialidade, a nova mentalidade que diss<strong>em</strong>inava, a da pressa, a do chegar logo, a do não ter t<strong>em</strong>po, a de estar no mesmo dia <strong>em</strong> dois lugares antes separados por dias de cavalgada. O moderno que se arrastava ocultamente se tornou visível, máquina a <strong>modernidade</strong> de <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong> vapor, equipamento, alterações no espaço, está no <strong>em</strong>aranhado de t<strong>em</strong>pos das rela- outra linguag<strong>em</strong>, outro modo de ver e ver- Ado-se ções sociais e mentalidades que se justase. Tornou-se de fato o que já era s<strong>em</strong> poder põ<strong>em</strong> no extenso espaço que constitui a me- ser: o t<strong>em</strong>po regulado pelo custo e pelo trópole. Está no arrastar de pés que por esse lucro. O hom<strong>em</strong> deixava de ser o condutor espaço diss<strong>em</strong>ina as contradições do mo- da tropa para ser conduzido como tropa. derno e da sociedade moderna. Está nos Dois extr<strong>em</strong>os sociológicos dessa desencontros que expressam, dão cara e reordenação social decorrente da implan- forma, sons e cheiros às contradições prótação da <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong> Railway estão na vila prias da sociedade constituída pelo prima- de Paranapiacaba e na Estação da Luz. Simdo da razão. Mas incapaz de sobreviver e bolicamente, ambas são expressões da ar- reproduzir-se s<strong>em</strong> as persistentes sobras de quitetura do medo. Em Paranapiacaba, relações e concepções da tradição e do porque o desenho da vila foi inspirado na tradicionalismo que não foram anuladas concepção do panóptico (1). Isto é, na inte- n<strong>em</strong> perderam sentido. riorização subjetiva do agente da vigilân- O mundo moderno chegou fragmentácia. Cada trabalhador e cada morador carria e marginalmente a <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong> já no sécuregavam dentro de si o capataz que não era lo XVIII, justapôs-se aos costumes, criou apenas o capataz de seu trabalho, mas o ilhas de racionalidade econômica e políti- capataz de sua vida pessoal e familiar. Sua ca, conviveu com as estruturas fundamen- construção e seu funcionamento foram pretais de uma economia à marg<strong>em</strong> das gransididos pela idéia de que a disciplina do des contas do mundo colonial. Por isso, trabalho moderno dependia da interio- não chegou inevitavelmente n<strong>em</strong> fez sentirização de t<strong>em</strong>ores, sobretudo o t<strong>em</strong>or de do para a maioria da população. Pouquíssi- ser visto fazendo o que não deveria ser feimos perceberam as mudanças que chegato. A Estação da Luz porque expressava vam, as novas idéias, a nova maneira de outra dimensão do medo, já não mais o produzir e negociar com base no cálculo, medo do trabalhador <strong>em</strong> relação à figura no inconformismo da curiosidade econô- invisível do patrão e de qu<strong>em</strong> manda. Mas mica e política, na busca de formas que agora o medo que t<strong>em</strong> qu<strong>em</strong> manda <strong>em</strong> dess<strong>em</strong> contorno aos novos conteúdos que relação a qu<strong>em</strong> trabalha e é mandado. Nes- se propunham. se caso, concretamente, o telefone secreto Não é casual que esse marginalismo da estação desde quando construída, mas 1 Cf. Marco Antonio Perrone Santos, “Análise das Relações Panópticas das Distribuições tenha criado uma peculiar vida privada e um peculiar refúgio nos casamentos intra- acionado unicamente <strong>em</strong> 1924, por ocasião da Revolução e da tomada da estação pelos Espaciais”, in João Ferreira et alii, Paranapiacaba, Estudos familiares dos m<strong>em</strong>bros da pequena elite revoltosos. Foi utilizado pelo diretor inglês e M<strong>em</strong>ória, Santo André, Prefeitura Municipal de Santo André, 1990, pp. 1-41. de então. N<strong>em</strong> é casual que tenham sido lentas as transformações sociais, proponpara passar secretamente sua autoridade e suas ordens ao chefe da estação de Santos, 8 REVISTA <strong>USP</strong>, <strong>São</strong> <strong>Paulo</strong>, n.63, p. 6-15, set<strong>em</strong>bro/nov<strong>em</strong>bro 2004