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na minha pele<br />
Kate Holden
PRÓLOGO<br />
O QUE LEMBRO de quan<strong>do</strong> era prostituta?<br />
Lembro da ternura, <strong>do</strong> tédio, <strong>do</strong>s sorvetes que tomava às três da<br />
manhã na frente da televisão; <strong>do</strong> cheiro de pau, de homens tími<strong>do</strong>s<br />
com pele se<strong>do</strong>sa, das risadas; das ruas escuras reluzin<strong>do</strong>; de garotos de<br />
boné esparrama<strong>do</strong>s na sala de apresentações, de barrigas gordas em<br />
cima de mim; das conversas, de pegar cigarros enquanto retocava a<br />
maquiagem.<br />
Lembro que as outras garotas eram como irmãs, e de saber que era<br />
perigoso contar a elas meu nome verdadeiro. Lembro de abrir o coração<br />
para homens estranhos e acariciar seus rostos, sorrin<strong>do</strong>. Lembro de ser<br />
fodida tão forte que meu rosto ficava branco de <strong>do</strong>r. Lembro de ser prostituta,<br />
e ter orgulho disso, gostar disso.<br />
Mas o que fiz não é normal. Não? Eu ficava nua, eu tocava o corpo das<br />
pessoas, elas tocavam o meu, ficávamos sozinhos num quarto. Como um<br />
massagista, como um dentista, como uma esteticista. Sim, mas eu abria<br />
meu corpo, eles me tocavam lá. Como um médico. Sim, mas lá dentro.<br />
Sim.<br />
Às vezes me perguntava, com as pernas abertas na cara de um sujeito<br />
excita<strong>do</strong>, se me arrependeria pela invasão de meus lugares mais secretos.<br />
Um homem que nunca vira antes está olhan<strong>do</strong> minha vagina. Mas o que<br />
isso significa? É só pele. Fico com vergonha de ter a parte de trás <strong>do</strong> joelho<br />
examinada? Meu ouvi<strong>do</strong>? O interior da minha boca? Olhos não deixam<br />
cicatrizes, não sou diminuída pelo olhar de ninguém. Meu corpo é bonito,
e deseja<strong>do</strong>; sinto-me bonita, e desejável. Alguém está me olhan<strong>do</strong>. O exterior,<br />
a membrana de carne que me cobre. Ainda me pertenço.<br />
Não gosto de julgar os outros. Sei que to<strong>do</strong>s têm seus segre<strong>do</strong>s. Eu<br />
escrevo os meus. Os carrego com leveza dentro de mim. Eles são quase<br />
invisíveis.<br />
Caminhava por calçadas escuras e sujas no meio da noite. Entrava em<br />
carros de estranhos e saía deles xingan<strong>do</strong> e sorrin<strong>do</strong>. Acompanhava homens<br />
até vielas nojentas e guardava lenços sujos na bolsa no final. Pegava o<br />
dinheiro deles, limpava a boca, ia para um pequeno apartamento, injetava<br />
alívio químico nas veias e voltava para a rua. Dormia num colchão sujo<br />
num quarto vazio, tremen<strong>do</strong>, e acordava to<strong>do</strong> crepúsculo cinza desejan<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>rmir para sempre. Vivia de barras de chocolate e só tinha dinheiro para<br />
comprar uma única xícara de café à tarde, abrigan<strong>do</strong>-me no calor <strong>do</strong>s cafés<br />
em busca de conforto. Via as pessoas no supermerca<strong>do</strong> e não lembrava<br />
como era pegar coisas banais das prateleiras. Ficava no escuro, na calçada,<br />
olhan<strong>do</strong> as salas de estar iluminadas. A tristeza e a raiva corroeram to<strong>do</strong>s<br />
os meus sentimentos. A única coisa que eu sabia era que queria heroína,<br />
e o resto.<br />
Ganhei um dinheiro que nunca imaginei, usei vesti<strong>do</strong>s de velu<strong>do</strong> e brilhei<br />
sob a luz <strong>do</strong> abajur. Caminhei ereta na multidão, saben<strong>do</strong> ser desejada.<br />
Ganhei presentes luxuosos. Fui uma princesa em meu reino, e os<br />
homens não se cansavam de mim. Esperavam horas pela minha companhia<br />
e eu nem lembrava seus nomes. Tive uma casa com hidromassagem<br />
e chão de tábua corrida; perdia notas de cinqüenta dólares e as achava em<br />
bolsos, dentro de <strong>livro</strong>s. Era a favorita de to<strong>do</strong>s. Dizia às pessoas que era<br />
prostituta, e sorria enquanto pronunciava tais palavras, desafian<strong>do</strong>-os a<br />
desviar o olhar.<br />
O sorriso que me vem aos lábios hoje, quan<strong>do</strong> falo sobre isso, eu sei,<br />
é nostálgico, provoca<strong>do</strong>r. Surge um brilho em meus olhos. E, me dizem,<br />
uma certa dureza também.
EU ERa UMa gaROtinha sEnsívEL, talvez mais <strong>do</strong> que a maioria.<br />
Às vezes o mun<strong>do</strong> era grande demais; outras, incrivelmente pequeno. Levei<br />
muito tempo para abrir o espaço correto.<br />
Minha família era simples e unida: pai, mãe e uma irmã mais nova.<br />
Crescemos num agradável subúrbio de Melbourne, numa casa antiga,<br />
grande e confortável, embora o grama<strong>do</strong> da frente fosse uma lástima e<br />
o revestimento de madeira um pouco descasca<strong>do</strong>. Havia três limoeiros<br />
nos fun<strong>do</strong>s. Minha irmã e eu costumávamos “pintar” as tábuas com a<br />
mangueira, escurecen<strong>do</strong>-as apenas por alguns instantes. Meus pais ficavam<br />
ocupa<strong>do</strong>s demais com <strong>livro</strong>s e trabalho, e com a nossa criação, para se<br />
incomodarem com os dentes-de-leão no grama<strong>do</strong>. Dentro de casa, tínhamos<br />
o calor de que precisávamos. O lugar era atulha<strong>do</strong>, cheio de tesouros<br />
escondi<strong>do</strong>s, objetos estranhos em caixas, o cheiro de cozi<strong>do</strong>.<br />
Meu pai era um cientista barbu<strong>do</strong> e genial que me pegava no colo,<br />
junto com minha irmã, e contava histórias mágicas. Ocupada com seu<br />
trabalho na comunidade e sua carreira em educação, minha mãe freqüentemente<br />
parecia mais austera, mas nas festas eu me escondia atrás de seus<br />
quadris estreitos para observar as outras crianças. Logo ela me abraçava e<br />
me beijava, para que eu tivesse certeza de ser sempre amada.<br />
Eram os anos 1970. Minha mãe me ensinou que não se deve temer os<br />
homens, que as mulheres são fortes, que uma pessoa pode se tornar o que<br />
quiser, desde que o faça como paixão e bom coração. Meu pai me mostrava<br />
o mesmo. Só conheci homens gentis.
Meus pais me compravam <strong>livro</strong>s: sobre homens das cavernas, deuses,<br />
unicórnios, desertos, animais e aventuras. Histórias de caminhos na floresta<br />
e de princesas. Cresci numa casa lotada de <strong>livro</strong>s. Eles cobriam todas as<br />
paredes; e, como eu era tímida, eram meus melhores amigos. De suas páginas,<br />
tirei o sonho de uma ilha mágica, protegida por um fosso, tranqüila<br />
sob o calor <strong>do</strong> sol.<br />
Junto com alguns amigos, minha mãe abriu uma pequena escola primária<br />
alternativa. Os pais usavam barba, as mulheres, cabelo curto e<br />
nenhuma maquiagem. Lá, os cerca de <strong>do</strong>ze alunos eram incentiva<strong>do</strong>s a<br />
desenvolver seus próprios interesses sem muitos limites. Livre para ler o<br />
dia to<strong>do</strong>, se eu quisesse, ou brincar com meus amigos, cresci aman<strong>do</strong> alternadamente<br />
o paraíso da solidão e o conforto de um grupo. Minha vozinha<br />
suave quase sempre se perdia no furor <strong>do</strong> pátio. Quan<strong>do</strong> meus amigos<br />
brincavam de “cavalos”, eu era uma égua solitária agitan<strong>do</strong> minha crina<br />
<strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> playground até que eles fossem me buscar. Às vezes era<br />
mais fácil sentar num lugar quentinho e ler.<br />
Um dia, quan<strong>do</strong> eu tinha nove anos, to<strong>do</strong>s deveriam fazer casinhas de<br />
brinque<strong>do</strong>. Alguém tinha <strong>do</strong>a<strong>do</strong> à escola embalagens de geladeiras em<br />
papelão: caixas resistentes e espaçosas. Havia alguns pais de alunos ali,<br />
mas minha mãe estava numa reunião com os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> prédio da escola,<br />
uma ex-igreja alugada. Eu estava muito triste. O barulho de vozes na sala<br />
era alto demais.<br />
“Façam duplas e vocês podem decorar suas casas de papelão”, nos disseram.<br />
To<strong>do</strong>s os outros formaram duplas, pegaram pincéis grossos e pedaços<br />
de isopor da bancada, começaram a cortar portas e janelas, pintar<br />
jardineiras sob os “caixilhos” e árvores fluorescentes nas “paredes”. A sala<br />
foi tomada pelo som de crianças felizes falan<strong>do</strong> e planejan<strong>do</strong>. Olhei para<br />
elas, e não sentia vontade de participar. Parecia haver algo tolo naquela<br />
tarefa.<br />
Encontrei uma caixa para mim. Com um estilete, fiz um corte na parte<br />
de baixo. Levantei a aba que havia aberto e entrei na caixa.<br />
Lá dentro era quente e escuro. O papelão abafava o barulho das outras<br />
crianças; sentei-me, o queixo nos joelhos, os braços cruza<strong>do</strong>s em volta das<br />
pernas. Sentia minha o calor da minha respiração tocar de volta o meu<br />
rosto. O silêncio e a paz me deixaram sonolenta.
Pensei nos deuses e em seus esconderijos, sobre as quais havia li<strong>do</strong> nos<br />
<strong>livro</strong>s de mitologia. Cavernas seguras, clareiras secretas. Centauros e ninfas,<br />
acomoda<strong>do</strong>s sobre raízes de árvores antigas. Meu rosto estava úmi<strong>do</strong><br />
por causa da respiração. Era tão calmo ali dentro. Pensei que nunca sairia<br />
daquela caixa, onde podia ser eu, sozinha, mal uma pessoa.<br />
“Onde está Kate? Ela — Kate? Você está aí?” Vozes preocupadas no<br />
la<strong>do</strong> de fora, batidinhas leves nas frágeis paredes. “Você vai sair? Você<br />
quer giz de cera? Você ainda não decorou!”<br />
Fiquei ali no meu casulo, cercada, cada vez mais ressentida e furiosa.<br />
Não me façam sair. As vozes se afastaram; voltaram.<br />
“Bom, se você vai ficar emburrada...”<br />
Eu saí, envergonhada e queren<strong>do</strong> matar alguém, perceben<strong>do</strong> que às<br />
vezes a fuga não é muito popular e deve ser mais furtiva.<br />
*<br />
Minha mãe e eu discutíamos, gritávamos uma com a outra no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
corre<strong>do</strong>r, batíamos portas. O que ela, o que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, queria de mim?<br />
Sob a franja loura, minhas sobrancelhas castanhas se uniam em fúria.<br />
Numa ira cega, fiz libações com goles amargos das garrafas de vinho <strong>do</strong><br />
meu pai, murmuran<strong>do</strong> coisas confusas para deuses antigos. Eu quase acreditava.<br />
Naquela época, Atenas, a minha deusa, amava não só a sabe<strong>do</strong>ria,<br />
mas também a guerra.<br />
Então chegou o momento de deixar a pequena escola alternativa. No<br />
colégio estadual, eu hesitei. Escondia-me atrás <strong>do</strong> cabelo compri<strong>do</strong>, baixava<br />
a cabeça. Nunca entendi muito bem o que meus novos amigos viam<br />
em mim, desengonçada, esforçada, ruborizada, mostran<strong>do</strong> as gengivas ao<br />
sorrir. Mas eles me aceitaram, e me ensinaram a me sentir bem-vinda.<br />
Embora olhasse com horror suas primeiras experiências com bebidas e<br />
cigarros, eu continuava pairan<strong>do</strong> na turbulenta fronteira da conspiração<br />
a<strong>do</strong>lescente. Era aquela que levava copos de água para os amigos cansa<strong>do</strong>s<br />
e bêba<strong>do</strong>s, aquela que chamava o táxi na hora de ir para casa. Sair era<br />
excitante, mas eu a<strong>do</strong>rava voltar para casa.<br />
Lá estavam meu piano, meus <strong>livro</strong>s, a <strong>do</strong>ce luz fugaz que escapava<br />
pela fresta da porta à tarde, o familiar desdém da minha irmãzinha. Meu
quarto, onde eu me encolhia e sonhava, e às vezes chorava e desaparecia.<br />
Dentro de mim, era onde eu encontrava paz.<br />
Meus amigos na escola eram na maioria garotas, com cortes de cabelo<br />
modernos e uma ponta de sofisticação na conversa. Às vezes elas<br />
me esqueciam, mas em outras passávamos a noite na casa de alguém<br />
e tomávamos banho juntas, ríamos e contávamos segre<strong>do</strong>s. Eu não falava<br />
muito, mas sorria timidamente para elas, contente por ter si<strong>do</strong><br />
incluída.<br />
Eu tinha 16 anos e nunca havia si<strong>do</strong> beijada. Daí vieram os 17 anos<br />
e a formatura. Matilda, Camille, Joey, todas elas já transavam nessa época.<br />
Míope, eu odiava usar óculos; talvez algum garoto tenha sorri<strong>do</strong> para<br />
mim, mas eu não saberia. Havia me toca<strong>do</strong> algumas vezes, mas aquilo pareceu<br />
tolo. Não gostava da idéia de corpos masculinos. Era a fim de uma<br />
menina na escola. A idéia de sexo como um to<strong>do</strong> era assusta<strong>do</strong>ra. Mas era<br />
horrível sentir que não tinha uma chance de experimentar. Começava a<br />
me envergonhar; esperei.<br />
Para mim, meu corpo era revoltante; eu apalpava com frustração a<br />
carne <strong>do</strong>s meus quadris, meus seios desnecessários, e os escondia em roupas<br />
largas demais, não me arrumava, desejan<strong>do</strong> ser invisível. Tinha horror<br />
à idéia de alguém me ver nua, me ver bem de perto. Não suportava meu<br />
corpo. Portanto, cultivava o cérebro.<br />
A escola terminou e, enquanto esperava pelo início da universidade, arrumei<br />
um emprego de fim de semana numa livraria. Meu novo chefe disse<br />
delicadamente: “Você é tímida, não? Vai te fazer bem. Você vai ter de<br />
conversar com as pessoas”. Eu era tímida demais para admitir que era verdade.<br />
Mas aprendi a a<strong>do</strong>rar meu emprego e a bater papo com os clientes,<br />
dizer a eles o que ler, rir com eles, e ter confiança.<br />
Esperava que a universidade fosse meu refúgio, mas entre a elite cheia<br />
de pose da Melbourne University, eu me arrastava até as aulas, onde mantinha<br />
a boca fechada e ressentia a confiança alheia. Estudar arqueologia,<br />
estu<strong>do</strong>s clássicos e literatura era uma escolha natural, era meu sonho. Eu<br />
me sentava na biblioteca de clássicos, sob um raio de sol empoeira<strong>do</strong>, folhean<strong>do</strong><br />
textos sobre a Grécia antiga, decifran<strong>do</strong>-os. Eu me tornaria uma<br />
arqueóloga que lia Virginia Woolf numa tenda. Tive aulas sobre sexuali-
dade e ironia feminista no departamento de estu<strong>do</strong>s culturais, que estava<br />
na moda. Então, passei a usar roupas pretas e camufladas e era presunçosa.<br />
Evitava o olhar <strong>do</strong>s outros estudantes. Queria ser como eles; não<br />
gostava deles. A<strong>do</strong>rava aprender, mas nem isso era o que eu esperava. A<br />
arqueologia era seca e empoeirada. Eu não era tão inteligente quan<strong>do</strong><br />
pensava ser.<br />
Os amigos da escola ainda estavam por perto; to<strong>do</strong>s se mudaram para<br />
o centro, onde dividiam apartamentos, enquanto eu continuava na casa<br />
<strong>do</strong>s meus pais, no subúrbio. Meu pé na vida social escorregava num lamaçal<br />
de solidão e dúvida.<br />
Ouvia minha irmãzinha e o namora<strong>do</strong> rin<strong>do</strong> e fuman<strong>do</strong> maconha no<br />
quarto dela. Passava diante da porta fechada e ia para o meu quarto. Ficava<br />
lá, desolada, nas minhas roupas pretas, ouvin<strong>do</strong> The Cure e len<strong>do</strong> Titus<br />
Groan 1 a luz de velas, odian<strong>do</strong> o clichê em que havia me transforma<strong>do</strong>.<br />
Dezenove anos e me sentin<strong>do</strong> na meia idade.<br />
Will foi o primeiro cara que beijei e o primeiro que fez amor comigo.<br />
Eu o conheci de penetra numa festa. Por mais envergonhada que fosse,<br />
fui enredada pela fantasia e pelo devaneio, e ele me proporcionou um<br />
ano precioso. Confissões. Poesia. Beijos intensos em salas mal-iluminadas<br />
ao entardecer. Despi meu corpo para ele e, de algum mo<strong>do</strong>, naquele<br />
momento, tornei-me bela. Ele me deu rosas brancas porque eu a<strong>do</strong>rava.<br />
Pensei ter encontra<strong>do</strong> a perfeição, meu gêmeo, meu irmão. Seu corpo<br />
claro era lin<strong>do</strong>, não assusta<strong>do</strong>r; derretia na minha boca, sob o toque<br />
das palmas das minhas mãos. Por sob nossas franjas tingidas de preto<br />
sorríamos maliciosamente um para o outro. Eu lhe disse tu<strong>do</strong>. Eu estava<br />
apaixonada.<br />
Ele foi o primeiro a me magoar. A garota por quem me aban<strong>do</strong>nou<br />
tinha cabelo verde, uma argola no nariz e um charme meio amaluca<strong>do</strong>.<br />
Ela era selvagem e ousada. Tu<strong>do</strong> o que eu não era; não havia nada que eu<br />
pudesse fazer para lutar por ele. Agora era só eu, iludida e arrasada. Era<br />
como se o mun<strong>do</strong> tivesse para<strong>do</strong> de girar.<br />
1 N. <strong>do</strong> T.: Romance gótico <strong>do</strong> escritor britânico Mervyn Peake (1911-1968), publica<strong>do</strong> em 1946. É<br />
o primeiro <strong>livro</strong> de trilogia composta por Gormenghast (1950) e Titus Alone (1959).
Num dia em que os ventos <strong>do</strong> norte sopravam ásperos e secos, sentei-me<br />
à janela, em carne viva por causa da <strong>do</strong>r. Fumei meu primeiro cigarro e arranhei<br />
a pele com uma faca cega. Como tinha si<strong>do</strong> boazinha, que estúpida. A<br />
raiva e humilhação sopraram seus ventos quentes para dentro. Cortar, cortar,<br />
suavemente. Eu ficaria tão aberta. Conheci a satisfação <strong>do</strong> metal contra a pele<br />
e me fechei.<br />
Pouco tempo depois, aos 21 anos, fui passar seis meses mochilan<strong>do</strong> na<br />
Europa. Perambulan<strong>do</strong> por ruas estranhas, aprendi a auto-suficiência. Testei<br />
minha coragem, minha habilidade para sobreviver; houve momentos<br />
difíceis e solitários em que eu chorava na calçada ao entardecer, longe de<br />
casa. Isso me endureceu. Sentava junto à janela de um albergue vestin<strong>do</strong><br />
roupas velhas e botas empoeiradas. Para além das venezianas verdes desbotadas,<br />
estava a grandiosa cidade de Roma. O caderno em minhas mãos<br />
estava cheio de observações, citações, esboços a lápis das obras de arte que<br />
eu vira. Li as memórias de Casanova, Byron e Tácito. Ali ninguém me<br />
conhecia, ninguém observava. Sozinha, eu sonhava em paz; como uma<br />
<strong>do</strong>nzela numa torre.<br />
Sentava na piazza, toman<strong>do</strong> um espresso forte, e voltava o rosto para a<br />
luz <strong>do</strong> sol com um leve sorriso de realização por estar ali, por ser uma adulta<br />
no mun<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> voltei a Melbourne para continuar os estu<strong>do</strong>s, meu jeito<br />
de andar havia muda<strong>do</strong>. Era o início <strong>do</strong>s anos 1990. Antes de eu ir viajar, o<br />
Nirvana aparecera na cena musical e <strong>agora</strong> tu<strong>do</strong> explodia de energia.<br />
“Posso?”, pedi a um amigo que fumava um basea<strong>do</strong> numa festa. A maconha<br />
me deixou tonta, me deu conforto. O efeito não era tão assusta<strong>do</strong>r<br />
quanto eu temia. Era agradável.<br />
“Põe um pouco pra mim”, disse a outro amigo servin<strong>do</strong> vodca em outra<br />
festa. E comprei uma garrafa no dia seguinte. Temia perder o controle<br />
na frente <strong>do</strong>s outros; bebi sozinha.<br />
“Claro, vou morar com você”, disse para Matilda, minha amiga da<br />
escola que tinha um quarto vago em St. Kilda. E finalmente tu<strong>do</strong> começou.<br />
Aos 21 anos eu caía numa nova vida, cheia de amigos, música e<br />
bravatas.<br />
St. Kilda era uma região famosa por seus apartamentos art déco, seus<br />
cafés e bares bacanas, os a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>s pubs antigos; a praia, o merca<strong>do</strong> de
artesanato, os quiosques à beira-mar; os ferals 2 e as pessoas bonitas; os<br />
tipos estranhos e os ban<strong>do</strong>s de turistas amorfos. Naquela época, ainda era<br />
barato o suficiente para que estudantes morassem por lá, em apartamentos<br />
velhos, mas elegantes em ruas arborizadas, perto da rua principal, da<br />
praia, <strong>do</strong>s parques e uns <strong>do</strong>s outros. Nos finais de semana, vinha gente de<br />
toda a cidade para beber, nadar e ver vitrines em Acland Street; à noite,<br />
em algumas ruas da região as garotas usavam muito pouca roupa, mesmo<br />
no inverno, e os carros ficavam dan<strong>do</strong> voltas. St. Kilda estava repleta de<br />
artistas, boêmios, pessoas ricas, música, sexo e drogas.<br />
De repente eu estava no meio de tu<strong>do</strong> isso. Voltava para casa tarde<br />
da noite sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> pub, em alguns dias esbarrava com os amigos na rua<br />
e passava longas tardes toman<strong>do</strong> café e jogan<strong>do</strong> bilhar. Ia a festas onde<br />
conhecia to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Era beijada contra paredes, perdia aulas porque<br />
estava na cama com um cara esguio de dreadlocks. To<strong>do</strong>s nós fizemos<br />
piercings no nariz.<br />
Meu alegre grupo de amigos vagueava pelo subúrbio. Fumei maconha<br />
de novo. Algo em mim queria saber, conquistar. Eu gostava <strong>do</strong> torpor, de<br />
como a droga elucidava meus pensamentos. E depois cigarros. Parecia um<br />
progresso, ser capaz de afrouxar o rígi<strong>do</strong> controle sobre mim. Gostava de<br />
manter uma garrafa de vinho ao la<strong>do</strong> da cama. Antes de um show de rock,<br />
cheiramos speed, e senti a excitação se espalhar a partir <strong>do</strong> meu estômago.<br />
Aprendi a tocar baixo e acabei em cima <strong>do</strong> palco num pub com um ban<strong>do</strong><br />
de amigos, fazen<strong>do</strong> um som pesa<strong>do</strong> e glorioso. Pensei, nunca imaginei que<br />
seria tão corajosa.<br />
Havia um corpo na minha cama, uma série de corpos na minha cama,<br />
rapazes ardentes, galopan<strong>do</strong> até o orgasmo, meu rosto fazen<strong>do</strong> as expressões<br />
certas, minha mente vazia. O sexo não era ruim, mas eu gostava mesmo<br />
<strong>do</strong>s beijos, de ficarmos deita<strong>do</strong>s juntos em silêncio depois. Não fazia<br />
aquilo pelo prazer. Não achava que minha carne insensível poderia ter<br />
prazer daquele jeito. Will e eu sentíamos prazer, mas ele se fora. Agora o<br />
lance era o brilho da vitória, o cheiro da minha pele depois <strong>do</strong> sexo, era<br />
exalar algo pareci<strong>do</strong> ao desejo.<br />
2 N. <strong>do</strong> T.: Gíria tipicamente australiana que designa uma subcultura típica <strong>do</strong>s anos 1990, com<br />
ecos hippies, caracterizada pela oposição aos yuppies, cabelos colori<strong>do</strong>s e piercings, pouco apego<br />
a hábitos de higiene e o uso de drogas como a maconha.
No sexo, o mun<strong>do</strong> embrenhava-se nos limites <strong>do</strong> meu corpo. Acolhi o<br />
mun<strong>do</strong> dentro de mim, dentro da minha própria carne. Ele teve espasmos<br />
de gratidão, então o expeli novamente e meu corpo continuou imacula<strong>do</strong>.<br />
Foi isso o que aprendi.<br />
Não tinha certeza de porque tinha esses casos, exceto que queria agradar<br />
e ser vista agradan<strong>do</strong>. Eram rapazes a<strong>do</strong>ráveis, suas bocas tinham o gosto<br />
amargo <strong>do</strong> nervosismo, mas, ainda envergonha<strong>do</strong>s diante <strong>do</strong>s apetites <strong>do</strong> meu<br />
corpo, eu não conseguia dizer a eles o que me dava prazer. Esses garotos não<br />
eram para sempre, eram para o momento. Na manhã seguinte, quan<strong>do</strong> iam<br />
embora, eu lhes dava adeus, cheia de coragem, na porta da rua.<br />
Depois lia, saborean<strong>do</strong> as palavras, que me transportavam de mo<strong>do</strong><br />
mágico até mun<strong>do</strong>s ilumina<strong>do</strong>s. Fumava o narguilé, folhean<strong>do</strong> página por<br />
página e ainda sonhan<strong>do</strong>.<br />
No meu ano de formatura, escrevi uma tese sobre Anaïs Nin, que registrou<br />
em seus escritos surtos selvagens de sexo e amor. A patologia <strong>do</strong><br />
comportamento dela me excitava. Embriagada pelas semelhanças que enxergava<br />
em nossas naturezas — ansiosas, apaixonadas, reprimidas, frágeis<br />
—, vestia-me como ela usan<strong>do</strong> pesa<strong>do</strong>s vesti<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 30 e sapatos de<br />
salto, batom vermelho e um coque bem feito. Por um ano li Anaïs e aspirei<br />
a sua elegância, sua ousadia, sua realização sexual. Eu estava apaixonada<br />
por um jovem carismático chama<strong>do</strong> Max que admirava o amante de Nin,<br />
Henry Miller. Em seu quarto mal-ilumina<strong>do</strong>, salpica<strong>do</strong> de sol, na mesma<br />
rua <strong>do</strong> meu, conversávamos sem parar. Filosofia, arte, literatura. Ocasionalmente<br />
ele me levava para a cama. E quan<strong>do</strong>, um ano mais tarde, chorei<br />
inconsolavelmente no chão daquele quarto porque não conseguíamos ser<br />
felizes juntos, disse a mim mesma que Anaïs também havia senti<strong>do</strong> essa<br />
<strong>do</strong>r, e a transforma<strong>do</strong> em algo belo.<br />
Minha vida estava em ascensão e brilhava, como uma onda ao sol. Continuei<br />
próxima à minha família, cuja casa cheia de <strong>livro</strong>s, bom humor e um<br />
diverti<strong>do</strong> caos sempre me alegraram. Formei-me com louvor em artes — o<br />
último ano não fora o que eu esperava, mas o que eu podia querer depois de<br />
passar a maior parte <strong>do</strong> tempo jogan<strong>do</strong> bilhar com Max e me dedican<strong>do</strong> a<br />
melodramas românticos? Meus chefes na livraria me ofereceram mais trabalho<br />
meio perío<strong>do</strong>. Eu não iria muito longe com meus estu<strong>do</strong>s, mas tinha<br />
0
certeza que encontraria um lugar no mun<strong>do</strong> da literatura, portanto, vender<br />
romances era um começo bom como qualquer outro. A idéia de um emprego<br />
sisu<strong>do</strong> num escritório e de uma carreira profissional me causava repulsa.<br />
Eu tinha 23 anos e minha vida estava apenas começan<strong>do</strong>.<br />
Saí <strong>do</strong> apartamento de Matilda e fui para uma grande casa vitoriana<br />
mais perto de Acland Street. Era clara, com pé-direito alto e claro, lareiras<br />
de ferro nunca usadas e um belo jardim cheio de flores e pés de maconha.<br />
Eu morava com Cathy e Dan, um casal um pouco mais velho que tocava<br />
em bandas de rock e havia decora<strong>do</strong> a cozinha com cerâmicas pintadas<br />
em cores vivas. Meu quarto era mal-ilumina<strong>do</strong> e frio, com o gesso <strong>do</strong> forro<br />
descascan<strong>do</strong>. Havia um <strong>do</strong>ce limoeiro diante da minha janela de correr.<br />
Decorei o quarto em estilo anos 30, com cortinas e abajures; pendurei<br />
meus vesti<strong>do</strong>s Anaïs em uma parede. A casa sempre cheirava a incenso e<br />
maconha.<br />
Eu ainda era próxima a Max e aos amigos dele, apesar de não sermos<br />
mais amantes. Na casa dele, na esquina da minha, disse oi para um jovem<br />
magro e intenso com olhos pensativos e o hábito de rabiscar nervosamente<br />
num bloco de desenho. Nós já tínhamos nos encontra<strong>do</strong>, em festas e vernissages.<br />
Espiei o que ele desenhava: um auto-retrato, exageran<strong>do</strong> sua postura<br />
encurvada, sua magreza, seu olhar de apreensão. E um retrato meu,<br />
graciosa e também magra. Embaixo <strong>do</strong> desenho, enquanto eu observava,<br />
James escreveu, sem olhar para mim, gosto de você.<br />
Tiran<strong>do</strong> a caneta da mão dele, puxei o bloco na minha direção. Acho<br />
que também gosto de você.<br />
Max passou atrás de James e piscou.<br />
*<br />
Amor, o amor me invadia como a luz <strong>do</strong> sol.<br />
Nas noites de verão em St. Kilda, com James, à beira <strong>do</strong> mar, nossas<br />
roupas modernas e cabeças felizes, de mãos dadas, tu<strong>do</strong> parecia tão jovem,<br />
fresco e possível.<br />
A vida era só leveza no verão <strong>do</strong>s meus 23 anos. A leveza <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s de<br />
James no meu peito durante o sono, a leveza <strong>do</strong> meu espírito enquanto<br />
passeávamos pela Acland Street em busca de chocolate e vodca à meianoite.<br />
Sentávamos na varanda dele ao cair da noite, pareci<strong>do</strong>s em nossas
camisas xadrez de manga curta, e bebíamos salsaparilha. James tocava<br />
violão. Acendíamos os cigarros um <strong>do</strong> outro.<br />
James era minha felicidade. Apesar de quatro anos mais novo que eu,<br />
ele tinha aquele olhar profun<strong>do</strong> e meditativo das almas antigas. Morava<br />
perto de casa, com Jodie, a irmã de um <strong>do</strong>s caras que dividiam a casa com<br />
Max; Jodie tinha um namora<strong>do</strong>, Sam; outras pessoas apareciam sempre<br />
por lá. E assim eu me vi num novo círculo de pessoas mais jovens.<br />
Havia arte underground que eu não conhecia e música diferente; uma<br />
certa alegria e satisfação no mun<strong>do</strong> deles, coisas novas sobre as quais conversar.<br />
Eram tão inteligentes e bacanas, aquelas pessoas, com seu humor<br />
sacana. Eu me sentia mais velha e mais sabida, mas não muito.<br />
Subia no palco, sob as luzes vermelhas, tocava com minha banda e<br />
fazia pose para James, ajoelha<strong>do</strong> no chão abaixo, e ria dele em meio ao ar<br />
enfumaça<strong>do</strong>. Nos dias ensolara<strong>do</strong>s nos parques lia para ele meus poemas<br />
favoritos de Yeats, Judith Wright e Stevie Smith, e em troca ele compunha<br />
para mim cantigas engraçadas e melancólicas. Nós fazíamos amor to<strong>do</strong><br />
dia, e sob suas mãos e seu corpo esguio eu finalmente encontrei o prazer,<br />
me deixei levar por ele. Atrasada para o trabalho, me curvava para beijálo<br />
e me despedir, e James ainda sonolento surgia entre as cobertas e me<br />
puxava de volta; incapaz de lutar, eu afundava novamente em seu abraço.<br />
Nada importava. O amor era a coisa mais importante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong>, aos <strong>do</strong>is meses de namoro, descobri que estava grávida, até<br />
isso pareceu uma espécie de aventura.<br />
“Acho que não podemos... devemos...”, disse.<br />
“Não. Mas... oh, Kate.”<br />
Aquilo me deixou <strong>do</strong>ente; esse foi o far<strong>do</strong>. Tentamos imaginar que havia<br />
um ser vivo dentro de mim, mas era impossível. Só sabia que me sentia<br />
insuportavelmente <strong>do</strong>ente, e queria que aquilo terminasse. Não queríamos<br />
uma criança: nós <strong>do</strong>is dividíamos a casa com outras pessoas e só tínhamos<br />
nossos quartos; James tinha 20 anos. Era muito ce<strong>do</strong>, precipita<strong>do</strong>, um acidente.<br />
Quan<strong>do</strong> fui à clinica fazer o aborto, senti alívio. Recusei a anestesia<br />
geral, porque queria presenciar o momento, sentir a <strong>do</strong>r. Doía, mas eu<br />
achava que talvez merecesse aquilo.<br />
Depois, as coisas continuaram iguais. Se James sentiu pesar, escondeu<br />
de mim. Se eu senti pesar, não tinha consciência.