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novos olhares à pedagogia... - Universidade de Caxias do Sul

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Resumo:<br />

NOVOS OLHARES À PEDAGOGIA...<br />

Jaqueline <strong>de</strong> Menezes R. Poças 1 - ULBRA<br />

Situan<strong>do</strong>-se na perspectiva <strong>do</strong>s Estu<strong>do</strong>s Culturais em Educação e inspiran<strong>do</strong>-se em teorizações <strong>de</strong> acento<br />

foucaultiano, este texto propõe uma discussão sobre as mudanças ocorridas no campo da Educação na passagem<br />

da Ida<strong>de</strong> Média para a Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna e <strong>de</strong>sta para a Contemporaneida<strong>de</strong>. Na tentativa <strong>de</strong> “rastrear condições <strong>de</strong><br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> atual discurso pedagógico” (BUJES, 2004, p.44), serão abordadas as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

envolvidas nesse campo que, ao longo da história, instituíram diferentes saberes, diferentes controles, diferentes<br />

discursos, muitas vezes naturaliza<strong>do</strong>s em um espaço <strong>de</strong> ficção e <strong>de</strong> certezas no campo <strong>de</strong> formação <strong>de</strong><br />

professores. Nesse senti<strong>do</strong>, o estu<strong>do</strong> analisa algumas formulações relacionadas com a prática <strong>do</strong>cente,<br />

i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong>-as, <strong>de</strong>screven<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> como foram produzidas, discutin<strong>do</strong> os seus <strong>de</strong>slocamentos e<br />

transformações, na busca <strong>de</strong> problematizar os discursos que vêm produzin<strong>do</strong> o sujeito professor na atualida<strong>de</strong>.<br />

Palavras-chave: formação <strong>do</strong>cente, discursos pedagógicos, po<strong>de</strong>r-saber.<br />

Os escassos estu<strong>do</strong>s que procuram analisar quais são as funções sociais cumpridas<br />

pelas instituições escolares são ainda praticamente irrelevantes frente a histórias<br />

da educação e a to<strong>do</strong> um enxame <strong>de</strong> trata<strong>do</strong>s pedagógicos que contribuem para<br />

alimentar a rentável ficção da condição natural da escola (VARELA; ALVAREZ-<br />

URIA, 1992, p. 68).<br />

A inspiração para investigar a formação <strong>do</strong>cente contemporânea me vem das palavras<br />

<strong>de</strong> Fischer (2001, p. 201): “A <strong>de</strong>scrição minuciosa <strong>de</strong> práticas sociais em sua <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong><br />

histórica – mergulhadas em relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, produzidas discursivamente e ao mesmo tempo<br />

produtoras <strong>de</strong> discursos e saberes” é que me leva a indagar como os alunos <strong>do</strong>s cursos <strong>de</strong><br />

formação se constituem como sujeitos a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s textos que operam como<br />

regula<strong>do</strong>res da prática pedagógica.<br />

Há um conjunto <strong>de</strong> enuncia<strong>do</strong>s nos textos <strong>de</strong> formação que, em uma análise<br />

foucaultiana, não se esgotam na língua, nem no senti<strong>do</strong> – são sempre um acontecimento.<br />

Trata-se <strong>de</strong> um exercício que possibilita apontar a contingência <strong>do</strong> fazer <strong>do</strong>cente, uma vez que<br />

1 Mestre em Educação, Psicopedagoga e Licenciada em Pedagogia pela ULBRA. Atualmente, é professora <strong>do</strong><br />

curso <strong>de</strong> Pedagogia da ULBRA/Canoas. E-mail: jaque.pocas@terra.com.br


“[...] nosso olhar, inclusive naquilo que é evi<strong>de</strong>nte, é muito menos livre <strong>do</strong> que pensamos”<br />

(LARROSA, 1994, p.83). Há to<strong>do</strong> um contexto, uma condição histórica que po<strong>de</strong> tornar algo<br />

absoluto, restrito a evidências. É comum escutarmos certos enuncia<strong>do</strong>s e até mesmo nos<br />

valermos <strong>de</strong>les, pois, <strong>de</strong> forma geral, estão presentes nos discursos escolares. No discurso<br />

pedagógico, não é diferente. Circulam conceitos tão rotineiros, que passam a ser toma<strong>do</strong>s<br />

como óbvios e indubitáveis.<br />

E aqui vale recorrer <strong>à</strong>s palavras <strong>de</strong> Nóvoa:<br />

Tu<strong>do</strong> são evidências nos textos e <strong>de</strong>bates, nas políticas e nas reformas educativas.<br />

Ninguém tem dúvidas. To<strong>do</strong>s têm certezas. Definidas. Evidências <strong>do</strong> senso comum.<br />

[...] Crenças. Doutrinas. Visões. Dogmas. Tu<strong>do</strong> mistura<strong>do</strong> num amálgama <strong>de</strong><br />

ilusões. É evi<strong>de</strong>nte que só pela educação se conseguirá a regeneração, e o<br />

progresso, e a mo<strong>de</strong>rnização, e a industrialização, e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> país.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente. [...] os pedagogos têm crenças inabaláveis na educação. Os antipedagogos<br />

também. [...] quan<strong>do</strong> se trata da educação, nenhum político tem dúvidas,<br />

nenhum comenta<strong>do</strong>r se engana, nenhum português hesita. Palavras gastas. Inúteis.<br />

Banalida<strong>de</strong>s. Mentiras. O que é evi<strong>de</strong>nte, mente. Evi<strong>de</strong>ntemente (NÓVOA, 2005,<br />

p.14).<br />

Portanto, instigada por todas essas provocações, sou levada a perceber que “é<br />

necessário uma conversão <strong>do</strong> olhar e da atitu<strong>de</strong> [...]” (FOUCAULT, 2008a, p.126) para<br />

auscultar os enuncia<strong>do</strong>s, as proposições que compõem os discursos <strong>de</strong> formação <strong>do</strong>cente. Eis<br />

o sentimento <strong>de</strong> suspeita e problematização que a citação <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong>ste texto causou-me.<br />

Afinal, tratar alguns estu<strong>do</strong>s sobre a educação como um enxame <strong>de</strong> trata<strong>do</strong>s pedagógicos que<br />

alimentam a ficção da condição natural da escola, <strong>de</strong> certa forma, aguçou a minha<br />

curiosida<strong>de</strong> e a dúvida diante <strong>de</strong> certezas que enredavam minhas práticas cotidianas. Foi esse<br />

sentimento que me oportunizou olhar a Pedagogia <strong>de</strong> diferentes mo<strong>do</strong>s – mo<strong>do</strong>s que não<br />

“<strong>de</strong>stroem” concepções, mas que possibilitam problematizar as relações <strong>do</strong> sujeito professor<br />

com suas práticas.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, passei a refletir sobre o enxame <strong>de</strong> trata<strong>do</strong>s pedagógicos. Percebi a<br />

marcante presença <strong>de</strong> pesquisas que enaltecem a verda<strong>de</strong> e a salvação <strong>de</strong> uma escola: espaço<br />

<strong>de</strong> ficção sustentada por uma racionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> progresso e <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.<br />

Seguin<strong>do</strong> Varela e Alvarez-Uria (1992), Veiga-Neto (2008), Bujes (2001, 2004) e<br />

Veiga (2002), po<strong>de</strong>mos perceber que muitos conceitos relaciona<strong>do</strong>s <strong>à</strong> escola são naturaliza<strong>do</strong>s<br />

e que, ao longo da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, se estabelecem “como um gran<strong>de</strong> conjunto <strong>de</strong> ‘máquinas’<br />

que, operan<strong>do</strong> articuladamente entre si, <strong>de</strong>sempenham um papel crucial para a formação<br />

política, cultural e econômica da socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal” (VEIGA-NETO, 2008, p.142).<br />

2


Analisar, ainda que brevemente, o movimento <strong>de</strong> escolarização que se instala na<br />

Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, permitiu-me pensar sobre a emergência <strong>de</strong> discursos pedagógicos<br />

contemporâneos. Essas condições têm uma história bastante recente e contribuíram<br />

significativamente para a produção <strong>do</strong> sujeito mo<strong>de</strong>rno. Há uma série <strong>de</strong> rupturas e<br />

continuida<strong>de</strong>s estabelecidas entre a Ida<strong>de</strong> Média e o século XVI. Isso significa, conforme<br />

Veiga-Neto (2004), que aquilo a que se assiste nesse século não é um aperfeiçoamento ou<br />

evolução <strong>do</strong>s saberes e práticas educacionais que tinham se acumula<strong>do</strong> até então, mas uma<br />

“verda<strong>de</strong>ira revolução nas maneiras <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a Educação e nas maneiras <strong>de</strong> praticá-la [...]”<br />

(p. 65, grifos <strong>do</strong> autor).<br />

Feitos esses esclarecimentos, indico que este texto está organiza<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong>s<br />

mo<strong>de</strong>los pedagógicos discuti<strong>do</strong>s por Varela (1996) e Noguera-Ramírez (2008), tratan<strong>do</strong> das<br />

possíveis relações entre seus estu<strong>do</strong>s e a racionalida<strong>de</strong> que atravessa os diferentes mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

pensar a educação.<br />

A PEDAGOGIA COMO UMA MÁQUINA DE PRODUÇÃO<br />

No senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> cumprir, então, com os propósitos cita<strong>do</strong>s na seção prece<strong>de</strong>nte, aponto<br />

alguns elementos da história que, creio, po<strong>de</strong>m auxiliar na compreensão <strong>de</strong> algumas das<br />

configurações atuais da escolarização.<br />

Talvez seja interessante chamar atenção para uma série <strong>de</strong> mudanças instituídas no<br />

século XVI, perío<strong>do</strong> em que começa a funcionar uma nova maneira <strong>de</strong> perceber e <strong>de</strong> pensar a<br />

or<strong>de</strong>m no mun<strong>do</strong> (VEIGA-NETO, 2004). O enfraquecimento da hegemonia católica, a<br />

exaustão <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo econômico feudal, a crescente urbanização, episódios <strong>de</strong> guerra, fome e<br />

epi<strong>de</strong>mia, o surgimento da burguesia, entre outras situações, implicaram, conforme o autor,<br />

notáveis transformações <strong>do</strong> cotidiano que <strong>de</strong>ixaram para trás muitos valores e esquemas<br />

cognitivos. “Mas o que, <strong>de</strong> fato, já ocupava as mentes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as últimas décadas <strong>do</strong> século<br />

XV, era um olhar interessa<strong>do</strong> em compreen<strong>de</strong>r a finitu<strong>de</strong>, o nosso papel neste mun<strong>do</strong> e a<br />

nossa situação diante da própria Natureza” (Id., 2004, p. 71).<br />

Tais fatos cita<strong>do</strong>s por Veiga-Neto (2004) permitem-nos visualizar o enfoque da<strong>do</strong> <strong>à</strong><br />

experiência humana e o novo entendimento sobre a organização <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> humano que<br />

começou a funcionar e dar certo.<br />

A racionalida<strong>de</strong> voltada <strong>à</strong> or<strong>de</strong>nação esten<strong>de</strong>u-se pela Europa, configuran<strong>do</strong> uma nova<br />

organização <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> espaço em várias práticas sociais. Entre essas práticas, está o<br />

aparecimento da chamada escola nacional, que se esboça a partir <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> condições<br />

3


que teve como efeito separar e diferenciar o segmento infantil, tais como: a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> um<br />

estatuto da infância, a emergência <strong>de</strong> um espaço específico para educação das crianças, o<br />

aparecimento <strong>de</strong> um corpo <strong>de</strong> especialistas da infância <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> teorias e tecnologias<br />

específicas e a imposição da obrigatorieda<strong>de</strong> escolar (VARELA E ALVAREZ-URIA, 1992).<br />

Segun<strong>do</strong> os autores, os amplos auditórios on<strong>de</strong> os alunos se dispunham justapostos sob<br />

o coman<strong>do</strong> <strong>de</strong> um mestre por alguns minutos, para em seguida permanecerem ociosos junto<br />

aos <strong>de</strong>mais, foi substituída por um espaço fecha<strong>do</strong> e organiza<strong>do</strong>. As escolas religiosas, que<br />

crescentemente se expandiam para a imposição da fé, pouco a pouco, iam organizan<strong>do</strong> o<br />

espaço escolar. A Ratio studiorum, conjunto <strong>de</strong> prescrições meto<strong>do</strong>lógicas organiza<strong>do</strong> pelos<br />

jesuítas após um minucioso preparo, passa a amparar o funcionamento das escolas.<br />

Esse conjunto <strong>de</strong> prescrições “regulamenta a ocupação <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> forma<br />

tal que o aluno fica aprisiona<strong>do</strong> numa quadrícula e dificilmente po<strong>de</strong>rá questionar a separação<br />

das seções, os frequentes exercícios escritos [...] e certames aos quais se vê submeti<strong>do</strong>”<br />

(ibi<strong>de</strong>m, p.80). A individualização e a constante ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> aluno vão sen<strong>do</strong> instituídas no<br />

processo <strong>de</strong> aprendizagem, assim como o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> imposto ao professor.<br />

As crianças começam a ter maior relevância política e social, mesmo antes <strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>finir um estágio temporal 2 que hoje <strong>de</strong>nominamos infância, segun<strong>do</strong> Varela (1996). A<br />

diferenciação dada <strong>à</strong> “terna ida<strong>de</strong>” representa o rompimento da existência <strong>de</strong> uma “unida<strong>de</strong><br />

fundamental entre os fenômenos ‘naturais’, ‘cósmicos’ e ‘sobrenaturais’” (p.79). É a essa<br />

ida<strong>de</strong>, que não faz mais parte <strong>de</strong> uma continuida<strong>de</strong> cíclica e inevitável, que os renascentistas<br />

vão conferir <strong>de</strong>terminadas qualida<strong>de</strong>s.<br />

Sustentada nessas características, a educação institucional, pre<strong>do</strong>minantemente urbana<br />

e elitista, é intensificada. Para Naro<strong>do</strong>wski (2001), a narração <strong>de</strong> uma infância <strong>de</strong>sejada po<strong>de</strong><br />

ser analisada a partir <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejada. “A <strong>pedagogia</strong>, enquanto produção discursiva<br />

<strong>de</strong>stinada a regrar e explicar a produção <strong>de</strong> conhecimentos no âmbito educativo-escolar,<br />

<strong>de</strong>dica seus esforços a fazer <strong>de</strong>sses pequenos ‘futuros homens <strong>de</strong> proveito’, ou ‘adapta<strong>do</strong>s <strong>à</strong><br />

socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneira criativa’, ou sujeitos críticos e transforma<strong>do</strong>res’, etc.” (p. 21).<br />

O autor ressalta que, na Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, a criança se torna a base para a construção <strong>do</strong><br />

conceito <strong>de</strong> aluno e da produção pedagógica, produção esta que, com suas transformações ao<br />

longo <strong>do</strong>s séculos, originou movimentos ou escolas pedagógicas. Sustentadas numa<br />

modalida<strong>de</strong> específica para formar gerações, a partir <strong>de</strong> manuais, organizam-se<br />

2 Embora hoje se consi<strong>de</strong>re que a infância é mais <strong>do</strong> que um tempo a marcar o <strong>de</strong>correr da vida, Varela no texto<br />

cita<strong>do</strong>, faz referência explícita a <strong>de</strong>finição da infância como fase ou estágio temporal.<br />

4


“aprendizagens e internalizações <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> diferente aos anteriores, uma novida<strong>de</strong>”<br />

(NARODOWSKI, 2001, p. 27).<br />

O nascimento da Pedagogia mo<strong>de</strong>rna ocorre na esteira <strong>do</strong> pensamento da or<strong>de</strong>nação<br />

das coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A Didática Magna, i<strong>de</strong>alizada no século XVII por Comenius, expressa<br />

alguns <strong>do</strong>s mais relevantes mecanismos que se perpetuam ao longo <strong>do</strong>s últimos séculos<br />

(NARODOWSKI, 2001), sobretu<strong>do</strong> no que se refere <strong>à</strong> or<strong>de</strong>m e <strong>à</strong> disciplina nos afazeres<br />

relaciona<strong>do</strong>s <strong>à</strong>s práticas <strong>de</strong> ensino. Isso não significa que Comenius tenha esboça<strong>do</strong> em um<br />

presente momento uma nova forma <strong>de</strong> pensar a educação. “Não é que antes [<strong>de</strong>le] esses<br />

elementos nunca tenham apareci<strong>do</strong>; é possível constatar que em não poucos trata<strong>do</strong>s<br />

pedagógicos <strong>do</strong> século XVI se encontram muitos <strong>de</strong>les pleitea<strong>do</strong>s com significativa audácia”<br />

(p. 59).<br />

Em sua obra, a percepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e da vida humana põe em relevo a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um processo civiliza<strong>do</strong>r. Para Comenius, o discurso pedagógico encontra razão <strong>de</strong> ser na<br />

educação <strong>do</strong>s homens, pois, segun<strong>do</strong> ele, estes carecem <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> conhecimento,<br />

necessitam <strong>de</strong> recursos que possibilitem seu crescimento. Segun<strong>do</strong> o autor, o homem é<br />

educável; a partir <strong>de</strong>ssa premissa, Comenius <strong>de</strong>lineia o objetivo <strong>de</strong> “ensinar tu<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s”. Tal<br />

objetivo está conti<strong>do</strong> naquilo que ele <strong>de</strong>nominou <strong>de</strong> “i<strong>de</strong>al pansófico”. Nesse i<strong>de</strong>al, estão<br />

contempla<strong>do</strong>s os gêneros e classes sociais, sem discriminação.<br />

Inseri<strong>do</strong> na tradição judaico-cristã, Comenius acreditava que os indivíduos, nasci<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong> peca<strong>do</strong> original, não possuíam uma essência boa ou má (COUTINHO, 2008). Nessa<br />

lógica, o conhecimento, assim como o batismo, os aproximaria <strong>do</strong> bem.<br />

Ao longo <strong>do</strong> discurso comeniano, ninguém fica fora da pansofia 3 . Decorre disso a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sequenciação e or<strong>de</strong>namento na proposição <strong>de</strong> um currículo escolar a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong><br />

ao <strong>de</strong>senvolvimento, bem como a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um amplo acesso <strong>à</strong> educação institucional, até<br />

então pre<strong>do</strong>minantemente urbana e elitista.<br />

Para Comenius, a situação da educação <strong>de</strong> sua época apontava muitas dificulda<strong>de</strong>s. Na<br />

Didática Magna, <strong>de</strong>screveu os obstáculos e as carências enfrenta<strong>do</strong>s nas situações <strong>de</strong> ensino.<br />

Entre estas, <strong>de</strong>stacava-se a organização da estrutura escolar. Assim, o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> “ensinar tu<strong>do</strong> e<br />

a to<strong>do</strong>s” não é o único aspira<strong>do</strong> por Comenius; “ao contrário, sob [ele], encontra-se outro<br />

i<strong>de</strong>al menos proclama<strong>do</strong>: o cumprimento da or<strong>de</strong>m em tu<strong>do</strong>” (NARODOWSKI, 2006, p. 28).<br />

3 Refere-se ao i<strong>de</strong>al educativo aspira<strong>do</strong> por Comenius, cuja pretensão é “ensinar tu<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s”. Nesse senti<strong>do</strong>, o<br />

ensino seria <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> a “to<strong>do</strong>s”, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> gênero, classe social e ida<strong>de</strong>.<br />

5


A tarefa educativa necessitava ser or<strong>de</strong>nada e planejada em seus aspectos organizacionais,<br />

especialmente no que se refere <strong>à</strong> distribuição <strong>de</strong> tempo.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, Comenius <strong>de</strong>stacava uma série <strong>de</strong> pressupostos que objetivavam o<br />

alcance <strong>do</strong> conhecimento, centran<strong>do</strong>-se especialmente no ensino:<br />

Nós ousamos prometer uma Didáctica Magna, ou seja, uma arte universal <strong>de</strong><br />

ensinar tu<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s: <strong>de</strong> ensinar <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> certo, para obter resulta<strong>do</strong>s; <strong>de</strong> ensinar <strong>de</strong><br />

mo<strong>do</strong> fácil, portanto, sem que <strong>do</strong>centes e discentes se molestem ou enfa<strong>de</strong>m, mas,<br />

ao contrário, tenham gran<strong>de</strong> alegria: <strong>de</strong> ensinar <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> sóli<strong>do</strong>, não<br />

superficialmente, <strong>de</strong> qualquer maneira, mas para conduzir <strong>à</strong> verda<strong>de</strong>ira cultura, aos<br />

bons costumes, a uma pieda<strong>de</strong> mais profunda (p.13).<br />

O méto<strong>do</strong> fazia-se necessário, uma vez que a utopia comeniana aspirava a um<br />

programa geral <strong>de</strong> universalização <strong>do</strong> ensino escolar (NARODOWSKI, 2006), também<br />

chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> “simultaneida<strong>de</strong> sistêmica”. Trata-se <strong>de</strong> uma proposta meto<strong>do</strong>lógica que buscava<br />

a harmonia entre as instituições escolares e “em to<strong>do</strong>s os níveis da vida escolar, seja nos<br />

tempos, seja nos méto<strong>do</strong>s, seja nos conteú<strong>do</strong>s e, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong>, em todas as ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong><br />

professor” (ibi<strong>de</strong>m, p. 58).<br />

Essas i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Comenius apontadas na Didática Magna que brevemente expus até<br />

aqui, bem como as aspirações da Ratio studiorum, contribuíram para fazer funcionar o que<br />

Varela e Alvarez-Uria (1992) chamam <strong>de</strong> maquinaria escolar – uma série <strong>de</strong> dispositivos que,<br />

ao longo <strong>do</strong> tempo, se aperfeiçoaram e possibilitaram a constituição <strong>de</strong> um amplo aparato <strong>de</strong><br />

escolarização. Ao longo <strong>do</strong> século XVII e início <strong>do</strong> século XVIII, a aspiração <strong>de</strong> Comenius<br />

quanto <strong>à</strong> organização da estrutura escolar mostra-se na separação <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>s e sexo, em escolas<br />

mais organizadas, dispostas com um programa <strong>de</strong> seriação curricular, exames e notas. Nesse<br />

perío<strong>do</strong>, evi<strong>de</strong>nciam-se efeitos sobre a constituição mo<strong>de</strong>rna <strong>do</strong>s campos <strong>do</strong> saber e sua<br />

hierarquização <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> <strong>à</strong> intensificação da produção científica, representada especialmente<br />

pelas i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Francis Bacon (BUJES, 2004).<br />

Aqui é preciso fazer um breve comentário acerca <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> outro filósofo, John<br />

Locke, sobretu<strong>do</strong> no que se refere <strong>à</strong> educação da classe nobre e burguesa e <strong>à</strong> sua crítica ao<br />

inatismo. Suas i<strong>de</strong>ias sustentam condições <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> para a afirmação das classes<br />

sociais. Segun<strong>do</strong> Trisciuzzi e Cambi (apud Bujes), para Locke, “é a educação que distingue as<br />

classes elevadas das inferiores, sen<strong>do</strong> assim, o maior patrimônio que as classes ‘distinguidas’<br />

po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ixar aos seus filhos são: virtu<strong>de</strong>, sabe<strong>do</strong>ria, boas maneiras e instrução” (2001, p. 45).<br />

Na ação contra o inatismo, Locke <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar a criança da natureza que<br />

a torna frágil, a fim <strong>de</strong> conduzi-la <strong>à</strong> razão através <strong>do</strong> controle pedagógico (id., 2001). Tal<br />

6


enfoque vai instituin<strong>do</strong> uma educação cada vez mais elitizada 4 , uma vez que apenas as<br />

crianças da nobreza e da burguesia nascente tinham acesso <strong>à</strong> escola.<br />

O enfoque no ensino e na instrução reforça a importância da intervenção <strong>do</strong> mestre,<br />

centro da ação pedagógica, sobre a conduta das crianças. O conjunto <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns, da<br />

organização <strong>do</strong>s espaços, <strong>do</strong>s tempos, da estrutura <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s, irá constituir uma rotina<br />

inflexível na obtenção da obediência e disciplina: características próprias da primeira<br />

Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, que coloca em funcionamento uma série <strong>de</strong> dispositivos disciplinares <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,<br />

visan<strong>do</strong> a fabricar indivíduos úteis (FOUCAULT, 2008a). No que se refere <strong>à</strong> educação, tem-<br />

se o aluno receptor <strong>do</strong> ensino, moldável <strong>à</strong>s ações <strong>de</strong> instrução conduzidas pelo mestre.<br />

Varela (1996) <strong>de</strong>nomina esse mo<strong>de</strong>lo pedagógico que se suce<strong>de</strong> no ensino <strong>do</strong>s jesuítas<br />

e se generaliza a partir <strong>do</strong> século XVIII como <strong>pedagogia</strong> disciplinar. As <strong>pedagogia</strong>s<br />

disciplinares, segun<strong>do</strong> as teorizações <strong>de</strong> Michel Foucault, são representativas <strong>de</strong> um novo tipo<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, que o autor <strong>de</strong>nominou <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r disciplinar. Elas se sustentam sobre a premissa <strong>de</strong><br />

que normalizar os sujeitos, fazen<strong>do</strong>-os produtivos, dóceis e úteis, é mais rentável que vigiar e<br />

castigar.<br />

Tal mo<strong>de</strong>lo implica uma forma <strong>de</strong> organizar o tempo e o espaço escolar <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a<br />

controlar, minuciosamente, o trabalho <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> cada aluno, fazen<strong>do</strong> funcionar o que<br />

Varela (1996) chama <strong>de</strong> máquina <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r – nela, o professor realiza intervenções para<br />

premiar ou castigar, corrigir e normalizar. A escola é examina<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> um sujeito individual,<br />

dan<strong>do</strong> lugar a um po<strong>de</strong>r menos visível que suprime, em teoria, as penalizações e castigos<br />

físicos.<br />

De acor<strong>do</strong> com a autora, o po<strong>de</strong>r disciplinar afetou também o campo <strong>do</strong> saber. Com a<br />

expansão <strong>do</strong> sistema fabril, produziu-se uma luta político-econômica em torno <strong>do</strong>s saberes. A<br />

consolidação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, no final <strong>do</strong> século XVIII, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou uma série <strong>de</strong> práticas, como a<br />

criação da Enciclopédia e <strong>de</strong> instituições acadêmicas. “Os saberes se verão assim reduzi<strong>do</strong>s a<br />

disciplinas, com uma organização e uma lógica interna específicas, dan<strong>do</strong> lugar ao que na<br />

atualida<strong>de</strong> conhecemos como ciência” (id., 1996, p. 87).<br />

À medida que esses saberes se consolidavam, especialmente nas Ciências Humanas, o<br />

projeto <strong>de</strong> governo das populações foi sen<strong>do</strong> também configura<strong>do</strong>. O projeto mo<strong>de</strong>rno coloca<br />

em pauta a conduta <strong>do</strong>s indivíduos com vistas a um processo civiliza<strong>do</strong>r, introduzin<strong>do</strong><br />

discursos e <strong>novos</strong> aparatos para seu controle e regulação (BUJES, 2001). Em outras palavras,<br />

4 O i<strong>de</strong>al pansófico <strong>de</strong> Comenius, embora proposto no século XVII, somente veio a consolidar-se na segunda<br />

meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XIX e princípio <strong>do</strong> século XX, com a institucionalização da escola obrigatória.<br />

7


o projeto educacional mo<strong>de</strong>rno vale-se <strong>de</strong> varia<strong>do</strong>s saberes, sobretu<strong>do</strong> os da Pedagogia,<br />

garantin<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> normatização e normalização das condutas.<br />

Assim, a disciplina-corpo e a disciplina-saber funcionam <strong>de</strong> forma a reforçar-se<br />

mutuamente. “De um la<strong>do</strong>, a disciplina-corpo que dava seus primeiros passos no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

fabricar um novo sujeito: o sujeito burguês. Do outro, a disciplina-saber que, ten<strong>do</strong> se<br />

liberta<strong>do</strong> da rigi<strong>de</strong>z taxonômica [...], se colocava <strong>à</strong> disposição da nova Ciência” (VEIGA-<br />

NETO, 1996, p.243). Po<strong>de</strong>-se dizer, então, que o exercício da Pedagogia só é possível porque<br />

um conjunto <strong>de</strong> <strong>novos</strong> discursos sobre a criança, a aprendizagem e o ensino dá sustentação a<br />

novas formas <strong>de</strong> intervenção ao professor, ao aluno e <strong>à</strong> escola, produzin<strong>do</strong>, além <strong>de</strong> sujeitos,<br />

saberes.<br />

UMA ESCOLA NOVA<br />

Seguin<strong>do</strong> o panorama <strong>de</strong> mudanças epistêmicas que ocorrem nos tempos mo<strong>de</strong>rnos,<br />

talvez fosse interessante agregar aqui alguns apontamentos que Coutinho (2008) faz quan<strong>do</strong><br />

diz que “há pelo menos duas escolas mo<strong>de</strong>rnas” (p. 44). A primeira é a que caracterizei até<br />

aqui, posicionada na lógica disciplinar, que Noguera-Ramírez (2008) associa com a invenção<br />

<strong>do</strong> Homo <strong>do</strong>cilis (o homem disciplinável ou ensinável), ou que Hamilton (apud Noguera-<br />

Ramírez, 2008) chamou <strong>de</strong> “virada instrucional”, referin<strong>do</strong>-se <strong>à</strong> passagem da aprendizagem<br />

medieval para a instrução.<br />

Para Coutinho (2008), a segunda escola mo<strong>de</strong>rna está imbricada, numa relação<br />

imanente, com acontecimentos da socieda<strong>de</strong>, como a “revolução industrial, o Iluminismo, o<br />

transcen<strong>de</strong>ntal kantiano, a idéia <strong>de</strong> futuro como progresso, a fisiocracia e o liberalismo”,<br />

(p.34) entre outros. O po<strong>de</strong>r disciplinar continua operan<strong>do</strong> em uma nova lógica, na qual a<br />

mobilida<strong>de</strong> é o elemento diferencial em relação <strong>à</strong> or<strong>de</strong>nação tipicamente disciplinar e <strong>à</strong>s<br />

formas que começam a se instituir no século XVIII (ibi<strong>de</strong>m.). Entre essas formas, no que se<br />

refere ao campo da educação, estão as modificações em relação aos espaços, rotinas e<br />

recursos da sala <strong>de</strong> aula. No entanto, não são apenas modificações em termos estruturais que<br />

po<strong>de</strong>mos perceber nos discursos pedagógicos <strong>do</strong> século XVIII: há a problematização <strong>de</strong><br />

alcançar a liberda<strong>de</strong> e a autonomia, antes que coação, direção e heteronomia (Noguera-<br />

Ramírez, 2008).<br />

Nessa perspectiva, em contraposição aos méto<strong>do</strong>s basea<strong>do</strong>s na repetição e<br />

memorização utiliza<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>stacam-se as i<strong>de</strong>ias preconizadas por Rousseau, filósofo suíço que<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> as experiências realizadas pelo próprio aluno e, segun<strong>do</strong> Naro<strong>do</strong>wski (2001, p.29), a<br />

8


infância em seus aspectos mais “puros e claros”. Por meio <strong>de</strong> sua obra Émile, ou De<br />

l’education, “produz efeitos inequívocos na configuração da <strong>pedagogia</strong> mo<strong>de</strong>rna ao <strong>de</strong>linear a<br />

criança, mas, sobretu<strong>do</strong>, ao <strong>de</strong>lineá-la em sua educabilida<strong>de</strong>, em sua capacida<strong>de</strong> natural <strong>de</strong> ser<br />

formada” (id., 2001, p.30, grifo <strong>do</strong> autor). Nesse senti<strong>do</strong>, não somente instaura um novo mo<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> conceber a infância, como uma nova i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> prática educativa.<br />

Para Rousseau, a educação vem da natureza, <strong>do</strong> homem ou das coisas: “o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> nossas faculda<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que<br />

nos ensinam a fazer <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>senvolvimento é a educação <strong>do</strong>s homens; e a aquisição <strong>de</strong> nossa<br />

própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas” (ROUSSEAU,<br />

1999, p.9).<br />

Ao pensar essas três educações diferentes, o filósofo inaugura a distinção entre homem<br />

natural e homem social – o homem é essencialmente bom, mas está sujeito <strong>à</strong>s influências<br />

maléficas da socieda<strong>de</strong>, fazen<strong>do</strong>-se necessário preservar sua natureza original por meio da<br />

própria experiência. Não se precisa ensinar o que é correto ou incorreto; é na relação com as<br />

coisas que a criança apren<strong>de</strong> a diferença. Segun<strong>do</strong> Rousseau, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que nascemos,<br />

manifestamos necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> nossa constituição; por isso, é preciso “apren<strong>de</strong>r a conhecer as<br />

relações sensíveis que as coisas têm conosco. Como tu<strong>do</strong> o que entra no entendimento<br />

humano vem pelos senti<strong>do</strong>s, a primeira razão <strong>do</strong> homem é a razão sensitiva; é ela que serve<br />

para a razão intelectual [...]” (ROUSSEAU, 1999, p.140-141).<br />

Coutinho (2008) salienta que, com transformações como as aqui citadas, as crianças<br />

passam a ser alvo <strong>de</strong> muitos estu<strong>do</strong>s, com o intuito <strong>de</strong> melhor conhecê-las – elas se tornam<br />

“cada vez mais, foco <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> da ciência, [e como] objeto <strong>de</strong> análise, os saberes científicos<br />

passam a ‘dizer’ as verda<strong>de</strong>s sobre elas e a estabelecer <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s tipos <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong> e <strong>de</strong><br />

educação” (p.59). A autora <strong>de</strong>staca que, nas práticas educacionais que começaram a se<br />

estabelecer com/para as crianças, novas verda<strong>de</strong>s foram sen<strong>do</strong> produzidas.<br />

De acor<strong>do</strong> com Bujes (2004), as i<strong>de</strong>ias rousseaunianas inspiraram to<strong>do</strong> o pensamento<br />

pedagógico no século XIX. Há uma produção que en<strong>de</strong>usa a infância e a natureza. Froebel,<br />

gran<strong>de</strong> pedagogo da infância, é o primeiro exemplo a concretizar os pressupostos<br />

rousseaunianos. Para a autora, tais pressupostos não se inseriram <strong>de</strong> imediato no campo da<br />

prática: “[...] será necessária toda a ‘revolução romântica’, toda a imposição <strong>de</strong> uma visão<br />

positiva da ciência e mais um século <strong>de</strong> intervalo para que elas revivam num núcleo<br />

‘renova<strong>do</strong>r’ da Pedagogia, no alvorecer <strong>do</strong> século XX” (BUJES, 2004, p.49).<br />

Trata-se, então, <strong>do</strong> Movimento da Escola Nova, que toma proporções em diferentes<br />

localida<strong>de</strong>s. Acontecimentos sociais marca<strong>do</strong>s pelos efeitos da Revolução Industrial<br />

9


objetivavam uma socieda<strong>de</strong> mais <strong>de</strong>mocrática, atribuin<strong>do</strong> <strong>à</strong> escola um importante papel nessa<br />

tarefa. Isso po<strong>de</strong> ser percebi<strong>do</strong>, por exemplo, quan<strong>do</strong> alguns autores escolanovistas <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m<br />

a escola popular e <strong>de</strong> massas, que, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática, <strong>de</strong>ve estar preparada para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento tecnológico.<br />

Segun<strong>do</strong> Varela (1996), nesse momento histórico, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> Interventor<br />

trataria <strong>de</strong> solucionar a questão social e a luta <strong>de</strong> classe por meio <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong><br />

harmonização. Para que isso ocorresse, um <strong>do</strong>s dispositivos fundamentais para a integração<br />

das classes trabalha<strong>do</strong>ras foi a imposição da obrigatorieda<strong>de</strong> escolar:<br />

A escola obrigatória fazia parte, portanto, <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> regeneração e <strong>de</strong><br />

profilaxia social basea<strong>do</strong> nos postula<strong>do</strong>s <strong>do</strong> positivismo evolucionista. [...] As<br />

crianças, e especialmente as crianças <strong>de</strong> classes populares, se i<strong>de</strong>ntificam com os<br />

selvagens. Civilizá-los e <strong>do</strong>mesticá-los constitui o objetivo <strong>de</strong>ssa escola pública<br />

obrigatória na qual seguirão reinan<strong>do</strong> as <strong>pedagogia</strong>s disciplinares (VARELA, 1996, p.<br />

88).<br />

A escola passa a romper com os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> vida da classe trabalha<strong>do</strong>ra, provocan<strong>do</strong>, a<br />

partir da sua imposição, uma série <strong>de</strong> conflitos. Estes foram interpreta<strong>do</strong>s como resistência <strong>à</strong><br />

escola disciplinar, que, para Varela (1996, p.88), parte <strong>de</strong> “uma enviesada ótica que<br />

responsabiliza a má ín<strong>do</strong>le <strong>do</strong>s alunos por to<strong>do</strong>s os males”. Surge, então, um novo campo<br />

institucional <strong>de</strong> intervenção, que tratará “as crianças ‘insolentes, indisciplinadas, inquietas,<br />

fala<strong>do</strong>ras, turbulentas, imorais e atrasadas’’’ (id., 1996, p. 89) como anormais.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, a escola converte-se em laboratório <strong>de</strong> observação para os primeiros<br />

pedagogos e psicólogos da infância anormal (na maioria, proce<strong>de</strong>ntes da medicina),<br />

ensaian<strong>do</strong>-se <strong>novos</strong> tratamentos em relação <strong>à</strong>s <strong>pedagogia</strong>s disciplinares. Trata-se aqui das<br />

<strong>pedagogia</strong>s corretivas, como <strong>de</strong>nomina Varela (1996), que têm como finalida<strong>de</strong> a<br />

“ressocialização” das crianças, orientan<strong>do</strong>-as para a ativida<strong>de</strong> profissional. De acor<strong>do</strong> com<br />

autora, nas <strong>pedagogia</strong>s corretivas, há a rejeição <strong>do</strong> excessivo controle: “seu gran<strong>de</strong> problema é<br />

como conseguir um novo controle menos visível, menos opressivo e mais operativo” (p. 93).<br />

Ao situar-se a criança no centro <strong>do</strong> processo educativo, passar-se-ia a organizar um espaço<br />

favorável <strong>à</strong>s suas necessida<strong>de</strong>s naturais.<br />

Novos méto<strong>do</strong>s e técnicas são aplica<strong>do</strong>s, utilizan<strong>do</strong>-se o espaço e o tempo <strong>de</strong> uma<br />

forma menos rígida e inflexível em relação aos <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s tradicionais das<br />

<strong>pedagogia</strong>s disciplinares. Como retrata David Tyack (1974), cita<strong>do</strong> por Muller, há algo muito<br />

irônico em relação a isso:<br />

10


a <strong>pedagogia</strong> ‘tradicional’ nunca procurou auto<strong>de</strong>nominar-se, porque jamais imaginou<br />

que houvesse alguma alternativa – ela era ‘o melhor sistema’, um mo<strong>de</strong>lo<br />

essencialmente impossível <strong>de</strong> ser reforma<strong>do</strong> em um mun<strong>do</strong> em que o mo<strong>de</strong>lo e o<br />

próprio mun<strong>do</strong> não se distinguiam (2006, p. 294).<br />

Os reforma<strong>do</strong>res surgiram com zelo revolucionário ou romântico. Muller (2006)<br />

<strong>de</strong>staca que há, nesse perío<strong>do</strong>, uma série <strong>de</strong> movimentos em prol da equida<strong>de</strong> social, com um<br />

forte impulso ao progressivismo. Este, na medida em que começou a se <strong>de</strong>senvolver,<br />

apresentou quatro importantes tendências: a <strong>do</strong>s progressivistas administrativos, a <strong>do</strong>s<br />

progressivistas pedagógicos, a <strong>do</strong>s progressivistas educacionais e a <strong>do</strong>s reconstrucionistas<br />

sociais (TYACK apud MULLER, 2006).<br />

A primeira tendência, progressivista administrativa, procurava orientar as reformas<br />

com base nas ciências. A eficácia escolar, então, pautava-se na administração <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhos<br />

educacionais a partir <strong>de</strong> processos avaliativos. O méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> Projetos i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> por John<br />

Dewey e William Kilpatrick, foca<strong>do</strong> na resolução <strong>de</strong> problemas, po<strong>de</strong> ser associa<strong>do</strong> <strong>à</strong> segunda<br />

tendência, a progressivista pedagógica. Já a tendência progressivista educacional seria aquela<br />

representada por ativistas mais radicais, que propunham formas <strong>de</strong> atuar radicalmente<br />

centradas nas crianças e que fundaram escolas alternativas, como a Escola Summerhill, <strong>de</strong> A.<br />

S. Neill. Finalmente, os reconstrucionistas sociais, representa<strong>do</strong>s por aqueles <strong>do</strong> Teachers’<br />

College, tentavam unir ao socialismo o progressivismo <strong>de</strong> Dewey.<br />

Essas tendências compartilham uma preocupação com o <strong>de</strong>senvolvimento, sob a<br />

ban<strong>de</strong>ira <strong>do</strong> que se passou a chamar <strong>de</strong> liberalismo/progressivismo. Como retrata Muller<br />

(2006), elas <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m um futuro que substitui o antigo sistema em todas as suas<br />

manifestações.<br />

Nessa perspectiva, a prática pedagógica passa a caracterizar-se como um saber técnico<br />

em virtu<strong>de</strong> da visão cientificista da educação. Associa<strong>do</strong>s a ela, implantam-se centros <strong>de</strong><br />

formação <strong>do</strong>cente, expan<strong>de</strong>-se a escola voltada para as classes populares e ocorre a crescente<br />

laicização <strong>do</strong> aparato escolar. Bujes (2004) consi<strong>de</strong>ra que os saberes escolares, especialmente<br />

nos programas <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> professores, a partir daí, “[...] serão investi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r<br />

sem prece<strong>de</strong>ntes no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> governar seus subordina<strong>do</strong>s, não apenas por sua autorida<strong>de</strong><br />

moral, mas também pelo estatuto <strong>do</strong> saber pedagógico que <strong>de</strong>têm” (p. 52).<br />

Portanto, interesses <strong>de</strong> diferentes grupos sociais tratam <strong>de</strong> impor e legitimar<br />

<strong>de</strong>terminadas visões <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> e <strong>de</strong> cultura (VARELA, 1996). Nesse senti<strong>do</strong>, o que<br />

significam as proclamações “em favor <strong>de</strong> uma escola ativa e criativa que respeite o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento infantil e permita ao aluno ser livre e autônomo?” (Id., 1996, p. 92-93).<br />

11


Na tentativa <strong>de</strong> problematizar essa questão, relacionada ao objeto <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong>, passo a<br />

discutir, na seção a seguir, os i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> manifestos nos discursos educacionais, que<br />

se afirmam como panaceia pedagógica para a formação <strong>de</strong> professores.<br />

RUMO À APRENDIZAGEM<br />

As orientações didáticas, até então voltadas <strong>à</strong> constituição <strong>de</strong> um indivíduo dócil e<br />

obediente, <strong>de</strong>slocam agora o seu interesse em direção a outro tipo <strong>de</strong> sujeito, autorregula<strong>do</strong><br />

por seu próprio interesse e <strong>de</strong>sejo. Volto a citar os apontamentos <strong>de</strong> Noguera-Ramírez (2008),<br />

ao tratar da virada pedagógica, ou seja, “[<strong>do</strong>] <strong>de</strong>slocamento da preocupação pela instrução, o<br />

ensino, a disciplina, para a ‘formação’, a ‘educação’” (p.11), uma vez que se referem a este<br />

novo tipo <strong>de</strong> sujeito, “[...] produto da ação individual para atingir a virtu<strong>de</strong>, a moralida<strong>de</strong>, no<br />

marco das novas i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> cidadania” (p.12). Segun<strong>do</strong> o autor, tal <strong>de</strong>slocamento po<strong>de</strong> ser<br />

percebi<strong>do</strong> especialmente nas reflexões <strong>de</strong>senvolvidas nos textos <strong>de</strong> Rousseau e Kant 5 .<br />

[...] enquanto o problema da didática esteve relaciona<strong>do</strong> com a coação, com a<br />

imposição <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m, com o controle minucioso <strong>do</strong> tempo, <strong>do</strong> espaço e das<br />

ativida<strong>de</strong>s escolares, o problema da <strong>pedagogia</strong> foi diferente: antes que coação, direção<br />

e heteronomia, tratou-se da liberda<strong>de</strong> e da autonomia (NOGUERA-RAMÍREZ, 2008,<br />

p.20).<br />

Para Foucault (2008b), há uma sintonia entre varia<strong>do</strong>s discursos e a forma <strong>de</strong><br />

organização política e econômica das socieda<strong>de</strong>s, relacionada, na época, com o liberalismo,<br />

representa<strong>do</strong> pela máxima:<br />

[...] <strong>de</strong>ixar as pessoas fazerem, as coisas passarem, as coisas andarem, laisser-faire,<br />

laisser-passer e laisser-aller, [que] quer dizer, essencial e fundamentalmente, fazer <strong>de</strong><br />

maneira que a realida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolva e vá, siga seu caminho, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as leis,<br />

os princípios e os mecanismos que são os da realida<strong>de</strong> mesma (p.62-63).<br />

Nos discursos pedagógicos, percebe-se o enfoque da<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>senvolvimento das<br />

crianças, que consistiria em <strong>de</strong>ixá-las seguir um caminho seu, pessoal, orienta<strong>do</strong> por suas<br />

escolhas (mas, <strong>de</strong> algum mo<strong>do</strong>, dirigi<strong>do</strong> pela natureza). O Movimento da Escola Nova, por<br />

exemplo, <strong>de</strong>sloca a criança para o eixo da reflexão educativa. As contribuições <strong>de</strong> Dewey,<br />

5 Para uma interessante discussão sobre os textos <strong>de</strong> Kant e Rousseau e suas diferenciações, sugiro a leitura da<br />

Proposta <strong>de</strong> Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong> <strong>de</strong> Noguera-Ramírez (2008), cf. referências bibliográficas.<br />

12


Kilpatrick e Decroly, representantes <strong>de</strong>sse Movimento, apresentam, apesar <strong>de</strong> suas diferenças,<br />

um aspecto em comum: a noção <strong>do</strong> interesse.<br />

Trata-se, segun<strong>do</strong> o autor, <strong>do</strong> movimento da virada psicopedagógica, ocorrida entre os<br />

séculos XIX e XX, na qual é <strong>de</strong>slocada a preocupação da formação para a aprendizagem.<br />

Varela (1996) i<strong>de</strong>ntifica essa passagem com as <strong>pedagogia</strong>s psicológicas, que, configuradas a<br />

partir das <strong>pedagogia</strong>s corretivas, intensificam a busca por uma cientificida<strong>de</strong> e uma série <strong>de</strong><br />

outros traços, alguns <strong>do</strong>s quais discuto a seguir.<br />

Há uma estreita relação entre os movimentos da virada pedagógica e psicopedagógica<br />

cita<strong>do</strong>s por Noguera-Ramírez (2008), ou, se quisermos, das <strong>pedagogia</strong>s corretivas e das<br />

psicológicas, citadas por Varela (1996):<br />

O que difere as <strong>pedagogia</strong>s psicológicas das corretivas é a forma <strong>de</strong> controle<br />

exerci<strong>do</strong> sobre os alunos, que, num enfoque psicológico, se esforça cada vez mais<br />

em ser menos visível. Se as <strong>pedagogia</strong>s corretivas priorizavam a autodisciplina em<br />

contraposição <strong>à</strong> disciplina rígida das <strong>pedagogia</strong>s disciplinares, agora as <strong>pedagogia</strong>s<br />

psicológicas preocupam-se, sobretu<strong>do</strong>, em fortalecer ainda mais o controle interior<br />

(COUTINHO, 2008, p.49)<br />

Ao pensarmos nesse <strong>de</strong>slocamento, po<strong>de</strong>mos perceber as novas formas <strong>do</strong> exercício <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r que se esboçam no início <strong>do</strong> século XX com a mudança na produção <strong>de</strong> saberes e da<br />

subjetivida<strong>de</strong> (VARELA, 1996). Exemplo disso é a funcionalida<strong>de</strong> da autorregulação em<br />

relação aos “interesses naturais” da criança. A aprendizagem dá-se mediante os resulta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s<br />

esforços e interesses das crianças; assim, tanto o sucesso quanto o fracasso são vistos como<br />

<strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> seu empenho. É este o novo sujeito: “ativo, interessa<strong>do</strong>, <strong>de</strong>sejoso, mas,<br />

sobretu<strong>do</strong>, um sujeito cuja característica será sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r: o Homo discens, o<br />

homem que apren<strong>de</strong> e que apren<strong>de</strong> a apren<strong>de</strong>r” (NOGUERA-RAMÍREZ, 2008, p.32).<br />

Nas <strong>pedagogia</strong>s psicológicas, a “[...] criança foi mais vigiada e controlada muito mais<br />

<strong>do</strong> que nas ‘velhas <strong>pedagogia</strong>s’, porque não apenas se requeriam <strong>de</strong>la as respostas corretas,<br />

mas também agora era necessário que mesmo seu verda<strong>de</strong>iro mecanismo <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

fosse controla<strong>do</strong>” (VARELA, 1996, p.99). Ainda segun<strong>do</strong> a autora, o respeito ao ritmo<br />

individual <strong>de</strong> cada aluno com base na sua “natureza natural”, constituiu uma tecnologia “que<br />

[o tornou] tanto mais [<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte] e [manipulável] quanto mais [libera<strong>do</strong> fosse]” (p.102).<br />

É através <strong>de</strong>ssas continuida<strong>de</strong>s e rupturas nos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> conceber o sujeito <strong>do</strong> processo<br />

pedagógico que a “socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprendizagem”, ou <strong>do</strong> Homo discens, como retrata Noguera-<br />

Ramírez (2008), vai ganhan<strong>do</strong> posição privilegiada na ação educativa. Os Projetos <strong>de</strong><br />

Trabalho, que atualmente são uma das estratégias mais preconizadas para a promoção <strong>do</strong><br />

13


<strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s alunos, conforme a bibliografia analisada neste estu<strong>do</strong>, têm seus<br />

princípios ancora<strong>do</strong>s nesta racionalida<strong>de</strong>: “[o] mais importante é o fato <strong>de</strong> que o ser humano<br />

adquire o hábito <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r. Apren<strong>de</strong>r a apren<strong>de</strong>r” (DEWEY apud NOGUERA-RAMÍREZ,<br />

2009, p.244).<br />

E aqui volto a lembrar o que referi no início <strong>de</strong>ste capítulo: “o enxame <strong>de</strong> trata<strong>do</strong>s<br />

pedagógicos que alimentam a ficção da condição natural da escola” (VARELA; ALVAREZ-<br />

URIA, 1992, p.68), em que os Projetos <strong>de</strong> Trabalho, por exemplo, muitas vezes são ti<strong>do</strong>s<br />

como algo novo e recente. No entanto, como pu<strong>de</strong>mos perceber, eles têm uma história que já<br />

completou mais <strong>de</strong> um século, sen<strong>do</strong> concebi<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong> mutações nos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> pensar o<br />

sujeito, a socieda<strong>de</strong>, as relações sociais, o trabalho... “[...] produtos da contingência, mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

dizer inventa<strong>do</strong>s para resolver as urgências que a vida [impôs]” (BUJES, 2004, p. 61-62).<br />

A análise que Foucault faz <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na educação, ao longo da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />

nos faz retornar <strong>à</strong> análise <strong>de</strong> Veiga (2002) sobre a escolarização como projeto <strong>de</strong> civilização.<br />

Se os processos <strong>de</strong> escolarização <strong>do</strong>s séculos XVI ao XVIII estiveram mais relaciona<strong>do</strong>s <strong>à</strong>s<br />

formas <strong>de</strong> pedagogização que propriamente escolarização, isso se modifica no século XIX.<br />

Para a autora, a escola não estava mais restrita a um grupo social:<br />

a gran<strong>de</strong> revolução <strong>do</strong> século XIX foi exatamente a substituição da pedagogização<br />

das relações sociais pela escolarização; mais que tornar gestos e ações previsíveis,<br />

foi preciso indicar o caminho da produção da previsibilida<strong>de</strong>, não mais para um<br />

grupo restrito, cuja aprendizagem parecia estar concluída, mas para toda a<br />

socieda<strong>de</strong> (p.99).<br />

Para Veiga (2002), a monopolização <strong>do</strong> saber pelo Esta<strong>do</strong> ampliou os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong><br />

autocoerção e <strong>do</strong>mínio para toda a população, legitiman<strong>do</strong> e visibilizan<strong>do</strong> uma nova<br />

configuração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, dan<strong>do</strong> possibilida<strong>de</strong> a uma nova <strong>pedagogia</strong>, “[...] a processos <strong>de</strong><br />

educação que [<strong>de</strong>veriam] se manifestar no interior <strong>do</strong> indivíduo, na <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> talentos,<br />

manifestações <strong>de</strong> potencialida<strong>de</strong>s; enfim, que [<strong>de</strong>veriam] possibilitar a produção das<br />

condições <strong>de</strong> previsibilida<strong>de</strong>” (p.100).<br />

Acredito que, diante <strong>de</strong> tal configuração, estão os professores em formação<br />

implica<strong>do</strong>s em diferentes controles, diferentes discursos, muitas vezes naturaliza<strong>do</strong>s em um<br />

espaço <strong>de</strong> ficção e <strong>de</strong> certezas. Os Projetos são um <strong>de</strong>sses discursos que me levam a voltar o<br />

olhar para as Pedagogias contemporâneas, a examinar como essa máquina ou socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

apren<strong>de</strong>r está instituin<strong>do</strong> e fabrican<strong>do</strong> <strong>novos</strong> sujeitos – alunos e professores que “[...] se<br />

transformam a si mesmos, transformam (diretamente) os sujeitos que tomam para si e<br />

(indiretamente) a socieda<strong>de</strong>” (VEIGA-NETO, 2008, p.147).<br />

14


E, ao a<strong>de</strong>ntrar num espaço que vem constituin<strong>do</strong> <strong>de</strong>terminadas formas <strong>de</strong> ser<br />

professor, trato <strong>de</strong> perceber como se articularam interesses e estratégias <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r com os<br />

discursos que se servem <strong>do</strong>s i<strong>de</strong>ais liberais na produção da <strong>do</strong>cência contemporânea. Penso<br />

ser produtivo pensar em como chegamos a conceber a relevância <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s saberes na<br />

ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong>cente, para <strong>de</strong>pois contestá-los e até mesmo <strong>de</strong>sconstruí-los, no senti<strong>do</strong> atribuí<strong>do</strong><br />

por Veiga-Neto (2007) <strong>de</strong> abrir outros espaços, espaços <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, indagação e mudança.<br />

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