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Prosa 1 - Academia Brasileira de Letras

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uma se chamava Daniel e a outra, Genaro. E falávamos com as cerejeiras, e,<br />

quando voltávamos da escola, dizíamos: “A professora é muito má, bate em<br />

nós, é uma mulher terrível...” Aquelas cerejeiras eram dois meninos também.<br />

Mas, quando íamos pelo bosque e víamos algum velho carregado com o que<br />

quer que fosse, aproximávamo-nos <strong>de</strong>le e dizíamos: “Senhor, po<strong>de</strong>mos ajudar-te.<br />

Queres que te aju<strong>de</strong>mos em algo?” Não eram apenas os sinais <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

da tribo: era também um sistema <strong>de</strong> valores que transmitia aquela literatura<br />

oral. E, <strong>de</strong> certa feita, contei por escrito outra historia oral, e um amigo<br />

meu, escritor, compôs um conto baseado nessa história e pediu-me licença<br />

para antecipar-lhe a publicação: a lareira da casa 3 não se apagava nunca e minha<br />

avó dizia (a porta <strong>de</strong> casa, a da cozinha, <strong>de</strong>ixavam-na sempre aberta), e minha<br />

avó dizia, então: “Aquí, se algún día, se algún día ve<strong>de</strong>s aquí alguén que ven <strong>de</strong> fóra, hai<br />

que <strong>de</strong>ixalo entrar e po<strong>de</strong> comer todo o caldo que queira, todo o que queira, non pregunte<strong>de</strong>s nada,<br />

non lle diga<strong>de</strong>s cal é o seu nome, porque po<strong>de</strong> ser Noso Señor.” 4 E Nosso Senhor, não é verda<strong>de</strong>,<br />

não gosta que se lhe façam perguntas. E suce<strong>de</strong>u que um dia voltamos<br />

para casa, meu primo, que já morreu, e eu, muito crianças ainda, e vimos um<br />

velho com uma barba branca servindo-se <strong>de</strong> conchas <strong>de</strong> caldo. Escon<strong>de</strong>mo-nos<br />

num canto e eu perguntava a meu primo: “Achas que é Deus? Achas<br />

que é Nosso Senhor?” E ele dizia: “Eu acho que é.” Mas estávamos em dúvida,<br />

até que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tomar sete xícaras <strong>de</strong> caldo – digo sete porque é um número<br />

mágico, talvez fossem seis ou nove – o velho se levantou, juntou as mãos e disse:<br />

“E agora unha Ave María polos mortos <strong>de</strong>sta casa.” 5 E se foi. Neste ponto<br />

fiquei convencido <strong>de</strong> que vira a Deus. Mais tar<strong>de</strong> vim a pensar que ele não era<br />

Deus. E, já agora, volto a pensar que talvez fosse. Mas tudo isso era o mundo<br />

da oralida<strong>de</strong>, e este mundo po<strong>de</strong> ser reconhecido na literatura do Brasil, em muitas<br />

histórias <strong>de</strong> Jorge Amado, <strong>de</strong> Guimarães Rosa, <strong>de</strong> tantos e tantos escritores<br />

que fazem com que hoje a literatura do Brasil seja a mais estimulante, a mais<br />

carregada <strong>de</strong> novida<strong>de</strong> e a mais rica entre as literaturas que eu conheço. E eu<br />

3 Em galego no original. (N. do T.)<br />

4 I<strong>de</strong>m.<br />

5 I<strong>de</strong>m.<br />

A literatura brasileira vista da Espanha<br />

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