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universidade de lisboa faculdade de letras mestrado

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UNIVERSIDADE DE LISBOA<br />

FACULDADE DE LETRAS<br />

MESTRADO EM LITERATURA PORTUGUESA MODERNA E<br />

CONTEMPORÂNEA<br />

AGOSTINHO MATIAS GOENHA<br />

AS MANIFESTAÇÕES SEMÂNTICAS DAS PERSONAGENS EM PORTAGEM E<br />

EM A ESTRANHA AVENTURA.<br />

TESE DE MESTRADO EM LITERATURA PORTUGUESA MODERNA E<br />

CONTEMPORÂNEA APRESENTADA À FACULDADE DE LETRAS DA<br />

UNIVERSIDADE DE LISBOA<br />

PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM LITERATURAS<br />

ROMÂNICAS


AGRADECIMENTOS<br />

Em primeiro lugar, queria manifestar o meu reconhecimento ao incentivo<br />

inicial dado em Moçambique pela Dr.ª Fátima Mendonça, docente da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Letras da Universida<strong>de</strong> Eduardo Mondlane, no sentido <strong>de</strong> levar avante este projecto.<br />

A Dr.ª Fátima foi, aliás, a minha primeira orientadora <strong>de</strong>sta mesma tese, em Maputo<br />

(mas para a obtenção do grau <strong>de</strong> Licenciatura), a qual não se concluiu, por motivos<br />

vários. Estendo esta gratidão à Professora Fernanda Angyus, que foi leitora do<br />

Instituto Camões em Maputo, particularmente na Universida<strong>de</strong> Pedagógica, pelo<br />

apoio prestado para a obtenção da bolsa <strong>de</strong> estudos concedida pelo Instituto Camões,<br />

correspon<strong>de</strong>nte à frequência da parte curricular do Mestrado. De uma forma geral,<br />

agra<strong>de</strong>ço a todos os que em Moçambique contribuíram, directa ou indirectamente,<br />

para a efectivação <strong>de</strong>ste meu projecto, em especial, o Magnífico Reitor da<br />

Universida<strong>de</strong> Pedagógica <strong>de</strong> Moçambique, o Professor Doutor Machili.<br />

No que diz respeito a Portugal, não po<strong>de</strong>rei <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> enaltecer o Professor<br />

Doutor Alberto Carvalho que, <strong>de</strong> forma muito empenhada, tornou possível o meu<br />

ingresso na FLUL, tendo-me ajudo a superar todos os obstáculos inerentes às questões<br />

burocráticas relacionadas com a matrícula e a inscrição. Um agra<strong>de</strong>cimento especial,<br />

ainda, pelo facto <strong>de</strong> me ter ajudado a integrar-me no curso e por me ter proposto a<br />

Professora Doutora Maria Lúcia Lepecki para minha orientadora.


Não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> enaltecer a Professora Doutora Maria Lúcia Lepecki, da<br />

FLUL, pela forma sábia, superior e incansável com que se prestou a orientar-me,<br />

tendo-se multiplicado em esforços para me fazer ultrapassar algumas lacunas típicas<br />

<strong>de</strong> um licenciado. Este voto é extensivo a todos os professores da FLUL que<br />

orientaram os Seminários correspon<strong>de</strong>ntes à parte lectiva do Mestrado.<br />

Este trabalho não teria sido possível sem o financiamento do INSTITUTO<br />

CAMÕES, na parte curricular, e do Programa PRAXIS XXI, na parte correspon<strong>de</strong>nte<br />

à Dissertação da Tese: a estas duas instituições vão os meus agra<strong>de</strong>cimentos, sem me<br />

esquecer das funcionárias da Biblioteca Central da FLUL, dos seus vários Institutos,<br />

das várias Bibliotecas públicas <strong>de</strong> Lisboa, <strong>de</strong> todos os colegas e professores da FLUL,<br />

sem os quais talvez este trabalho não se tivesse tornado realida<strong>de</strong>.


Resumo da tese com o título: As manifestações semânticas das personagens<br />

em Portagem e em A Estranha Aventura.<br />

O estudo <strong>de</strong>stes dois textos oferece-se, quer pela sua temática específica, quer<br />

pela abrangência <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte da argumentação utilizada, como um espaço <strong>de</strong><br />

reflexão e <strong>de</strong> análise das configurações humanas das personagens, na sua dimensão<br />

semântica, privilegiando-se a temática social, isto é, o conteúdo e não a forma.<br />

No capítulo I, far-se-á a primeira aproximação aos textos do corpus,<br />

analisando a problemática do Narrador, do mundo narrado e das questões <strong>de</strong> discurso.<br />

A voz do Narrador e as vozes das personagens serão vistas no domínio das<br />

autonomias discursivas. No capítulo II, serão analisadas as personagens nas suas<br />

vivências sociais, partindo-se dos grupos sociais, para as específicas relações<br />

familiares. Particular realce será dado à dinâmica das relações <strong>de</strong> parentesco, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />

alianças familiares, às relações <strong>de</strong> consanguinida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> afinida<strong>de</strong>. No capítulo III<br />

serão exploradas algumas questões básicas relacionadas com a problemática dos<br />

Espaços e do Tempo, respectivamente. E, finalmente, no capítulo IV, será apresentada<br />

a conclusão.


ERRATA (corpo da Tese)<br />

On<strong>de</strong> se lê: Leia-se<br />

página 1, linha 21: sócio-cultural sociocultural<br />

página 2, linha 5: terrorristas terroristas<br />

página 2, linha 20: sitema<br />

sistema<br />

página 4, linha 22: literarura literatura<br />

página 5, linha 13: sócio-polítiticos socio-políticos<br />

página 5,linha18:compre<strong>de</strong>rmos compreen<strong>de</strong>rmos<br />

página 5, linha 19: sócio-cultural socio-cultural<br />

página 6, linha 1: recepação recepção<br />

página 6, linha 5: rastrear rastear<br />

página 6, linha 10: comprensão compreensão<br />

página 7, linha 7: Prodadores Prosadores<br />

página 9, linha 15: <strong>de</strong>scordantes discordantes<br />

página 9, linha 22: juri júri<br />

página 21, linha 8: estractos estratos<br />

página 21, linha10: i<strong>de</strong>alogia i<strong>de</strong>ologia<br />

página 23, linha 8: rítmo ritmo<br />

página 25, linha 19: <strong>de</strong>sfazamento <strong>de</strong>sfasamento<br />

página 28, linha16: consi<strong>de</strong>r consi<strong>de</strong>rar<br />

página 37, linha 18: Fervereiro Fevereiro<br />

página 38, linha 1: palvras palavras<br />

página 53, linha16: socias sociais<br />

página 53, linha 18: socio-económicos<br />

página 53, linha 19: “ds”<br />

“mesmam”<br />

sócio-económicos<br />

da mesma<br />

página 60, linha 4: condicionanate condicionante<br />

página 63, linha 4: incosciente inconsciente<br />

página 66, linha 14: homosexualida<strong>de</strong> simbóloica homossexualida<strong>de</strong> simbólica<br />

página 66, linha 17: homosexualida<strong>de</strong><br />

página 66, linha19: mulats Mulatos<br />

homossexualida<strong>de</strong><br />

suprimir


página 67, linha 13: “sua”<br />

“Em”<br />

suas<br />

página 68, linha 11: inserir virgula entre<br />

página 69, linha 11: adveem<br />

«... persegue , as<br />

dificulda<strong>de</strong>s...»<br />

advêm<br />

página 69, linha18: cmpanheira companheira<br />

página 72, linha 3: “se quer” sequer<br />

página 74, linha 8: inserir virgula <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

Marandal ,<br />

página 74, linha 18: submisão submissão<br />

página 76, linha 22: inserir vírgula <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

companheira,<br />

página 77, linha 18: repercursões repercussões<br />

página 80, linha 9 do rodapé: “Este <strong>de</strong><br />

recrutamento”<br />

Este recrutamento<br />

página 82, linha 2: inserir vírgula <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> em<br />

geral,<br />

página 86, linha 16: inserir vírgula <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

problemas,<br />

página 92, linha 9: aflicção aflição<br />

página 94, linha 23: escritors escritores<br />

página 95, linha do rodapé: “vazinhança” vizinhança<br />

página 101, linha 16: fudamentais fundamentais<br />

página 102, linha 1: antepasados antepassados<br />

página 102, linha 4: “todo povo” “todo o povo”<br />

página 105, linha 11: “po<strong>de</strong> tradicional”<br />

linha 8: evi<strong>de</strong>ncir<br />

linha 15: “po<strong>de</strong> central”<br />

po<strong>de</strong>r tradicional<br />

evi<strong>de</strong>nciar<br />

“po<strong>de</strong>r central”<br />

página 110, linha 29:”ferroviàrios ferroviários<br />

página 112, linha 5: “civilivação”<br />

linha 8: miscelânia<br />

página 116, linha?: veêm-na<br />

Civilização<br />

miscelânea<br />

vêem-na


página 117, linha 6: “temporalme” temporalmente<br />

página 119, linha 3: predominantente predominantemente<br />

página 121, linha 5: “intevalo” intervalo<br />

página 123, linha 4: “anlepse” analepse<br />

página 126, linha 6: rastreio<br />

linha 6: comprennsão<br />

linha 8: vivênecias<br />

rasteio<br />

compreensão<br />

vivências<br />

página 127, linha16: “com” como<br />

página 128, linha 2: particuar<br />

linha 23: <strong>de</strong>sfavoridos<br />

Particular<br />

<strong>de</strong>sfavorecidos<br />

página 134, linha 14: Pseudónomo Pseudónimo<br />

página 135, linha 8: ediçõa<br />

linha 12: “Maris Alzira Seixo”<br />

linha 29: Ediçõs<br />

Edição<br />

Maria Alzira Seixo<br />

Edições<br />

página 137, linha 26: “Nacinalida<strong>de</strong>” Nacionalida<strong>de</strong><br />

página 139, linha 23: “Cimbra”<br />

Coimbra


Índice<br />

Introdução----------------------------------------------------------------------------------------1<br />

Capítulo I – Primeira aproximação aos textos: Narrador, narrado e questões<br />

do discurso------------------------------------------------------------------------------------22<br />

. Autonomias discursivas: voz do Narrador e vozes das personagens--------31<br />

Capítulo II - Vivências sociais: do grupo social às específicas relações<br />

familiares----…………..48<br />

. A família alargada--------------------------------------------------------------------91<br />

Capítulo III - Sobre Espaços e Tempos<br />

. O espaço rural-----------------------------------------------------------------------101<br />

. O espaço urbano--------------------------------------------------------------------109<br />

. Tempo e tempos--------------------------------------------------------------------117<br />

Capítulo IV - Conclusão------------------------------------------------------------------126<br />

BIBLIOGRAFIA----------------------------------------------------------------------------134


INTRODUÇÃO<br />

O corpus que constitui o objecto da presente investigação, A Estranha<br />

Aventura e Portagem, <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo e <strong>de</strong> Orlando Men<strong>de</strong>s, respectivamente,<br />

teve como tempo e espaço privilegiados nos seus conteúdos narrativos, o<br />

Moçambique anterior à In<strong>de</strong>pendência Nacional em 1975. Situa-se numa altura em<br />

que este espaço africano estava sob a administração e a jurisdição portuguesas; por<br />

isso, Moçambique era consi<strong>de</strong>rado uma parte (colónia ou província) <strong>de</strong> Portugal, à<br />

semelhança das outras quatro ex–colónias portuguesas <strong>de</strong> África.<br />

Estas obras <strong>de</strong> Orlando Men<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo enquadram-se, como<br />

já se referiu, no mesmo contexto espácio-temporal e, mais importante do que isso,<br />

partilham, aproximadamente, as mesmas temáticas. Foram escritas mais ou menos na<br />

mesma época e as primeiras edições foram postas em circulação pela COLECÇÃO<br />

PROSADORES DE MOÇAMBIQUE, por intermédio da Editorial Notícias da Beira<br />

(Moçambique), em 1966 e 1961, respectivamente.<br />

De um modo geral, as obras referidas acima procuram reflectir o culminar <strong>de</strong><br />

um intenso trabalho político-cultural, em Moçambique, ao nível das Letras. No que<br />

diz respeito, particularmente a Guilherme <strong>de</strong> Melo, este produz uma literatura<br />

marcada i<strong>de</strong>ologicamente pela tentativa <strong>de</strong> criar um espaço literário que,<br />

esteticamente, <strong>de</strong>ixa perceber as suas ligações com diversas correntes literárias, em<br />

particular, com o Neo-Realismo Português. No plano da intervenção sócio-cultural e<br />

i<strong>de</strong>ológica, Melo <strong>de</strong>ixa transparecer as suas ligações com o po<strong>de</strong>r colonial em<br />

Moçambique, através do apoio incondicional que prestava ao Governo colonial


vigente na altura. Essa i<strong>de</strong>ologia pro-regime era mais evi<strong>de</strong>nte na sua activida<strong>de</strong><br />

jornalística no diário <strong>de</strong> Notícias <strong>de</strong> Lourenço Marques e no Notícias da Beira, aon<strong>de</strong><br />

manifestava a sua antipatia pelo surgimento e pela dinâmica do Movimento <strong>de</strong><br />

Libertação <strong>de</strong> Moçambique (Frelimo), através <strong>de</strong> reacções repressivas verbais. Na<br />

linguagem oficial da época, os membros <strong>de</strong>sse Movimento eram <strong>de</strong>signados por<br />

turras (termo pejorativo que era uma espécie <strong>de</strong> diminutivo <strong>de</strong> terrorristas). Ainda<br />

que, em termos temáticos se possa dizer que as obras do corpus se assemelham, em<br />

termos i<strong>de</strong>ológicos, Guilherme <strong>de</strong> Melo prossegue um caminho que o afasta da<br />

dinâmica literária <strong>de</strong> Men<strong>de</strong>s. Neste particular, os contos <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo<br />

recolhem, na verda<strong>de</strong>, uma herança secular <strong>de</strong> sofrimento das camadas mais<br />

<strong>de</strong>sfavorecidas do Moçambique colonial, mas não para encontrar a razão e a força <strong>de</strong><br />

luta presente e futura mas, simplesmente, para constatar esse sofrimento e, quando<br />

muito, para lamentá-lo.<br />

Guilherme <strong>de</strong> Melo segue uma trajectória que o afasta da dinâmica literária<br />

local, “nacional” e moçambicana, em que os consi<strong>de</strong>rados verda<strong>de</strong>iros escritores<br />

moçambicanos estão tocados pelos problemas do povo, segundo critérios que, no<br />

quadro da então <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada luta armada <strong>de</strong> libertação nacional, fundamentaram o<br />

conceito <strong>de</strong> literatura moçambicana. O pressuposto dominante era o da ligação da<br />

literatura à realida<strong>de</strong>, fazendo-se a sua representação, explicando-se assim que todos<br />

os problemas do colonizado mereciam a atenção <strong>de</strong>ssa literatura engajada. Neste<br />

aspecto, Guilherme <strong>de</strong> Melo, por causa da sua opção político-i<strong>de</strong>ológica, não<br />

imprimiu à sua obra, esta dinâmica <strong>de</strong> uma literatura comprometida, <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia do<br />

sitema colonial, integrando elementos exigidos pela revolução. Em consequência<br />

disto e como forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração do seu <strong>de</strong>scontentamento para com a nova<br />

realida<strong>de</strong> que se avizinha, Melo abandona Moçambique em vésperas da


In<strong>de</strong>pendência Nacional do país. Po<strong>de</strong>-se justificar, assim, a não a<strong>de</strong>são, a não<br />

inclusão das suas obras na literatura moçambicana. Aliás, a integração nessa literatura<br />

equivalia na altura a uma i<strong>de</strong>ntificação total com a FRELIMO e com todos os valores<br />

com ela representados. O posicionamento hostil <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo para com o<br />

Movimento <strong>de</strong> Libertação e o abandono do país ditaram o seu afastamento do leque<br />

<strong>de</strong> autores moçambicanos.<br />

Orlando Men<strong>de</strong>s distancia-se, em termos político-i<strong>de</strong>ológicos, <strong>de</strong> Guilherme<br />

<strong>de</strong> Melo. Ainda que em termos temáticos, a obra do corpus <strong>de</strong>ste trabalho estabeleça<br />

algumas semelhanças com a <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo, Orlando Men<strong>de</strong>s surge também a<br />

privilegiar uma literatura marcada i<strong>de</strong>ologicamente pela tentativa <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> um<br />

espaço literário “nacional” <strong>de</strong> fortes ligações com o Neo-Realismo. Além disso, após<br />

a In<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Moçambique, permaneceu no país. Teve uma participação<br />

dinâmica e intensa na área da promoção e da divulgação <strong>de</strong> autores moçambicanos (e<br />

não só) graças a uma activida<strong>de</strong> editorial mais orientada. Segundo Fátima Mendonça<br />

«a constituição em Agosto <strong>de</strong> 1982 da Associação dos Escritores Moçambicanos veio<br />

<strong>de</strong>spoletar uma nova dinâmica na vida literária do país, não só pela sua (<strong>de</strong> Orlando<br />

Men<strong>de</strong>s) própria activida<strong>de</strong> editorial, como pela motivação que suscitou para outras<br />

iniciativas editoriais.» 1 Embora as obras <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse tenham sido, ainda<br />

segundo Fátima Mendonça, «saudadas com entusiasmo pela crítica mais idónea,<br />

Orlando Men<strong>de</strong>s remeteu-se sempre a um discreto silêncio até 1975, não tendo tido<br />

qualquer participação na vida cultural <strong>de</strong> Moçambique para além da que a activida<strong>de</strong><br />

editorial lhe proporcionava.» 2<br />

1 . Fátima MENDONÇA, 1989: XII<br />

2 . Fátima MENDONÇA, 1989: XVI


Após a In<strong>de</strong>pendência, Orlando Men<strong>de</strong>s teve uma participação muito activa<br />

em várias iniciativas <strong>de</strong> carácter cultural promovidas por diferentes instituições. Foi<br />

um dos gran<strong>de</strong>s animadores da vida da Associação dos Escritores Moçambicanos,<br />

aon<strong>de</strong> veio a ser Presi<strong>de</strong>nte do Conselho Fiscal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua fundação até 1987 e,<br />

posteriormente, Presi<strong>de</strong>nte da Assembleia Geral. De certa forma, esta sua trajectória<br />

na vida cultural e literária em Moçambique após a In<strong>de</strong>pendência Nacional terá,<br />

provavelmente, encontrado aceitação por parte <strong>de</strong> um público moçambicano que,<br />

i<strong>de</strong>ntificando-se com as novas condições políticas trazidas pela In<strong>de</strong>pendência, sentia<br />

a literatura engajada como uma voz que reproduzia as suas próprias aspirações,<br />

<strong>de</strong>sejos e memória. Justifica-se assim uma a<strong>de</strong>são quase espontânea na recepção <strong>de</strong><br />

textos cuja temática dominante se centrava sobre a <strong>de</strong>núncia do colonialismo e a<br />

exaltação dos valores que a in<strong>de</strong>pendência trazia. Do mesmo modo se explica a<br />

exclusão <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo e a não recepção das suas obras no Moçambique<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, por não ter a<strong>de</strong>rido ao projecto <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma nova nação, e não<br />

propriamente por causa da sua opção estético-literária ou por causa da temática que,<br />

como se viu atrás, não difere tanto da <strong>de</strong> Orlando Men<strong>de</strong>s (pelo menos nas obras que<br />

constituem o corpus).<br />

Assim, nesta análise procuro mostrar que, não obstante A Estranha Aventura e<br />

Portagem po<strong>de</strong>rem ser integrados na mesma estética literária (neo-realista) e<br />

abordarem temáticas semelhantes, os percursos social, político-i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong><br />

Guilherme <strong>de</strong> Melo e <strong>de</strong> Orlando Men<strong>de</strong>s, respectivamente, fazem com que este<br />

último seja aceite e integrado também na literatura moçambicana (para além da<br />

portuguesa) e o outro, não se enquadre naquela, procurando eu a sua integração na<br />

<strong>de</strong>signada Literarura Portuguesa Ultramarina. António J. Saraiva e Óscar Lopes<br />

enquadram Orlando Men<strong>de</strong>s no conjunto <strong>de</strong> autores portugueses pertencentes ao


ealismo contemporâneo, ainda que, em geral, consi<strong>de</strong>rem alguma literatura<br />

produzida nas ex-colónias <strong>de</strong> particular por, segundo eles, se situar entre as novas<br />

literaturas africanas <strong>de</strong> expressão portuguesa e a literatura colonial. É assim, afirmam<br />

eles, que «há um aspecto particular na evolução do realismo contemporâneo<br />

(português) que precisa <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado à parte: o das literaturas africanas <strong>de</strong><br />

língua portuguesa, que estudaremos até à <strong>de</strong>scolonização. Embora as suas<br />

manifestações mais evoluídas se possam classificar <strong>de</strong> neo-realistas e algumas das<br />

obras capitais sejam da segunda meta<strong>de</strong> do século (vinte), o seu <strong>de</strong>senvolvimento<br />

processou-se em condições muito próprias (...).» 3 Estão referidas por estes autores na<br />

mesma obra (História da Literatura Portuguesa), as seguintes obras <strong>de</strong> Orlando<br />

Men<strong>de</strong>s: um romance, Portagem (1965), poesia e pequenas histórias, Produção com<br />

que aprendo (1978) poesia, contos e teatro, País Emerso 1 e 2. 4 Po<strong>de</strong>-se observar, a<br />

partir da constatação feita acima, como os factores extra-literários (sócio-polítitcos e<br />

i<strong>de</strong>ológicos) po<strong>de</strong>m contribuir para a aceitação ou para a exclusão <strong>de</strong> uma obra num<br />

<strong>de</strong>terminado espaço humano, por causa da mudança estrutural e política das condições<br />

<strong>de</strong> vida, neste caso em Moçambique.<br />

Ainda que o objectivo <strong>de</strong>ste trabalho não seja <strong>de</strong> análise biográfica, importa<br />

conhecer minimamente o percurso <strong>de</strong> Melo e <strong>de</strong> Men<strong>de</strong>s para melhor compren<strong>de</strong>rmos<br />

o grau <strong>de</strong> empenho na activida<strong>de</strong> sócio-cultural, literária e até política, antes e <strong>de</strong>pois<br />

da In<strong>de</strong>pendência Nacional <strong>de</strong> Moçambique. Este dado é importante na medida em<br />

que o seu maior ou menor empenho, num e/ou noutro período, condicionou a sua<br />

recepação e a sua integração (ou não) num <strong>de</strong>terminado espaço social e literário.<br />

3 . António J. SARAIVA e Óscar LOPES, 1979: 1157<br />

4 . António J. SARAIVA e Óscar LOPES, 1979: 1157


Assim, o estudo <strong>de</strong>stes dois textos oferece-se, quer pela sua temática<br />

específica, quer pela abrangência <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte da argumentação utilizada, como<br />

um espaço <strong>de</strong> reflexão e visa, numa primeira fase, rastrear a biografia <strong>de</strong> Orlando<br />

Men<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo, para melhor se po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>svendar os particularismos<br />

estruturais e temáticos, confrontando-os com contextos literários e situacionais do<br />

momento ou anteriores. Deste modo, a metodologia utilizada é baseada,<br />

fundamentalmente, na análise estrutural e semântica dos textos, por um lado, e no<br />

enquadramento histórico-cultural, por outro, o que justifica a referência biográfica dos<br />

autores, para melhor comprensão do seu percurso literário e não só.<br />

Orlando Marques <strong>de</strong> Almeida Men<strong>de</strong>s nasceu a 4 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1916, na<br />

Ilha <strong>de</strong> Moçambique e morreu no dia 13 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1990, em Maputo. Em<br />

Lourenço Marques concluiu o sétimo ano do liceu. Foi funcionário dos Serviços <strong>de</strong><br />

Fazenda até 1944, ano em que seguiu para Portugal on<strong>de</strong>, sendo estudante-<br />

trabalhador, obteve a Licenciatura em Ciências Biológicas pela Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências<br />

da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra. Após a licenciatura, foi Assistente <strong>de</strong> Botânica da<br />

mesma Faculda<strong>de</strong>. De regresso a Moçambique, em 1951, passou a exercer a profissão<br />

<strong>de</strong> fitopatologista. Foi investigador <strong>de</strong> medicina tradicional no Ministério da Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Moçambique. O início da activida<strong>de</strong> literária <strong>de</strong> Orlando Men<strong>de</strong>s remonta aos anos<br />

férteis do neo-realismo. Apontado justamente por Rui Knopfli como a “voz insólita”<br />

que se erguia contra uma poesia que _ após a morte <strong>de</strong> Rui <strong>de</strong> Noronha _ tinha o<br />

exótico por paradigma, é <strong>de</strong> todos os moçambicanos aquele em cuja obra é visível um<br />

percurso pacientemente construído, marcado por elementos que ao longo do tempo se<br />

foram entrosando na construção <strong>de</strong> um espaço moçambicano <strong>de</strong> expressão.<br />

Publicou os seguintes livros: Trajectórias, Coimbra, (edição do autor), 1940;<br />

Clima, Coimbra, (edição do autor), 1959; Depois do 7º Dia, Lourenço Marques,


Publicações Tribuna, 1963, (Col. Cancioneiro <strong>de</strong> Moçambique 2); Portanto Eu vos<br />

Escrevo, Viseu/Portugal, (edição do autor), 1964; Portagem, Romance, Beira,<br />

(Notícias da Beira), 1966, (Col. Prodadores <strong>de</strong> Moçambique). S. Paulo, Ática, 1981<br />

(Col. Autores Africanos); Véspera Confiada, Lourenço Marques, Livraria Académica,<br />

1968; Um Minuto <strong>de</strong> Silêncio,Teatro, Beira, Notícias da Beira, 1970 (Col. Prosadores<br />

<strong>de</strong> Moçambique 7); A<strong>de</strong>us <strong>de</strong> Gutucumbui, Poesia, (Lourenço Marques), Académica,<br />

1974, (Col. O som e o sentido 3); A Fome das Larvas, Poesia, (Lourenço Marques),<br />

Académica, 1975, (Col. O som e o sentido 6); País Emerso I, Poesia, Contos e Teatro,<br />

Lourenço Marques, Empresa Mo<strong>de</strong>rna, 1975; País Emerso II, Poesia talvez<br />

necessária, Maputo, (edição do autor), 1976; Produção Com que Aprendo, poesia e<br />

pequenas histórias, Maputo, Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1978; Lume<br />

Florindo na Forja, Maputo, INLD, 1980; Sobre literatura moçambicana, Maputo,<br />

INLD, 1982 (ensaios); Papá Operário Mais Seis Histórias, contos para crianças,<br />

Maputo, INLD, 1980, 2ª ed., 1983 (Col. Chirico); As faces visitadas, Maputo, AEMO,<br />

1985, (Col. Timbila 4); O menino que não crescia, Contos para crianças, Maputo,<br />

INLD,1986 (Col. Chirico 19).<br />

Tem colaboração literária dispersa em O Diabo, Mundo Literário, Seara Nova,<br />

Vértice, Colóquio/Letras e África _ <strong>de</strong> Portugal; Itinerário, Voz <strong>de</strong> Moçambique, A<br />

Tribuna, Caliban, Notícias, Tempo, Charrua e Forja _ <strong>de</strong> Moçambique.<br />

Está representado em várias antologias <strong>de</strong> poesia e prosa <strong>de</strong> Moçambique.<br />

Foi galardoado com os prémios “Fialho <strong>de</strong> Almeida” dos Jogos Florais<br />

Universitários <strong>de</strong> Coimbra (1946) e “1º Prémio <strong>de</strong> Poesia” dos Concursos Literários<br />

da Câmara Municipal <strong>de</strong> Lourenço Marques (1953). 5<br />

5 . Fátima MENDONÇA: XVI-XVIII


O percurso literário e profissional <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo é apresentado <strong>de</strong><br />

forma breve nas contracapas <strong>de</strong> dois romances seus, Raízes do Ódio e A Sombra dos<br />

Dias e da colectânea <strong>de</strong> contos que constitui um dos corpus do presente trabalho: A<br />

Estranha Aventura. Tendo como epicentro Moçambique, as referências sobre<br />

Guilherme <strong>de</strong> Melo caracterizam-se, nas três obras citadas por, implícita e<br />

explicitamente, o integrarem no lote da literatura produzida em Moçambique, o que<br />

não é pacífico por parte dos estudiosos e dos teóricos literários <strong>de</strong> Moçambique.<br />

Aliás, a inclusão <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo na Literatura moçambicana enfrenta ainda<br />

gran<strong>de</strong> resistência e opositores. Não sei se será menos polémico consi<strong>de</strong>rá-lo escritor<br />

intermédio (hesitante entre Portugal e Moçambique), ten<strong>de</strong>ndo a partilhar duas<br />

nacionalida<strong>de</strong>s: a portuguesa, na civil e na literária, e só a moçambicana, na literária.<br />

Talvez seja <strong>de</strong> se reflectir sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar a sua<br />

literatura (e a dos outros da sua geração) como ultramarina, que se situa entre as ex-<br />

colónias e a ex-Metrópole: seria literatura dúbia, por reflectir duas realida<strong>de</strong>s? Como<br />

se po<strong>de</strong> ver, a sua incorporação num <strong>de</strong>terminado espaço literário, por causa das<br />

contingências políticas, não é pacífica. De qualquer das formas, a sua integração na<br />

literatura portuguesa do ultramar é uma possibilida<strong>de</strong> eventualmente pouco polémica<br />

e é aproximadamente nessa perspectiva que se procurará orientar este estudo,<br />

contrariando <strong>de</strong> certa forma a opinião expressa nos pós-fácios atrás referidos, <strong>de</strong> que<br />

Guilherme <strong>de</strong> Melo é um escritor exclusivamente moçambicano:<br />

«Nascido na antiga Lourenço Marques actual Maputo, Guilherme <strong>de</strong> Melo viveu em<br />

Moçambique até finais <strong>de</strong> 1974, aí realizando, como jornalista e escritor, uma obra notável <strong>de</strong><br />

que se <strong>de</strong>stacam A Estranha Aventura (contos) e As Raízes do Ódio (romance), logo após a<br />

sua publicação apreendida pela ex-Pi<strong>de</strong>. Ao radicar-se em Portugal e retomando a sua<br />

activida<strong>de</strong> <strong>de</strong> jornalista nos quadros do Diário <strong>de</strong> Notícias _ on<strong>de</strong> é, presentemente, um dos<br />

redactores-editorialistas _ , Guilherme <strong>de</strong> Melo ressurgiu como escritor, <strong>de</strong> forma fulgurante,<br />

exactamente com A Sombra dos Dias, a que se seguiram Ainda Havia Sol (romance) e, há


poucos meses, Moçambique: Dez Anos Depois (reportagem), estas duas obras também com a<br />

chancela da Editorial Notícias.» 6<br />

Em relação à provável apreensão pela Pi<strong>de</strong>, <strong>de</strong> As Raízes do Ódio, há vozes<br />

<strong>de</strong>scordantes <strong>de</strong>sta informação em Moçambique (particularmente <strong>de</strong> Fátima<br />

Mendonça, ainda que não oficialmente), que sustentam que esse romance teria sido<br />

retirado das prateleiras voluntariamente pelo autor, por motivos <strong>de</strong>sconhecidos. Aliás,<br />

seria incoerente a sua retirada, uma vez que, como se disse atrás, ele era um dos<br />

<strong>de</strong>fensores do Regime Colonial.<br />

Raízes do Ódio, primeiro romance <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo, foi editado pela<br />

primeira vez em Moçambique, há quase 40 anos. A segunda edição publicou-se em<br />

Lisboa, sob recomendação, em 1981, do juri do gran<strong>de</strong> prémio literário do Círculo <strong>de</strong><br />

Leitores, uma vez que, em geral as obras produzidas na então África Portuguesa eram<br />

<strong>de</strong>sconhecidas, ou ignoradas, na Metrópole. 7<br />

«Guilherme <strong>de</strong> Melo é um dos nomes mais representativos da nova geração literária<br />

moçambicana, tendo-se consagrado há muito, não obstante ainda, como poeta, contista e<br />

jornalista.<br />

Na activida<strong>de</strong> jornalística, Guilherme <strong>de</strong> Melo foi Chefe <strong>de</strong> Redacção do Notícias <strong>de</strong><br />

Lourenço Marques. Como contista e à parte uma pequena brochura publicada pela Associação<br />

dos Naturais da Província, tem obra dispersa por vários jornais e revistas.<br />

Por iniciativa do Notícias da Beira, edita-se pela primeira vez e a sério A Estranha<br />

Aventura, na colecção PROSADORES DE MOÇAMBIQUE, integrada na <strong>de</strong>signada<br />

literatura portuguesa ultramarina. 8<br />

Consta ainda nas seguintes publicações:<br />

Poetas <strong>de</strong> Moçambique, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império, 1960<br />

(Poemas seleccionados por Luís Polanah);<br />

6 . Cf. contra-capa <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo, 1985<br />

7 . Cf. contra-capa <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo, 1990<br />

8 . Cf. capa e contra-capa <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo, 1961


Poetas <strong>de</strong> Moçambique, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império,1962<br />

(Antologia organizada e prefaciada por Alfredo Margarido).<br />

Feita uma breve caracterização das biografias dos autores, procurarei<br />

apresentar um panorama sócio-histórico das obras <strong>de</strong> Melo e <strong>de</strong> Men<strong>de</strong>s e, em<br />

seguida, um breve enquadramento teórico, on<strong>de</strong> a tónica dominante será o Neo-<br />

Realismo Português.<br />

No capítulo I, far-se-á a primeira aproximação aos textos do corpus,<br />

analisando a problemática do Narrador, do mundo narrado e das questões <strong>de</strong> discurso.<br />

A voz do Narrador e as vozes das personagens serão vistas no domínio das<br />

autonomias discursivas. No capítulo II, serão analisadas as personagens nas suas<br />

vivências sociais, partindo-se dos grupos sociais, para as específicas relações<br />

familiares. Particular realce será dado à dinâmica das relações <strong>de</strong> parentesco, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />

alianças familiares, às relações <strong>de</strong> consanguinida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> afinida<strong>de</strong>. No capítulo III<br />

serão exploradas algumas questões básicas relacionadas com a problemática dos<br />

Espaços e do Tempo, respectivamente. E, finalmente, no capítulo IV, será apresentada<br />

a conclusão.<br />

Não obstante algumas naturais diferenças, os dois escritores <strong>de</strong> que me<br />

ocuparei, têm em comum o facto <strong>de</strong> terem sido escritores, activida<strong>de</strong> que a exerceram<br />

principalmente em Moçambique, o facto <strong>de</strong> terem exercido (ou ainda exercerem –<br />

caso <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo) a activida<strong>de</strong> literária, tanto em Moçambique, como em<br />

Portugal, o facto <strong>de</strong> terem vivido tanto em Moçambique, como em Portugal e,<br />

fundamentalmente, o facto <strong>de</strong> terem sofrido a influência do Neo-Realismo português e<br />

não só. Esta condição dual <strong>de</strong> escritores como Melo e Men<strong>de</strong>s, tanto vivencial como<br />

na produção literária, veio a criar, com as in<strong>de</strong>pendências dos países africanos, muitos<br />

problemas, tanto ao nível do seu enquadramento jurídico-civil, quanto, a um nível


particular, mas também muito sensível, o da <strong>de</strong>finição da nacionalida<strong>de</strong> literária. Esta<br />

questão da nacionalida<strong>de</strong> não merecerá maiores <strong>de</strong>senvolvimentos, pois não é<br />

objectivo <strong>de</strong>ste trabalho aprofundar esta problemática, para além <strong>de</strong> ser ainda muito<br />

polémica e <strong>de</strong> estar longe <strong>de</strong> reunir consensos.<br />

As in<strong>de</strong>pendências dos países africanos <strong>de</strong> expressão portuguesa vieram, a seu<br />

tempo e até à actualida<strong>de</strong>, agitar novamente um velho problema: o da atribuição da<br />

nacionalida<strong>de</strong> literária, que muitas vezes se verificou e se verifica não coincidir com a<br />

nacionalida<strong>de</strong> política ou com a civil. Neste caso concreto, estes dois autores <strong>de</strong> A<br />

Estranha Aventura e <strong>de</strong> Portagem, serão enquadrados na Literatura Portuguesa<br />

Mo<strong>de</strong>rna e Contemporânea, por se achar que ambos congregam o que se po<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>signar por perfil típico da época em que Moçambique estava integrado na<br />

administração <strong>de</strong> Portugal, consequência lógica da sua condição <strong>de</strong> colónia, do clima<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e <strong>de</strong> valores (marcadamente sob influência do Neo-Realismo, no âmbito da<br />

literatura e da doutrina marxista-leninista, no âmbito do pensamento político), em que<br />

os autores viviam e que, <strong>de</strong> certo modo, os aproximava em cada fase da sua<br />

experiência particular.<br />

Sem se preten<strong>de</strong>r alimentar polémicas em torno <strong>de</strong>sta questão da<br />

nacionalida<strong>de</strong> literária (porque, afinal <strong>de</strong> contas, ainda está longe <strong>de</strong> se achar uma<br />

solução e esta investigação não tem sequer, a pretensão <strong>de</strong> apresentar sugestões ou<br />

propostas nessa matéria), é <strong>de</strong>veras importante levantar algumas questões e recordar<br />

velhos problemas que sempre se colocaram em torno <strong>de</strong> escritores que partilharam,<br />

tanto emocional, afectiva, como literariamente, o espaço e a vida espiritual<br />

portugueses e o espaço e a vida material e espiritual africanos. Se é verda<strong>de</strong> que tanto<br />

Orlando Men<strong>de</strong>s, como Guilherme <strong>de</strong> Melo po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados escritores<br />

moçambicanos (e o primeiro parece reunir consenso nessa questão, em Moçambique),


não é menos verda<strong>de</strong> que nada obsta a que também sejam consi<strong>de</strong>rados escritores<br />

portugueses integráveis naquilo que se <strong>de</strong>signa por literatura portuguesa<br />

ultramarina. É certo que se está sempre, nestas situações, perante o velho dilema <strong>de</strong><br />

se ter que saber se o legado <strong>de</strong>sta literatura <strong>de</strong>ve ser incorporado na literatura das ex-<br />

colónias, como resultado dos processos das in<strong>de</strong>pendências nacionais, ou se esse<br />

legado <strong>de</strong>ve ser afecto à vasta literatura portuguesa (obe<strong>de</strong>cendo a que critérios?, a<br />

que princípios estético-teóricos?); ou ainda, se <strong>de</strong>ve enriquecer as "duas" literaturas<br />

(ou será que é uma só _ a portuguesa _ mas com ramificações específicas?). Estas<br />

questões e outras afins, nunca foram pacíficas e continuam muito acesas, actualmente,<br />

nos <strong>de</strong>bates da especialida<strong>de</strong>: literatura portuguesa vs literaturas africanas <strong>de</strong><br />

expressão portuguesa. Importante contributo é dado por Gilberto Moura, na sua<br />

<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong> literária, ainda que não apresente soluções à vista, para o<br />

caso africano, e não esgote este assunto sempre controverso:<br />

«São principalmente um espírito nacional que se exprime e a língua que lhe serve <strong>de</strong><br />

suporte, os elementos básicos <strong>de</strong>terminantes da nacionalida<strong>de</strong> literária. O conceito <strong>de</strong> "nação"<br />

está subjacente ao do "espírito nacional". (Para o caso africano) um espírito nacional<br />

(africano) exprime-se numa língua não nacional (ou não originariamente nacional). O que<br />

fazer? (Creio que) <strong>de</strong>ve prevalecer a língua, se o sujeito <strong>de</strong> avaliação, isto é, a obra, é <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>m predominantemente ou exclusivamente literária; e o espírito nacional, se for <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />

extra-literária, no domínio mais alargado, mais genérico, da cultura. Num sentido restrito, tais<br />

obras serão incluídas numa literatura; num sentido mais amplo, sê-lo-ão, ou não, na cultura<br />

que criou essa literatura.» 9<br />

Observando atentamente o último período da citação, nota-se uma certa<br />

hesitação (compreensível) <strong>de</strong> Gilberto Moura em especificar o "sítio" on<strong>de</strong> <strong>de</strong>vem ser<br />

incluídas essas obras africanas, em <strong>de</strong>terminar em que cultura foram criadas;<br />

especificando: será que, pelo facto <strong>de</strong> Orlando Men<strong>de</strong>s ter vivido muito tempo<br />

(nasceu e morreu em Moçambique) no país do Índico se po<strong>de</strong> afirmar que exprimiu,<br />

nas suas obras, em geral, e em Portagem, em particular, a cultura moçambicana?; será<br />

9 . Gilberto MOURA, 1985: 95-102


conhecedor da realida<strong>de</strong> intrínseca e profunda moçambicana? De qual <strong>de</strong>las? Será que<br />

Guilherme <strong>de</strong> Melo, por ter eleito temáticas moçambicanas em A Estranha Aventura,<br />

incluindo as personagens e as suas vivências e mundividências, po<strong>de</strong> ser integrado,<br />

literariamente no lote dos chamados escritores moçambicanos? Que dizer <strong>de</strong> outras<br />

obras suas produzidas em Portugal (o caso <strong>de</strong> Raízes do Ódio e <strong>de</strong> A Sombra dos<br />

Dias) e, particularmente, daquelas que relevam e revelam a realida<strong>de</strong> sócio cultural e<br />

até literária <strong>de</strong> Portugal? Estas e outras questões dificilmente encontram resposta<br />

(pelo menos até agora) e neste trabalho não têm outra finalida<strong>de</strong> se não chamar a<br />

atenção para a sua reflexão.<br />

A literatura é um fenómeno humano partilhado por todos os povos. Entretanto,<br />

ela não é universal; toda a literatura é regional, radica nos valores, nas tradições, nas<br />

aspirações estéticas das socieda<strong>de</strong>s individuais. Se a problemática da nacionalida<strong>de</strong><br />

literária africana se mostra <strong>de</strong> difícil solução, também se <strong>de</strong>ve acautelar a<br />

problemática em torno da universalida<strong>de</strong> literária, pois estes conceitos<br />

complementam-se: no<br />

universal se incorpora o nacional, o regional, etc.; do nacional se inferem situações<br />

universais. Neste âmbito, Eugénio Lisboa, criticando a questão abusiva da<br />

moçambicanida<strong>de</strong>, apresenta as seguintes interrogações suspensas e as respectivas<br />

reflexões:<br />

«O que é afinal ser-se moçambicano, enquanto poeta? Ter os problemas mais comuns<br />

à gente <strong>de</strong> Moçambique? Quais problemas? Serão esses os únicos legítimos para um poeta<br />

que cá se exprime? Então os problemas universais serão porventura apátridas? (…).<br />

(…) Os problemas universais são problemas <strong>de</strong> todas as pátrias. É simplesmente<br />

ridículo, em relação a alguns génios, por natureza universalistas e não <strong>de</strong>masiado radicados a<br />

um húmus específico, andar a levantar <strong>de</strong>slocadas questões <strong>de</strong> problemática local, a pretexto<br />

<strong>de</strong> um comportamento social que a este tipo <strong>de</strong> homens precisamente se não <strong>de</strong>ve preten<strong>de</strong>r<br />

impor.<br />

Literatura não é sociologia: reflecte, quando muito, emocionalmente, em poetas <strong>de</strong><br />

certo tipo, uma realida<strong>de</strong> social que profundamente os marcou. Po<strong>de</strong>mos pessoalmente, por<br />

temperamento e formação, preferir (uma ou outra); trata-se <strong>de</strong> razões pessoais.


Po<strong>de</strong>r-se-ia, quando muito, avançar um julgamento <strong>de</strong> natureza moral que conferiria<br />

ao poeta comprometido as palmas merecidas por uma generosida<strong>de</strong> mais aberta.» 10<br />

Eugénio Lisboa foi um dos criadores e críticos literários <strong>de</strong> literaturas<br />

africanas <strong>de</strong> expressão portuguesa, em geral, e da moçambicana, em particular, que se<br />

empenhou no seu estudo, na sua análise e teorização. Entretanto, mesmo tendo como<br />

suporte os seus argumentos, dificilmente se consegue i<strong>de</strong>ntificar um critério válido e<br />

consensual para <strong>de</strong>finir com precisão a nacionalida<strong>de</strong> literária. Se o critério aleatório<br />

não parece ser sério, pelo menos o opcional vai valendo por respon<strong>de</strong>r a "razões<br />

pessoais, <strong>de</strong> natureza moral", como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Lisboa, 1984: 140.<br />

De um modo geral, principalmente entre os escritores <strong>de</strong> origem e/ou <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scendência portuguesa, os que terminaram por ver África com outros olhos, os<br />

olhos da curiosida<strong>de</strong> intelectual e da afectivida<strong>de</strong> fraternal, foram os que adquiriram<br />

uma experiência e uma vivência africanas, como parece ser o caso <strong>de</strong> Orlando<br />

Men<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo. Recuando para o período <strong>de</strong> dominação colonial e<br />

para a então política da Metrópole, verifica-se que o po<strong>de</strong>r central via África como<br />

«uma espécie <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> coutada histórica e mítica do Estado Novo, com o qual os<br />

portugueses nada tinham a ver. Daí o <strong>de</strong>sinteresse clamoroso, generalizado por<br />

intelectuais oposicionistas, incluindo os escritores.» (Cf. nota <strong>de</strong> rodapé nº 7) 11<br />

Inicialmente, os autores africanos, ou que escreviam a partir <strong>de</strong> África,<br />

subsidiários da língua e da literatura portuguesas, vão ao encontro da produção textual<br />

que normalmente se inicia e se <strong>de</strong>senvolve no jornalismo e <strong>de</strong>pois transita para o<br />

texto literário tradicional: o poema, a crónica, o romance. 12<br />

10 . Eugénio LISBOA, 1984: 136-137<br />

11 . Manuel FERREIRA, 1989: 10<br />

12 . São três as condições prévias ao aparecimento <strong>de</strong> todas as literaturas africanas: (i) a eliminação<br />

do tráfico <strong>de</strong> escravos; (ii) a introdução da Tipografia e, consequentemente, da Imprensa e (iii) a


A primeira literatura escrita produzida em Moçambique é essencialmente <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes e/ou <strong>de</strong> portugueses, com todas as características, na temática e na<br />

forma, da que então se produzia em Portugal. A introdução nessas obras <strong>de</strong> alguns<br />

elementos do exotismo, bebidos na observação artificial, quase sempre <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa da<br />

paisagem humana e física <strong>de</strong> Moçambique, não altera o carácter estrangeiro <strong>de</strong>ssa<br />

literatura, que se <strong>de</strong>signa por colonial (ou ultramarina; ou ainda portuguesa em<br />

África). Esta literatura incumbe-se também <strong>de</strong> veicular os alibis morais da ocupação<br />

colonial, <strong>de</strong>turpando, <strong>de</strong> certa forma, e mistificando as relações entre colonizadores e<br />

colonizados e criando a ilusão <strong>de</strong> uma interacção cultural pacífica entre as duas partes,<br />

numa contradição insanável.<br />

Só nos meados do século XX a literatura africana atingiu a consciência do<br />

mundo exterior e isso porque uma nova geração <strong>de</strong> escritores reconhecidos (casos <strong>de</strong><br />

Orlando Men<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo, <strong>de</strong> Rodrigues Júnior, <strong>de</strong> José Craveirinha, <strong>de</strong><br />

Noémia <strong>de</strong> Sousa, etc.) escolheu recorrer às línguas europeias. Para ilustrar,<br />

Portagem, <strong>de</strong> acordo com Manuel Ferreira, dá «testemunho <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong><br />

moçambicana compósita _ europeus/portugueses, africanos, mulatos, indianos _ em<br />

que são evi<strong>de</strong>ntes os sinais <strong>de</strong> <strong>de</strong>sintegração do modus colectivo que interliga os seus<br />

elementos: o colonialismo, o mal-estar, a insegurança, a cruelda<strong>de</strong>, o racismo, a<br />

prepotência, são temas comuns das narrativas que apontam para o processo então em<br />

curso.» 13<br />

criação <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> escolar. A evolução da literatura escrita em Moçambique tem uma ligação directa<br />

com o surgimento da Imprensa.<br />

Como anotou Margarido, a imprensa da época «aborda os problemas da burguesia do momento, a<br />

qual (…) se vê muito <strong>de</strong>pressa ultrapassada pelo aparecimento <strong>de</strong> fenómenos económicos consecutivos<br />

à exploração intensiva do país (…). A imprensa colocará, então, o problema da colonização <strong>de</strong><br />

Moçambique (…). Em torno do Jornal Brado Africano, reunir-se-ão com esse objectivo negros,<br />

mestiços, às vezes indianos e mesmo, embora raramente, brancos.» (Alfredo MARGARIDO, 1980: 67)<br />

13 . Tal é o caso do objecto (corpus) <strong>de</strong>ste trabalho e também das obras Nós Matámos o Cão<br />

Tinhoso, Godido e Outros Contos; da poesia tímida <strong>de</strong> Rui <strong>de</strong> Noronha, à contundência <strong>de</strong> José<br />

Craveirinha, <strong>de</strong> Noémia <strong>de</strong> Sousa, para referir alguns nomes da literatura dos anos 60/70, mais ou


Entretanto, é <strong>de</strong> realçar que a literatura escrita moçambicana, em particular, e<br />

a dos PALOP em geral, teve a sua génese na Europa. Não foram poucos os<br />

portugueses que intervieram no processo <strong>de</strong> consciencialização literária e cultural<br />

africano. Neste caso concreto, a corrente literária neo-realista portuguesa e a<br />

i<strong>de</strong>ologia marxista-leninista são as que predominaram nas obras que constituem o<br />

corpus. Em certos casos, alguns estudiosos portugueses <strong>de</strong> Letras emprestaram a sua<br />

contribuição para a formação das literaturas das nações africanas.<br />

A literatura produzida no antigo ultramar português não tinha o costume <strong>de</strong><br />

interessar sectores alargados da intelectualida<strong>de</strong> lusa, fosse essa literatura <strong>de</strong> brancos,<br />

<strong>de</strong> mestiços ou <strong>de</strong> negros. As preocupações <strong>de</strong> índole social ou contra os abusos da<br />

administração, circunscreviam-se a um certo jornalismo e não eram, por norma,<br />

entendidas como tema criativo, ressalvando-se o plano abstracto das i<strong>de</strong>ias liberais.<br />

No texto literário da época, em alguns autores se <strong>de</strong>lineia o sentimento nacional;<br />

excessivo, em muitos casos, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter a carga colonial .<br />

O Neo-Realismo surge, no nosso século, como projecção literariamente elaborada<br />

(e para alguns até, mais projecção do que elaboração) do Materialismo Histórico e<br />

Dialéctico, enquanto o Realismo e o Naturalismo aparecem na segunda meta<strong>de</strong> do<br />

século passado. O Realismo valoriza a observação como instrumento <strong>de</strong><br />

conhecimento, conduzindo à análise minuciosa dos costumes; ao mesmo tempo, essa<br />

análise dos costumes constitui o suporte metodológico <strong>de</strong> uma crítica social <strong>de</strong> intuito<br />

reformista, num quadro i<strong>de</strong>ológico anti-i<strong>de</strong>alista e anti-romântico.<br />

O Realismo privilegia uma visão materialista das coisas e dos fenómenos:<br />

confere-se proeminência à realida<strong>de</strong> material e empiricamente verificável. Num<br />

menos consensuais, no que diz respeito à sua aceitabilida<strong>de</strong> na arena internacional e, particularmente,<br />

em Moçambique. (Manuel FERREIRA, 1978: 51)


plano <strong>de</strong> actuação social, o Realismo conexiona-se com correntes <strong>de</strong> pensamento<br />

150-151<br />

<strong>de</strong> índole materialista, nalguns casos, <strong>de</strong> índole socialista.<br />

No que diz respeito ao Neo-Realismo importa referir que o que presi<strong>de</strong> à sua<br />

génese é a dinâmica essencialmente colectivista assumida pelo momento histórico<br />

em que se vivia: a concepção militante da literatura. Acentuou muitas vezes, quer<br />

numa óptica i<strong>de</strong>ológica, quer pelas preferências temáticas manifestadas, o seu<br />

carácter <strong>de</strong> Humanismo renovado. O compromisso social assumido não podia<br />

<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> envolver uma atenção consi<strong>de</strong>rável relativamente aos elementos<br />

humanos que povoam o universo da ficção encarados como meios <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> um empenhamento e solidarieda<strong>de</strong> activa. Segundo Mário<br />

Sacramento, concretiza-se assim «uma autodialéctica <strong>de</strong> classe pela qual o<br />

escritor, quase sempre <strong>de</strong> origem e interesse pequeno-burguês e urbano, procura<br />

i<strong>de</strong>ntificar-se com as massas trabalhadoras, <strong>de</strong> uma maneira geral rurais.» 14 No<br />

Neo-Realismo, em termos mais concretos, o período preciso em que se situam as<br />

tentativas poéticas que parecem mais significativas para explicarem as suas<br />

opções narrativas, é o correspon<strong>de</strong>nte aos finais dos anos trinta e princípios dos<br />

quarenta, época <strong>de</strong> mais intensa criação teórica neo-realista 15 . O texto tinha que<br />

ser lido numa perspectiva <strong>de</strong> empenhamento e entendimento como proposta <strong>de</strong><br />

aproximação em relação aos problemas concretos do espaço representado.<br />

O Neo-Realismo português, como período literário dotado <strong>de</strong> características<br />

pragmáticas <strong>de</strong>finidas, constituiu-se, como se referiu, no final da primeira meta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ste século. Ele nutriu-se <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadas históricas e sociais. Assim, não<br />

po<strong>de</strong>rão ser ignorados, como elementos motores <strong>de</strong> uma prática literária<br />

14 . Mário SACRAMENTO, Há uma estética Neo-Realista?, p. 50, citado por Carlos Reis, 1983:<br />

15 . Carlos REIS, 1983: 403


empenhada, fenómenos como a crise económica dos anos vinte, a instauração <strong>de</strong><br />

regimes políticos <strong>de</strong> feição totalitária (sobretudo na Itália, na Alemanha, na<br />

Espanha e em Portugal) e, como acontecimento culminante, o <strong>de</strong>flagrar da<br />

Segunda Guerra Mundial.<br />

Os factos anunciados eram manifestações como que superficiais provocadas<br />

por forças <strong>de</strong> base como o acelerar do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> economias <strong>de</strong> carácter<br />

monopolista, a progressiva industrialização das socieda<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais, com origem<br />

na segunda meta<strong>de</strong> do século, a germinação e posterior amadurecimento <strong>de</strong><br />

conflitos <strong>de</strong> classe irrefreáveis, o incremento dos "mass-média", etc..<br />

O Neo-Realismo português foi influenciado pelo Realismo Socialista. Este<br />

assentava a sua concepção do fenómeno literário numa informação i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong><br />

natureza marxista, favorecida pelas circunstâncias históricas em que surgiu, na<br />

Rússia dos anos 20 e 30. Competia ao Realismo socialista (como movimento<br />

literário historicamente integrado) a tarefa <strong>de</strong> transformação i<strong>de</strong>ológica e <strong>de</strong><br />

educação dos trabalhadores no espírito do Socialismo.<br />

O romance americano dos anos vinte, que privilegia a temática dos <strong>de</strong>serdados<br />

sociais, mas no contexto norte-americano, também influenciou e prece<strong>de</strong>u o Neo-<br />

Realismo. Preocupava-se por questões como a segregação racial, o espírito<br />

competitivo <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> que se pretendia <strong>de</strong>mocrática, a ânsia do lucro e as<br />

distorções <strong>de</strong>la <strong>de</strong>fluentes, os traumatismos provocados pela crise económica do<br />

final dos anos vinte.<br />

Sendo o Neo-Realismo uma nova maneira <strong>de</strong> ver o Mundo, o Homem e os<br />

seus problemas, não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se reflectir em todas as formas <strong>de</strong> produzir<br />

"objectos artísticos" por via da literatura, do cinema, das artes plásticas, da música<br />

e até através <strong>de</strong> um modo novo <strong>de</strong> reescrever a História, a Filosofia, a Sociologia


e outros temas das Humanida<strong>de</strong>s, bem como das outras ciências. Guilherme <strong>de</strong><br />

Melo e Orlando Men<strong>de</strong>s procuram reflectir em A Estranha Aventura e em<br />

Portagem, respectivamente, as suas vivências em terras africanas, em geral, e<br />

moçambicanas, em particular, colocando em relevo questões relacionadas com o<br />

Homem concreto, nas suas diferenças e especificações. Por outras palavras, há<br />

uma explícita solidarieda<strong>de</strong> por parte do autor com o Homem africano<br />

<strong>de</strong>sfavorecido, segregado da vida; há uma manifesta vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> intervenção<br />

transformadora (prejudicada embora pela dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> a mensagem chegar aos<br />

<strong>de</strong>stinatários potenciais, que seria a maioria da população autóctone <strong>de</strong><br />

Moçambique, quer assimilada, quer simplesmente nativa). Tal como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />

Urbano Tavares Rodrigues, o <strong>de</strong>nominador comum <strong>de</strong>sta literatura neo-realista<br />

será «a sondagem das existências "reduzidas" - sua relação com o trabalho, com a<br />

dor, com o amor, sua tomada <strong>de</strong> consciência (manifestada, por exemplo, em<br />

Portagem, através da personagem Xilim) das formas <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong> que são<br />

objecto. Mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong>stas obras, que entre nós trouxeram para a cena literária os<br />

camponeses, os pescadores, os contrabandistas, os mineiros, terão sido os<br />

romances <strong>de</strong> Gorki e os <strong>de</strong> Steinbeck, os contos <strong>de</strong> Michael Guld, as narrativas<br />

épicas e líricas <strong>de</strong> Jorge Amado.» 16 Se, neste particular, Guilherme <strong>de</strong> Melo, em<br />

A Estranha Aventura, aflora estas temáticas, Orlando Men<strong>de</strong>s, em Portagem,<br />

aprofunda-as, pondo até em <strong>de</strong>staque as precárias condições <strong>de</strong> segurança nas<br />

minas do Patrão Campos, o negócio <strong>de</strong> contrabando protagonizado por este, a<br />

<strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong> e a <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> do pescador branco Coxo para com o pescador<br />

artesanal, o mulato Juza.<br />

16 . Urbano Rodrigues TAVARES, 1981: 13-14


Neste contexto, a análise dialéctica das relações humanas <strong>de</strong>ntro do quadro das<br />

relações <strong>de</strong> produção é já muito relevante nos textos <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo e <strong>de</strong><br />

Orlando Men<strong>de</strong>s, vindo a atingir os seus pontos mais altos em escritores mais<br />

progressistas em Moçambique, como Luís Bernardo Honwana, em Nós Matamos<br />

o Cão Tinhoso, José Craveirinha e Noémia <strong>de</strong> Sousa, só para citar alguns<br />

exemplos. É <strong>de</strong> admitir que as obras que constituem o corpus <strong>de</strong>ste trabalho<br />

caibam no conceito do neo-realismo pelo que revelam, a nível sócio-político, da<br />

realida<strong>de</strong> portuguesa no Ultramar, em particular, no Moçambique da Guerra<br />

Colonial e da situação social na Metrópole, abalada com uma gran<strong>de</strong> vaga <strong>de</strong><br />

emigração económica e com o regime Salazarista. Aliás, é <strong>de</strong> realçar que<br />

Portagem e A Estranha Aventura procuram reflectir uma socieda<strong>de</strong> moçambicana.<br />

Nessa mesma socieda<strong>de</strong> (isto é, com os olhos virados para <strong>de</strong>ntro), patenteiam-se<br />

os estractos do mundo do trabalho, das carências primárias, principalmente para<br />

os nativos (a fome, o <strong>de</strong>sejo sexual, a doença, o medo) e ainda da religião, da<br />

moral, dos reflexos da nova i<strong>de</strong>alogia.


CAPÍTULO I - Primeira aproximação aos textos: narrador, narrado e<br />

questões <strong>de</strong> discurso<br />

A análise das questões do discurso do narrador terá como suporte o quadro<br />

teórico interactivo narrador-discurso, em estreita correspondência com o discurso das<br />

personagens.<br />

A problemática do narrador, em qualquer obra que se preten<strong>de</strong> narrativa, é<br />

sempre objecto <strong>de</strong> aturados estudos e, tratando-se <strong>de</strong> um assunto sempre actual, a sua<br />

análise mostra-se sempre pertinente.<br />

Não se preten<strong>de</strong>ndo esgotar esta questão, tem-se como intuito propor algumas<br />

linhas <strong>de</strong> leitura à luz do que nos oferece o corpus.<br />

O narrador po<strong>de</strong> ser visto sob várias perspectivas, uma <strong>de</strong>las sendo a do<br />

narrador literário como um leitor da realida<strong>de</strong> que constitui o objecto da narrativa, do<br />

mesmo modo que qualquer leitor o é em relação ao mundo circundante. Se é verda<strong>de</strong><br />

que qualquer um po<strong>de</strong> ler o mundo conforme o seu posicionamento, a sua visão do<br />

cosmos, etc., não será menos lícito afirmar que a diferença entre um leitor do mundo e<br />

o narrador da ficção está em que este lê o mundo real e objectivo filtrado por mo<strong>de</strong>los<br />

<strong>de</strong> ficcionalida<strong>de</strong> e cria, a partir da leitura, um objecto narrativo a ser lido como<br />

ficção. Este narrador <strong>de</strong>sempenha a dupla função semântica <strong>de</strong> <strong>de</strong>scodificador<br />

(porque leitor) e <strong>de</strong> codificador (porque criador do objecto <strong>de</strong> leitura). Tanto a<br />

<strong>de</strong>scodificação como a codificação se estruturam temporalmente; por essa razão, tal<br />

como po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong> uma temporalida<strong>de</strong> na apreensão do mundo real, temos<br />

também <strong>de</strong> reconhecer o tempo como categoria fundamental <strong>de</strong> qualquer discurso.<br />

Porque contém tempo, todo o discurso é um «Mundo» - palavra que, neste contexto,<br />

significa totalida<strong>de</strong> e inteireza <strong>de</strong> construção linguística.


Em relação ao mundo narrado é importante saber que tipo <strong>de</strong> informação nos<br />

reserva o texto, ou <strong>de</strong>terminados momentos do mesmo, pois que uma das<br />

características básicas do mundo narrado dos autores do corpus é o relaxamento da<br />

acção, ou o abrandamento e lentidão que vão, obviamente, contaminar a própria<br />

personagem, quiçá o seu espírito. Com esta situação, o próprio discurso narrativo é<br />

afectado, pois não se impõe à personagem adoptar uma postura, o que abranda o rítmo<br />

da sucessão <strong>de</strong> eventos. A narração po<strong>de</strong> ser pausada e até lentamente ritmada. Por<br />

exemplo, no primeiro capítulo <strong>de</strong> Portagem po<strong>de</strong>-se constatar isso: os<br />

acontecimentos, ou melhor, as constatações dos factos centram-se no espaço<br />

ancestral, a al<strong>de</strong>ia abandonada <strong>de</strong> Ridjalembe (simbolizado pelo microcosmos da<br />

palhota e pela velha), que remete para um tempo passado e mítico:<br />

«A velha negra sai da palhota e fecha os olhos doridos pela luz crua do sol.<br />

Depois abre-os lentamente e a boca encasquilha-se-lhe num sorriso<br />

aparentemente sem sentido. No terreiro não há ninguém que lhe faça lembrar<br />

coisas do mundo que está esquecendo. Tudo quanto ela enten<strong>de</strong> do exterior é<br />

aquele ranger medroso dos ramos nus da árvore mirrada, sucedidos pelo vento<br />

quente e vagaroso que passa e se escon<strong>de</strong> na terra.» (Po.: 11)<br />

A velha Alima como que encarna não só essa ancestralida<strong>de</strong>, mas também<br />

esse discurso algo lento, nostálgico, quase que falho <strong>de</strong> acção física, que o narrador<br />

adopta. É o discurso que chamei “relaxado”. O narrador como que abranda o ritmo e,<br />

assumindo valor metafórico, esse abrandamento vai condizendo com a situação <strong>de</strong><br />

solidão e <strong>de</strong> abandono da velha Alima, com a quase total indiferença por parte dos<br />

ex-al<strong>de</strong>ões (que, entretanto, foram para o Marandal, <strong>de</strong>vido à situação <strong>de</strong> seca no<br />

Ridjalembe) em relação às suas raízes, às tradições. Há como que uma rejeição<br />

passiva <strong>de</strong>sse mundo passado (<strong>de</strong> que a emigração para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Marandal é o<br />

sintoma mais evi<strong>de</strong>nte), reforçada pela esterilida<strong>de</strong> da terra. Não é ainda muito<br />

importante procurar uma explicação acerca das outras razões possíveis que teriam


ocasionado a emigração da povoação <strong>de</strong> Ridjalembe, entretanto, importa referir que a<br />

seca é um factor <strong>de</strong>terminante (mais adiante a questão será retomada):<br />

«Recordando, é <strong>de</strong>pois o mar que lhe aparece, um mar <strong>de</strong> ondas bravias<br />

que foi a fronteira <strong>de</strong> emigração <strong>de</strong> negros para o sul, na gran<strong>de</strong> seca (...). Aí<br />

começou a solidão enorme da velha Alima.» (Po.: 11-12) 17<br />

O ritmo brando não só é proporcionado pelo conteúdo da <strong>de</strong>scrição<br />

do narrador, mas também pela forma como selecciona e usa os tempos<br />

verbais.<br />

É verda<strong>de</strong> que muito se tem dito sobre os tempos verbais e a sua significação<br />

na diegese narrativa, e é certo também que só na base dos tempos dos verbos não se<br />

apren<strong>de</strong> quase nada sobre a temporalida<strong>de</strong> da acção, na narrativa ficcional. Entretanto,<br />

é pertinente realçar que, no presente caso, é justificável a sua convocação para uma<br />

melhor compreensão do fenómeno do mundo narrado.<br />

A literatura está e é feita <strong>de</strong> língua natural e os tempos da literatura não po<strong>de</strong>m<br />

ser algo totalmente diferente dos tempos da linguagem não literária. O contrário<br />

também parece verda<strong>de</strong>: os tempos da linguagem não literária não po<strong>de</strong>m ser algo<br />

completamente diferente dos tempos da obra literária. No mundo narrado, nas obras<br />

do corpus, os Pretéritos Imperfeito e o Perfeito Simples aparecem como sinais<br />

linguísticos indicadores <strong>de</strong> que se está perante uma narração, ou seja, são tempos mais<br />

<strong>de</strong> orientação ocasional da narrativa e não propriamente <strong>de</strong> tensão ou <strong>de</strong> acção. Como<br />

se verá mais abaixo, este tempo narrado é, num aspecto, mais pobre, noutros, mais<br />

rico, pois todo o tempo relatado é um tempo acumulado e, como tal, contém<br />

omissões. O acto em si <strong>de</strong> omitir pressupõe uma <strong>de</strong>terminada selecção, sendo esta, por<br />

17 . Passarei daqui em diante a utilizar, nas citações, as seguintes iniciais<br />

referentes às obras do corpus: A Estranha Aventura (E.A.) e Portagem (Po).


sua vez, fruto da interpretação do narrador. Há uma espécie <strong>de</strong> ciclo vicioso. Veja-se a<br />

seguinte passagem <strong>de</strong> Portagem:<br />

«A velha ainda se lembra <strong>de</strong> que lá longe, a planície se esvai no sopé da serra do<br />

Marrandal. Vieram os brancos com as suas máquinas para abrirem os gran<strong>de</strong>s buracos na terra<br />

e tirar o carvão (...).» (Po: 12)<br />

Repare-se que, <strong>de</strong> entre os vários acontecimentos lembrados pela velha, o<br />

narrador privilegiou o da planície, uma paisagem para ela carregada <strong>de</strong> muito<br />

significado. Aqui o narrador seleccionou o que achou conveniente, omitindo o<br />

restante fluir da memória que a velha verosimilmente po<strong>de</strong>ria ter tido. Se no acto <strong>de</strong><br />

«lembrar» o narrador põe a personagem a actualizar a acção mental, o conteúdo <strong>de</strong>ssa<br />

lembrança é dado no Pretérito Perfeito, precisamente para dar o efeito <strong>de</strong><br />

acontecimento ocorrido num <strong>de</strong>terminado passado. Por outras palavras, há como que<br />

uma tentativa <strong>de</strong> distinguir o acto <strong>de</strong> lembrar em si, como estando a ocorrer no<br />

presente, e aquilo que se lembra, como tendo já, obviamente, ocorrido no passado. É<br />

precisamente este manipular <strong>de</strong> tempos que faz com que Portagem, ainda que relate<br />

factos passados, os torne actuais e, ainda que sejam factos «presentificados», dêem<br />

também informação sobre <strong>de</strong>sfazamento temporal entre lembrança e lembrado.<br />

Não obstante isto, é preciso não per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que em Portagem estes<br />

tempos, predominantemente do mundo narrado, se encontram em paralelo formal e<br />

em parelha com os tempos do mundo comentado, vivido e vice-versa.<br />

Ao observar as nuances do mundo narrado vê-se que, afinal, um tempo verbal,<br />

numa narrativa, tem como contexto essa mesma narrativa, com todos os seus tempos.<br />

O seu valor <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada obra narrativa no seu todo.<br />

Em A Estranha Aventura também é possível encontrar situações que po<strong>de</strong>m<br />

enquadrar o mundo narrado. No primeiro conto, «A Estranha Aventura», há uma<br />

espécie <strong>de</strong> relato da infância do narrador. Discursivizado, preferencialmente no


Presente do Indicativo, esse relato recupera as suas vivências, <strong>de</strong>screvendo os<br />

acontecimentos ocorridos e caracterizando o espaço físico. Há sempre um tom<br />

monótono, aparentando ausência <strong>de</strong> movimento. Não se dá a ver a dinâmica da<br />

juventu<strong>de</strong> do Narrador, como se se pintasse um quadro pseudo-estático. É curioso<br />

notar que o narrador, em quase três páginas e meia, a contar do princípio, faz pura e<br />

simplesmente a caracterização disfórica do seu bairro <strong>de</strong> infância (a solidão, o<br />

isolamento, o <strong>de</strong>sconhecido ) e, com a precisão <strong>de</strong> um topógrafo ou <strong>de</strong> um urbanista, a<br />

localização do mesmo. Veja-se com que carga irónica:<br />

locativo:<br />

«Claro que vocês não sabem on<strong>de</strong> ficam as Mahotas. É natural: se nasceram<br />

na cida<strong>de</strong> (...). Mas às Mahotas ninguém vai.» (E. A.: 15)<br />

O narrador <strong>de</strong>monstra ter um fino domínio na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> carácter<br />

«(...) as Mahotas não ficam à beira <strong>de</strong> nenhuma estrada <strong>de</strong> passagem. A<br />

estrada que leva até lá , parte <strong>de</strong> Lourenço Marques e segue em linha recta (15<br />

)»; «(...) as Mahotas resumem-se a vinte casas ferroviárias (...) (16)»; «(...) um<br />

bairrosinho ferroviário branquejando num <strong>de</strong>scampado (...) (16)». « As ruas<br />

são todas <strong>de</strong> alcatrão com pedrisco miúdo em cima (...).» (E.A: 17)<br />

Se se exceptuarem algumas passagens das páginas 27 e 32 do mesmo conto,<br />

po<strong>de</strong>-se constatar a quase ausência <strong>de</strong> dinamismo e, mais precisamente, <strong>de</strong> uma<br />

sequência dialógica. É verda<strong>de</strong> que este narrador, tal como se advertiu, não se coíbe<br />

<strong>de</strong> utilizar o Presente do Indicativo, só que este presente é diferente do do mundo<br />

comentado, <strong>de</strong> «dramatização» dos acontecimentos através da recorrência ao discurso<br />

directo (por exemplo, através do diálogo entre as personagens). Inserido neste<br />

discurso <strong>de</strong>scritivo-caracterizador, este presente procura espelhar a paisagem<br />

verda<strong>de</strong>ira, actualizada, tornando assim credível a informação do narrador. Aliás, o<br />

carácter autobiográfico <strong>de</strong>ste conto também justifica a preferência pelo presente do<br />

indicativo, na primeira pessoa gramatical. Esta é uma das marcas da literatura<br />

autobiográfica.


A problemática da autobiografia coloca outra questão ao nível da autoria do<br />

discurso. Quem se responsabiliza por ele, em A Estranha Aventura, o narrador ou o<br />

autor 18 ? Na verda<strong>de</strong>, Guilherme <strong>de</strong> Melo viveu a sua infância naquele Bairro<br />

Ferroviário. A <strong>de</strong>scrição física correspon<strong>de</strong> às características do mesmo. Mas será isso<br />

suficiente para se dizer que os factos narrados correspon<strong>de</strong>m às vivências reais por ele<br />

tidas naquele bairro isolado? Clara Rocha também trata a dinâmica <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong><br />

“eu”. 19<br />

Há um aspecto que à primeira vista po<strong>de</strong>rá parecer paradoxal neste mundo<br />

narrado caracterizado, como já se disse, pelo relaxamento da acção e pela lentidão.<br />

Não obstante a lentidão, o narrador adopta uma estratégia que permite a aceleração e a<br />

consequente recuperação dos acontecimentos, recorrendo a resumos e a anacronias.<br />

Assim obtém também o efeito <strong>de</strong> brevida<strong>de</strong> que é característica do conto. Elucida-se<br />

apenas a aceleração dos acontecimentos:<br />

«Já há longos anos que não vou às Mahotas» (18 ); «(...) os primeiros meses<br />

correram e pouco a pouco, o hábito e a adaptação tomaram o lugar da revolta e<br />

do azedume» (19); « Quantos dias, quantas semanas rolaram, <strong>de</strong>pois disso<br />

(...)?» (E. A.: 24)<br />

Para colmatar as lacunas informativas provocadas por longas omissões ou por<br />

resumos, o narrador, sem per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a característica do seu discurso do mundo<br />

narrado, socorre-se do processo <strong>de</strong> reiteração ou da convocação do discurso anterior,<br />

estabelecendo assim, as pontes entre as várias sequências discursivas e contribuindo<br />

também, não só para uma certa coerência linguística dos elementos, mas também para<br />

18 . Clara ROCHA dá uma resposta, <strong>de</strong> certo modo justificável, quando afirma que «Ao nível do<br />

discurso, a autobiografia po<strong>de</strong> ser entendida como uma recriação em que se fun<strong>de</strong>m memória e<br />

imaginação, uma combinação entre experiência vivida e efabulação.» (1992: 46)<br />

19 . «Nesta perspectiva, a formação do eu através da palavra correspon<strong>de</strong> a um segundo nascimento,<br />

e o sujeito que (se) narra é um outro, um duplo da pessoa real. Esse eu é apenas uma personagem <strong>de</strong><br />

ficção por ser protagonista duma vida da qual o próprio eu não é autor, somente o co-autor.» (Clara<br />

ROCHA, 1992: 46)


a coesão discursiva: «Tudo isto aconteceu não tinha eu <strong>de</strong>z anos, já vos disse, creio.»<br />

(E. A: 30)<br />

Também se nota uma acentuada tendência para o estabelecimento da coerência<br />

entre este narrador autobiográfico e o seu <strong>de</strong>stinatário explicitado (vos), ainda que<br />

in<strong>de</strong>terminado. Este <strong>de</strong>stinatário será o próprio narrador, será o «outro» interlocutor,<br />

ou serão os dois? Há uma forte preocupação em interpelar o interlocutor, em apelar à<br />

sua atenção, o que é uma conseguida forma <strong>de</strong> criar empatia com o texto. Isto quer<br />

dizer que o narrador, neste texto, recorre a uma espécie <strong>de</strong> monólogo dialogante, o<br />

que lhe faculta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o texto po<strong>de</strong>r repetir-se a si mesmo, <strong>de</strong> se citar a si<br />

próprio. Também há nele uma tentativa consciente <strong>de</strong> apreensão do passado,<br />

consi<strong>de</strong>rando o domínio da recordação o único <strong>de</strong> conhecimento realmente válido. Há<br />

também que consi<strong>de</strong>r aqui, a existência <strong>de</strong> «uma revelação da personagem feita por si<br />

própria, através do quotidiano, em or<strong>de</strong>m a atingir a sua transparência absoluta, o que<br />

se consegue através do recurso constante à técnica do monólogo.» 20 E é preciso<br />

observar a interpelação do interlocutor, como quando o narrador diz, a dado passo:<br />

«Claro que vocês não sabem on<strong>de</strong> ficam as Mahotas. É natural» (16). « Por sua vez,<br />

vós todos os outros, os que não vivem lá (...) não sabem on<strong>de</strong> ficam as Mahotas.» (E.A.: 16)<br />

O narrador não só se revela a si mesmo, como também chama a atenção do<br />

leitor (ou do interlocutor), convidando-o a partilhar consigo os acontecimentos, a<br />

i<strong>de</strong>ntificar-se até com o seu perfil, com as suas i<strong>de</strong>ias. Isto só é possível na medida em<br />

que uma obra literária, qualquer que seja a mundividência que lhe está subjacente,<br />

preten<strong>de</strong> ser uma transposição da vida. Esta po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como que uma<br />

exigência para a participação do leitor na obra. Nesta perspectiva, a evocação<br />

<strong>de</strong>sempenha um papel fundamental, pois «provoca no leitor a impressão mais funda<br />

<strong>de</strong> um distanciamento entre o plano do passado e do presente; por outro lado, ela<br />

20 . Maria Alzira SEIXO, (1984: 12)


aproxima do narrador, sob o ponto <strong>de</strong> vista afectivo, as coisas que já foram». 21 Nestas<br />

modalida<strong>de</strong>s, ou em muitas outras que aparecem ao longo da obra, a segunda pessoa<br />

evocativa funciona como elemento que justapõe o presente ao passado, afirmando-os<br />

na sua interligação <strong>de</strong> um tempo único.<br />

Facto curioso é notar que, tanto em Portagem, como em A Estranha Aventura,<br />

predominantemente, é do presente que os narradores falam, virados para o passado e<br />

comunicando o que <strong>de</strong>sse passado assumem, o que <strong>de</strong>le, através do presente, se lhes<br />

torna actual no instante. Este tipo <strong>de</strong> narrador mantém-se numa constante dialéctica<br />

passado-presente, isto é, mergulha no passado para explicar as origens do presente,<br />

que lhe é, antes <strong>de</strong> mais nada, apreensível. O passado impõe-se como massa<br />

esmagadora, mas o presente, constantemente o encara. O capítulo dois <strong>de</strong> Portagem<br />

mostra isso:<br />

«Com a pá <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, João Xilim faz guinar a almadia para a ilhota no meio do rio.<br />

De um salto, põe os pés na areia. Despe a camisa (...).» (15)<br />

Mais adiante:<br />

« João Xilim veio para o quintal após esse primeiro encontro com a senhora e a<br />

menina relembrou a história do seu nome.» (16)<br />

Note-se algo similar em A Estranha Aventura:<br />

«Naquela tar<strong>de</strong> (...) Marianita não veio brincar com as outras. Tasquinhou, sem<br />

vonta<strong>de</strong>, a merenda (...).»<br />

E, mais adiante:<br />

« Vejo-a entrar, da ca<strong>de</strong>ira do canto on<strong>de</strong> me sentei há pouco, quando cheguei. Vejoa<br />

entrar e não tenho coragem <strong>de</strong> me levantar (...). Vejo-a entrar e encolho-me mais no meu<br />

canto (...).» (E. A.: 55)<br />

A partir <strong>de</strong>stes exemplos po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r que há, nestas duas obras, dois<br />

planos do passado: um, mais próximo, que se situa ao nível da narrativa e outro, mais<br />

distante, situando-se, ao nível da lembrança. Aliás, Portagem suporta-se basicamente<br />

21 . Vergílio FERREIA, «Um tempo <strong>de</strong> pesquisa », in Maria Alzira Seixo, 1984: 134


por um discurso rememorativo, questão a que voltarei mais adiante. O mesmo não se<br />

po<strong>de</strong>rá dizer <strong>de</strong> A Estranha Aventura, pelo menos na maior parte dos contos.<br />

. Autonomias discursivas: voz do Narrador e vozes das Personagens<br />

No capítulo 17 <strong>de</strong> Portagem verifica-se uma mudança no discurso: há como<br />

que uma responsabilida<strong>de</strong> quase total do narrador, através do recurso ao discurso<br />

indirecto, que diz as falas das personagens. Por vezes, essas pronunciam, no interior<br />

<strong>de</strong> uma extensa sequência narrativa, uma única frase directa, forçando assim a trama<br />

cerrada do discurso do narrador. Atente-se, por exemplo, nas páginas 97, 98 e 99: na<br />

primeira, não há nenhuma intervenção directa <strong>de</strong> uma personagem; na segunda,<br />

encontram-se apenas duas intervenções muitíssimo breves, uma, <strong>de</strong> quatro palavras e<br />

outra, <strong>de</strong> uma palavra apenas; na terceira, apenas uma intervenção em discurso<br />

directo, também numa frase com quatro palavras.<br />

A par <strong>de</strong>sta estratégia, suce<strong>de</strong>m-se, às vezes, às cogitações em discurso<br />

indirecto livre, falas isoladas e únicas da personagem em discurso directo, coroando<br />

um extenso discurso indirecto do narrador. A isso se po<strong>de</strong>m seguir novas<br />

consi<strong>de</strong>rações também respondidas, mas somente através do mesmo processo <strong>de</strong><br />

discurso indirecto livre:<br />

«A sua melhor vingança seria apanhá-los juntos e matá-los ao mesmo tempo. Que<br />

continuassem a pouca vergonha <strong>de</strong>baixo da terra, para não se rirem mais à sua custa. Outro<br />

qualquer esperaria uns dias, até os surpreen<strong>de</strong>r em flagrante. Mas ele não é homem para<br />

esperar. Acabará imediatamente com tudo. Logo que entre em casa.<br />

_ Ah! se eu apanhasse os dois juntos!<br />

Convencera-se <strong>de</strong> que ela seria uma boa esposa (...).» (Po.: 100)<br />

Não se trata aqui <strong>de</strong> diálogo, mas <strong>de</strong> “citação exacta” da fala da personagem<br />

consigo mesma, citação que o discurso indirecto livre da responsabilida<strong>de</strong> do narrador<br />

contextualiza. Esta esporádica intervenção da voz autónoma da personagem talvez


sirva para <strong>de</strong>spertar a atenção do leitor para o carácter «personalizado» da narrativa e<br />

para encurtar a distância temporal entre o presente do narrador e o passado dos<br />

acontecimentos, contribuindo, assim, talvez para uma maior aproximação afectiva<br />

entre o leitor e a personagem. Para tal, este narrador serve-se, como parece claro, do<br />

jogo discursivo que envolve os discursos directo e indirecto e da própria manipulação<br />

das distâncias, através dos jogos com os tempos verbais.<br />

Em relação a A Estranha Aventura, também se manifesta a responsabilida<strong>de</strong><br />

quase total do narrador em dizer as falas das personagens. Essas têm, em geral,<br />

poucas intervenções; <strong>de</strong> qualquer modo, falas das personagens também ocorrem.<br />

Contos como «O Moleque do Violão», «A Estranha Aventura» e «Um tipo<br />

In<strong>de</strong>cente» não apresentam quaisquer marcas <strong>de</strong> discurso directo. Outros chegam a<br />

apresentar apenas três breves intervenções directas das personagens, ou somente uma<br />

curta. Os restantes contos apresentam uma estruturação balançada, ainda que o peso<br />

tenda mais para o predomínio da “voz do narrador”. Neste aspecto, Portagem e A<br />

Estranha Aventura apresentam uma estruturação aproximadamente igual.<br />

Descritas minimamente as características discursivas do mundo narrado nas<br />

obras Portagem e A Estranha aventura, é altura <strong>de</strong> observarmos o “mundo<br />

comentado”.<br />

Como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Harald Weinrich 22 , o mundo comentado exige geralmente uma<br />

<strong>de</strong>terminada postura, uma atitu<strong>de</strong> imediata, tais como: uma opinião, uma valoração,<br />

uma correcção ou coisa semelhante. Nota-se na manifestação <strong>de</strong>ste mundo uma certa<br />

atitu<strong>de</strong> tensa por parte das personagens; há, na verda<strong>de</strong>, uma dinâmica, uma vivência<br />

que se traduz num discurso «dramático» das personagens, pois aqui se trata já <strong>de</strong><br />

situações e <strong>de</strong> acontecimentos que as afectam directamente. Para resolver ou enfrentar<br />

22 . Harald WEINRICH, 1974: 51


as adversida<strong>de</strong>s que o mundo da narrativa lhes impõe, as personagens têm que se<br />

mover e têm que agir. O que se po<strong>de</strong> observar é que, na verda<strong>de</strong>, há uma junção entre<br />

o “mundo narrado” e o “comentado”, pois o texto é um todo e a separação dos modos<br />

narrativos <strong>de</strong>ve-se apenas a razões metodológicas.<br />

O diálogo aparece como uma das marcas que <strong>de</strong>terminam a necessida<strong>de</strong> do<br />

comentário do narrador e, por consequência, as manifestações da personagem, a sua<br />

apreciação <strong>de</strong> pessoas e <strong>de</strong> factos permitem uma caracterização e uma avaliação do<br />

mundo.<br />

É verda<strong>de</strong> que, <strong>de</strong> uma maneira geral, o narrador consi<strong>de</strong>rado dramatizado,<br />

aparece integrado na história, isto é, nas narrativas <strong>de</strong> primeira pessoa; mas também<br />

po<strong>de</strong>-se encontrar o ponto <strong>de</strong> vista que tem lugar quando a narrativa é vista através do<br />

espírito <strong>de</strong> uma personagem, que se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>signar <strong>de</strong> «dramatizada» na terceira<br />

pessoa. Se se observar o capítulo 10 <strong>de</strong> Portagem, po<strong>de</strong>-se constatar que, não obstante<br />

o facto <strong>de</strong> a narrativa, no seu todo, privilegiar a terceira pessoa, aqui tem-se, em meia<br />

página, uma situação típica <strong>de</strong> dramatização (diálogo, entenda-se) das personagens,<br />

aparecendo o narrador como uma espécie <strong>de</strong> mediador entre os discursos <strong>de</strong> Luísa, do<br />

soldado e <strong>de</strong> Xilim. Neste contexto, o que o narrador está a fazer equivale à didascália<br />

no texto dramático, pois ele está informando sobre a atitu<strong>de</strong> física, psicológica, etc.,<br />

das personagens:<br />

«Luísa <strong>de</strong>mora-se muito tempo na barraca. Quando chega à porta, diz para o soldado<br />

que a espera:<br />

_ Vou morrer cedo, ele falou...<br />

Dá uma gargalhada e saracoteia-se. Olha então para o marido.<br />

_ Ih! Ih! seu rei das minas, já nem fala mais à gente!...<br />

_ Homem <strong>de</strong> vergonha não conhece mulher ordinária como você!<br />

_ Homem <strong>de</strong> vergonha um corno assim?!... Ninguém tá ouvir?... Ah! Ah! Ah!<br />

Mas não ri mais. João Xilim puxa dum punhal (...). O soldado esgueira-se por entre o<br />

grupo <strong>de</strong> curiosos em gritaria. Levam Luísa para o Hospital.» (Po: 62)<br />

Veja-se como, em tão poucas linhas, há uma gran<strong>de</strong> tensão entre as<br />

personagens, associada às reacções das mesmas, num clima <strong>de</strong> confrontação verbal


que culmina na agressão física. Para além disso, ao nível dos tempos, nota-se também<br />

o que se referiu atrás: já não há a diferença temporal entre o presente do narrador e o<br />

passado dos acontecimentos que, normalmente, se verifica nas narrativas <strong>de</strong> primeira<br />

pessoa, pois a narrativa cria a ilusão <strong>de</strong> que os acontecimentos vão ocorrendo à<br />

medida que o narrador toma a ocorrência dos mesmos e os verbaliza; aparenta ser<br />

tudo tão simultâneo, que até parece tratar-se <strong>de</strong> um filme em que o “operador <strong>de</strong><br />

câmara” é o narrador e o objecto da filmagem, as próprias personagens, o cenário e a<br />

acção.<br />

Como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Friedman: «o fim primeiro da ficção é produzir a ilusão<br />

completa da realida<strong>de</strong>.» 23<br />

Entretanto, para o caso <strong>de</strong> narrativas como o romance, a novela, o conto, etc.,<br />

esta asserção precisa <strong>de</strong> uma informação complementar pois, pelo seu carácter<br />

informativo, formativo e recreativo, o seu fim primeiro não é tanto produzir uma<br />

ilusão, mas transmitir certos valores, a vários níveis, ainda que seja da natureza <strong>de</strong><br />

certa narrativa produzir a ilusão da realida<strong>de</strong>, e talvez <strong>de</strong> toda a narrativa, mesmo da<br />

que preten<strong>de</strong> colocar em cheque essa ilusão. Neste caso, é preciso não per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista<br />

o facto <strong>de</strong> que o diálogo, crie a ilusão que criar, é representado por um discurso citado<br />

das personagens, que consiste na reprodução fiel, em discurso directo, das palavras<br />

supostamente pronunciadas pela personagem. Este tipo <strong>de</strong> discurso é muito valioso<br />

para a compreensão da semântica das personagens, uma vez que costuma apresentar<br />

marcas que comportam, muitas vezes, traços dialectais, sociolectais, idiolectais, que<br />

contribuem para a caracterização das próprias personagens.<br />

Há uma outra característica do discurso directo que também está patente, tanto<br />

em Portagem, como em A Estranha Aventura. Na generalida<strong>de</strong> dos discursos directos<br />

23 . Françoise Van Rossum-Guyon, Philippe Hammon, Daniele Sallemane, s/d: 30


das duas obras, nos diálogos não se tem propriamente uma conversa corrida entre as<br />

personagens, com princípio, meio e fim; há, isso sim, recortes <strong>de</strong> diálogos que são<br />

completados e até contextualizados pelo narrador. Se, a título experimental, lhes<br />

retirassem as passagens correspon<strong>de</strong>ntes às intervenções do narrador, ficariam, não<br />

propriamente como diálogos, mas como intervenções ocas e, nalguns casos,<br />

<strong>de</strong>sconexas. Veja-se o conto «Jangô», em A Estranha Aventura, mais precisamente o<br />

diálogo entre Jangô e os amigos:<br />

«Jangô estava acocorado no mato, com os outros garotos do bando, os olhos presos na<br />

cantina do Issufo(...):<br />

_ Mas vamos todos ou quê?<br />

_ Todos ele há-<strong>de</strong> esconfiar...<br />

_ Po<strong>de</strong> ir o Jangô, o Paulinho e o Gafanhoto...<br />

_ É melhor...<br />

_ Mas aeu também queria ir!<br />

_Três chega...<br />

O Gafanhoto pôs-se a remexer com um pausinho seco a crosta do esfolão enorme<br />

(...).»<br />

(E.A.: 65)<br />

Esta constatação permite que se concor<strong>de</strong> com Maria Alzira Seixo acerca das<br />

personagens, quando diz que «nas poucas vezes em que <strong>de</strong>paramos com personagens<br />

que falam, várias características se revelam.» 24 Assim aparece-nos muitas vezes a<br />

continuação <strong>de</strong> um princípio <strong>de</strong> diálogo expressa pelo discurso indirecto ou, pelo<br />

contrário, o discurso directo a perseguir a narração feita pelo narrador; outras vezes, o<br />

diálogo é formado por breves réplicas separadas por longos períodos em que o autor<br />

dá conta <strong>de</strong> tudo o que as personagens dizem. Este discurso directo utilizado para a<br />

transmissão dos diálogos efectuados no passado, tal como se notou atrás, dá a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

que a narrativa é conduzida <strong>de</strong> uma maneira objectiva e que a conversação que se<br />

procura reproduzir é isolada, num contexto temporal <strong>de</strong>finido e até <strong>de</strong>finitivo. Este<br />

24 . Maria Alzira SEIXO, 1984: 23


dado é interessante porque tem a ver com o modo como o narrador manipula a citação<br />

da palavra da personagem.<br />

Em Portagem, as falas dialogadas <strong>de</strong> João Xilim, Jaime, Juza, Luísa, etc., são<br />

raras. Em contrapartida, as falas monologadas, on<strong>de</strong> o próprio narrador se adianta,<br />

respon<strong>de</strong>ndo e esclarecendo, são vivas e operacionais, dando conta das complexas<br />

conjunturas daquele que fala (para si e por si) quando po<strong>de</strong>. Neste caso, o «não dito»<br />

fica por conta do estilo indirecto livre, precisamente, do narrador que procura<br />

esclarecer por suas palavras aquilo que ele acha que a personagem não disse, mas,<br />

supostamente, teria querido dizer, ou aquilo que <strong>de</strong>veria dizer, mas que não chegou a<br />

dizer. Assim, ele nos vai franqueando uma elocução que mergulha no prazer quase<br />

sensual <strong>de</strong> narrar. O narrador não escon<strong>de</strong> o prazer e a emoção que teve em narrar<br />

tendo, talvez por isso, se apropriado das falas das personagens, colocando-as em<br />

discurso indirecto livre. Vejam-se as falas interiores dos mulatos Xilim e Luísa, da<br />

branca Maria Helena, dos negros Isidro e Jaime, todos personagens complexas,<br />

fazendo uso <strong>de</strong> frases breves, sempre coloquial e moçambicanamente. Só<br />

conhecemos as frases indispensáveis (já que o narrador se encarrega <strong>de</strong> dizer e<br />

interpretar os seus pensamentos, sempre através do discurso indirecto) para configurar<br />

mentes em constante tensão interrogativa. Repare-se, por exemplo, no capítulo 9,<br />

numa das várias ocasiões em que Xilim, já casado e em dificulda<strong>de</strong>, fica<br />

<strong>de</strong>sempregado, sendo confortado pelo amigo Rafael.<br />

Entretanto, já no que diz respeito ao diálogo entre Maria Helena e as senhoras<br />

da Cruzada Feminina <strong>de</strong> Socorros Morais, encarregadas <strong>de</strong> proteger moral e<br />

socialmente os<br />

brancos, para que eles possam tornar-se superiores pelos seus exemplos, há como que<br />

uma conversa seca, um diálogo que se resume ao essencial e é suportada por uma


carga <strong>de</strong> ironia muito forte. Há uma troca ágil <strong>de</strong> chavões retóricos por parte das<br />

senhoras da «Cruzada», contra a fala objectiva e enérgica <strong>de</strong> Maria Helena, que se<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> ante a «ajuda» hipócrita prometida.<br />

Um outro aspecto interessante <strong>de</strong> Portagem é que o narrador transfere para a<br />

personagem a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discursos outros, que não o diálogo oral. E essa<br />

estratégia <strong>de</strong> variação discursiva incute outra dinâmica ao texto, quebrando-lhe uma<br />

possível monotonia. Assim, o narrador, às vezes dá a palavra à personagem,<br />

incumbindo-a <strong>de</strong> exibir a poesia percebida no linguajar quotidiano do povo<br />

moçambicano e <strong>de</strong> dar, ao mesmo tempo, escape aos sentimentos <strong>de</strong> frustração e mal<br />

estar. No primeiro caso, em Portagem, tem-se a personagem Xilim a “falar”, através<br />

<strong>de</strong> um discurso epistolar (legitimado pela carta <strong>de</strong> amor), com o seu amigo Rafael,<br />

numa linguagem com um misto <strong>de</strong> marcas <strong>de</strong> escrita e <strong>de</strong> oralida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> nível <strong>de</strong> língua<br />

popular, a roçar o calão, como se ilustra:<br />

«Kamianato, 10 <strong>de</strong> Fervereiro/ Meu querido amigo eu escrevo estas linhas para dizer<br />

que tou aqui nas mina Jumpers ponto já arangei emprego bom <strong>de</strong> capataz como já tinha<br />

prendido lá no Mrandal não custou pra trabalhar bem aqui, (…).» (Po.: 55)<br />

No segundo caso, através <strong>de</strong> um discurso poético e sem alterar a linguagem<br />

coloquial, na sua expressão lírica (na mesma epístola), o narrador mostra um Xilim<br />

romântico nas palavras amorosas que dirige à sua companheira Luísa (na carta ao<br />

cuidado do amigo Rafael), talvez como consolação pela distância que os separava.<br />

Repare-se no tom emotivo das palvras <strong>de</strong> Xilim, que é dado conhecer através da<br />

leitura <strong>de</strong>ssa carta pelo amigo Rafael:<br />

«Olha peço a você (Rafael) entregar este bilhete pra Luiza (…)»./ «Revira o bilhete<br />

nas mãos. Por fora tem escrito: Escelenticima Senhora Ilustricima minha Senhora D. Luiza<br />

Maulane (Xilim) cuidado meu amigo Rafael. Como o bilhete não estava fechado, Rafael lê:/<br />

Minha querida filhinha e amorzinha Luiza eu escrevo estas linha Deus quere tu não está<br />

doente (…). Filhinha tu é anjo é uma lua cheia é estrela quando trabalho este sorviço nem<br />

tenho mais vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficar nesta terra Luiza (…).» (Po.: 55-56)


Carmen L. S. Dias referiu-se à importância <strong>de</strong>ssa carta, notando que ela é «o<br />

momento clímax no panorama precário <strong>de</strong> verbalização directa, é veículo da<br />

interiorida<strong>de</strong> em perturbação, permite a Xilim <strong>de</strong>nunciar ao amigo a sua condição<br />

quase servil e exprimir à Luísa, a efusão amorosa, “agora” também verbalizada» 25 .<br />

Este exemplo da carta aparece como situação única em toda a narrativa. Nela, a<br />

mensagem é vazada na tonalida<strong>de</strong> emotiva e típica da oralida<strong>de</strong>, diferentemente do<br />

discurso coloquial narrado, que abrange o geral da obra.<br />

Se a tonalida<strong>de</strong> emotiva da oralida<strong>de</strong> tipicamente moçambicana também po<strong>de</strong><br />

ser constatada nalguns contos <strong>de</strong> A Estranha Aventura, isso já não se verifica por<br />

«diálogo» entre discursos, como aconteceu na carta, em Portagem, mas ao nível do<br />

próprio discurso narrativo, na expressão ou na verbalização <strong>de</strong> algumas personagens<br />

(cuja condição social é semelhante à do Xilim). Em «Jangô» encontra-se o bando <strong>de</strong><br />

garotos que planeia um assalto à loja do monhé Issufo e a seguinte conversa<br />

elucidativa entre mãe e filho:<br />

« _ Olha, Jangô... Tu onte e hoje não foi na escola...<br />

_ Pois não...<br />

_Porque é qui tu está sempre a fugir da escola?<br />

_ É chatice a escola, mãe!<br />

_ Mas tu não vês qui si não estuda não prestas para nada ? (...).» (EA: 75)<br />

Neste extracto, se é verda<strong>de</strong> que se po<strong>de</strong> inferir a precária condição social das<br />

camadas sociais nativas <strong>de</strong> Moçambique daquele tempo, através <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s<br />

sócio-económicas que Jangô enfrenta para continuar com os estudos, também não é<br />

menos verda<strong>de</strong> que essa paupérrima condição social é legível através do<br />

conhecimento do nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> da mãe e do filho, espelhado pelo fraco<br />

domínio da língua portuguesa expresso neste diálogo.<br />

25 . Carmen L.S. DIAS, «África», nº 12, 1978: 73


Entretanto, nesta obra <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo, também se encontram variações<br />

<strong>de</strong> discursos. Em «Olhos <strong>de</strong> Marianita» (que é título <strong>de</strong> uma canção popular folclórica<br />

portuguesa) o narrador coloca na voz das colegas <strong>de</strong> Marianita, a perturbação, a<br />

confusão psicológica que reinava na cabeça <strong>de</strong>la, «as imagens soltas a perpassarem-<br />

lhe pela mente» (pág. 53 ), por causa do ambiente enigmático que se vivia em sua<br />

casa. As colegas <strong>de</strong> Marianita cantam para ela em coro mas, na verda<strong>de</strong>, o que ela<br />

ouve são ecos da sua própria mente e das suas alucinações. Há um exercício <strong>de</strong><br />

introspecção que é transfigurado na imagem e na verbalização das colegas, através da<br />

canção. A canção tem um conteúdo contraditório, como confuso é o pensamento da<br />

personagem (menina) e vai metaforizar assim, a ocultação da verda<strong>de</strong>, que<br />

condicionará uma série <strong>de</strong> mal-entendidos na adolescente. Ainda que aparentemente<br />

distinto, entre o conteúdo da canção referida e a história da cegonha voadora que traz,<br />

milagrosamente um bebé, há uma certa parecença, pois ambos põem em causa, por<br />

um lado, a ocultação da verda<strong>de</strong> e, por outro, os tabus e a falibilida<strong>de</strong> da moral <strong>de</strong><br />

algumas fábulas, em particular, e da educação tradicional, em geral.<br />

O autor agrupou os contos <strong>de</strong> A Estranha Aventura em conformida<strong>de</strong> com a<br />

sua temática. Para cada subgrupo, introduziu um texto iniciático a abrir cada um dos<br />

temas. Cada um <strong>de</strong>sses textos é um poema. Assim, para o primeiro subgrupo, tem-se<br />

um poema sem título, <strong>de</strong> estrutura narrativa, ou seja, com categorias narrativas como<br />

personagens, tempo, narrador, etc. Este texto constitui o resumo dos conteúdos dos<br />

contos «Jangô», «O Estranho Amor», e «Os cães ladram lá fora», e funciona como<br />

uma espécie <strong>de</strong> epígrafe <strong>de</strong>senvolvida. No segundo subgrupo, o poema, também sem<br />

título, tal como o anterior, tem como temática predominante a lírico-amorosa, à<br />

semelhança, aliás, dos respectivos contos. No terceiro, a tónica dominante no poema é<br />

a vida social, a condizer com a mensagem que os contos preten<strong>de</strong>m transmitir.


Esta não titulagem dos poemas não é ocasional; ela justifica-se pelo facto <strong>de</strong> se<br />

ter feito tal titulagem em cada página prece<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> cada grupo <strong>de</strong> contos, sendo que<br />

os três títulos «Os contos <strong>de</strong> Infância», «Quatro Histórias <strong>de</strong> amor» e «A vida e os<br />

Homens», se a<strong>de</strong>quam perfeitamente, tanto aos poemas, como aos conjuntos <strong>de</strong><br />

contos. A ausência <strong>de</strong> título legitima também o carácter epigráfico 26 dos poemas.<br />

Estas três epígrafes têm, claramente, uma função temática, pois esboçam pistas <strong>de</strong><br />

leitura particularmente importantes nos planos semântico e pragmático.<br />

Ao fazer o “casamento” entre os dois discursos literários (poesia e prosa) o<br />

narrador procura estabelecer uma certa intertextualida<strong>de</strong> a nível temático-discursivo<br />

(entre os poemas <strong>de</strong> abertura e os respectivos grupos <strong>de</strong> contos), e intra-discursivo<br />

(<strong>de</strong>ntro dos contos que contêm poemas <strong>de</strong> conteúdo lírico, como é o caso <strong>de</strong> «Os<br />

olhos <strong>de</strong> Marianita»).<br />

Como já se referiu, os contos <strong>de</strong> A Estranha<br />

Aventura subdivi<strong>de</strong>m-se em três grupos, com os<br />

seguintes títulos genéricos: «Os contos da infância»,<br />

«Quatro histórias <strong>de</strong> amor» e «A vida e os homens».<br />

«Contos <strong>de</strong> infância» introduz uma série <strong>de</strong> quatro<br />

narrativas que têm nas personagens adolescentes os<br />

gran<strong>de</strong>s protagonistas, incorporando os vários tipos<br />

<strong>de</strong> vivências, <strong>de</strong> sonhos e <strong>de</strong> ilusões <strong>de</strong>sta faixa<br />

etária. Há também a preocupação em diversificar os<br />

tipos <strong>de</strong> camadas sociais representadas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />

mais mo<strong>de</strong>stas, (como em «Jangô», «O Moleque do<br />

Vilão»), às mais altas (como em «Os Olhos da<br />

Marianita» e, numa dimensão reduzida, em «A<br />

Estranha Aventura»). O subtítulo genérico <strong>de</strong>stes<br />

quatro contos é, imediatamente, seguido por um texto<br />

26 . Epígrafe «texto, normalmente <strong>de</strong> curta extensão, inscrito antes <strong>de</strong> iniciar a narrativa<br />

propriamente dita, uma das suas partes ou um dos seus capítulos. Não constituindo uma prática<br />

exclusiva do modo marrativo, tanto po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> autoria alheia, como da responsabilida<strong>de</strong> do autor do<br />

relato que ela antece<strong>de</strong>, sendo, no entanto, em cada caso, a sua projecção sensivelmente diversa.»<br />

(Carlos REIS, 1990: 124)


que pertence a um outro discurso literário: o lírico.<br />

Entretanto, convém antes referir que há uma relação<br />

<strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong> semântica entre o poema e o título<br />

dos quatro contos. Este serve para legitimar o poema<br />

que, em termos <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> expressão, privilegia um<br />

discurso oralizante, fazendo uma espécie <strong>de</strong> mimese<br />

em relação aos contos tradicionais orais, ou seja, o<br />

poema procura assemelhar-se aos contos tradicionais<br />

orais que são ditos <strong>de</strong> forma cantada (alguns), com<br />

certa rima e musicalida<strong>de</strong>. Este poema é um texto<br />

narrativo em verso, isto é, é um poema com um<br />

discurso diegetizado, contendo as componentes<br />

básicas da narrativa (as personagens, o narrador, o<br />

tempo, etc.). Apresenta um <strong>de</strong>stinatário (narratário)<br />

explícito: «Sentava a gente no colo,/ e a gente logo<br />

dizia» (E.A., 9) que, implicitamente, se po<strong>de</strong> dizer que<br />

é constituído por uma personagem colectiva (a gente),<br />

<strong>de</strong> uma faixa etária jovem. Aliás, tal situação po<strong>de</strong><br />

justificar-se também pelo facto <strong>de</strong> que, na educação<br />

tradicional, esta faixa etária é potencialmente alvo<br />

<strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> comunicação pois, estas formas orais<br />

<strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> valores, além <strong>de</strong> entreterem, têm<br />

um papel moral, social e, sobretudo, educativo.<br />

Assim, este poema-conto serve para a educação<br />

das novas gerações, pelos mais velhos, simbolizados,<br />

no caso, pela mamana Elisa,<br />

narradora/contadora/educadora dos jovens: «(…) a<br />

gente logo dizia:/ “Conta uma história qualquer,/ conta<br />

lá, mamana Elisa…”» (E.A.: 9). Esta transmissão <strong>de</strong><br />

valores é feita <strong>de</strong> uma forma dialogada: narrador<br />

(contador) e personagens (ouvintes) interagem,<br />

tornando o acto <strong>de</strong> contar mais dinâmico. A moral da<br />

história funciona como o ensinamento fundamental<br />

que cada jovem adquire, que todos compreen<strong>de</strong>m<br />

pois pertencem ao mesmo sistema <strong>de</strong> valores<br />

tradicionais. Mais abaixo, aquando da análise <strong>de</strong> «Os


Olhos <strong>de</strong> Marianita», ver-se-ão algumas limitações, em<br />

parte, <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> educação.<br />

Nota curiosa é que o autor teve a preocupação <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>stacar, tanto na fala da narradora, mamana Elisa,<br />

como na da personagem colectiva (a gente) um registo<br />

<strong>de</strong> língua popular, fazendo com que houvesse uma<br />

correspondência entre o nível social mo<strong>de</strong>sto, o baixo<br />

nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> das personagens e a sua<br />

linguagem, funcionando esta como marcadora e<br />

i<strong>de</strong>ntificadora do estatuto social daquelas. É assim<br />

que se po<strong>de</strong> constatar a cumplicida<strong>de</strong> entre o poema e<br />

os respectivos contos que se seguem. Aliás, à<br />

semelhança do texto lírico/narrativo, as quatro<br />

histórias têm como epicentro as ambições naturais<br />

dos adolescentes, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> satisfazer a<br />

curiosida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> protagonizar cenas <strong>de</strong> «aventura».<br />

Mais precisamente, umas procuram <strong>de</strong>screver um<br />

ambiente social hostil aos meninos e às suas ida<strong>de</strong>s,<br />

proibindo-os <strong>de</strong> sonhar _ é o caso <strong>de</strong> «O Moleque do<br />

Violão», <strong>de</strong> «Jangô» _ outras mostram a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> maior aproximação entre adolescentes e adultos,<br />

para se vencerem, <strong>de</strong>ste modo, certos tabus _ é o<br />

caso <strong>de</strong> «Os Olhos <strong>de</strong> Marianita.»<br />

Este poema/narrativa, em relação ao conjunto dos<br />

quatro contos, apresenta-se com a seguinte função:<br />

serve como epígrafe e, mais precisamente, constitui o<br />

resumo, ou a apresentação em miniatura dos contos<br />

«Jangô», «O Estranho Amor» e «Os Cães Ladram lá<br />

Fora», isto em termos <strong>de</strong> representação <strong>de</strong> um cenário<br />

protagonizado por personagens pertencentes a um<br />

estatuto social mo<strong>de</strong>sto e <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> recursos. 27<br />

Ainda que o referido poema não seja propriamente um<br />

texto curto, no resto serve os propósitos da epígrafe.<br />

27 . A propósito da epígrafe, po<strong>de</strong>-se ter como suporte a <strong>de</strong>finição dada por Carlos Reis,<br />

na nota <strong>de</strong> rodapé n.º26.


Aliás, Guilherme <strong>de</strong> Melo usa esta estratégia<br />

epigráfica também em relação às outras subdivisões.<br />

O segundo subgrupo, que contém também uma série<br />

<strong>de</strong> quatro contos, é introduzido por um título genérico,<br />

«Quatro Histórias <strong>de</strong> Amor», elucidativo do conteúdo<br />

básico <strong>de</strong>ssas narrativas: as várias histórias <strong>de</strong> amor,<br />

vistas pelo autor quase sempre <strong>de</strong> forma disfórica. A<br />

abrir este subgrupo tem-se também um poema lírico a<br />

servir <strong>de</strong> mote aos quatro contos que têm, como já se<br />

disse, na temática do amor, o epicentro. Este poema,<br />

em traços gerais, mostra a <strong>de</strong>scrença do sujeito lírico<br />

em relação ao amor (pelo menos o convencional<br />

homem/mulher). O sujeito lírico convida Desdémona e<br />

Romeu a irem à busca <strong>de</strong> um amor outro, mais livre<br />

como o vento:<br />

«Desdémona do pálido sorriso,/ e tu Romeu, do longo suspirar,/ vin<strong>de</strong> comigo,<br />

caminhando agora/ num outro andar preciso», (…) «Que ele, o amor, o vosso,/<br />

<strong>de</strong> Ofélia ou <strong>de</strong> Natércia, inteiro em si mesmo há-<strong>de</strong> ficar.» (E.A.: 91)<br />

À excepção do último conto, «A trovoada», os outros<br />

problematizam e põem em causa o amor convencional<br />

aceite como socialmente <strong>de</strong>sejável entre o homem e a<br />

mulher e encaminhado no sentido da constituição da<br />

família. O narrador mostra-o sempre como uma<br />

relação falhada. Há como que uma «negação», ou uma<br />

<strong>de</strong>scrença na relação conjugal entre as personagens,<br />

nos contos e do sujeito lírico, no poema. Há uma<br />

espécie <strong>de</strong> outra proposta para um outro tipo <strong>de</strong> amor,<br />

para uma outra forma possível <strong>de</strong> estar e <strong>de</strong> ser.<br />

Repare-se na resposta <strong>de</strong> João Pedro à esposa,<br />

Leonor, no conto «A Porta Fechada», a propósito da<br />

razão que o levou a comprar uma «flat»<br />

clan<strong>de</strong>stinamente, para se evadir da monotonia da<br />

vida conjugal, quando se atinge a saturação em casa:<br />

«_ O que fiz, acredita, <strong>de</strong>zenas e <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> outros homens o <strong>de</strong>sejam, em<br />

cada hora <strong>de</strong> cada dia, fazer também. A diferença resi<strong>de</strong> apenas em que eu tive<br />

a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o fazer, enquanto a gran<strong>de</strong> maioria dos outros, jamais


encontra essa possibilida<strong>de</strong>. Mas no fundo, bem no fundo <strong>de</strong> si mesmo, cada<br />

homem arrasta sempre, pela vida fora, o sonho frustrado <strong>de</strong> uma porta fechada<br />

que se abre apenas para ele próprio.» (E.A.: 110)<br />

Para completar o quadro, no último subgrupo, «A Vida<br />

e os Homens», o narrador apresenta a mesma<br />

organização estrutural dos contos anteriores. O<br />

poema introdutório apresenta uma espécie <strong>de</strong><br />

antítese, na medida em que, na primeira estrofe, o<br />

sujeito lírico aborda a problemática da vida numa<br />

perspectiva <strong>de</strong> ligação entre a natureza e o além. O<br />

resultado parece ser um vazio:<br />

«Ajoelho-me <strong>de</strong>fronte dos altares/ e os Santos são <strong>de</strong> pedra,/ <strong>de</strong> mármore e <strong>de</strong><br />

pau pintado,/ e escorrem sobre mim/ os gélidos olhares/ das pálpebras vazias.»<br />

(E.A.: 179)<br />

Na última estrofe a vida é vista numa perspectiva<br />

humana, com os seus contrastes, os seus lados belo e<br />

triste:<br />

«Ajoelho-me <strong>de</strong>fronte dos homens,/ das coisas,/ <strong>de</strong> cada mulher parida _ e só<br />

aí eu Te encontro,/ Nosso Senhor Jesus Cristo/ <strong>de</strong> Fome, <strong>de</strong> Frio, da Dor,/ da<br />

Beleza e do Amor,/ e dos Homens/ e da vida.» (E.A.: 179)<br />

Este poema, tal como os anteriores e já referidos, é<br />

também epigráfico e funciona como uma ilustração dos<br />

problemas relatados nos quatro contos que constituem<br />

esta parte: a existência humana, a dignida<strong>de</strong>, as<br />

assimetrias sociais, etc..Todas as três subpartes (e os<br />

doze contos em geral, mais os respectivos poemas<br />

introdutórios) apresentam, no fundo, personagens <strong>de</strong><br />

muita <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> humana, que têm a função <strong>de</strong> pôr em<br />

relevo os gran<strong>de</strong>s problemas das diversas minisocieda<strong>de</strong>s<br />

moçambicanas, po<strong>de</strong>ndo funcionar como<br />

uma parábola das socieda<strong>de</strong>s da época.


O narrador, aliás, mesmo <strong>de</strong>ntro da estrutura narrativa dos contos, procura<br />

sempre incutir poeticida<strong>de</strong> ao seu discurso, enriquecendo-a com uma certa<br />

musicalida<strong>de</strong>, recriando uma ritmicida<strong>de</strong> que é ilustrada, por exemplo, na combinação<br />

gráfica e fónica entre os fonemas dos vocábulos O mar / Omar / Amor, no conto «O<br />

Estranho Amor». O título em si já metaforiza o que entre estas três palavras vai<br />

suce<strong>de</strong>ndo ao longo do mesmo conto: estranhas uniões e <strong>de</strong>suniões provocadas pelo<br />

relacionamento entre Omar e Suleima, ainda que temporário. Suleima é, aliás, a única<br />

“peça” também ela «estranha» na combinação ritmada entre as três anteriores. Veja-<br />

se, a título <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong>, a imagem retórica que resulta do seguinte: o «casamento»<br />

entre Omar e o mar é o resultado do próprio amor do mar para com Omar. Há,<br />

neste caso, por parte do narrador, a preocupação <strong>de</strong> combinar os processos retóricos e<br />

os prosódicos. Isto ainda respon<strong>de</strong> à preocupação <strong>de</strong> quebrar uma possível monotonia<br />

narrativa sendo então, um contributo para o enriquecimento do mundo narrado.<br />

Em muitos casos, quando esta poeticida<strong>de</strong> é enriquecida por algumas figuras<br />

<strong>de</strong> retórica como «a metáfora e a comparação estas <strong>de</strong>sempenham aí um pouco o<br />

papel que a explicação do significado tem no artigo <strong>de</strong> dicionário.» 28<br />

Conforme Françoise Van Rossun-Guyson et alli, in Categorias da Narrativa, a<br />

personagem infeliz situa-se num lugar angustiante e a personagem feliz, num locus<br />

amoenus. Aí tem-se, em gran<strong>de</strong> escala, uma espécie <strong>de</strong> «metonímia narrativa»: em<br />

Portagem, por exemplo, po<strong>de</strong>-se ver o todo (subúrbio <strong>de</strong> Marandal) pela parte (Casa<br />

<strong>de</strong> Caju <strong>de</strong> Maria Helena), «o cenário, pela paisagem, o habitat pelo habitante que é,<br />

talvez próprio em geral, dos autores Realistas.» 29<br />

O discurso da memória, sendo importante nas duas obras que venho<br />

analisando, tem, entretanto, características e implicações diversas em cada uma <strong>de</strong>las.<br />

28 . Françoise VAN ROSSUM-GUY, et al, s/d: 68<br />

29 . Françoise VAN ROSSUM-GUYSON, et ali, s/d: 100


O narrador <strong>de</strong> Portagem confere a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> rememorar às próprias<br />

personagens e, com maior <strong>de</strong>staque, a Xilim, Maria Helena e vovó Alima. Há uma<br />

nítida separação entre narrador e personagens, neste aspecto, funcionando, aquele,<br />

como uma espécie <strong>de</strong> vigilante e controlador do fluir do pensamento retrospectivo das<br />

suas criaturas. Distanciando-se <strong>de</strong>las, este narrador não assume a responsabilida<strong>de</strong><br />

psíquica dos seus «filhos», limitando-se apenas a responsabilizar-se pela sua<br />

exteriorização verbal. Vale-se da sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> observar o fluir do pensamento, da<br />

memória das personagens para, <strong>de</strong>pois, seleccionar a informação precisa para eventos<br />

<strong>de</strong>terminados. Repare-se na seguinte passagem: «João Xulim assiste à vida da gente <strong>de</strong><br />

Marandal como um sonâmbulo. Pergunta a si mesmo o que veio ali fazer (…).» (Po.:<br />

31)<br />

Os momentos rememorados não só servem para recuperar a informação do<br />

passado da personagem, achada pertinente, como também para estabelecerem ligação<br />

entre os vários momentos narrativos. Eles têm, por isso, um carácter anafórico:<br />

reenviam as unida<strong>de</strong>s textuais para unida<strong>de</strong>s disjuntas, já ditas ou ainda por dizer,<br />

reforçando, <strong>de</strong>sta feita, a coerência interna dos eventos e a sua ligação (coesão) ao<br />

conjunto da narrativa. As memórias servem, neste caso, para estabelecer<br />

correlacionações entre essas unida<strong>de</strong>s, dando-lhes sentidos mais globais, pois a escrita<br />

memorialista é também um percurso <strong>de</strong> labirinto: o narrador (ou o eu) «move-se<br />

tacteante nos corredores da sua intimida<strong>de</strong>, do seu psiquismo, ou da sua vida, avança e<br />

volta atrás (...).» 30<br />

30 . Clara ROCHA, 1992: 54


familiares<br />

CAPÍTULO II - Vivências sociais: do grupo social às específicas relações<br />

Nas duas obras do corpus, a movimentação das personagens faz-se <strong>de</strong> modo a<br />

criar complexas relações sociais: há, <strong>de</strong> facto, relações sociais verticais e horizontais.<br />

Dentro <strong>de</strong>ssas relações sociais é que se configuram problemas pessoais.<br />

Por relações sociais horizontais enten<strong>de</strong>-se aquelas configuradas <strong>de</strong>ntro do<br />

meio a que as personagens pertencem. Estas relações po<strong>de</strong>m ser vistas e analisadas<br />

tanto na classe pobre, quanto na classe média e na alta. Po<strong>de</strong>m situar-se na primeira<br />

categoria, a título ilustrativo, os contos «Os Cães Ladram lá Fora» e «O Estranho<br />

Amor»; e na segunda, «Os Olhos da Marianita» e «A Porta Fechada».<br />

Em «Os olhos da Marianita», conto narrado na primeira pessoa, tem-se a<br />

elucidação <strong>de</strong> relações sociais horizontais na classe média ou alta. É retratada a<br />

vida doméstica <strong>de</strong> uma família citadina, cuja dona <strong>de</strong> casa (mãe; esposa) estava na<br />

iminência <strong>de</strong> dar à luz uma criança. É problematizada a questão da revelação ou não,<br />

às crianças, da verda<strong>de</strong> sobre o nascimento e a morte, tendo como base uma história<br />

caricata em torno da lenda da cegonha sobre o nascimento das crianças. A morte<br />

(inferida) da mãe <strong>de</strong> Marianita, aquando do parto, prova a limitação <strong>de</strong> certos<br />

processos tradicionais <strong>de</strong> ensinamento e <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> conhecimentos<br />

consi<strong>de</strong>rados tabus numa <strong>de</strong>terminada socieda<strong>de</strong> (como o nascimento e a morte) e o<br />

embaraço que cria a ocultação <strong>de</strong>ssa verda<strong>de</strong>, quando se está perante situações<br />

imprevistas na or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> valores tradicionais ou não. O embaraço manifesta-se<br />

precisamente pelo facto <strong>de</strong>, na história fantástica sobre o nascimento <strong>de</strong> crianças a<br />

partir da lenda da cegonha, não estar contemplada a probabilida<strong>de</strong> da eventualida<strong>de</strong><br />

da morte da criança, em casos excepcionais. Perante o dilema causado pela morte,


tanto da mãe da Mariana, como da criança, os familiares da adolescente viram-se<br />

numa situação embaraçosa e <strong>de</strong> difícil explicação.<br />

Marianita é a garota curiosa (típico da ida<strong>de</strong>) em saber o que se passa à sua<br />

volta e, neste caso, em casa, em torno da mãe que está na iminência <strong>de</strong> trazer à luz<br />

uma criança. A curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la é insatisfeita com uma resposta que a põe mais<br />

indignada ainda: a história da cegonha que vai trazer uma criança. A sua estranheza,<br />

indignação e expectativa, levam-na à ansieda<strong>de</strong>. A curiosida<strong>de</strong> satisfá-la sozinha,<br />

quando se apercebe da morte da mãe, aquando do parto e por causa da não chegada da<br />

prometida cegonha, isto perante a impotência e a mu<strong>de</strong>z forçadas do tio e do pai, por<br />

tal situação lhes ter criado um gran<strong>de</strong> embaraço, a dois níveis: em relação à morte em<br />

si e em relação à garota, que exigia uma explicação para o mistério sigilosamente<br />

ocultado. Neste contexto, po<strong>de</strong>-se afirmar que a função da Marianita é a <strong>de</strong><br />

problematizar a questão do tabu em torno do nascimento e da morte, as<br />

dificulda<strong>de</strong>s em usar uma linguagem a<strong>de</strong>quada e apropriada às crianças. Mas no<br />

fundo está-se perante a atribuição do papel <strong>de</strong> transmissor <strong>de</strong> valores sociais, morais<br />

e éticos à educação tradicional oral, através <strong>de</strong> histórias lendárias, <strong>de</strong> fantasias, <strong>de</strong><br />

provérbios, tudo por via indirecta, transmissão essa que é feita através <strong>de</strong> mensagens<br />

aproximativas. Está <strong>de</strong>monstrada a limitação <strong>de</strong>ste processo educativo, a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za<br />

em lidar com o tema da morte, fora <strong>de</strong> preconceitos. Nota interessante é o facto <strong>de</strong> o<br />

narrador, através da canção, colocar nas vozes das colegas <strong>de</strong> escola da Marianita, as<br />

suas (<strong>de</strong> Marianita) próprias imaginações e até visões contraditórias, provocadas pelo<br />

cenário que se vive em sua própria casa. Essa falta <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> punha-a perturbada,<br />

confusa; veja-se a resposta imaginária (afinal é um monólogo!) que ela dá aos<br />

colegas:<br />

«Mentira! Mentira!… Os meus olhos não são nada ver<strong>de</strong>s…São castanhos, olhem,<br />

são castanhos!…


Não. Naquela tar<strong>de</strong>, silenciosa e absorta ao canto da varanda, Marianita não veio<br />

brincar com as outras. Tasquinhou sem vonta<strong>de</strong>, a merenda, imagens soltas a perpassarem-lhe<br />

pela mente, na evocação da balbúrdia <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada que reinava em casa, quando abalou para a<br />

escola: o quarto da mãe fechado; o pai passeando, agitado, <strong>de</strong> um lado para o outro; a tia<br />

chegando apressada <strong>de</strong> sua casa, aon<strong>de</strong> a foram buscar. E ela, a Marianita, muito tonta, muito<br />

apatetada nos seus sete anitos ingénuos, perdida naquela confusão estranha que quer<br />

compreen<strong>de</strong>r e não consegue.» (E. A.: 53)<br />

Porque envolta numa verda<strong>de</strong> oculta, ou numa inverda<strong>de</strong>, porque lutadora pela<br />

conquista <strong>de</strong>ssa verda<strong>de</strong>, a Marianita po<strong>de</strong> ser vista como a própria metáfora da<br />

procura da verda<strong>de</strong>. Harald Weinrich corrobora este posicionamento. 31<br />

«Os Cães ladram lá fora» oferece a ilustração <strong>de</strong> relações sociais horizontais<br />

na classe pobre. É a história da mulata Lucinda, perseguida pelos azares da vida<br />

passada, estigmatizada na mulata leviana que foi sua mãe, forçada por circunstâncias<br />

sócio-económicas a seu <strong>de</strong>sfavor. Lucinda, filha <strong>de</strong> pai incógnito branco, segue<br />

involuntariamente e como fatalida<strong>de</strong> o caminho da sua mãe. Teve filhos com<br />

diferentes homens (um branco e um mulato); foi mulher/mercadoria por se ter visto<br />

obrigada a prostituir-se; teve uma vida errante, <strong>de</strong> privações e <strong>de</strong> carências. Como se<br />

não bastasse este quadro negro, o filho mulato, não obstante ter tido uma formação<br />

profissional elementar, também seguiu o triste caminho «traçado» para a sua raça:<br />

uma vida marginal, entremeada com gatunagem, vícios e ódios, como consequência<br />

da dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> inserção numa socieda<strong>de</strong> que lhe é hostil. Esse seu modo duvidoso<br />

<strong>de</strong> vida culminou com uma <strong>de</strong>sfeita que aprontou à própria mãe: ludibriou-a, ao<br />

orquestrar a história da viagem.<br />

De um modo genérico, po<strong>de</strong>-se dizer que há, neste conto, como epicentro, as<br />

raças branca, negra e, sobretudo, mestiça; estas duas últimas, pre<strong>de</strong>stinadas a uma<br />

vida <strong>de</strong> penúria, <strong>de</strong> pobreza, <strong>de</strong> infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, na visão do narrador, precisamente<br />

31 . «Na metáfora mantém-se a tensão entre a significação própria (entendida como expectativa<br />

<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminação) e a <strong>de</strong>terminação verda<strong>de</strong>ira no contexto concreto, a qual é <strong>de</strong> sentido oposto à<br />

expectativa. Essa tensão constitui o encanto da metáfora.» (Harald WEINRICH, 1974: 140)


encarnada pela figura da mulata (ou do mulato) vista como símbolo da imoralida<strong>de</strong><br />

(em termos conjugais) e como objecto <strong>de</strong> uso, <strong>de</strong> lazer e <strong>de</strong> prazer sexuais. O mestiço<br />

é o produto do cruzamento <strong>de</strong> duas e até <strong>de</strong> três raças; é mais rejeitado pelo branco e<br />

acolhido pelo negro. É caso para se dizer que se trata <strong>de</strong> uma contradição na união.<br />

Aliás, em Portagem, Orlando Men<strong>de</strong>s conseguiu explorar com maior profundida<strong>de</strong><br />

esta problemática e po<strong>de</strong>-se constatar certa semelhança entre o que se passa em «Os<br />

Cães Ladram lá fora» e o que ocorre com Xilim, em Portagem. De tão próximos que<br />

estão os ambientes sociais caracterizados e retratados nas duas obras, evocando a<br />

questão da raça, po<strong>de</strong>-se afirmar que se está perante uma afinida<strong>de</strong> temática entre as<br />

duas obras. Dificilmente os autores po<strong>de</strong>riam ignorar esta temática pois, na época a<br />

que remontam as obras, a realida<strong>de</strong> retratada não só era evi<strong>de</strong>nte, como também era<br />

claramente vivida, visível e sentida. O narrador <strong>de</strong> Portagem esclarece melhor o fim<br />

reservado ao negro e ao mulato em geral:<br />

«E no seu (Xilim) coração nunca houve amor nem ódio verda<strong>de</strong>iros. Apenas<br />

<strong>de</strong>sgostos, insuficiências e cansaços. E, mandando na vida <strong>de</strong>le, quatro <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> mulher.<br />

Está só no mundo, mas sabe agora que avó Alima, negra Kati, menina Maria Helena e mulata<br />

Luísa lhes <strong>de</strong>ram consciência <strong>de</strong> homem traído. Mas, recordando-se <strong>de</strong>las, <strong>de</strong>scobre-se<br />

lentamente. O erro fundamental que comprometeu a paz da sua vida, foi o abraço da mãe Kati<br />

e do Patrão Campos, esse abraço que fez <strong>de</strong>le um ser <strong>de</strong> uma raça infamada.» (Po.: 160)<br />

Retomando «Os Cães Ladram Lá fora» e, em função do que se <strong>de</strong>u a ler, po<strong>de</strong>-<br />

se <strong>de</strong>terminar (algumas) funções às seguintes personagens:<br />

Lucinda é a mulata solteira e solitária, com uma vida cheia <strong>de</strong> privações e <strong>de</strong><br />

carências; foi abandonada pelo primeiro homem, branco, com quem teve um filho<br />

fortuito, que se tornou, mais tar<strong>de</strong>, marginal; o segundo homem, um negro bêbado,<br />

veio a falecer, pouco tempo <strong>de</strong>pois. Ela levava uma vida leviana, como consequência<br />

da sua situação <strong>de</strong> pobreza. Envelheceu levando essa forma <strong>de</strong> ganhar o pão. Já idosa,<br />

viu no filho o salvador, a ténue esperança, que se <strong>de</strong>sfez imediatamente após este tê-la<br />

ludibriado e extorquido dinheiro. Lucinda é a personagem marcada por dificulda<strong>de</strong>s e


perseguida por azares e com um triste <strong>de</strong>stino, igual a tantas outras mulheres como<br />

ela, que também viviam na periferia da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ex-Lourenço Marques, com o<br />

estigma da raça mestiça/negra como fatalida<strong>de</strong>.<br />

Maria e Helena são as amigas e companheiras <strong>de</strong> Lucinda (tanto na boémia,<br />

como na má vida) que tiveram o cuidado <strong>de</strong> se <strong>de</strong>spedirem da amiga, para a hipotética<br />

viagem <strong>de</strong>sta com o filho para Joanesburgo. Unia-as a mesma raça, o mesmo tipo <strong>de</strong><br />

dificulda<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> pobreza, <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino. Joana é outra companheira <strong>de</strong> Lucinda, esta<br />

mais esclarecida e <strong>de</strong>sperta para a vida. Foi quem alertou a amiga para o engano do<br />

filho. Mais pragmática e realista, não se <strong>de</strong>ixa levar por emoções, contudo, a sua raça<br />

mestiça reserva-lhe um <strong>de</strong>stino igual ao das outras. Amelinha e Luísa completam o<br />

quadro social das amiza<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Lucinda. As características e as qualida<strong>de</strong>s inerentes a<br />

todas elas têm a função <strong>de</strong> completar o quadro <strong>de</strong>scritivo que caracteriza a amiga,<br />

servem também para melhor conhecimento e compreensão da vida <strong>de</strong> Lucinda.<br />

Outras personagens <strong>de</strong>sempenham outros papeis complementares do quadro<br />

social em análise, ainda que numa perspectiva relativamente secundária: é o caso do<br />

senhor Men<strong>de</strong>s, dono do Salão, do patrão da Lucinda e da respectiva senhora, entre<br />

outros. Sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> personagens complementadoras do quadro social,<br />

remeto para as palavras <strong>de</strong> Carlos Reis. 32<br />

Duas personagens apresentam contornos interessantes nesta trama: o soldado<br />

e o chofer <strong>de</strong> táxi. A primeira, ter-se-á envolvido ocasional e sexualmente com Luísa,<br />

trabalhadora no salão do senhor Men<strong>de</strong>s e amiga <strong>de</strong> Lucinda. É o símbolo <strong>de</strong> homens<br />

que, a troco <strong>de</strong> dinheiro, usufruíam do prazer sexual das negras e das mulatas.<br />

32 . «Ao assumir-se como eixo <strong>de</strong> representação <strong>de</strong> uma personagem, a narrativa arrisca-se a<br />

<strong>de</strong>linear um universo insuficiente, no plano da ilustração social; daí a construção dum mosaico <strong>de</strong><br />

figuras aparentemente secundárias mas realmente dotadas <strong>de</strong> relevantes funções, no que diz respeito à<br />

representação i<strong>de</strong>ológico-social.» (Carlos REIS, 1983: 543)


Juntam-se ao soldado, os marinheiros, outros clientes preferidos daquelas, porque <strong>de</strong><br />

bolso leve.<br />

Por seu turno, o chofer (como tantos outros choferes <strong>de</strong> táxis) era<br />

intermediário da clientela do sexo. A espaços, eles próprios se tornavam os clientes.<br />

Como se po<strong>de</strong> observar com base neste quadro <strong>de</strong><br />

relacionamento social das personagens, há a<br />

preocupação, por parte do narrador, em revelar<br />

contradições na socieda<strong>de</strong>, ou seja, processos <strong>de</strong><br />

luta, conflitos latentes e patentes que, doutro modo,<br />

permaneceriam ocultos ou passariam <strong>de</strong>spercebidos.<br />

Destacam-se questões inerentes à educação, ao<br />

adultério, à ambição, ao culto das aparências e à<br />

<strong>de</strong>gradação do sentimento amoroso.<br />

Quanto às relações socias verticais <strong>de</strong>ntro da mesma classe, diga-se que elas são<br />

típicas <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s muito hierarquizadas. Isto é fruto da estratificação social, das<br />

assimetrias socio-económicas e até das discriminações raciais e sexuais.<br />

Para ilustrar as relações verticais <strong>de</strong>ntro ds mesmam classe tratarei, na obra <strong>de</strong><br />

Guilherme <strong>de</strong> Melo, dois contos: «A Porta Fechada» e «Um Tipo In<strong>de</strong>cente». Em<br />

«Um Tipo In<strong>de</strong>cente» o narrador, em discurso em primeira pessoa, relata uma<br />

realida<strong>de</strong> sócio-económica (a falta <strong>de</strong> emprego e as suas consequências directas na<br />

vida da personagem protagonista). O conto é tanto um «<strong>de</strong>sabafo» quanto uma crítica<br />

ao sistema, por causa da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> nos direitos e <strong>de</strong>veres entre os cidadãos,<br />

materializada pela falta <strong>de</strong> emprego, que se mostra intolerável. É uma situação que é<br />

fruto <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> urbana, <strong>de</strong> economia <strong>de</strong> mercado, com uma política social não<br />

virada suficientemente para as reais necessida<strong>de</strong>s dos indivíduos.<br />

O narrador/personagem, não nomeado, configura-se como vítima do sistema<br />

social que privilegia as elites, personificadas essas pela figura do amigo do café. Este


está numa situação sócio-profissional privilegiada, oposta à do narrador/personagem.<br />

O amigo é alvo dos <strong>de</strong>sabafos críticos do <strong>de</strong>sempregado; é o retrato, o reflexo <strong>de</strong> uma<br />

socieda<strong>de</strong> egoísta, hierarquizada. Este «amigo», na dinâmica geral do conto,<br />

simboliza o próprio po<strong>de</strong>r. A mulher do narrador completa o quadro, pois ela é a<br />

razão da inquietação e das preocupações do narrador, seu marido.<br />

Porque são ilustradas relações sociais <strong>de</strong>ntro da classe média ou alta, o texto<br />

põe em cena acontecimentos que ocorreram entre gente <strong>de</strong> nível cultural e académico<br />

supostamente alto, o que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> do tipo <strong>de</strong> linguagem utilizada pelos<br />

interlocutores protagonistas: (o narrador/personagem e o amigo do café), localizando<br />

ainda a acção no meio citadino, urbano, teoricamente sinónimo <strong>de</strong> certa evolução e<br />

civilida<strong>de</strong>. A conversa que <strong>de</strong>corre no café reflecte uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo em<br />

que cada um está por si, Deus por todos e o Estado, por ninguém, ocasionando o<br />

surgimento <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sagregada moral e socialmente, fortemente<br />

estratificada.<br />

Também na classe pobre se põem relações sociais verticais. Isso ocorre tanto<br />

em Portagem, como em A Estranha Aventura, mas também em toda a obra narrativa<br />

que se preten<strong>de</strong> Neo-realista, pois a camada social mo<strong>de</strong>sta foi a eleita por excelência<br />

por esta corrente literária. O espaço <strong>de</strong> «A Trovoada», ilustrando a ambiência psico-<br />

social <strong>de</strong> um micro-universo do subúrbio, <strong>de</strong>ixa transparecer e perceber, quase <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o início, que essa ambiência se encontra nitidamente afectada por conflitos<br />

enquadrados pela estratificação social da socieda<strong>de</strong>.<br />

Neste conto está implícita a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um certo <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> consciências por<br />

parte do discriminado, do segregado. Tal i<strong>de</strong>ia é dada a ver através das<br />

movimentações do protagonista nas cenas do <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> reuniões<br />

clan<strong>de</strong>stinas e multirraciais, em prol da luta pelos valores humanos básicos, como a


Igualda<strong>de</strong>, a Dignida<strong>de</strong> e a Fraternida<strong>de</strong>. Ainda que a solução para esses problemas<br />

não se vislumbre possível no «tempo útil» dos acontecimentos, acalenta-se uma<br />

esperança futura, encarnada pela figura do feto na barriga da mãe, i<strong>de</strong>ia legitimada<br />

pelo lumiar e pelo brilhar da trovoada, que dá «novas luzes» e, ao mesmo tempo,<br />

metaforiza o grito <strong>de</strong> revolta:<br />

«O relâmpago abriu o negrume da noite <strong>de</strong> alto a baixo e o trovão encheu o espaço, lá<br />

fora. Longo, ru<strong>de</strong>, enorme. Ela ajeitou-se mais <strong>de</strong> encontro ao peito do homem. Depois o<br />

silêncio voltou a <strong>de</strong>scer e as pancadas calmas e ritmadas do coração <strong>de</strong>le (o feto) continuaram<br />

iguais, junto aos lábios da mulher.<br />

E a voz <strong>de</strong>le veio nítida e, ao mesmo tempo, envolta por uma estranha e doce emoção.<br />

_ Agora eu sei qui vale mesmo a pena... Qui há sempre alguém qui há-<strong>de</strong><br />

aproveitar....» (E.A.: 176)<br />

A este propósito, é <strong>de</strong> concordar com Alexandre Pinheiro Torres que via, no<br />

movimento Neo-Realista, a possibilida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar <strong>de</strong> acções que implicassem<br />

gran<strong>de</strong>s transformações. 33<br />

É isso, aliás, que o narrador/protagonista tenta concretizar, através <strong>de</strong> reuniões<br />

clan<strong>de</strong>stinas com o grupo <strong>de</strong> amigos:<br />

«_ Só qui a gente reúne-se na casa do Aníbal. Eu, o Luís, o César. É um gran<strong>de</strong> rapaz,<br />

esse Aníbal, sabes?» (E. A: 171)<br />

Esta personagem, porque revoltada, <strong>de</strong>scontente com o estado <strong>de</strong> coisas na<br />

socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> vive (injustiça social, racismo, discriminação, etc.) se envolve em<br />

encontros clan<strong>de</strong>stinos com outros companheiros, com quem partilha os mesmos<br />

i<strong>de</strong>ais. Sente o estigma da raça mestiça. Entretanto, a mulher mostra-se reticente e<br />

<strong>de</strong>sconfiada quanto ao possível sucesso <strong>de</strong>ssas activida<strong>de</strong>s oficialmente ilícitas e<br />

obscuras; é incrédula quanto à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o grupo do marido po<strong>de</strong>r mudar o<br />

estado <strong>de</strong> coisas na socieda<strong>de</strong> que se mostra segregacionista. A sobrepor-se a estas<br />

33 . «O Neo-Realismo pressupõe um conhecimento dialéctico da realida<strong>de</strong> exterior. Embora o<br />

Homem se <strong>de</strong>fina como condicionado por um complexo <strong>de</strong> factores sócio-económicos e se integre num<br />

processo <strong>de</strong>ste tipo, ele po<strong>de</strong> transformar esse condicionamento pela acção certamente revolucionária.»<br />

(Alexandre Pinheiro TORRES, 1977: 30)


hesitações e incertezas, está o feto que é visto pelo casal, especialmente pelo marido,<br />

como o garante, a esperança <strong>de</strong> um novo iluminar da trovoada, mais fulminante. É<br />

como se fosse uma crença na nova visão da vida, do novo grito, para e por um mundo<br />

<strong>de</strong> e para iguais.<br />

Para legitimar o enquadramento dos acontecimentos <strong>de</strong>ste conto nas relações<br />

sociais verticais na classe pobre, po<strong>de</strong>r-se-á, entre outras situações, visualizar o<br />

espaço <strong>de</strong> habitação (no subúrbio), <strong>de</strong> convivência, <strong>de</strong> lazer do protagonista e dos seus<br />

vizinhos. O estado físico das suas casas <strong>de</strong>ixa muito a <strong>de</strong>sejar. As casas são <strong>de</strong><br />

construção precária, a contrastar com o Hotel, o espaço do «outro» (turistas) e<br />

sinónimo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r económico e social, que é também <strong>de</strong>finidor do estatuto social e da<br />

diferenciação:<br />

«Ficou agachado atrás do monte <strong>de</strong> chapas <strong>de</strong> zinco velhas, (...). Passou pela casa<br />

velha, do Nunes, pelo casebre podre da viúva do Simão, pela machamba da Inácia e só parou<br />

junto aos <strong>de</strong>graus da sua própria casa.» (E. A.: 169)<br />

Outro quadro social similar a este po<strong>de</strong> ser constatado em «O Estranho Amor<br />

<strong>de</strong> Omar Sambine», on<strong>de</strong> a própria personagem Omar protagoniza uma cena que tem<br />

início na sua infância quando, um dia, no colo da mãe, conheceu o mar pela primeira<br />

vez. Aos vinte anos muda-se do interior para o litoral e aí conhece Suleima que, mais<br />

tar<strong>de</strong>, se tornou sua mulher e <strong>de</strong> quem se separou, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem tido um filho<br />

juntos. Até aí Omar vivia se amantizando harmoniosamente com o mar (o que veio,<br />

aliás, a perpetuar-se por toda a vida, eternamente), à excepção da altura em que o mar<br />

se rebelou, ciumento, por ele se ter envolvido com a mulata Suleima. Esta, e o filho<br />

tido com Omar, vieram a ter um <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>scolorido, talvez como consequência do<br />

ciúme do mar e como manifestação da sua revolta.<br />

Omar Sambine é uma personagem estranha, como estranho foi o seu<br />

<strong>de</strong>sempenho amoroso, tanto com o mar, como com a Suleima. Nasceu no interior e


conheceu o mar através da mãe, sem ter sabido como. Do mar nunca mais se livrou,<br />

aliás, o mar foi o seu primeiro amante. Apren<strong>de</strong>u a trabalhar no e com o mar e,<br />

estranhamente, morreu por causa do mar e no mar. A sua vida conjugal e familiar<br />

humana, isto é, com a Suleima, foi um fracasso. Foi abandonado pela mulher e pelo<br />

filho; estranhamente, foi aceite pelo mar.<br />

A mulata Suleima, temporariamente amante <strong>de</strong> Omar, é uma personagem<br />

algo complicada, bárbara e com uma personalida<strong>de</strong> diabólica; estranha criatura,<br />

como aliás o Omar. Ela revelou-se sempre propensa à levianda<strong>de</strong>. A sua relação<br />

amorosa com Omar provocou a ira do mar, primeiro amante e companheiro <strong>de</strong>ste:<br />

«E foi nessa noite _ a noite em que, pela primeira vez, ela (Suleima) entrou na palhota<br />

que ele (Omar) construíra, para ali ficar, senhora e dona _ que o mar subitamente cresceu<br />

numa fúria <strong>de</strong> morte, avançando pela praia a<strong>de</strong>ntro numa galopada que força alguma parecia<br />

po<strong>de</strong>r domar, o vento fustigando, aos urros, o leque <strong>de</strong> palmeiras (...). E todos gritaram que<br />

nunca o mar se levantara em raiva tamanha.» (Po.: 122)<br />

Está explicitada a manifestação do ciúme do mar por causa do amor <strong>de</strong><br />

Suleima e <strong>de</strong> Omar. O castigo que o mar preten<strong>de</strong>u dar à sua rival foi o <strong>de</strong> esta se<br />

separar do seu apaixonado e do filho, passando a entregar-se à prostituição, na Ponta<br />

da Ilha.<br />

O filho <strong>de</strong> Suleima e <strong>de</strong> Omar, rapaz belo e forte como o pai, inicialmente<br />

também se tornou pescador artesanal. Aos vinte anos, abandonou os pais, seguindo<br />

uma vida errante e duvidosa, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nampula, mais ou menos à semelhança do<br />

pai, ainda que este tenha seguido o percurso em direcção ao mar.<br />

Este panorama é o reflexo <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong>sagregada, que não consegue<br />

manter o equilíbrio social, moral e emocional; é consequência da fúria do mar e, à<br />

semelhança dos progenitores <strong>de</strong> Omar e até <strong>de</strong> Suleima, paga pelos «pecados» <strong>de</strong>stes:<br />

ser negro ou mestiço.


A lenda do barco também tem uma importância impar na vida social <strong>de</strong>stas<br />

personagens paupérrimas. Associado ao mar e a Omar, tem-se o estranho barco,<br />

incorporado nesta lenda fantástica. Este barco não tem fundo e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Omar<br />

morrer no mar, vai transportando perpetuamente o «falecido», imortalizando-o e<br />

tornando-o misteriosamente imanente.<br />

A misteriosa envolvência do mar com Omar não é um acontecimento vulgar e,<br />

como lenda, ocorreu há muitos e muitos anos atrás. A única memória viva que<br />

perpetua a sua existência, e porque esta lenda ocorre numa socieda<strong>de</strong> tradicional,<br />

predominantemente <strong>de</strong> cultura oral, são as anciãs, responsabilizadas pela sua<br />

conservação e pelo seu secretismo. Estas <strong>de</strong>vem manter sempre um certo misticismo,<br />

não só em torno da lenda em si, mas em torno <strong>de</strong>las também. Elas são as garantes e as<br />

guardiãs dos segredos e das regras tradicionais daquela al<strong>de</strong>ia do litoral da Ilha <strong>de</strong><br />

Moçambique. A elas cabe a tarefa <strong>de</strong> transmissoras da educação e do saber ancestrais,<br />

ilustrados na lenda criada em torno da morte/casamento <strong>de</strong> Omar no e com o mar. Os<br />

ensinamentos, a educação moral e cívica a dar aos mais jovens, não são transmitidos<br />

em qualquer ocasião, há momentos próprios para que as anciãs façam valer os seus<br />

dotes:<br />

«E dizem as negras velhas que, nas noites quentes <strong>de</strong> Verão, quando o luar passeia<br />

pela praia, as brancas tranças <strong>de</strong>sfeitas por entre os esguios <strong>de</strong>dos das palmeiras, ao longe, um<br />

estranho barco sem fundo assoma das ondas e voga, mansamente, docemente, à luz das<br />

estrelas.<br />

E quando as negras velhas contam a lenda, tão velha como elas, os negrinhos tenros<br />

que amanhã hão-<strong>de</strong> seguir os pais (...) ficam quietos e imóveis, (...) olhando as águas que<br />

numa noite levaram para si, sôfregas <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> perdão, o corpo maravilhosamente nu <strong>de</strong><br />

Omar Sambine.» (E.A.: 127)<br />

Constata-se também em «O Estranho Amor <strong>de</strong> Omar Sambine» a existência <strong>de</strong><br />

um discurso poético, a começar pelo próprio título. Neste, interessante é notar o<br />

trocadilho nas palavras Amor e Omar, da letra “a” pela “o” e vice-versa. Há também<br />

um jogo <strong>de</strong> palavras entre Omar e mar pois, na primeira, basta suprimir a letra “o” e


tem-se imediatamente a segunda. Tais situações criam certa ritmicida<strong>de</strong> e até<br />

sonorida<strong>de</strong> entre os vocábulos em causa: Amor, Omar e Mar que, por acaso, são as<br />

palavras-chave <strong>de</strong>ste conto. Estes três elementos, ao longo do texto, vão entrelaçando<br />

teias <strong>de</strong> sentidos variados, ou seja, verifica-se o «casamento» perpétuo entre Omar e o<br />

mar, o que é a manifestação do amor <strong>de</strong> ambos, afastada que foi Suleima, pessoa<br />

estranha ao mar e, <strong>de</strong> certo modo, a Omar também. Inclusive, em termos prosódicos,<br />

porque não rima com os três elementos-chave atrás mencionados, Suleima apresenta-<br />

se como estranho a eles, assim como estranha foi a sua vida e a sua personalida<strong>de</strong>.<br />

O outro aspecto que se po<strong>de</strong> ver <strong>de</strong>ntro das relações sociais verticais na classe<br />

pobre, ainda que <strong>de</strong> forma abreviada, é a tradicional <strong>de</strong>pendência da mulher para com<br />

o homem, tanto ao nível da esfera da privacida<strong>de</strong> familiar, como nos sectores <strong>de</strong> vida<br />

profissional. Em geral, ainda que em muitas socieda<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais se lute para a<br />

redução das assimetrias, a mulher continua, em muitos casos, numa situação <strong>de</strong><br />

inferiorida<strong>de</strong>.<br />

A pobreza, que se <strong>de</strong>ve enten<strong>de</strong>r quase como a gran<strong>de</strong> personagem, é a mais<br />

importante condicionanate das relações na classe social que estamos a analisar. Ela<br />

está profundamente inscrita na estrutura social da socieda<strong>de</strong> moçambicana, mesmo na<br />

actualida<strong>de</strong> (mais <strong>de</strong> 70% da população é pobre), coincidindo tradicionalmente com<br />

as posições mais subalternizadas e subordinadas em todas ou em parte das dimensões<br />

<strong>de</strong> estruturação do tecido social. Assim, ser pobre correspon<strong>de</strong>, em gran<strong>de</strong> parte, a ter<br />

um estatuto fortemente sedimentado, com tradução continuada não só nas condições<br />

materiais da vida, mas também nas dimensões relacionais e culturais da existência das<br />

famílias e grupos que ocupam essas posições.<br />

De forma geral, ser pobre é ter um estatuto <strong>de</strong> exclusão social dos padrões que<br />

<strong>de</strong>finem um cidadão, ou seja, é ter os mesmos direitos e <strong>de</strong>veres que todos os outros


apenas no plano formal, é saber menos acerca <strong>de</strong>sses direitos e <strong>de</strong>veres (e,<br />

consequentemente, <strong>de</strong> saberes e po<strong>de</strong>res); é ter menos capacida<strong>de</strong> e possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

os exercer, porque ignorados.<br />

Nesse aspecto, é interessante a figura do monhé, que é vista como estando<br />

numa posição intermédia entre os grupos <strong>de</strong> relações sociais horizontais e os <strong>de</strong><br />

relações sociais verticais, cuja activida<strong>de</strong> sócio-profissional característica é o<br />

pequeno comércio.<br />

Há um certo preconceito associado a esta etnia <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, originariamente,<br />

<strong>de</strong> Árabe e/ou <strong>de</strong> Indiano: os monhés são tidos como comerciantes pobres e como<br />

consequência disso, pagam aos seus empregados salários baixos e miseráveis:<br />

«(...) A hora em que regressava da cida<strong>de</strong>, do trabalho na loja do Fernan<strong>de</strong>s caneco,<br />

do seu trabalho <strong>de</strong> costureira curvada o dia inteiro para a máquina, a coser (...),<br />

Nessas ocasiões, Angelina esquecia toda a sua vida <strong>de</strong> mulata precocemente<br />

envelhecida e triste, (...) e <strong>de</strong> oitocentos escudos magros e frouxos heroicamente divididos<br />

pelos trinta dias <strong>de</strong> cada mês.» (E.A.: 74-75)<br />

Outra figura que se liga ao monhé, e que às vezes se confun<strong>de</strong> com ele, é a<br />

do caneco, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Árabe e <strong>de</strong> negro. No mesmo conto, faz-se referência ao<br />

caneco Fernan<strong>de</strong>s. Estes têm em comum a origem ou a <strong>de</strong>scendência asiática (e<br />

também africana, para o caso do último). Fernan<strong>de</strong>s também está ligado ao pequeno<br />

comércio: é proprietário <strong>de</strong> uma loja na cida<strong>de</strong>, é alfaiate e patrão da Angelina e da<br />

Isabel.<br />

Muitas outras figuras <strong>de</strong> monhé aparecem. Uma é o cantineiro Issufo, em<br />

«Jangô».Também é <strong>de</strong>signado por indiano (sua origem étnica) e, <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>spectiva,<br />

por monhé, e é proprietário <strong>de</strong> um pequeno estabelecimento comercial retalhista,<br />

único existente naquele bairro suburbano <strong>de</strong> Mavalane, nos arredores <strong>de</strong> Lourenço<br />

Marques.<br />

Em «Os Sonhos do Mufana» também se encontra a figura do «monhé da<br />

Paiva Manso», indiano ou seu <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, sempre ligado ao pequeno comércio,


acessível e direccionado especificamente às camadas sociais mais mo<strong>de</strong>stas. No conto<br />

«Os Cães Ladram lá Fora» o monhé Ibraímo é o comerciante a quem Luísa comprou a<br />

mala <strong>de</strong> cartão (barata) para a suposta viagem à Johanesburgo. Mais uma vez, é<br />

apresentada a figura do monhé (indiano, caneco ou mouro) como a que mais se <strong>de</strong>dica<br />

àquele comércio. Esse tipo, o monhé, que aparece configurado em diferentes<br />

personagens, vai servir também como estabelecedor da ligação com a maioria dos<br />

contos <strong>de</strong> «A Estranha Aventura», aparecendo também em Portagem. Aqui, no<br />

capítulo 12, o monhé Ibraímo é o comerciante indiano, proprietário da loja nos<br />

arredores da ca<strong>de</strong>ia da Fortaleza, mais conhecido pela sua astúcia na arte <strong>de</strong> ludibriar<br />

a clientela. No capítulo 14, o monhé Karim não só simboliza a activida<strong>de</strong> comercial<br />

na zona urbana, como também representa a figura do monhé em geral _ uma figura<br />

profundamente enraizada na realida<strong>de</strong> sócio-económica do país.<br />

Diga-se, ainda, que na figura do monhé se projectam valores e se <strong>de</strong>nunciam<br />

contradições. A reiteração do nome monhé ao longo dos textos permite, ainda, a<br />

potenciação semântica das personagens que incarnam o tipo, nos termos exactos ou<br />

aproximados da observação <strong>de</strong> Carlos Reis. 34<br />

Vista a representação das relações sociais na obra <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo,<br />

observaremos agora o que se passa em Portagem. Esse livro dá testemunho <strong>de</strong> uma<br />

socieda<strong>de</strong> compósita _ europeus/portugueses, africanos, indianos (monhés), mulatos e<br />

canecos _ em que são evi<strong>de</strong>ntes os sinais da <strong>de</strong>sintegração <strong>de</strong> relacionamentos. O mal-<br />

estar, a insegurança, a cruelda<strong>de</strong>, o racismo, a prepotência, são alguns dos temas <strong>de</strong>sta<br />

narrativa que apontam para o processo então em curso. Portagem é uma narrativa com<br />

34 . «Justamente a alcunha revela-se um processo particularmente significativo, quando se<br />

trata <strong>de</strong> incrementar as potencialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> representação social inerentes às personagens (...). Com a<br />

alcunha estamos, pois, num domínio cujas virtualida<strong>de</strong>s semânticas são inegáveis. Funcionando como<br />

<strong>de</strong>nominação suplementar ou substitutiva, <strong>de</strong> intuitos correctivos e clarificadores (porque torna patente<br />

uma característica física, psicológica, moral ou social, que o nome propriamente dito não evi<strong>de</strong>ncia) a<br />

alcunha aponta (...) para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se ler no sujeito uma mensagem <strong>de</strong> contornos sociais que<br />

essa <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> circunstância só por si imediatamente expressa.» (Carlos REIS, 1983: 487-488)


um alto teor <strong>de</strong> problematização social; o seu conteúdo centra-se nos percalços<br />

emocionais da inter-relação <strong>de</strong> negros, mulatos e brancos, na socieda<strong>de</strong> colonial <strong>de</strong><br />

Moçambique da década <strong>de</strong> 60/70. Este é um novo projecto ficcional, segundo Manuel<br />

Ferreira 35 , uma história on<strong>de</strong> o mulato Xilim, <strong>de</strong>batendo-se a princípio, no interior <strong>de</strong><br />

uma esfera limitada <strong>de</strong> consciência e <strong>de</strong>sestabilizado emocionalmente, busca e<br />

<strong>de</strong>scobre a individualização através <strong>de</strong> sucessivas fugas e retornos.<br />

Através das jornadas fatigantes, <strong>de</strong> suas idas e vindas, fugindo aos transtornos<br />

criados pela sua origem, Xilim <strong>de</strong>scobre-se lentamente, procurando inventar 36 um<br />

começo para a nova raça, agora assumida.<br />

É assim que Xilim incorpora, <strong>de</strong> forma incosciente, a metáfora da dúvida.<br />

Ao longo da narrativa, mostra-se uma personagem que, constantemente, oscila no<br />

tempo e no espaço; ora se sente visto pelos negros como a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas as<br />

cobardias e traições, ora como a expressão <strong>de</strong> uma linguagem nova que tenta dar uma<br />

interpretação diferente da vida dos negros do Marandal.<br />

Este Xilim é um indivíduo solitário, que age impulsiva e instintivamente,<br />

suposta presa do Destino. Esse seu comportamento tem origem no seu passado<br />

espúrio. Ele como que <strong>de</strong>sperdiça, nessa angustiante recordação, as suas melhores<br />

energias, retratando, <strong>de</strong>sta forma, o seu processo <strong>de</strong> individualização. Sensível aos<br />

apelos telúricos, que se manifestam <strong>de</strong> modo instintivo, e aos apelos universais<br />

humanos, fruto da aproximação circunstancial com brancos e negros <strong>de</strong> todas as<br />

35 . Portagem «Abre amplo espaço para uma reflexão produtiva que transcen<strong>de</strong> o estético,<br />

fixando no âmbito narrativo conjunturas tão específicas e até significativas para uma visão<br />

problematizante do convívio entre as três raças postas em duplo conflito: (i) face às suas próprias<br />

relações interpessoais, (ii) face à voragem do capitalismo colonial que, aprofundando os vínculos <strong>de</strong><br />

subserviência, vai agravando o preconceito racial.» (Carmen L. S. DIAS, 1979: 67)<br />

36 . O verbo sublinhado «acentua o sentido <strong>de</strong> busca/construção, incluindo a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> constante<br />

tactear sofrido, da experiência quotidianamente reelaborada até ao <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> um novo homem,<br />

composto multiforme e flexível, <strong>de</strong> antagonismos interiores. Em suma, inventar um futuro é criar<br />

para si e para a sua comunida<strong>de</strong> uma leitura fecunda da própria história, ou seja, a História on<strong>de</strong> não<br />

prevalecerá a memória do dominador.» (Carmen L. S. DIAS, 1979: 69)


origens e condições sociais, os seus sofrimentos, revoltas e <strong>de</strong>sânimos revertem para a<br />

assunção final da própria raça.<br />

A discriminação racial <strong>de</strong> Xilim e <strong>de</strong> outros negros, (tema que também se<br />

manifesta em A Estranha Aventura), aparece inserida no interior <strong>de</strong> um quadro social<br />

mais abrangente, que permite representar as articulações configuradoras da própria<br />

dominação da potência colonial, que legitima a servidão dos homens <strong>de</strong> todas as<br />

cores. Estas situações são legitimadas em Portagem, por exemplo, no capítulo 6, com<br />

a <strong>de</strong>rrocada económica <strong>de</strong> Patrão Campos, que se mostra impreparado para tarefas<br />

extractivas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte. Este sente-se pressionado pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aumentar a<br />

todo o custo o rendimento diário da exploração da mina, factor directo da tragédia que<br />

acaba por lhe custar a própria vida e a <strong>de</strong> vários mineiros, <strong>de</strong>ixando numa situação<br />

<strong>de</strong>licada e <strong>de</strong> incerteza, não só a própria família, como a dos mineiros soterrados e<br />

sobreviventes.<br />

O enredo <strong>de</strong> Portagem fixa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância, as vicissitu<strong>de</strong>s do mulato Xilim,<br />

filho natural da negra Kati e do patrão branco das minas <strong>de</strong> carvão <strong>de</strong> Marandal. O<br />

mundo infantil vai perseguindo Xilim ao longo <strong>de</strong> toda a trama, fazendo-lhe reviver o<br />

drama do passado. Se, em geral, a infância é vista como gloriosa, feliz, harmoniosa (<br />

uma forma <strong>de</strong> Paraíso Perdido) tal não acontece com Xilim. Na inocência da sua<br />

juventu<strong>de</strong>, inicialmente ignorante da sua origem, Xilim apaixona-se pela menina<br />

branca que ignora ser sua irmã. Apercebendo-se, pouco tempo <strong>de</strong>pois, da existência<br />

do laço <strong>de</strong> sangue com Maria Helena, foge <strong>de</strong> Marandal, incriminando-se pelo amor<br />

ilícito. Entretanto, porque é correspondido, reinci<strong>de</strong> no incesto.<br />

Já adulto, Xilim apercebe-se <strong>de</strong> que é diferente dos <strong>de</strong>mais e passa a viver<br />

entre as duas raças puras, suportando ora o seu <strong>de</strong>sprezo, ora a sua <strong>de</strong>sconfiança. O<br />

casamento com a mulata Luísa, em vez <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, só lhe trouxe tristezas e


dissabores; ela trai-o amantizando-se com o branco Esteves, pequeno comerciante da<br />

zona, a troco da ajuda à família <strong>de</strong> Xilim. Nesse quadro, o branco protagoniza uma<br />

cena <strong>de</strong> chantagem e <strong>de</strong> oportunismo.<br />

No que diz respeito à personagem Alima, po<strong>de</strong>r-se-á dizer, <strong>de</strong> forma<br />

abreviada, que é a imagem reiterada <strong>de</strong> um passado sem retorno, caracterizando-se<br />

por um ódio <strong>de</strong>smedido a todos os brancos, a quem atribui todas as culpas pelos<br />

azares e pelos insucessos do seu povo. Quanto ao Justino, revela-se como uma<br />

personagem parada no tempo, situação provocada pela sua loucura, continuando a<br />

contar costumes do mato. Ele já não se lembra <strong>de</strong> nada do tempo <strong>de</strong> rapaz antes <strong>de</strong> vir<br />

a cida<strong>de</strong> e falta-lhe a imaginação - o que lhe impe<strong>de</strong> a invenção da outra vida. É um<br />

homem conformado com o <strong>de</strong>stino, porque não vislumbra soluções para tantas<br />

vicissitu<strong>de</strong>s que a vida lhe reservou ao longo dos tempos. A sua luta, assim como a<br />

<strong>de</strong> Xilim e <strong>de</strong> outros negros e mulatos, remontando aos vovós Mafanissane e Alima,<br />

foi inglória e a <strong>de</strong>sgraça foi passando <strong>de</strong> geração em geração, conformando um<br />

<strong>de</strong>stino traçado no cruzamento adúltero <strong>de</strong> duas raças:<br />

«Tudo o que se passou <strong>de</strong>pois, tudo o que pesou sobre o seu (coração) e manchou as<br />

suas mãos e os seus olhos, proveio <strong>de</strong>sse erro. Por toda a parte ele encontrou gente que anda à<br />

toa, rejeitada pelos brancos e pelos negros. Deserdada pelas duas raças puras. Mas ele<br />

escon<strong>de</strong>rá dos filhos a memória dos pecados das negras Kati e dos patrões Campos. E eles<br />

nascerão como se a raça mestiça não tivesse nascido <strong>de</strong> um abraço fortuito.» (Po.: 160)<br />

De problemáticas socialmente can<strong>de</strong>ntes, como a condição da mulher e o<br />

adultério, a temas como a honra ou o suicídio, da ociosida<strong>de</strong> ao po<strong>de</strong>r da imaginação<br />

e à inocência infantil, abre-se em Portagem e em A Estranha Aventura um leque <strong>de</strong><br />

temas e sub-temas consi<strong>de</strong>ravelmente diversificados. Há, nestas obras uma<br />

preocupação dominante com a condição dos <strong>de</strong>sfavorecidos, quadro em que se trata<br />

reiteradamente a condição da mulher, as instituições do casamento e da família,<br />

abordando-se ainda os comportamentos que evi<strong>de</strong>nciam a crise que atinge tais


instituições (por exemplo, o adultério, o incesto, a poligamia, etc.). Para melhor<br />

compreensão e conhecimento <strong>de</strong>stas instituições, é útil procurar i<strong>de</strong>ntificar os códigos<br />

culturais que lhes estão subjacentes. É preciso consi<strong>de</strong>rar a priori a personagem como<br />

um signo, isto é, escolher um “ponto <strong>de</strong> vista” que a construa como integrante <strong>de</strong> uma<br />

mensagem.<br />

A personagem em ficção como a <strong>de</strong> Portagem e a <strong>de</strong> A Estranha Aventura é<br />

claramente condicionada por uma série <strong>de</strong> códigos culturais, nomeadamente os<br />

códigos que regulam as relações familiares.<br />

Tudo se organiza em função das relações permitidas e das relações<br />

interditas (excluídas). Assim, são permitidos os amores conjugais <strong>de</strong> que temos<br />

exemplos, em Portagem, (o velho Mafanissane com a companheira; o patrão Campos<br />

com a Dona Laura; o Sr. Esteves com a Maria Helena, etc.), tal como em A Estranha<br />

Aventura, (João Pedro com a Leonor e Omar Sambine com a mulata Suleima, etc.).<br />

Representando o grupo interdito <strong>de</strong> relações, temos situações várias, por exemplo, o<br />

incesto em Portagem, entre Xilim e Maria Helena, pois são irmãos. Em A Estranha<br />

Aventura parece ocorrer homosexualida<strong>de</strong> simbóloica entre Omar e o mar. Por seu<br />

turno, o adultério do homem aparece em Portagem, entre o patrão Campos e a<br />

mulata Kati; entre o branco Coxo e a mulata Beatriz; entre o Sr. Esteves e a mulata<br />

Luísa. Se consi<strong>de</strong>rarmos a hipótese <strong>de</strong>, em A Estranha Aventura, haver<br />

homosexualida<strong>de</strong> simbólica, a relação Omar/mar será também uma forma <strong>de</strong><br />

adultério. Quanto ao adultério da mulher, encontramo-lo em Portagem, com as<br />

mulats Kati, Beatriz, Luísa e, em Em A Estranha Aventura, com a mulata Suleima,<br />

entre outras.<br />

O espaço da obediência aos comportamentos prescritos é ocupado por<br />

“heróis”, o dos comportamentos transgressores é ocupado por “anti-heróis”. Uma


outra opção aos conteúdos ficcionais, ou uma outra época valorizarão inversamente<br />

este esquema (herói homossexual, a-social, mulher adúltera, etc.). Po<strong>de</strong>mos dizer que<br />

um texto é legível (para uma dada socieda<strong>de</strong>, numa dada época) quando houver<br />

coincidência entre o herói e o espaço moral valorizado. 37<br />

Sobre tudo isso, há alguns dados curiosos a <strong>de</strong>stacar:<br />

Quando ocorre adultério masculino geralmente o adúltero é o homem branco,<br />

que se envolve com negras ou com mulatas casadas ou não, estando reflectida uma<br />

relação <strong>de</strong> submissão da mulher nativa, mesmo em termos afectivos.<br />

Por outro lado é nas mulheres mulatas que se representará a situação <strong>de</strong><br />

prostituição ( ou <strong>de</strong> semi-prostituição ). Essa figura da mulata-prostituta retoma a<br />

visão colonialista das “raças”, nos termos postos por Fernando A. Novais. 38<br />

Os casamentos, as alianças matrimoniais, as relações sexuais ocasionais e o<br />

adultério são alguns dos aspectos a serem tomados em conta, para se analisar o tópico<br />

das relações <strong>de</strong> parentesco nas suas múltiplas implicações.<br />

A família é melhor compreendida como sistema moral, do que como uma<br />

instituição no sentido restrito, isto é, como composição dos membros com o conjunto<br />

<strong>de</strong> bens a eles pertencentes, incluindo o próprio espaço <strong>de</strong> habitação e outras<br />

proprieda<strong>de</strong>s. Os valores morais não florescem no vácuo, antes se relacionam <strong>de</strong><br />

modo subtil com as estruturas sociais e biológicas. A família é um vinculo crucial<br />

entre o sistema moral, as estruturas sociais e biológicas. Se se começar a dar, à partida<br />

uma caracterização <strong>de</strong>masiado restrita da família, em termos <strong>de</strong> consanguinida<strong>de</strong> ou<br />

37 . Françoise VAN ROSSUM-GUYSON, ett allii, (s/d: 80-83)<br />

38 . «Se é verda<strong>de</strong> que os casamentos entre brancos e negros ou pardos não era uma<br />

impossibilida<strong>de</strong> total, não é menos verda<strong>de</strong> que prevaleceram nessas relações ou “tratos ilícitos”, ou<br />

concubinatos, as aventuras fugazes (…). (Fernando A. NOVAIS, 1997:240)<br />

Provavelmente radica-se nesse padrão <strong>de</strong> relações a origem do velho ditado: “branca pra casar, mulata<br />

pra fo…, negra pra trabalhar”, palavrório recorrente entre os homens daquele tempo. Até um Gregório<br />

<strong>de</strong> Matos sugere, segundo Haussen, que a negra e mulata são sujas <strong>de</strong> sangue por <strong>de</strong>finição, logo, por<br />

extensão semântica, os termos mulata e negra, po<strong>de</strong>m significar puta, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> outra<br />

qualificação.» (Fernando A. NOVAIS, 1997: 240-241)


<strong>de</strong> domesticida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>-se adulterar o seu verda<strong>de</strong>iro conteúdo, pelo menos na África<br />

tradicional. Ali, o sistema familiar implica uma partilha dos papeis entre duas<br />

gerações adultas, por exemplo, tanto entre o pai e o filho como entre a sogra e a nora,<br />

no caso <strong>de</strong> esta última coabitar com a família do esposo. A organização dos espaços a<br />

serem ocupados por membros da família, tanto no interior da casa, como no campo,<br />

na cida<strong>de</strong> e até na Igreja, obe<strong>de</strong>ce a atitu<strong>de</strong>s ritualizadas que são, <strong>de</strong> certa maneira,<br />

uma forma <strong>de</strong> tornar a coabitação menos difícil e <strong>de</strong> diminuir as ocasiões <strong>de</strong> conflito.<br />

Para compreen<strong>de</strong>r a figura <strong>de</strong> Xilim, o epicentro da narrativa <strong>de</strong> Portagem, é<br />

bom fazer-se retroce<strong>de</strong>r a sua linhagem até às gerações antepassadas. A vida actual<br />

que Xilim persegue, as dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas a vários níveis (<strong>de</strong>semprego,<br />

relacionamento social e conjugal, marginalização socio-profissional), é mais<br />

consequência do que causa do tipo <strong>de</strong> vida a que esteve sujeito o velho negro escravo<br />

Mafanissane em longínquo passado, quatro ou cinco gerações antes <strong>de</strong> Xilim.<br />

Fazendo uma reconstituição da família <strong>de</strong> Xilim, ter-se-ia o seguinte percurso:<br />

(i) O escravo Mafanissane e sua companheira (não nomeada nem <strong>de</strong>stacada). Estes<br />

são os progenitores do filho débil. Aliás, ironicamente, a <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> física vai<br />

metaforizar a própria fragilida<strong>de</strong> sócio-económica, moral e psicológica <strong>de</strong>sta e das<br />

gerações seguintes até à do Xilim, uma fragilida<strong>de</strong> que parece não ter fim à vista.<br />

Esta família <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> escravos é por si o reflexo <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong><br />

anormalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> injustiça social, pois o próprio processo <strong>de</strong> escravatura foi<br />

reconhecido, ao longo da história, pela sua brutalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong>. Por isso, é<br />

uma família <strong>de</strong>sagregada a partir do velho Mafanissane, passando pelo filho débil, até<br />

à avó Alima, solitária e abandonada no Ridjalembe pela sua filha Kati, levada à<br />

levianda<strong>de</strong> e a uma vida promíscua precisamente pela sua condição social.


O narrador apresenta <strong>de</strong>sta forma, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, uma situação <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sequilíbrio em relação a esta família, que se converte numa estranha normalida<strong>de</strong><br />

pela negativa. Esse <strong>de</strong>sequilíbrio vai-se perpetuando ao longo das gerações, o que<br />

equivale a dizer que ele criou personagens equilibradas disforicamente, por se<br />

manterem no mesmo espaço e na mesma estrutura sócio-económica ao longo da<br />

narrativa. Do ponto <strong>de</strong> vista das suas funções, essas personagens reiteram a<br />

representação da miséria e da fragilida<strong>de</strong> que adveêm <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s económicas,<br />

documentando uma socieda<strong>de</strong> hierarquizada e injusta.<br />

( ii) Filho débil e sua companheira – Este casal não é nomeado, como também não<br />

se lhe dá o <strong>de</strong>vido relevo. Porque o mais importante é situar os acontecimentos em<br />

Xilim, o mais rápido possível, o narrador opta por omitir, neste caso, a história <strong>de</strong>ste<br />

inonimado casal. Esta estratégia <strong>de</strong> resumo <strong>de</strong> acontecimentos permite a aceleração da<br />

narrativa. O filho débil e a cmpanheira são os progenitores <strong>de</strong> vovó Alima. A partir<br />

<strong>de</strong>sta velha, o narrador estabelece a ligação genealógica entre a geração anterior e a<br />

posterior.<br />

(iii) Vovó Alima e seu companheiro _ Vovó Alima, cujo companheiro não se<br />

nomeia, é a única sobrevivente da sua geração, da gran<strong>de</strong> seca que assolou<br />

Ridjalembe. Como consequência <strong>de</strong>ssa seca, todos os al<strong>de</strong>ões abandonaram a<br />

povoação para os subúrbios do Marandal, permanecendo ela sozinha na terra<br />

ancestral, como que a simbolizar a resistência, a perpetuar os antepassados, ligando-os<br />

à nova geração, entretanto refugiada no espaço urbano, o espaço do outro.


Vovó Alima é uma espécie <strong>de</strong> guardiã da al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>serta e abandonada. Ela<br />

aceita o sacrifício individual <strong>de</strong> permanecer solitária e abandonada na al<strong>de</strong>ia natal <strong>de</strong><br />

Ridjalembe, para salvar o seu povo.<br />

A única filha <strong>de</strong> vovó Alima é a Kati, neta do “Filho débil” e bisneta do<br />

escravo Mafanissane.<br />

(iv) Kati e Patrão Campos – A relação entre ambos foi fortuita e ocasional, tendo,<br />

para o Patrão Campos, resultado num filho ilegítimo e, consequentemente, não<br />

reconhecido por ele. A partir <strong>de</strong>sta intromissão <strong>de</strong> um elemento estranho à linhagem<br />

do velho escravo (o patrão Campos) a estrutura familiar das gerações seguintes se<br />

<strong>de</strong>smoronou. E a <strong>de</strong>sagregação moral foi acrescentar-se à já <strong>de</strong>sajustada situação<br />

sócio-económica da linhagem do velho.<br />

Por causa das relações adúlteras do patrão Campos, perpetuam-se ainda mais<br />

as miseráveis condições <strong>de</strong>sta família, ao mesmo tempo que as relações <strong>de</strong> parentesco<br />

se complexificam e se fragilizam. Com o nascimento <strong>de</strong> Xilim surge um outro (novo)<br />

problema, o do mulato, pertencente tanto ao sangue do patrão Campos, como ao da<br />

Kati e, antiteticamente, não se parecendo a nenhum <strong>de</strong>les por ser diferente. Esta<br />

diferença rácica vai criar uma situação <strong>de</strong> dúvida, que o próprio Xilim manifesta<br />

quando, em monólogo, se pergunta: «Afinal quem sou eu? A que raça pertenço?» Este<br />

problema, frequente na literatura africana do autor e <strong>de</strong>pois das in<strong>de</strong>pendências, foi<br />

tratado <strong>de</strong> modo muito interessante em Mayombe, <strong>de</strong> Pepetela. 39<br />

39 . «Também Pepetela, em Mayombe, inserirá problematicamente entre as suas personagens o<br />

mestiço apelidado Teoria, um instrutor guerrilheiro que, como João Xilim, <strong>de</strong> Portagem, expõe o<br />

<strong>de</strong>safio constante e doloroso em que se constitui o simples convívio no seio do grupo, dada a marca<br />

duvidosa <strong>de</strong> «produto híbrido». Assim fala «Teoria»:<br />

“ Da terra recebi a cor escura do café, vinda da mãe, misturada ao branco <strong>de</strong>funto do meu pai,<br />

comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num universo <strong>de</strong> sim ou


Em Xilim, a questão da cor da pele vai constituir um estigma ao longo <strong>de</strong> toda<br />

a sua vida e vai ditar o seu inglório <strong>de</strong>stino, em todas as suas esferas, porque produto<br />

<strong>de</strong> relações adúlteras entre a mãe Kati e o branco patrão Campos. É aliás em Xilim<br />

que o autor mais investe no representar da discriminação socio-cultural e racial, ainda<br />

que, já a partir da mãe Kati, se vislumbrassem ténues manifestações do tema.<br />

(iv´) Uhulamo – Companheiro <strong>de</strong> Kati, padrasto <strong>de</strong> Xilim e capataz da mina <strong>de</strong> patrão<br />

Campos, é a configuração da aceitação pacífica <strong>de</strong> imoralida<strong>de</strong>s, a troco <strong>de</strong> favores<br />

profissionais. Em conivência com o seu patrão, mediante a aceitação por imposição e<br />

sem escolha <strong>de</strong> Kati, é-lhe proposto encobrir a relação adúltera entre patrão Campos e<br />

a mulata, consentindo viver com esta como sua companheira e com Xilim como filho<br />

<strong>de</strong> ambos.<br />

Uhulamo é uma personagem cuja lógica ultrapassa talvez o limite do possível<br />

em termos do imaginário social, pois ele aceitou constituir uma família que, na<br />

verda<strong>de</strong>, não o era. Com isso, também contribui para a <strong>de</strong>sagregação da família do<br />

negro Mafanissane. Se é verda<strong>de</strong> que a nível social e aos olhos dos habitantes do<br />

Marandal, Uhulamo é visto como o companheiro <strong>de</strong> Kati, não é menos verda<strong>de</strong> que<br />

entre ambos perpassa um sentimento <strong>de</strong> serem objectos humanos usados para<br />

camuflar os abusos e a prepotência do patrão Campos, representantes <strong>de</strong> homens<br />

<strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> honra e <strong>de</strong> valores nobres <strong>de</strong> moral. Uhulamo sabe e<br />

sente que, do ponto <strong>de</strong> vista ético, não é companheiro <strong>de</strong> Kati, não é padrasto <strong>de</strong><br />

Xilim e nem sequer se integra na família <strong>de</strong>stes, sendo um estranho.<br />

não, branco ou negro, eu represento o “talvez” (…). Porque no mundo não há lugar para o talvez?”.»<br />

(Manuel FERREIRA, 1979: 68)


(v) Xilim e sua companheira, a mulata Luísa, filha <strong>de</strong> Dona Maria _ A trama<br />

narrativa apresenta, fundamentalmente a partir <strong>de</strong> Xilim, uma dinâmica semântica que<br />

privilegia sobremaneira o tema da cor da pele. Vista como fatalida<strong>de</strong> do seu <strong>de</strong>stino e<br />

como resultado <strong>de</strong> relações adúlteras, a cor mestiça tem, na visão do narrador, uma<br />

conotação disfórica. Esta disforia não é mais do que a metaforização das condições <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>gradação sócio-económica, ética e moral vividas pelo negro e pelo mestiço.<br />

Aliando-se este tipo <strong>de</strong> situações somente às raças atrás referidas, escamoteia-se a sua<br />

verda<strong>de</strong>ira natureza, sendo assim dado ver um quadro social numa das suas facetas, a<br />

outra po<strong>de</strong>ndo ser inferida, se for abordada do ponto <strong>de</strong> vista irónico.<br />

Também a partir <strong>de</strong> Xilim e remontando à sua mãe Kati, a rigi<strong>de</strong>z da estrutura<br />

familiar tradicional é posta em causa. Já não se tem bem claro quem é parente, quem<br />

não o é, pois o pai biológico <strong>de</strong> Xilim (o patrão Campos) não é seu pai sociológico,<br />

tendo sido “substituído” pelo velho Uhulamo (seu parente por conveniência). Maria<br />

Helena veio a ser a irmã (ainda por cima branca) que antes não era, situação muito<br />

confusa, até que um dia a verda<strong>de</strong> veio ao <strong>de</strong> cima. Xilim ficou a saber <strong>de</strong> tudo:<br />

jurídica e sociologicamente, ele não era filho <strong>de</strong> patrão Campos nem irmão <strong>de</strong> Maria<br />

Helena. Uma série <strong>de</strong> outras re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> parentesco se entrelaçam e se complicam, se<br />

forem vistas do lado da linhagem do patrão Campos. Aliás, esta confusão<br />

condicionará Xilim, na medida em que, a partir <strong>de</strong> uma vida pouco clara entre os seus<br />

progenitores, foi ele próprio um indivíduo com uma relação conjugal pouco<br />

conseguida. Levou uma vida errante e confusa, sem emprego fixo, com privações e<br />

<strong>de</strong>smandos. Viveu sempre num estado <strong>de</strong> permanente perturbação, primeiro numa<br />

família aparente (com a mulata Kati e o velho Uhulamo), <strong>de</strong>pois em situação<br />

equivalente, como criado (da meia-irmã Maria Helena, tendo o pai biológico como<br />

seu patrão e como patroa a mãe <strong>de</strong> Maria Helena). Xilim ignorava a situação, até que


o tempo se encarregou <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar o mistério em torno da sua ascendência remota e<br />

dos seus progenitores, como se nota a seguir:<br />

«Com o breve crepúsculo a extinguir-se, João Xilim continua meditando na ilhota <strong>de</strong><br />

areia. E recorda-se que fora naquele verão que se apercebera <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> que viera a<br />

marcá-lo no ventre <strong>de</strong> sua mãe. Ele não era negro como a outra gente nascida em terras <strong>de</strong><br />

Marandal. Tinha a pele mais clara que a dos negros e o cabelo mais liso.» (Po.: 21)<br />

O conhecimento <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong> tornou mais nublado o seu horizonte social. A<br />

tentativa <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> uma família, por parte <strong>de</strong> Xilim, não se mostrou frutífera.<br />

Como companheiro da mulata Luísa, era in<strong>de</strong>sejado aos olhos da mãe <strong>de</strong>sta, por ser<br />

pobre e por não garantir a melhoria das condições <strong>de</strong> vida da filha e as suas também.<br />

Entretanto, Xilim e Luísa tiveram um filho, o Zidrito (antes morrera-lhes outro, ainda<br />

na barriga <strong>de</strong> Luísa). Zidrito é o último elemento referido na linhagem do velho<br />

escravo Mafanissane. Se o parentesco for visto com certa rigi<strong>de</strong>z, então Xilim<br />

pertencerá a uma meia-família, cujas gerações vindouras po<strong>de</strong>rão per<strong>de</strong>r a<br />

referencialida<strong>de</strong> dos seus antepassados, pois estes não constituem nem a honra, nem o<br />

orgulho da família. 40<br />

Xilim é <strong>de</strong> uma família sem honra e sem orgulho porque é resultado <strong>de</strong><br />

“companheirismos” orquestrados pelo patrão Campos. Katia feriu o orgulho reverente<br />

pelos antepassados, pois não manteve a pureza rácica da linhagem. A honra é um<br />

ingrediente importante para o prestígio que permite a um chefe <strong>de</strong> família atrair<br />

seguidores. Xilim não teve em casa da mãe um verda<strong>de</strong>iro chefe <strong>de</strong> família (Uhulamo<br />

era um lacaio ao serviço do patrão Campos), logo, não teve um exemplo a seguir, pois<br />

a sua mãe Luísa levava uma vida duvidosa.<br />

40 . Visto no sentido formal, o parentesco «é uma função, no sentido quase matemático do<br />

termo. Induz entre os homens relações igualitárias (todos têm a mesma honra) indistintas (<strong>de</strong>ve-se tanta<br />

ajuda e afecto a um primo como a um irmão) marcadas, no plano das trocas, por uma reciprocida<strong>de</strong> não<br />

tabelada. A honra é um capital social que se mantém e que se faz frutificar em conjunto, mas cada<br />

situação <strong>de</strong> avaliação repõe em causa a categoria e os próprios contornos do grupo solidário.» (Philipe<br />

ARIÈS, 1990: 122-123)


O concubinato, naquela socieda<strong>de</strong> tradicional às portas da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Marandal<br />

parece ter sido, contudo, uma prática bastante estável entre a pobre família aon<strong>de</strong><br />

viveu e cresceu Xilim. Aliás, ele próprio viria a constituir família com Luísa,<br />

seguindo a mesma tradição costumeira que, pelos vistos, era prática comum na<br />

maioria das famílias suburbanas e rurais <strong>de</strong> Marandal. A incidência do concubinato<br />

parece tê-lo tornado a forma tradicional típica <strong>de</strong> casamento costumeiro, a par <strong>de</strong> (e<br />

não como alternativa) casamentos oficiais e católicos nas camadas sociais assimiladas<br />

e nas <strong>de</strong> origem europeia.<br />

Em relação ao casal Kati e Uhulamo, como o vínculo com o patrão Campos<br />

foi substituído pelos laços <strong>de</strong> forte subordinação e <strong>de</strong>pendência, a cultura <strong>de</strong><br />

respeitabilida<strong>de</strong> foi substituída pela <strong>de</strong> submisão e lealda<strong>de</strong>. É com base neste cenário<br />

que Xilim procura em vão fazer justiça pelas próprias mãos. Supunha ele que, para<br />

uma família sem nobreza <strong>de</strong> carácter e sem posição social <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no mundo,<br />

fazer valer a sua honra (a da mãe e a <strong>de</strong> tantos outros <strong>de</strong>sfavorecidos e injustiçados),<br />

através <strong>de</strong> conflitos que incluem violências, pancadarias e vigarice, era um meio <strong>de</strong><br />

existir e <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar a posição social <strong>de</strong> outrem. Entretanto, por enquanto, Xilim<br />

optou por emigrar, na vã tentativa <strong>de</strong> esquecer tanta injustiça, <strong>de</strong> atenuar a sua raiva e<br />

<strong>de</strong> conseguir melhoria <strong>de</strong> condições <strong>de</strong> vida. A estratégia não resultou: Xilim não<br />

esquece o passado, não consegue mudar o <strong>de</strong>stino.<br />

Pouco tempo <strong>de</strong>pois da fuga, regressa a Marandal. É quando lhe assoma um<br />

misto <strong>de</strong> arrependimento e <strong>de</strong> ódio:<br />

«João Xilim assiste à vida da gente <strong>de</strong> Marandal como um sonâmbulo. Pergunta a si<br />

mesmo que veio ali fazer. Fugira porque Kati se tinha embrulhado com Patrão Campos,<br />

diante dos seus próprios olhos. Patrão Campos <strong>de</strong>via ser o pai <strong>de</strong>le. E tivera, apesar disso,<br />

coragem para regressar, tornar a ver o branco da mina e o capataz que dorme todas as noites<br />

com a mãe. (…) Nos primeiros tempos <strong>de</strong> embargadiço pensara constantemente em regressar<br />

um dia a Marandal e vingar-se <strong>de</strong> patrão Campos e <strong>de</strong> Kati que lhe tinham atraiçoado a<br />

inocência.» Po.: 31


Para dar conta do pensamento, das imaginações <strong>de</strong> Xilim, o narrador assume-<br />

se como uma máquina <strong>de</strong> filmar montada no cérebro daquele, permitindo-se assim um<br />

conhecimento pormenorizado das cogitações da personagem. O narrador não só relata<br />

o pensamento <strong>de</strong> Xilim, discursivizado no passado, como também o comenta, analisa<br />

e interpreta. Resulta uma imagem clara do mundo interior <strong>de</strong> Xilim, caracterizado por<br />

permanente perturbação. Por exemplo, no capítulo 7 <strong>de</strong> Portagem, servindo-se <strong>de</strong> um<br />

discurso na terceira pessoa, o narrador funciona como árbitro da situação, como<br />

controlador das acções e dos pensamentos das personagens. Apesar <strong>de</strong>, amiú<strong>de</strong>,<br />

recorrer ao discurso directo (não ao diálogo, pois não se colocam as personagens<br />

numa situação <strong>de</strong> comunicação bilateral em presença), privilegia o seu próprio<br />

discurso: a narração. Este narrador <strong>de</strong>posita confiança e tem preferência na sua voz<br />

narrativa, produzindo um efeito parecido com o <strong>de</strong> recontar dos factos e das acções<br />

das personagens. Entretanto, essa voz narrativa está, algumas vezes, em conivência<br />

com o discurso das próprias personagens. Para situar melhor na estrutura discursiva<br />

do texto, veja-se que o relato das acções e das activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Maria Helena e <strong>de</strong> Xilim<br />

é secundado pelo diálogo entre ambos, produzindo-se um discurso híbrido, sem ser<br />

directo, nem indirecto, mas aproximando-se do indirecto livre; talvez seja um discurso<br />

que conjuga os três:<br />

No dia seguinte (Maria Helena) mandou chamar o mulato que fora moleque na sua<br />

casa (…).<br />

_ João, man<strong>de</strong>i-te chamar porque preciso muito <strong>de</strong> ti…<br />

Conta-lhe tudo, as suas intenções, as objecções <strong>de</strong> António Santos, a relutância da<br />

mãe em continuar a viver agora no Marandal. Precisa <strong>de</strong>le para combater e vencer a<br />

superstição dos trabalhadores da mina (…).<br />

_Então, João?!…<br />

Nada se arrisca (João) a prometer. Os negros hão-<strong>de</strong> esquivar-se a voltar a trabalhar<br />

naquele poço on<strong>de</strong> ficaram enterrados para sempre vinte e três companheiros. E terá coragem<br />

para lhes falar nisso?<br />

_Vou ver, menina…» Po.: 43


Repare-se que não há propriamente um diálogo entre Maria Helena e Xilim.<br />

Com esta estratégia <strong>de</strong> mediação discursiva, o narrador consegue ganhar tempo: em<br />

vez <strong>de</strong> reproduzir a totalida<strong>de</strong> das falas directas dos dois, trata, ele próprio, <strong>de</strong><br />

interpretar e <strong>de</strong> sintetizar a conversa <strong>de</strong> ambos. A narrativa torna-se menos <strong>de</strong>nsa e <strong>de</strong><br />

progressão relativamente rápida, mercê da estratégia discursiva do narrador: uma<br />

estratégia que predomina, aliás, em toda a narrativa Mendista.<br />

Voltando às questões da família, lembre-se que quatro gerações separam<br />

Xilim do seu avô Mafanissane. Em todas essas gerações há um traço comum: <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

Mafanissane e sua companheira a Xilim e Luísa, cada casal teve somente um filho.<br />

Isso condiciona a inexistência <strong>de</strong> consanguinida<strong>de</strong> alargada e, ao mesmo tempo, po<strong>de</strong><br />

suscitar a hipótese <strong>de</strong> <strong>de</strong>satenção a uma das características mais típicas da família<br />

africana: a existência <strong>de</strong> muitos filhos. Se se trata <strong>de</strong> <strong>de</strong>satenção, tem certa gravida<strong>de</strong>,<br />

pois nas famílias africanas em geral, e nas do sul <strong>de</strong> Moçambique em particular, os<br />

filhos constituem o bem mais precioso, imprescindível mesmo à subsistência. É pouco<br />

crível e pouco verosímil que nessas famílias das socieda<strong>de</strong>s tradicionais os casais<br />

tivessem tido somente um filho cada, ainda que teoricamente não fosse impossível.<br />

Será algo consciente, premeditado, o facto <strong>de</strong> o narrador ter privilegiado um único<br />

filho para cada casal, sem pelo menos fazer referência a tios paternos ou maternos, a<br />

primos, a irmãos (à excepção <strong>de</strong> Xilim e <strong>de</strong> Maria Helena), ou usou a estratégia <strong>de</strong><br />

ocultação dos nomes <strong>de</strong> irmãos, tios, para mostrar a irrelevância da sua integração na<br />

trama narrativa (à semelhança, aliás, da ocultação <strong>de</strong> nomes <strong>de</strong> algumas personagens,<br />

por exemplo o da companheira do escravo Mafanissane, o do filho débil e o da sua<br />

companheira, o do companheiro da avó Alima, etc.)? De qualquer modo, esse<br />

“empobrecimento” das famílias, em termos <strong>de</strong> número do agregado, ocasiona uma<br />

total <strong>de</strong>sagregação entre os seus membros. Além disso, tal situação coloca algumas


preocupações em termos <strong>de</strong> experiência afectiva das famílias africanas. O que será, ou<br />

melhor, o que significará um filho único para um africano rural ou da zona<br />

suburbana? As respostas a estas perguntas, ainda que sejam <strong>de</strong>sejáveis, não se<br />

mostram fáceis, a menos que se pretenda uma especulação. Entretanto, a questão do<br />

filho único tem <strong>de</strong> ser minimamente pon<strong>de</strong>rada quando se trata <strong>de</strong> literatura africana.<br />

Um filho único, na África tradicional, on<strong>de</strong> a maior riqueza é a mão <strong>de</strong> obra<br />

dos parentes, não será bom, na medida em que enfraquece a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção<br />

material e <strong>de</strong> reprodução da família. Há também repercursões ao nível das alianças e<br />

das trocas matrimoniais com outras tribos vizinhas. Um filho único diminui<br />

drasticamente as hipóteses <strong>de</strong> trocas, também vistas como fontes <strong>de</strong> angariação <strong>de</strong><br />

mão <strong>de</strong> obra, para além, como é óbvio, <strong>de</strong> ser garante da reprodução do grupo. Po<strong>de</strong>r-<br />

se-á conjecturar que os filhos únicos reflectem uma evolução <strong>de</strong> mentalida<strong>de</strong> nessas<br />

socieda<strong>de</strong>s no sentido <strong>de</strong> se preten<strong>de</strong>r proporcionar boas condições <strong>de</strong> vida aos filhos<br />

e <strong>de</strong> minorar os gastos com a criação e a educação dos mesmos. É <strong>de</strong> crer, entretanto,<br />

que esse pensamento ainda não existisse, ma medida em que ainda não se tinha<br />

implantado o sistema <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> acumulação capitalistas. Essas socieda<strong>de</strong>s<br />

tradicionais, ou do mundo suburbano são, em parte, fechadas e têm como<br />

característica, em relação aos filhos, a partilha <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s na educação e na<br />

sua criação. Não há propriamente uma responsabilização individual das famílias<br />

somente para com os filhos biológicos e, por isso, não há a consciência <strong>de</strong> <strong>de</strong>spesas na<br />

criação dos filhos.<br />

O filho único não é, para a família tradicional africana, sinónimo <strong>de</strong><br />

racionalida<strong>de</strong>. Pelo contrário, constitui uma preocupação para os progenitores e para a<br />

socieda<strong>de</strong> em geral. O pensamento predominante é o <strong>de</strong> que não se po<strong>de</strong> limitar a<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus; os progenitores <strong>de</strong>vem ter tantos filhos quanto as suas capacida<strong>de</strong>s o


permitam, pois a responsabilida<strong>de</strong> futura para os alimentar estará nas mãos do próprio<br />

Todo Po<strong>de</strong>roso, que <strong>de</strong>legará em cada um dos membros <strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong> essa<br />

responsabilida<strong>de</strong>. Aliás, na zona sul <strong>de</strong> Moçambique, e crê-se que em toda a África<br />

tradicional em geral, ter poucos filhos (e ter somente um é inimaginável) é sinal <strong>de</strong><br />

que o homem tem medo <strong>de</strong> alimentar, <strong>de</strong> criar e <strong>de</strong> assumir uma responsabilida<strong>de</strong> para<br />

com uma família específica; ele é fraco como homem. O seu po<strong>de</strong>r está exactamente<br />

no procedimento contrário, tendo em conta que, para além do que se disse, esses<br />

mesmos filhos serão responsabilizados futuramente para cuidar dos pais. Ter um filho<br />

é pois hipotecar o seu futuro na velhice.<br />

Uma hipótese se po<strong>de</strong> aventar para se tentar compreen<strong>de</strong>r o porquê <strong>de</strong> o Autor<br />

<strong>de</strong> Portagem “criar” famílias com um único filho: essas famílias só po<strong>de</strong>m ser aceites<br />

como simbólicas, ou seja, se nas socieda<strong>de</strong>s tradicionais africanas ter muitos filhos é<br />

uma riqueza, então, ter um é uma pobreza, logo, estas famílias tradicionais, neste<br />

contexto, eram pobres também por isso. Neste caso, filho único será a metaforização<br />

da exiguida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recursos, da redução <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> privações e <strong>de</strong> exclusão<br />

da situação <strong>de</strong> normalida<strong>de</strong> (ter muitos filhos). Simbolicamente, ter muitos filhos,<br />

neste contexto, é ter muitas e boas oportunida<strong>de</strong>s.<br />

Como Xilim não é feliz ao nível da família e só tem um único filho, então só<br />

lhe resta esta alternativa: tem que lutar, com pouca ajuda, pela sobrevivência, tem que<br />

abrir caminho por si na vida social, elevando-se à posição que os seus talentos<br />

permitem. As personagens Xilim, em Portagem, e Jangô, em A Estranha Aventura,<br />

por não terem laços familiares próximos (irmãos, primos e tios), o que no mínimo é<br />

um absurdo, em termos <strong>de</strong> imaginário africano, não têm nenhuma linhagem que lhes<br />

permita <strong>de</strong>finir e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a continuida<strong>de</strong> do seu nome. Falta-lhes ainda muito no<br />

plano da solidarieda<strong>de</strong> social; não têm um grupo coerente e coeso, alargado e


consanguíneo, um grupo <strong>de</strong> pessoas que partilhem com parentes outros uma<br />

ascendência comum até um antepassado fundador. Por acaso, Xilim tem vago<br />

conhecimento <strong>de</strong> um antepassado, pois conheceu a sua avó Alima, a qual veio a<br />

morrer na sua ausência, sem lhe ter legado nada da cultura tradicional dos<br />

antepassados <strong>de</strong> Ridjalembe.<br />

Tanto em Portagem, como em A Estranha Aventura, se po<strong>de</strong> ver outro tipo <strong>de</strong><br />

família, a <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência e <strong>de</strong> características europeias: é o caso, em Portagem, das<br />

famílias do patrão Campos, do Sr. António Santos, supostamente do Delegado do<br />

Ministério Público, do Dr. Ramires, do Sr. Juíz, etc., e, em A Estranha Aventura, da<br />

família <strong>de</strong> Marianita (conto «Os olhos da Marianita»), da <strong>de</strong> João Pedro (conto «A<br />

porta fechada») e da <strong>de</strong> Cacilda (conto «Cacilda»). De mo<strong>de</strong>lo europeu, essas famílias<br />

assentam em outras bases culturais e civilizacionais, raízes que mantêm, apesar <strong>de</strong><br />

serem emigrantes ou <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> emigrantes. Em geral, o nível sócio-económico<br />

<strong>de</strong>ssas famílias é aceitável, pois têm acesso ao saber, à cultura e consequentemente ao<br />

po<strong>de</strong>r. Salvo raras excepções, (por exemplo, o Sr. Esteves e o Marques, em Portagem;<br />

a personagem/narrador do conto «Um tipo in<strong>de</strong>cente», em A Estranha Aventura), a<br />

vida <strong>de</strong>stas famílias corre sem gran<strong>de</strong>s sobressaltos, não obstante alguns assomos <strong>de</strong><br />

sauda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sentimentos <strong>de</strong> nostalgia para com a Pátria-Mãe, a Metrópole. O<br />

sentimento <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong> tem reflexos directos nos pais <strong>de</strong> Cacilda e culmina com o<br />

regresso <strong>de</strong>stes à terra natal, apesar da relutância da filha que, teimosamente, prefere<br />

permanecer em Moçambique, sua terra natal. Esta micro realida<strong>de</strong> do colono, que vai<br />

para África, por uns tempos, para enriquecer, afim <strong>de</strong> <strong>de</strong>pois regressar, norteou a<br />

mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> muitos <strong>de</strong>les, ainda que alguns tenham <strong>de</strong>cidido ficar <strong>de</strong>finitivamente<br />

no continente negro.


Diferentemente <strong>de</strong> Portagem, em A Estranha Aventura tem-se a<br />

predominância <strong>de</strong> contos que procuram reproduzir o espaço social ou o microcosmos<br />

<strong>de</strong> famílias europeias ou <strong>de</strong>las <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes. Guilherme <strong>de</strong> Melo criou cenários on<strong>de</strong><br />

acontecimentos se <strong>de</strong>senrolam basicamente em famílias cujo modo e padrão <strong>de</strong> vida é<br />

marcadamente europeu. Entretanto, vão-se levantando alguns focos <strong>de</strong> conflito<br />

cultural, social e racial, cada vez que culturas diferentes entram em contacto; é o<br />

caso, por exemplo, das incompetências dos criados em casa dos patrões brancos: 41<br />

«O mufana, que tem na ca<strong>de</strong>rneta, como ida<strong>de</strong> provável, catorze anos e que fez,<br />

realmente, apenas doze anos, veio da terra há pouco mais <strong>de</strong> um ano. Os primeiros meses<br />

passou-os numa casa gran<strong>de</strong>, com um quintal enorme, ali nos arredores da cida<strong>de</strong>, tratando<br />

dos coelhos, das galinhas, do cão.<br />

Mas não era bom aquele serviço. Afinal, era quase a mesma coisa que guardar<br />

cabritos do tatana (pai ou tio), na terra, antes <strong>de</strong> vir para o Chilunguine (cida<strong>de</strong>).» (E A.: 18)<br />

A separação entre os adolescentes emigrantes das zonas rurais ou suburbanas<br />

para a cida<strong>de</strong> (ou mesmo para as minas do Rand - metaforizadas em Portagem pelas<br />

minas <strong>de</strong> Jumpers - na vizinha Africana do Sul) e os familiares da terra natal, era por<br />

41 . Os criados indígenas são os empregados domésticos que, geralmente, eram recrutados nas<br />

zonas rurais, sem o mínimo <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> aculturação. A sua mundividência reflectia a forma <strong>de</strong><br />

ser e <strong>de</strong> estar do campo, daí as constantes incompreensões e <strong>de</strong>sentendimentos mútuos. A maior<br />

dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação situava-se ao nível da língua portuguesa, cuja compreensão, por parte do<br />

nativo não aculturado, era fraca, precisando até, amiú<strong>de</strong>, <strong>de</strong> tradução ou <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> outro<br />

indígena, “civilizado”.<br />

Regra geral, a faixa etária preferida pelos patrões era entre os oito e os quinze anos, sendo<br />

frequente a obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> abandono da al<strong>de</strong>ia natal, por parte do nativo futuro criado, para viver<br />

ou nos anexos da casa do patrão ou nos subúrbios ao redor da cida<strong>de</strong>. Este <strong>de</strong> recrutamento <strong>de</strong> mão <strong>de</strong><br />

obra infantil levantava o problema da legalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esses criados estarem ou não autorizados a<br />

trabalhar. Para o contorno <strong>de</strong>sta ilegalida<strong>de</strong>, o que os patrões <strong>de</strong>fendiam perante as autorida<strong>de</strong>s era que<br />

se tratava <strong>de</strong> menores sob sua tutela, aos quais era prestado um misericordioso apoio sócio-económico,<br />

ajudando-os a minorar as carências e as privações, mas também ajudando o próprio Estado a civilizálos.<br />

Os patrões dignavam-se assim a criar os filhos nativos num espírito patriótico e <strong>de</strong> “boa-vonta<strong>de</strong>”.<br />

Outra <strong>de</strong>signação que parelhava com a <strong>de</strong> criado era a <strong>de</strong> moleque, à semelhança <strong>de</strong> mufana, que na<br />

língua Xi-Ronga <strong>de</strong> Maputo significa rapaz.<br />

Geralmente dava-se preferência aos rapazinhos do sexo masculino, (não fossem as<br />

rapariguinhas envergonhar as donas <strong>de</strong> casa, amantizando-se com os patrões, o que era muito<br />

frequente, mas fora das pare<strong>de</strong>s do lar). Entretanto, incluem-se na nomenclatura acima dada,<br />

<strong>de</strong>signações para funções domésticas similares como mainato (tratador e engomador <strong>de</strong> roupa) e até<br />

rapaz. Em relação a esta última, ela era usada quer se tratasse verda<strong>de</strong>iramente <strong>de</strong> um rapaz, quer <strong>de</strong><br />

um senhor, pai <strong>de</strong> filhos; daí a crítica que, após a in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Moçambique, o Presi<strong>de</strong>nte Samora<br />

Machel fazia a essa forma <strong>de</strong> tratamento e <strong>de</strong> inferiorização, nalguns dos versos <strong>de</strong> uma canção popular<br />

revolucionária, com os seguintes dizers: «não vamos esquecer o tempo que passou (bis)/; Quem po<strong>de</strong><br />

esquecer o que passou?!/ O pai <strong>de</strong> cinco filhos<br />

chamado o rapaz! (…).»


vezes tão brusca que estes ficavam anos sem saberem novas dos filhos. Quando as<br />

sabiam, podiam ser novas da morte:<br />

«(…) Foi então que, <strong>de</strong> repente, a criança (o mufana) surgiu em correria <strong>de</strong>sabalada<br />

<strong>de</strong> passeio para passeio.<br />

Houve um guinchar estrídulo <strong>de</strong> travões, um ranger alucinante <strong>de</strong> pneus, um baque,<br />

um uivo, talvez um estertor sufocado_ e, <strong>de</strong>pois, um silêncio enorme, profundo.» (E.A.: 198)<br />

«E nessa noite, longe, em qualquer ponto das terras <strong>de</strong> Gaza, cães esqueléticos<br />

ladriscavam fomes pelos carreiros abertos no mato, enquanto estendida na esteira, mamana,<br />

antes <strong>de</strong> adormecer, recordava o filho miúdo que seguira para o Chilunguíne, a cida<strong>de</strong> dos<br />

brancos, (…).» (E.A.: 205)<br />

O sul <strong>de</strong> Moçambique (espaço on<strong>de</strong> <strong>de</strong>correm as acções <strong>de</strong> «Uma criança<br />

morta» e <strong>de</strong> Portagem) caracteriza-se, nas zonas rurais e suburbanas, por um modo <strong>de</strong><br />

produção se<strong>de</strong>ntária e agrícola, on<strong>de</strong> o instrumento <strong>de</strong> maior uso é a enxada. Assim, a<br />

população <strong>de</strong>ssas zonas nunca foi para além <strong>de</strong> uma agricultura <strong>de</strong> sobrvivência.<br />

A<strong>de</strong>mais, o trabalho da machamba (campo) era feito por mulheres, já que os homens,<br />

em geral emigravam. Provavelmente, a dificulda<strong>de</strong> ou mesmo a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

usar a charrua limitava a porção <strong>de</strong> terra a explorar por cada agregado, com<br />

consequências na sua capacida<strong>de</strong> para acumular recursos. Nestas socieda<strong>de</strong>s on<strong>de</strong>,<br />

para além da agricultura, há a pastorícia, a riqueza continua a ser reconhecida em<br />

termos <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra, disponível na família alargada, mais do que na família<br />

restrita. 42<br />

Assim se explica que a exogamia seja sempre a regra básica do casamento,<br />

funcionando como forma <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> alargar a família, mas sobretudo como<br />

estratégia para aumentar a riqueza humana.<br />

Os jovens regressados da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> ou das minas do Rand, encontravam<br />

nos clãs vizinhos o espaço i<strong>de</strong>al para procurarem esposas, muitas vezes em situações<br />

concertadas entre os anciãos das famílias envolvidas. Habitualmente, o pagamento<br />

pela noiva anda ligado à exogamia: compensa-se a família da noiva com generosas<br />

42 . Cf. James CASEY, 1990: 94


ofertas <strong>de</strong> gado e <strong>de</strong> outras coisas, cerimónia que se <strong>de</strong>signa por lobolo no sul <strong>de</strong><br />

Moçambique. Xilim não se enquadra neste esquema por já ter abandonado<br />

(juntamente com os outros al<strong>de</strong>ões) Ridjalembe, espaço ancestral on<strong>de</strong> eventualmente<br />

estas práticas seriam comuns e, ainda, porque per<strong>de</strong>u parcialmente as raízes da sua<br />

tradição, pois cresceu nos subúrbios <strong>de</strong> Marandal, on<strong>de</strong> uma cultura intermédia entre<br />

urbana e rural revela a presença <strong>de</strong> uma população aculturada, <strong>de</strong> pensamento dúbio,<br />

com comportamentos e atitu<strong>de</strong>s viciados pela cultura consumista da cida<strong>de</strong>. Aliás, a<br />

cor mestiça <strong>de</strong> Xilim é em si a encarnação <strong>de</strong>ssa dualida<strong>de</strong> cultural.<br />

Importa fazer uma breve referência aos casamentos no plano específico das<br />

relações conjugais, para uma melhor compreensão da relações consanguíneas ou por<br />

afinida<strong>de</strong>. Por exemplo, Omar Sambine, no conto “O Estranho Amor” <strong>de</strong> A Estranha<br />

Aventura, é uma personagem cuja vida conjugal confusa e sem glória culminou com<br />

o abandono da mulher, Suleima, que enveredara pela prostituição. A situação lembra<br />

a <strong>de</strong> Xilim. Com o casamento falhado, a vida familiar sem sucesso, a alternativa<br />

encontrada por Omar foi juntar-se eternamente ao mar, amantizando-se com ele. O<br />

mesmo se po<strong>de</strong> dizer <strong>de</strong> Luísa, ex-esposa <strong>de</strong> Xilim. Neste aspecto, Portagem e A<br />

Estranha Aventura cruzam-se frequentemente, havendo nas duas obras, recorrência ao<br />

tema da prostituição, da miséria, da promiscuida<strong>de</strong>, da raça e, sobretudo, da injustiça<br />

social; o jovem rapaz é a personagem chamada a enfrentar as vicissitu<strong>de</strong>s da vida,<br />

atribuindo-se à mulher um papel secundário <strong>de</strong> passivida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> conformismo. Em A<br />

Estranha Aventura, Suleima, primeira esposa <strong>de</strong> Omar, e em Portagem, Luísa,<br />

esposa <strong>de</strong> Xilim, <strong>de</strong>svirtuam o papel tradicional <strong>de</strong>stinado à mulher, pervertendo a sua<br />

função básica que era, segundo a mentalida<strong>de</strong> da época, doméstica: cabia à mulher


ealizar trabalhos caseiros, zelando pelos filhos e pelos homens, em geral: os irmãos,<br />

o marido, os primos, os cunhados, etc. 43 .<br />

Este papel predominantemente doméstico da mulher não só se manifesta nas<br />

camadas sociais <strong>de</strong>sfavorecidas enquadradas nas estruturas sociais tradicionais<br />

africanas, mas também nas mulheres pertencentes às famílias europeias, <strong>de</strong> cultura<br />

acentuadamente oci<strong>de</strong>ntal. Numa e noutra socieda<strong>de</strong> paira, ainda que <strong>de</strong> maneira<br />

diferenciada, o espectro da superiorida<strong>de</strong> masculina e da sujeição feminina. Leonor,<br />

esposa <strong>de</strong> João Pedro, no conto “A porta fechada”, <strong>de</strong> A Estranha Aventura, ilustra<br />

isso: uma mulher assumidamente doméstica, dona <strong>de</strong> casa e conformada com tal<br />

situação. Aliás, a própria estrutura da socieda<strong>de</strong> está organizada <strong>de</strong> tal forma que a<br />

mulher se convença <strong>de</strong> que o seu lugar é somente no doce lar. Mas o excesso <strong>de</strong> zelo<br />

<strong>de</strong> Leonor para com o marido, bem como a insegurança emocional manifestada em<br />

<strong>de</strong>sconfianças, em ciúmes infundados e em vigilância, provocam no marido um<br />

gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sgaste emocional. Saturado, João Paulo reage assim:<br />

«Não pensaste, Leonor… Não pensaste que estavas sempre on<strong>de</strong> eu estivesse quando<br />

me encontrava em casa e que, às vezes, eu po<strong>de</strong>ria querer que tu não estivesses ao meu lado,<br />

para que fosse eu próprio a sentir a necessida<strong>de</strong> da tua presença?…(…). Tu e os teus jornais, à<br />

hora da sesta _ porque tu nunca conseguiste dormir a sesta, mas partias do princípio que o teu<br />

<strong>de</strong>ver, como boa e <strong>de</strong>dicada esposa, era <strong>de</strong>itares-te ao meu lado, ro<strong>de</strong>ada pelo teu monte<br />

incrível <strong>de</strong> jornais que folheavas num ranger medonho das páginas, um ranger que me<br />

exasperava os nervos, me roubava o sono, me <strong>de</strong>struía o <strong>de</strong>scanso e que, apesar <strong>de</strong> tudo isso,<br />

43 . Tenha-se em atenção que Ariès faz esta constatação para <strong>de</strong>screver a visão do mundo sobre<br />

a mulher, na Europa Renascentista que, por acaso, encontra paralelo com as actuais socieda<strong>de</strong>s<br />

tradicionais africanas.<br />

Sobre a mulher e a vida doméstica, diz Ariès que a primeira tem «por vocação incarnar a<br />

imagem, enraizada pela Igreja e pela socieda<strong>de</strong> civil, <strong>de</strong> esposa e <strong>de</strong> mãe, em conjunto. A exigência <strong>de</strong><br />

honra, feita <strong>de</strong> contenção, <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> aos seus e ao seu bom nome, resume-a bem; portanto, um<br />

<strong>de</strong>votamento constante a todos aqueles que vivem em comum sob o seu tecto, <strong>de</strong>stina-a a servir, isto é,<br />

a cuidar: alimentar, educar, acarinhar na doença, assistir na morte; é essa a função das mulheres, que a<br />

ela se consagram gratuitamente: não está nos usos, <strong>de</strong> resto, reconhecer a sua tão frequente participação<br />

na produção para melhor as louvar e nos testemunhos reconhecer o seu <strong>de</strong>votamento». (Philpe ARIÈS,<br />

1990: 417). Ao jovem cabia um papel importante no exterior da família, da casa, ou do lar. Xilim,<br />

Omar Sambine, o mufana, a criança (morta) partem em busca <strong>de</strong> glória. «A juventu<strong>de</strong> era uma fase do<br />

ciclo <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s que o indivíduo tinha e ainda tem perante a comunida<strong>de</strong>, uma ida<strong>de</strong> marcada<br />

<strong>de</strong> rebeldia e inquietação, que a comunida<strong>de</strong> sanciona. Jovens eram aqueles que podiam correr riscos<br />

porque não tinham a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma mulher e filhos; era com eles que se contava para<br />

aguentarem o peso das responsabilida<strong>de</strong>s e das <strong>de</strong>spesas familiares». A juventu<strong>de</strong> terminava não com a<br />

ida<strong>de</strong>, mas com o assumir <strong>de</strong> novas responsabilida<strong>de</strong>s perante a comunida<strong>de</strong>, as <strong>de</strong> homem casado e <strong>de</strong><br />

família. (Philipe ARIÈS, 1990 vol. III: 417)


era o teu doce embalo, o entretenimento que po<strong>de</strong>rias ter ficado a fazer na sala, mas que<br />

tinhas forçosamente <strong>de</strong> arranjar ali na cama, porque eu ia dormir a sesta e tu, como esposa fiel<br />

e cumpridora, tinhas <strong>de</strong> recolher-te ao quarto comigo…(…).» (E.A.: 105-106)<br />

A citação dá uma visão panorâmica do quanto a própria mulher contribuía,<br />

neste caso, para a sua inferiorização. Aliás, nota-se que a intenção <strong>de</strong> Leonor não é, <strong>de</strong><br />

forma alguma, irritar o marido, mas a sua situação <strong>de</strong> clausura permanente em casa<br />

faz com que veja, no momento <strong>de</strong> regresso do marido, a altura i<strong>de</strong>al para se libertar e<br />

comunicar intimamente com o seu querido homem, não obstante o facto <strong>de</strong> ele, às<br />

vezes regressar ( do serviço) a casa extremamente cansado. Provavelmente se ela<br />

também trabalhasse, dividiria as suas atenções não só entre o lar e o serviço, mas<br />

também entre o círculo <strong>de</strong> amigos e <strong>de</strong> colegas <strong>de</strong> serviço.<br />

A mesma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> domesticida<strong>de</strong> é constatada na patroa do rapaz, em «O<br />

sonho do Mufana» on<strong>de</strong> ela se limita a controlar e a gerir os trabalhos dos seus<br />

criados. Num discurso indirecto livre, o narrador intercala a sua fala com a da dona <strong>de</strong><br />

casa e proporciona um discurso híbrido (da personagem e <strong>de</strong>le) on<strong>de</strong>, não obstante o<br />

carácter narrativo do mesmo, sobressai a impressão <strong>de</strong> se estar perante o discurso<br />

directo, patenteado pelas marcas temporais do Presente do Indicativo, das interjeições,<br />

das frases exclamativas e dos <strong>de</strong>ícticos espácio-temporais:<br />

«Os olhos da senhora estão presos nos cacos do bule <strong>de</strong> vidro. Estúpido que se farta,<br />

aquele mufana! Passa a vida sempre a olhar para ontem, a sonhar acordado. Sempre na lua, o<br />

estafermo. O que foi que lhe partiu na outra semana? Ah! uma chávena. E noutro dia, um<br />

pires. Ai mas agora o bule não lhe perdoa, não.» (E.A.: 191)<br />

Veja-se a forma irónica e satírica com que a senhora <strong>de</strong>screve o<br />

comportamento do mufana: “sempre a olhar para ontem, a sonhar acordado” e o modo<br />

peculiar como se entrelaçam os diálogos entre o narrador e a patroa do mufana.<br />

Em relação a Portagem, é curioso notar a hipocrisia em que algumas relações<br />

conjugais se formavam. Como, em geral, nas colónias, no princípio do seu<br />

povoamento houvesse mais homens que mulheres da terra (Metrópole), a


contingência do momento levava a que os colonos se vissem na encruzilhada <strong>de</strong> terem<br />

que se envolver sexualmente com as negras nativas. Tais relações ocasionais, algumas<br />

vezes, provocavam situações caricatas quando esses mesmos colonos tinham que,<br />

posteriormente, receber as esposas legítimas vindas da Metrópole. As negras nativas,<br />

com as quais as relações eram geralmente ocasionais, ou <strong>de</strong> infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ou até<br />

adúlteras e cujos filhos daí nascidos eram consi<strong>de</strong>rados ilegítimos e <strong>de</strong> pais<br />

incógnitos, eram preteridas com a vinda daquelas. Assim cresciam muitos rapazes e<br />

raparigas mestiços, com pais incógnitos, o que obrigava a um consertar clan<strong>de</strong>stino <strong>de</strong><br />

posições entre as mulheres negras e os homens brancos adúlteros (ou não), para<br />

camuflar e abafar a existência <strong>de</strong> filhos fora do casamento oficial. Sendo, o patrão<br />

Campos, o orquestrador da trama, Xilim, Uhulamo e Katia personificam esse tipo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong>, sendo estes vítimas. Neste contexto, o filho ilegítimo Xilim não é<br />

conveniente que seja reconhecido pelo patrão Campos (não vá tal situação fazer-lhe<br />

per<strong>de</strong>r o prestígio e a honra, perante a mulher recém-chegada e perante os<br />

semelhantes). Entretanto, Xilim tem um acolhimento afectivo muito querido por parte<br />

da mãe, apesar das limitações <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong>sta e das privações. Também é aceite e<br />

integrado na família materna como parte integrante e como membro <strong>de</strong> pleno direito<br />

<strong>de</strong>ssa linhagem materna, como é característico nas socieda<strong>de</strong>s africanas. Nas tradições<br />

africanas, «os filhos ilegítimos parecem ter um lugar mais seguro nas socieda<strong>de</strong>s<br />

organizadas sobre princípios <strong>de</strong> linhagem do que nas que se <strong>de</strong>finem em torno do lar.<br />

Nos povos matrilineares, po<strong>de</strong>m acomodar-se, sem gran<strong>de</strong>s problemas na tribo da<br />

mãe. Mesmo nas populações patrilineares, é mais a paternida<strong>de</strong> social do que a<br />

paternida<strong>de</strong> física que <strong>de</strong>termina a norma reguladora do estatuto.» 44<br />

44 . James CASEY, 1990: 14


Aliás, Xilim, rejeitado pelo pai, não po<strong>de</strong>ria ter melhor enquadramento social,<br />

do que o que teve na linhagem da mãe. Esta negação <strong>de</strong> paternida<strong>de</strong> por parte <strong>de</strong><br />

patrão permite-nos fazer novamente uma reflexão acerca das relações <strong>de</strong><br />

consanguinida<strong>de</strong> nas obras do corpus. Tanto em Portagem, como em A Estranha<br />

Aventura, não se investe tanto nas figuras <strong>de</strong> irmãos consanguíneos que só aparecem a<br />

espaços como personagens simplesmente aludidas ou como figurantes. E, no entanto,<br />

um irmão consanguíneo é importante nas socieda<strong>de</strong>s tradicionais do Sul <strong>de</strong><br />

Moçambique: em situações especiais (por exemplo, <strong>de</strong> morte), o irmão mais velho<br />

po<strong>de</strong> assumir um papel <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança na família. Nestes casos, substituto do pai e do<br />

marido, o irmão mais velho é o guia e o iniciador, um mo<strong>de</strong>lo tranquilizante para a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> masculina em crise. Enquanto isso, a irmã mais velha, protectora, <strong>de</strong>dica-<br />

se <strong>de</strong> corpo e alma à educação e à promoção do irmão mais novo.<br />

A diferença <strong>de</strong> sexo cria, entre irmãos e irmãs, uma relação complexa, <strong>de</strong> certa<br />

forma iniciática: a primeira forma <strong>de</strong> relação com o outro sexo. Profundamente<br />

recalcadas pelos interditos religiosos e sociais, estas relações raramente se resolvem<br />

em sexualida<strong>de</strong> propriamente dita, mas po<strong>de</strong>m parecer muito próximas <strong>de</strong> relações<br />

amorosas e são seguramente marcadas por relações <strong>de</strong> carinho e <strong>de</strong> afectivida<strong>de</strong>.<br />

A figura dos avós merece atenção quando se fala <strong>de</strong> família africana<br />

tradicional. Nas socieda<strong>de</strong>s tradicionais africanas, o orgulho e a reverência pelos<br />

passados e antepassados é um meio <strong>de</strong> manter a pureza e a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> para com as<br />

tradições. Quando se fala <strong>de</strong> família, nessas socieda<strong>de</strong>s, dá-se especial <strong>de</strong>staque aos<br />

avôs como guardas da memória passada e como educadores das novas gerações,<br />

através <strong>de</strong> ensinamentos dos usos e costumes da tribo, preferencialmente nas noites <strong>de</strong><br />

luar, à volta da fogueira, sempre através <strong>de</strong> manifestações culturais e poéticas orais<br />

(contos, fábulas, provérbios, etc.). Importância ainda maior é dada aos mortos a quem


se reconhece o papel <strong>de</strong> protectores dos vivos e da perseguição dos espíritos malignos.<br />

Têm ainda a função <strong>de</strong> vigiar os vivos nas suas activida<strong>de</strong>s, fundamentalmente, no<br />

seguimento e no cumprimento da tradição. Xilim, o velho Justino, Katia, vovó Alima,<br />

em Portagem, são vítimas dos males cometidos pelos seus progenitores (o<br />

envolvimento com os brancos) e a paga é perpétua. O velho Justino, já louco, é a<br />

ilustração disso:<br />

«(…) Para o velho Justino, é a presença errante <strong>de</strong> Deus que conhece os seus pecados<br />

(…). É ali que Justino se escon<strong>de</strong> todas as noites, porque <strong>de</strong> dia ele anda por caminhos que já<br />

não são frequentados, sem saber para on<strong>de</strong> ir. Quer ir embora, mas em toda a parte em que<br />

ele se encontra, aparece aquela gente que faz palhaçadas do outro mundo. Depois <strong>de</strong><br />

escurecer, as sombras perseguem-no e o velho afasta-se <strong>de</strong>las, trôpego e <strong>de</strong>sfigurado (…).»<br />

(Po.: 77-78)<br />

A loucura <strong>de</strong> Justino é a manifestação dos seus próprios pecados e dos seus<br />

antepassados. A vida errante <strong>de</strong> Xilim po<strong>de</strong> ser posta em paralelo com o estado<br />

psíquico <strong>de</strong>ste velho, na medida em que é também uma anormalida<strong>de</strong> (pre<strong>de</strong>stinada<br />

pelo passado da mãe Kati que se amantizou com o patrão Campos), não no plano<br />

psíquico, mas no sócio-económico e até no racial. A anormalida<strong>de</strong>, ao longo dos<br />

tempos, veio a tornar-se em normalida<strong>de</strong>, na medida em que se manteve inalterável<br />

esse <strong>de</strong>sequilíbrio social ao longo <strong>de</strong> muitas gerações.<br />

Entretanto, nem sempre esse mundo tradicional é um mar <strong>de</strong> tristezas;<br />

tem também as sua ocasiões belas, <strong>de</strong> encanto e <strong>de</strong> poesia. Isso acontece quando se<br />

revivem acontecimentos mágicos e míticos passados e quando se recordam<br />

antepassados ou pessoas com eles relacionados (os mortos), através <strong>de</strong> histórias<br />

fantásticas, <strong>de</strong> lendas contadas pelas anciãs aos mais novos, todas carregadas <strong>de</strong> um<br />

forte teor educativo e moral. É o caso da lenda que ficou, após a estranha morte <strong>de</strong><br />

Omar Sambine no mar:<br />

«E dizem as negras velhas que, nas noites quentes <strong>de</strong> verão, quando o luar passeia<br />

pela praia, as brancas tranças <strong>de</strong>sfeitas por entre os esguios <strong>de</strong>dos das palmeiras, ao longe, um<br />

estranho barco sem fundo assoma das ondas e voga, mansamente, docemente, à luz das<br />

estrelas.


E quando as negras velhas contam a lenda, tão velha como elas, os negrinhos tenros<br />

(…) ficam quietos, imóveis, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s olhos aterrados, olhando as águas que numa noite<br />

levaram para si, sófregas <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> perdão, o corpo maravilhosamente nu <strong>de</strong> Omar<br />

Sambine.» (E.A.: 127)<br />

A presença dos avôs em casa dos filhos já casados e com famílias, frequente<br />

no mundo rural e suburbano, entre as camadas sociais menos favorecidas, on<strong>de</strong><br />

aqueles <strong>de</strong>sempenham um papel <strong>de</strong> certa relevância na educação das novas gerações e<br />

na ligação com o passado, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> levantar alguns problemas quando, por<br />

exemplo, já não po<strong>de</strong>m trabalhar. Talvez por isso, essa presença seja «muito mais rara<br />

no meio urbano, a não ser temporariamente, partilhando os filhos os alojamentos dos<br />

seus velhos <strong>de</strong>vido à exiguida<strong>de</strong> das habitações», e também por causa do ritmo muito<br />

acelerado da vida urbana 45 .<br />

Conforme se situe no mundo urbano ou no rural, a importância dos avôs é<br />

variável: apaga-se ligeiramente nas cida<strong>de</strong>s e até é vista como um fardo; ganha uma<br />

importância vital no mundo rural ou suburbano, é uma referência obrigatória e até um<br />

símbolo <strong>de</strong> sabedoria da tribo. 46<br />

45 . Philippe ARIÈS, 1990, vol.IV: 172<br />

46 . «Os avós intervêm <strong>de</strong> forma mais ou menos pontual conforme a distância a que vivem.<br />

Habitualmente sem encargos das funções educativas, po<strong>de</strong>m dar-se ao luxo <strong>de</strong> serem doces para com<br />

os netos, <strong>de</strong> serem o “Avozinho”, a “Avozinha”. Po<strong>de</strong>m substituir os pais, mortos ou afastados. São<br />

personagens quase míticas e uma espécie <strong>de</strong> esboço <strong>de</strong> uma genealogia para os netos. Além disso, o<br />

papel real dos avós na transmissão dos saberes e das tradições não <strong>de</strong>ve ser subestimado. Neste século<br />

XX <strong>de</strong> turbulência, a <strong>de</strong>scrição dos acontecimentos históricos, míticos e sobre a comunida<strong>de</strong>, da forma<br />

como foram vividos pelos mais velhos, constitui a forma <strong>de</strong> privatização da memória, muitas vezes<br />

feminina, dada a maior longevida<strong>de</strong> das avós, casadas também mais novas.» (Philipe ARIÈS, 1990,<br />

vol. IV: 173)


. A família alargada<br />

Conforme aponta Ariès, nas fórmulas vulgarizadas evocando os próximos, os<br />

amigos são sempre citados a seguir aos parentes, sem nunca com eles se<br />

i<strong>de</strong>ntificarem. Cada família po<strong>de</strong> contar com um número estável <strong>de</strong> amigos que<br />

completa e consolida o grupo <strong>de</strong> sangue e da aliança. Entre estes amigos, não são por<br />

vezes mais do que um punhado aqueles cuja intimida<strong>de</strong> permite associá-los aos<br />

parentes. 47<br />

O quadro dado pelas personagens que são companheiras ou amigas <strong>de</strong> Xilim é<br />

uma espécie <strong>de</strong> redundância pois, ao serem caracterizadas, reforça-se o conhecimento<br />

e a compreensão do próprio Xilim; é como se <strong>de</strong>sempenhassem uma função<br />

atributiva, servindo não só para a sua qualificação e para a sua <strong>de</strong>terminação, mas<br />

sobretudo, para a sua caracterização. Quando se persegue em Portagem, por exemplo,<br />

a vida do negro fogareiro Jaime, veterano nos navios e nas viagens para outras terras,<br />

encontra-se no seu percurso uma boa parte da vida errante <strong>de</strong> Xilim. Aliás, aquando<br />

da partida <strong>de</strong> Xilim para a cida<strong>de</strong> longínqua, este conheceu, no cargueiro aon<strong>de</strong> se<br />

empregou como moço <strong>de</strong> limpeza, o negro Jaime. Unidos por um passado comum, <strong>de</strong><br />

sofrimento e <strong>de</strong> miséria, partilham juntos as tristes recordações das angústias da vida.<br />

Jaime, coinci<strong>de</strong>ntemente, também teve uma infância aventureira e sacrificada nos<br />

subúrbios da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, tal como Xilim, no Marandal. A sua mãe também era<br />

prostituta e ele próprio nunca teve uma companheira fixa. Jaime é o exemplo do<br />

fracasso e do insucesso na vida. Este quadro é tirado a papel químico do que é e foi<br />

Xilim. À semelhança do amigo Xilim, o negro Jaime teve uma infância perturbada,<br />

igual a <strong>de</strong> muitos meninos do bairro suburbano <strong>de</strong> Marandal: entre a pobreza, a<br />

47 . Philippe ARIÈS, 1990, vol. III: 169


miséria e o alcoolismo. A cantina da Casa do Caju era o local da promiscuida<strong>de</strong> e do<br />

álcool, frequentado por Marcelino e Rafael, trabalhadores e amigos <strong>de</strong> Xilim na<br />

cida<strong>de</strong>. A situação sócio-económica <strong>de</strong>stes assemelhava-se à <strong>de</strong> Xilim.<br />

Aspecto interessante e elucidativo é a distinção entre o grupo <strong>de</strong> amigos que se<br />

juntou a Xilim e o apoiou no dia do seu julgamento e o representado pelos que<br />

intervieram no julgamento, o Juiz, o Delegado do Ministério Público e o Dr. Ramires,<br />

Defensor Oficioso <strong>de</strong> Xilim e <strong>de</strong> todos os pobres. É relevante notar que, mesmo nas<br />

ocasiões <strong>de</strong> aflicção, os amigos <strong>de</strong> Xilim sempre estiveram com ele, prestando-lhe a<br />

sua solidarieda<strong>de</strong>, ainda que <strong>de</strong> forma meramente moral, revelando assim um gran<strong>de</strong><br />

sentido <strong>de</strong> camaradagem, não obstante alguma hipocrisia e cobardia <strong>de</strong> alguns falsos-<br />

amigos, como o velho Justino. Este foi a causa involuntária do crime <strong>de</strong> Xilim, por ter<br />

facilitado o encontro <strong>de</strong> Luísa, esposa <strong>de</strong> Xilim, com o Sr. Esteves. A sua ida ao<br />

julgamento revela uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> arrependimento e <strong>de</strong> remorsos pela sua<br />

<strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong> moral, o que , aliás, veio a pagar <strong>de</strong> outro modo através da perda <strong>de</strong><br />

emprego e da loucura.<br />

Entretanto, a amiza<strong>de</strong> mais sólida <strong>de</strong> Xilim foi com o mulato Juza que, para<br />

além <strong>de</strong> lhe ter oferecido emprego na sua gamboa, por tê-lo visto na <strong>de</strong>sgraça, foi<br />

também seu testemunha <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, manifestando um forte espírito <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong> humanismo.<br />

No conto «A Estranha Aventura» po<strong>de</strong>-se dizer que há um outro tipo <strong>de</strong><br />

amiza<strong>de</strong>, melhor ainda, po<strong>de</strong>-se constatar que faixas etárias <strong>de</strong>terminaram, <strong>de</strong> certo<br />

modo, as amiza<strong>de</strong>s, tal como acontece com o estatuto sócio-profissional, o sexo e até<br />

a raça. Nesse conto, os protagonistas são adolescentes ainda não conscientes das<br />

diferenças entre as camadas sociais em que, eventualmente, se enquadram os seus<br />

familiares. Há uma relação <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> harmoniosa entre os rapazes e as raparigas <strong>de</strong>


níveis e <strong>de</strong> estratos sociais diferentes, sendo o critério natural para a unida<strong>de</strong> do grupo<br />

simplesmente a ida<strong>de</strong>: a pretita Chirinda, a Ana Luísa, o mulato José, o Pedro, etc.,<br />

são o exemplo disso. Curioso é o facto <strong>de</strong> o narrador, que também é um dos<br />

componentes do grupo juvenil <strong>de</strong> amigos, realçar os adjectivos pretita e mulato.<br />

Demonstra claramente a intenção <strong>de</strong> dar a ver uma socieda<strong>de</strong> compósita, harmoniosa,<br />

i<strong>de</strong>al, <strong>de</strong> relações que uniam a pequenada, que não olhava à raça e a outro tipo <strong>de</strong><br />

diferenças. Contudo, permite também perceber que, na verda<strong>de</strong>, o problema da cor<br />

existia, mas que não era motivo <strong>de</strong> discriminação, nem <strong>de</strong> marginalização entre a<br />

rapaziada. O quadro juvenil sugere a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> existência <strong>de</strong> concórdia e <strong>de</strong><br />

camaradagem entre seres humanos <strong>de</strong> diferentes raças e etnias, fazendo valer os<br />

gran<strong>de</strong>s i<strong>de</strong>ais da dignida<strong>de</strong> humana como a Igualda<strong>de</strong>, a Fraternida<strong>de</strong> e a Liberda<strong>de</strong>.<br />

A amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste grupo juvenil estendia-se aos cães, aos bichos e até à própria<br />

natureza. Esta convivialida<strong>de</strong> da rapaziada, com tudo e com todos, procura reflectir<br />

um universo social <strong>de</strong> harmonia entre os homens, os bichos e a natureza, tal como<br />

Deus o concebeu. Veja-se, a propósito uma passagem como: «uma brisa larga e boa<br />

vinha <strong>de</strong> lá do fundo do horizonte, dos lados da Costa do Sol e, maternalmente,<br />

afagava os homens, as crianças e os bichos.» (E.A.: 20)<br />

O advérbio maternalmente situa a brisa ao nível dos afectos humanos<br />

femininos, assim como o verbo afagar sugere o carinho, a doçura, a calmia com que<br />

esse afecto se manifestava, que não <strong>de</strong>ve diferir do comportamento das crianças, umas<br />

em relação às outras. Entre os amigos das crianças, uns são reais, outros imaginários e<br />

<strong>de</strong> sonhos, atitu<strong>de</strong> típica daquela faixa etária. Em relação aos amigos imaginários,<br />

especial atenção <strong>de</strong>dicava o grupo aos índios, aos bandidos e aos tubarões,<br />

personagens fictícias, actualizadas ou convocadas nas brinca<strong>de</strong>iras aos polícias-e-<br />

ladrões, aos cow-boys, ou vistas e conhecidas através <strong>de</strong> leituras <strong>de</strong> romances <strong>de</strong>


aventura, <strong>de</strong> viagens à lua, etc.. Esta especial curiosida<strong>de</strong> pela aventura terá sido<br />

provocada pelo aparecimento misterioso <strong>de</strong> um homem:<br />

«Mansamente a Ana Luísa sussurrou aquilo mesmo que, afinal, se arreigara na alma<br />

<strong>de</strong> todos nós: que o homem não era <strong>de</strong>ste mundo. Eu andava, nessa altura, lembro-me bem, a<br />

ler a «Viagem à Lua», <strong>de</strong> Júlio Verne. Era isso: o homem viera do espaço, numa madrugada<br />

raiada <strong>de</strong> ouro, montando a sua bela nave prateada.» (E.A.: 30)<br />

A curiosida<strong>de</strong> em relação ao homem misterioso foi o complemento do <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> aventura do grupo, <strong>de</strong>sejo que se manifestava nas brinca<strong>de</strong>iras diárias:<br />

«Ao fim <strong>de</strong> um dia inteiro <strong>de</strong> viagens, assaltavam-nos <strong>de</strong>sejos súbitos <strong>de</strong> combates<br />

sangrentos. Entrincheirávamo-nos, então, nos fortins imaginários, porque eles, os índios, aí<br />

vinham(…) porque os índios ali estavam, para as (raparigas) raptar, para as amarrar ao poste<br />

da tortura, para as escalpelizar. Não era assim que o Emílio Salgari e o Júlio Verne nos<br />

contavam?» (E.A.: 22)<br />

Veja-se como o narrador encurta a distância entre os adolescentes e os autores<br />

das obras <strong>de</strong> aventura: dá a sensação <strong>de</strong> que Salgari e Verne contavam essas histórias<br />

<strong>de</strong> aventura oralmente, na presença dos garotos. A forma como são referidos os dois<br />

autores, utilizando o artigo <strong>de</strong>finido (o Emílio Salgari, o Júlio Verne) revela uma<br />

acentuada aproximação entre o narrador e eles e contribui, ainda, para a aproximação<br />

entre as personagens adolescentes e o narrador, bem como entre aquelas e os escritors<br />

referidos. 48<br />

As histórias <strong>de</strong> romances <strong>de</strong> aventuras, <strong>de</strong> fantasias e até com extra-terrestres,<br />

estabelecem uma ligação directa com as micro-histórias contidas no conto, que<br />

também encerram situações idênticas; é o caso da <strong>de</strong>scoberta do gato, do<br />

aparecimento do homem estranho. As próprias brinca<strong>de</strong>iras da rapaziada constituem a<br />

encenação <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> aventura e assim se legitima a leitura <strong>de</strong> uma(s) história(s)<br />

a partir <strong>de</strong> outras. Na verda<strong>de</strong>, as histórias <strong>de</strong> Verne e <strong>de</strong> Salgari são autênticas<br />

48 . «O emprego do artigo <strong>de</strong>finido com os nomes próprios é usual no português <strong>de</strong> Portugal. O<br />

artigo serve para ro<strong>de</strong>ar o nome duma atmosfera afectiva e familiar que é muito grata à alma lusitana<br />

(…).<br />

Com os apelidos <strong>de</strong>nota igualmente intimida<strong>de</strong> e por isso se utiliza <strong>de</strong> preferência para os<br />

contemporâneos, ainda que, aplicados a artistas ou figuras históricas do passado, possa significar um<br />

profundo conhecimento das suas obras e da sua personalida<strong>de</strong>.» (Pilar Vasques CUESTA, et alli, 1971:<br />

463)


metáforas das histórias do gato e até do homem misterioso; as brinca<strong>de</strong>iras dos<br />

garotos nas matas são a encenação <strong>de</strong>ssas metáforas, estabelecendo-se assim um ciclo<br />

<strong>de</strong> inter-textualida<strong>de</strong> e até <strong>de</strong> intra-textualida<strong>de</strong>.<br />

Refira-se, a título <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> que a história da <strong>de</strong>scoberta do gato encerra,<br />

entretanto, alguns tabus. Provavelmente o gato será um animal misterioso em muitas<br />

culturas, daí o facto <strong>de</strong>, por exemplo, na nossa tradição popular ser consi<strong>de</strong>rado um<br />

animal com sete vidas. 49<br />

À semelhança da gata, a história do homem estranho, que se tornou também<br />

amigo da rapaziada, alterou a vida do grupo dos cinco. Valendo-se <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong><br />

intra-textualida<strong>de</strong>, o que permite contar uma história <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> outra(s), o homem<br />

estranho conta aos meninos a sua estranha história do outro mundo, «esse mundo <strong>de</strong><br />

beleza e harmonia», «<strong>de</strong> aleluia» e <strong>de</strong> paz.» (E.A.: 29)<br />

Em classes sociais mais elevadas, se é verda<strong>de</strong> que se tem a manifestação <strong>de</strong><br />

amiza<strong>de</strong>s puras, não é menos verda<strong>de</strong> que, preferencialmente, as amiza<strong>de</strong>s se<br />

estabelecem em função da posição sócio-profissional e <strong>de</strong> interesses. Repare-se, a<br />

título <strong>de</strong> exemplo, na relação <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, misturada com interesses comerciais e até<br />

amorosos que encontramos em Portagem. O Sr. Santos, homem <strong>de</strong> negócios e<br />

prestigiado, a viver na cida<strong>de</strong>, longe dos subúrbios <strong>de</strong> Marandal, conhecera o<br />

cantineiro Esteves numa altura em que o negócio <strong>de</strong>ste ia à falência. Propôs-lhe,<br />

49 . Na cultura tradicional do Sul <strong>de</strong> Moçambique, o gato não só é visto como um bicho<br />

misterioso, mas também como altamente supersticioso. Na verda<strong>de</strong>, não é propriamente o gato que é<br />

visto como tal, mas pensa-se que um feiticeiro é capaz <strong>de</strong> fazer transportar o seu feitiço, os espíritos<br />

malignos, através do gato, para uma <strong>de</strong>terminada família a quem se queira fazer mal. A criação do gato<br />

numa família doméstica reveste-se <strong>de</strong> maiores cautelas, não vá a vazinhança aproveitar-se das suas<br />

escapa<strong>de</strong>las para lhe passar súbita e subtilmente um feitiço. Em princípio, <strong>de</strong> noite, o gato não <strong>de</strong>ve<br />

permanecer <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, pois diz-se que é traiçoeiro, po<strong>de</strong>ndo, na calada da noite, atacar o seu dono,<br />

ou confundir o sexo dos rapazinhos com o rato, seu alimento preferido. Entretanto, o gato também tem<br />

uma função utilitária <strong>de</strong> dia, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa: é um bom caçador <strong>de</strong> ratos, ajudando assim a minorar o<br />

seu efeito <strong>de</strong>vastador. Para o caso <strong>de</strong> gatos estranhos que aparecem à noite a miar nas chapas <strong>de</strong> zinco<br />

que cobrem as casas rurais, estes são vistos como prenunciadores e anunciadores <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sgraça, <strong>de</strong><br />

um azar que se avizinha.


então, a activida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contrabando que o Esteves prontamente aceitou, na certeza <strong>de</strong><br />

que haveria <strong>de</strong> recuperar o mais <strong>de</strong>pressa possível da sua crise económica. António<br />

Santos fora também amigo do Sr. Campos, ex-proprietário das minas do Marandal,<br />

em cujo <strong>de</strong>sabamento per<strong>de</strong>ram a vida muitos mineiros. Tal situação levou à morte do<br />

senhor Campos, tendo ficado a esposa e a filha Maria Helena entregues à sua sorte. O<br />

Sr. Santos, após a morte do amigo, assumiu-se como o protector da viúva e da<br />

filhinha. Foi precisamente nessa base que se tornou o elo <strong>de</strong> ligação (por<br />

apadrinhamento) entre o Sr. Esteves, já velho e sem mulher, e a enlutada família<br />

Campos, sem recursos, nem gran<strong>de</strong>s meios <strong>de</strong> sobrevivência. É no meio <strong>de</strong>ste<br />

conhecimento programado e interesseiro que Maria Helena, filha do falecido Campos,<br />

casa com o velho Esteves, com a conivência e o consentimento da mãe, que via nesse<br />

casamento a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> salvação, sem olhar a meios para atingir os seus<br />

objectivos:<br />

«(Maria Helena) partira para a cida<strong>de</strong> com a mãe, rejeitara vários rapazes que<br />

tentaram namorá-la e, em casa <strong>de</strong> António Santos, conhecera o cantineiro. Aceitara a sugestão<br />

da mãe que estava ansiosa por que ela se casasse para regressar à sua al<strong>de</strong>ia. Sabia que este<br />

casamento, para ser coerente com o seu código, era tudo quanto <strong>de</strong>veria ambicionar uma<br />

mulher(…).» (Po.: 82-83)<br />

Concedida como relação <strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong> perfeita a dois, a amiza<strong>de</strong> é mais um<br />

tipo <strong>de</strong> relação e po<strong>de</strong>rá afirmar-se em vários espaços exteriores à família que<br />

estabelecem com ela uma ruptura temporária ou durável: a escola, os grupos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>,<br />

o emprego, etc.. A amiza<strong>de</strong> implica, <strong>de</strong> certo modo, liberda<strong>de</strong> e privacida<strong>de</strong>. A<br />

amiza<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ter também implicações políticas. No conto «A Trovoada» o mulato<br />

mecânico (não nomeado), ainda que censurado pela mulher, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia uma série <strong>de</strong><br />

encontros clan<strong>de</strong>stinos com um grupo <strong>de</strong> amigos, numa casa próxima da sua, em prol<br />

da <strong>de</strong>fesa dos direitos <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>, da justiça social e do respeito pelo próximo.<br />

Ainda que essas reuniões não pareçam po<strong>de</strong>r produzir os efeitos <strong>de</strong>sejáveis a curto


prazo, o mulato acalenta uma esperança que se manifestará na figura do futuro filho.<br />

Esse simboliza o iluminar, o brilhar da trovoada que dá novas luzes e, ao mesmo<br />

tempo, constitui o grito <strong>de</strong> revolta e um <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> consciências por parte do mulato<br />

discriminado e dos seus amigos, razão das reuniões secretas. Mediante a interrogativa<br />

suspeição da mulher perante as obscuras movimentações do marido e dos amigos, o<br />

mulato mecânico respon<strong>de</strong>, num discurso marcadamente coloquial e <strong>de</strong>nunciador da<br />

sua mo<strong>de</strong>sta condição social:<br />

«_ Oh! Nada! _ fez ele _ Só qui a gente reúne na casa do Aníbal. Eu, o Luís, o César.<br />

Tem mais duas pessoas. A gente gosta <strong>de</strong> si juntar, <strong>de</strong> ler, os livros, conversar. É um gran<strong>de</strong><br />

rapaz, esse Aníbal, sabes?<br />

_ Tenho medo das conversas <strong>de</strong>le para ti…<br />

_ Medo, medo, o quê!…Faz mal a gente falar das coisas?<br />

_ Ele está sempre contra os brancos….» (E.A:. 171)<br />

Este grupo <strong>de</strong> amigos reunia-se clan<strong>de</strong>stinamente, pois o sistema político<br />

vigente privava-os dos seus direitos fundamentais e negava-lhes a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

expressão e <strong>de</strong> livre associação. Não era como nas reuniões <strong>de</strong> carácter <strong>de</strong>mocrático<br />

em que os membros do povo ou os seus representantes podiam exprimir livremente o<br />

seu pensamento e <strong>de</strong>liberar sobre assuntos comuns. Com efeito, trata-se <strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate<br />

a propósito <strong>de</strong> interesses colectivos, mas ele ocorre na clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> e à porta<br />

fechada. Vê-se como se passa do íntimo, envolvido num afecto, fruto <strong>de</strong> convivências,<br />

ao clan<strong>de</strong>stino e, portanto, ao suspeito aos olhos das forças exteriores que o po<strong>de</strong>r<br />

público <strong>de</strong> regulação censura. Na conflituosa relação que assim se estabelece, o<br />

privado surge bem contido num espaço protegido, num abrigo. Assim, «a área da vida<br />

privada seria o espaço doméstico circunscrito por um muro, tal como o do claustro<br />

(…). A vida privada é, portanto, vida <strong>de</strong> família, não individual mas convivial e<br />

baseada na confiança mútua (e na amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong> “estranhos” à família).» 50<br />

50 . Philipe ARIÈS, 1990, vol.II: 22-23


No conto «Jangô», a vizinhança entre a miudagem esfomeada, a condição<br />

paupérrima das suas famílias e o objectivo comum (roubo) em face das aventuras,<br />

constituem as razões básicas para que este grupo <strong>de</strong> amigos e <strong>de</strong> vizinhos forme um<br />

bando. Por causa da fome, o bando protagoniza um roubo na cantina do Issufo. Há<br />

uma mistura entre a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> aventura, típica da ida<strong>de</strong>, e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> satisfação<br />

da fome, predominando, logicamente, esta última. O homem necessitado não tem<br />

sensibilida<strong>de</strong> para o belo, o estético, o ético, o moral e mesmo o literário. As mulheres<br />

e os homens indígenas progenitores dos garotos completam o quadro suburbano da<br />

miséria: a cantina do Issufo é o ponto <strong>de</strong> encontro, on<strong>de</strong> se manifestam vonta<strong>de</strong>s e as<br />

incapacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> adquirir objectos <strong>de</strong> ornamentação, <strong>de</strong> beleza e <strong>de</strong> adorno.<br />

No mundo urbano, as relações <strong>de</strong> vizinhança são mais discretas e os momentos<br />

<strong>de</strong> convívio ocorrem mais entre amigos do que entre vizinhos e em espaços públicos<br />

como o cinema, o teatro, o café, etc., sendo a casa o lugar privado por excelência.<br />

Entre os adolescentes, a família nuclear e a escola são basicamente as únicas<br />

instituições responsáveis pela socialização das crianças. A família e a escola fazem<br />

parte do mesmo processo, que é o <strong>de</strong> educar os jovens para uma socieda<strong>de</strong> cada vez<br />

mais egoísta e virada para a concorrência e para a competitivida<strong>de</strong>, em que o estatuto<br />

na socieda<strong>de</strong> tem que ser conseguido, conquistado, se não se tiver o privilégio <strong>de</strong> o ter<br />

por herança. Repare-se que Marianita, no conto «Os olhos <strong>de</strong> Marianita» não tem<br />

propriamente amigos na vizinhança, somente colegas <strong>de</strong> escola, com quem não quer<br />

partilhar a sua estranha novida<strong>de</strong>, pois «não <strong>de</strong>ra resposta a ninguém nem mesmo à<br />

Joaninha, à sua parceira, à sua melhor amiga (na escola). A nenhuma confiara a sua<br />

gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong>:<br />

«Ao recreio <strong>de</strong>ixara-se ficar a um canto da varanda (…).» (E.A.: 51-52)


A situação mais caricata é a do menino (no conto “O moleque do violino”)<br />

que era filho único e não tinha amigos porque os pais achavam que todos os rapazes<br />

das redon<strong>de</strong>zas diziam palavrões que um menino bem educado, como era o filho, não<br />

<strong>de</strong>veria repetir. Os próprios pais encorajavam, assim, o isolamento do menino, em<br />

nome da boa educação, reflectindo a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que fora <strong>de</strong> casa reinava o império do<br />

mal, enquanto em casa, o ambiente era consi<strong>de</strong>rado paradisíaco.<br />

Na socieda<strong>de</strong> tradicional africana não há uma separação nítida entre o espaço<br />

privado e o espaço público, pois as pessoas pertencem à comunida<strong>de</strong>, que lhes confere<br />

um papel, conforme a ida<strong>de</strong> e a responsabilida<strong>de</strong> social.<br />

Tanto no campo como em zonas suburbanas e urbanas (on<strong>de</strong> vivem classes<br />

privilegiadas) a vizinhança <strong>de</strong>sempenha importante papel, funcionando, por vezes<br />

como, <strong>de</strong> facto, parte da família, tal, aliás, como acontece com os criados. Isso não<br />

impe<strong>de</strong> que criados e vizinhos sejam, também, um potencial perigo. Ariès tem sobre<br />

isso uma interessante observação:<br />

«Criados e vizinhos servem, ajudam a família; mas a sua presença e o seu olhar<br />

incomodam e ameaçam a intimida<strong>de</strong>. Deles o serviço, face a eles a <strong>de</strong>sconfiança. A<br />

vizinhança é simultaneamente cúmplice e hostil.<br />

Os vizinhos estabelecem um código <strong>de</strong> conveniências da casa e da rua, uma norma<br />

perante a qual é preciso vergar-se para se ser admitido, sendo a tendência reproduzir o mesmo<br />

e excluir o diferente: o estrangeiro, <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> raça, <strong>de</strong> província.» 51<br />

A palavra “vizinhos” forma, com “parentes” e “amigos” uma trilogia. Os<br />

vizinhos, com efeito, representam na vida quotidiana privada um papel que não é<br />

muito diferente do papel dos amigos ou dos parentes, papel ao qual a sua proximida<strong>de</strong><br />

os predispõe. Não se escon<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> coisa ao vizinho.<br />

Uma selecção operada entre os amigos e os vizinhos eleva alguns à qualida<strong>de</strong><br />

invejada <strong>de</strong> padrinhos (dos filhos) e, portanto, <strong>de</strong> compadre (dos pais). O hábito dos<br />

apadrinhamentos múltiplos assumidos por estranhos à família, cria em volta <strong>de</strong> casais<br />

51 . Philipe ARIÈS, 1990, vol. IV: 175-177


prolíferos um novo círculo, imponente e muito particular, <strong>de</strong> compadres e <strong>de</strong><br />

comadres.<br />

Ro<strong>de</strong>ada por parentes, amigos, vizinhos - e compadres - a família africana vive<br />

experiências sociais e afectivas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> e riqueza.


CAPÍTULO III - Sobre Espaços e Tempos<br />

. O espaços rural<br />

O processo realista <strong>de</strong> construção da narrativa tem uma dinâmica que procura<br />

reflectir <strong>de</strong> modo aproximado o mundo real e até o virtual. Tal facto tem a ver com o<br />

cuidado posto pelo escritor na configuração do espaço, dos costumes (muitas vezes<br />

protagonizados exactamente por figuras típicas) e dos seus objectos mais<br />

característicos. Por exemplo, em Portagem, o percurso <strong>de</strong> Xilim em espaços pré-<br />

<strong>de</strong>terminados tanto pela sua raça mestiça, como pela sua condição sócio-económica,<br />

nos subúrbios <strong>de</strong> Marandal, na cida<strong>de</strong>, etc., procura reproduzir um <strong>de</strong>terminado<br />

objecto restrito: o seu <strong>de</strong>stino como personagem que até se podia assumir como<br />

negação da sua própria tradição. Po<strong>de</strong>ndo perfeitamente ser confrontado com os<br />

<strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> pessoas reais, Xilim, cuja individualida<strong>de</strong> perfeitamente conhecemos é,<br />

contudo, apenas uma parte do universo narrativo <strong>de</strong> Portagem.<br />

Duas questões são fudamentais para se compreen<strong>de</strong>r os espaços em Portagem<br />

e em A Estranha Aventura: as questões do mitológico e do fabuloso _ cada uma <strong>de</strong>las<br />

expressando um específico entendimento do mundo. Ao universo mitológico pertence<br />

o espaço rural, que procura reflectir e reproduzir uma memória ancestral, elo <strong>de</strong><br />

ligação <strong>de</strong> antepassados a contemporâneos. O universo mitológico representa um<br />

espaço-tempo inicial, fundador. Ridjalembe, terra natal do velho escravo<br />

Mafanissane, da velha Alima, é o lugar cosmogónico on<strong>de</strong> teve origem a tribo <strong>de</strong><br />

Xilim. A esse espaço <strong>de</strong> memória, vovó Alima se recusa a abandonar, mesmo em<br />

situação <strong>de</strong> extrema necessida<strong>de</strong>. A ligação ao lugar dos antepasados ilustra a gran<strong>de</strong><br />

resistência que constitui (e sempre constituiu) a tradição em relação ao


<strong>de</strong>senvolvimento, à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: a tradição preserva usos e costumes; para haver<br />

urbanização e <strong>de</strong>senvolvimento é preciso romper com a tradição. Foi o que fez todo<br />

povo <strong>de</strong> Ridjalembe, à excepção <strong>de</strong> vovó Alima, ao aceitar transferir-se (ainda que<br />

compulsivamente) para Marandal, sob orientação das autorida<strong>de</strong>s administrativas<br />

coloniais. Entretanto, esse corte brusco com a terra natal, com a tradição, com o<br />

passado, teve os seus efeitos, para muitos (se não para todos) dos actuais moradores<br />

do novo bairro. Entre eles, Xilim é o mais representativo.<br />

A tendência para explicar um fenómeno indicando as suas fontes é própria <strong>de</strong><br />

uma série <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los culturais absolutamente contemporâneos, ainda que seja mais<br />

frequente e típica dos mo<strong>de</strong>los tradicionais e ancestrais.<br />

Ridjalembe é a terra on<strong>de</strong> se constitui a família do velho Mafanissane. Com o<br />

<strong>de</strong>correr dos anos, foi fustigada por forças da natureza, tendo sido assolada por uma<br />

seca prolongada, o que provocou a esterilida<strong>de</strong> da terra e o consequente<br />

<strong>de</strong>spovoamento. Uma marca humana ficou, entretanto, a estabelecer e a estreitar a<br />

ligação entre as gerações que sempre viveram na terra ancestral, e as que se viram na<br />

contingência <strong>de</strong> ter que a abandonar: essa marca é a persistente avó Alima. Ela é,<br />

aliás, a única que recusa veementemente a transferência, permanecendo impávida no<br />

Ridjalembe, perpetuando a vida e as almas dos antepassados. Entretanto, a terra árida<br />

não aniquilou todas as formas vivas da natureza naquela terra; permaneceu, para além<br />

da velha, o cajueiro. Esta é uma planta abundante em todo o território moçambicano<br />

e constitui uma fonte apreciável <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> riquezas, através da sua apreciada<br />

castanha <strong>de</strong> caju e, ainda a nível doméstico, através do sumo que se produz a partir da<br />

própria fruta, o caju. Neste caso, este cajueiro não é uma simples árvore <strong>de</strong> sombra<br />

que dá fruto, tem também um papel sagrado, <strong>de</strong> ligação entre os antepassados e os<br />

vivos. É uma espécie <strong>de</strong> Igreja, ou <strong>de</strong> espaço Santo, ao redor do qual vovó Alima


ealiza, periodicamente, missas, num ritual <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento aos antepassados e <strong>de</strong><br />

pedido <strong>de</strong> protecção para as suas novas gerações, levadas, enten<strong>de</strong> ela, pelos ventos<br />

do Diabo para Marandal.<br />

Porque fora plantado pelo seu avô Mafanissane, o escravo que iniciou a<br />

linhagem, o cajueiro apresenta uma carga simbólica significativa, que tem a sua<br />

expressão máxima na liberda<strong>de</strong>. É, por isso, a memória, não só da velha e da sua<br />

sofrida vida, mas também <strong>de</strong> todo o Ridjalembe. Processo narrativo privilegiado pelo<br />

narrador <strong>de</strong> Portagem, a rememoração quase apaga o espaço-tempo presente que se<br />

faz tempo virtual, enquanto o pretérito é o tempo real, tempo dos acontecimentos<br />

<strong>de</strong>corridos em espaço concreto, por exemplo Ridjalembe, como se lê em Portagem:<br />

«Dormita alguns instantes sem tempo, para logo acordar (a velha) sobressaltada.<br />

Reconhece o chão pisado por três gerações <strong>de</strong> negros. Fixa os olhos mortiços nos ramos<br />

<strong>de</strong>scarnados do cajueiro plantado por seu avô, o escravo Mafanissane, no dia da sua<br />

libertação. Recordando, é <strong>de</strong>pois o mar que lhe aparece, um mar <strong>de</strong> ondas bravias que foi a<br />

fronteira da emigração dos negros para o sul, na gran<strong>de</strong> seca do ano em que lhe nasceu a filha<br />

Kati. Kati casou com o capataz dos mineiros do Marandal, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter gerado e parido um<br />

filho <strong>de</strong> branco.» (Po.: 11-12)<br />

Ridjalembe é uma referência obrigatória para todos os actuais moradores<br />

nativos dos subúrbios <strong>de</strong> Marandal, porque é o espaço <strong>de</strong> iniciação, <strong>de</strong>sconhecido que<br />

foi o percurso anterior do escarvo Mafanissane até à chegada a Ridjalembe. Esse<br />

passado <strong>de</strong>sconhecido anterior, porque misterioso, oculto até aos limites do tabu, vai<br />

constituir um caos. Como o caos é falível, é preciso aos moradores <strong>de</strong> Marandal,<br />

localizar um marco, uma génese, que é especificamente, em termos físicos,<br />

Ridjalembe e, em temos humanos, o escravo Mafanissane.<br />

No Marandal poucos conseguiram manter a ligação com a terra-mãe, ainda<br />

que não se tivessem esquecido, na totalida<strong>de</strong>, das suas raízes ancestrais. Xilim,<br />

perdido nos imprevistos e nos impon<strong>de</strong>ráveis da vida, em terras longínquas, à procura<br />

<strong>de</strong> melhores condições <strong>de</strong> vida, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>, periodicamente, manter a ligação com


Ridjalembe, por intermédio da sua mãe. Não tendo chegado a conhecer os últimos<br />

dias <strong>de</strong> vida da sua avó, no Ridjalembe, Xilim vai vivendo num misto <strong>de</strong> sentimento<br />

<strong>de</strong> culpa e <strong>de</strong> tentativa <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção: procura, sempre que possível, conciliar-se com o<br />

passado da família (que é, enfim, o seu) através da permanente recordação e<br />

rememoração <strong>de</strong>sse longínquo tempo. Uma recuperação que po<strong>de</strong> ser feita através do<br />

sonho:<br />

«Homens ru<strong>de</strong>s e sem <strong>de</strong>sejos, foram herdando dos pais os seus lugares na tradição do<br />

Ridjalembe. Mas já nenhum <strong>de</strong>les chegou a viver a época do recrutamento dos escravos nem<br />

fixou a viagem da fome no ano da gran<strong>de</strong> seca. (...) Mas, ao regressar (Xilim), uma das<br />

primeiras notícias foi a da morte da velha solitária na planície, durante a ausência <strong>de</strong>le. (...) E<br />

João Xilim sente remorsos <strong>de</strong> não ter feito mais companhia à avó que para ele agora<br />

representa um símbolo.<br />

Ainda a madrugada vinha longe e já no dormitório dos mineiros o aprendiz João<br />

Xilim estava bem acordado. Tivera pesa<strong>de</strong>los e sonhos aflitivos e inexplicáveis. Durante um<br />

<strong>de</strong>les, encontrava-se no fundo do gran<strong>de</strong> poço da mina a segurar um espigão com mãos<br />

monstruosas.» (Po.: 15-22)<br />

Para muitos dos moradores <strong>de</strong> Marandal, Ridjalembe não só é a terra dos seus<br />

progenitores, dos seus avós, dos antepassados e dos espíritos mas, acima <strong>de</strong> tudo, é<br />

um espaço simbólico e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância e, precisamente por isso, é mítico e até,<br />

<strong>de</strong> certo modo, misterioso 52 .<br />

A Estranha Aventura ilustra ainda melhor a importância da mitologia,<br />

particularmente na educação moral e tradicional, na inserção dos adolescentes no<br />

mundo imaginário e fantástico concebidos como reais. No conto “ O Estranho Amor”,<br />

a personagem Omar Sambine nasceu numa zona rural, em Nampula, na povoação do<br />

régulo Uhulumo, no interior, longe do mar. É a terra dos seus antepassados, <strong>de</strong> ligação<br />

52 . «(...) O verda<strong>de</strong>iro interesse dos mitos resi<strong>de</strong> precisamente no facto <strong>de</strong> eles nos fazerem<br />

recuar a eras em que, num mundo ainda jovem, os indivíduos se encontravam radicalmente ligados à<br />

terra, às árvores e aos mares, às flores e aos montes, <strong>de</strong> modo totalmente diferente daquele a que nós<br />

hoje em dia estamos habituados. (...) Pouca <strong>de</strong>strinça se fazia entre o real e o irreal.<br />

(...) Tanto o actual homem primitivo (...) como aquele que povoava a selva pré- histórica há milénios,<br />

não é nem nunca foi um ser que habita o seu mundo em fantasias alegres ou em visões encantadoras. A<br />

floresta virgem ocultava horrores, e não ninfas e náia<strong>de</strong>s. Nela reinava o Terror, acompanhada da sua<br />

íntima colaboradora, a Magia, e da sua <strong>de</strong>fesa mais comum, o Sacrifício Humano. Então, embora<br />

erradamente, só <strong>de</strong>terminados rituais mágicos, absurdos mas portentosos, ou qualuqer oferta feita à<br />

custa do sofrimento e da dor, podiam dar alguma esperança à humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r vir a escapar à ira<br />

<strong>de</strong>sta ou daquela divinda<strong>de</strong>.» (Pierre GRIMAL, 992: 11-12)


com a tradição e com os outros, isolada <strong>de</strong> influências <strong>de</strong> estranhos, eventualmente<br />

in<strong>de</strong>sejáveis e perturbadores dos usos e costumes ancestrais daquele espaço rural.<br />

Vivia somente com a mãe e, tal como o pai <strong>de</strong> Xilim, em Portagem, o pai <strong>de</strong> Omar<br />

está distante, em lugar incerto e ele não teve o privilégio <strong>de</strong> o conhecer. Tal como a<br />

mãe <strong>de</strong> Xilim, a <strong>de</strong> Omar <strong>de</strong>sempenhava também a função <strong>de</strong> dona <strong>de</strong> casa e <strong>de</strong> chefe<br />

<strong>de</strong> família.<br />

O régulo Uhulumo é o representante do po<strong>de</strong> tradicional naquela recôndita<br />

zona rural; é o garante dos po<strong>de</strong>res administrativo, executivo e judicial. Mesmo assim,<br />

é uma figura intermediária que estabelece a ligação entre a população nativa local e o<br />

po<strong>de</strong>r administrativo colonial, ou melhor, é quem garante o cumprimento e a<br />

execução das orientações emanadas do po<strong>de</strong> central colonial.<br />

Contrariamente à zona rural e interior, terra natal <strong>de</strong> Omar Sambine, é dado<br />

ver um outro espaço também isolado, mas geograficamente, tanto quanto em termos<br />

civilizacionais: é a Ilha <strong>de</strong> Moçambique. Ainda pequeno, às costas da mãe, Omar<br />

Sambine conhecera a Ilha e o mar. Praia e mar, por razões misteriosas, levam Omar<br />

Sambine, vinte anos <strong>de</strong>pois, a regressar à Ilha, aon<strong>de</strong> se fixa e se integra em<br />

<strong>de</strong>finitivo. Se a razão <strong>de</strong>ste retorno ao mar não é <strong>de</strong>svendada pelo narrador, nada<br />

impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> a tentarmos interpretar, aten<strong>de</strong>ndo ao tipo <strong>de</strong> envolvimento entre Omar e<br />

aquele novo espaço mais dinâmico, aliciante e alienante. Para Omar Sambine, o<br />

espaço marítimo, pela sua vastidão e imensidão, serve como meio <strong>de</strong> evasão física,<br />

através das jornadas <strong>de</strong> pesca que ele passou a empreen<strong>de</strong>r, pouco tempo <strong>de</strong>pois da<br />

sua fixação emotivo-afectiva, primeiro, por causa do envolvimento amoroso, ainda<br />

que pouco duradoiro, com a mulata Suleima, segundo e, mais importante, <strong>de</strong>vido ao<br />

amor que se tornaria eterno, entre ele e o mar. A quase simbiose entre Omar e o mar<br />

parece colocar, no último, um claro valor antropomórfico.


Po<strong>de</strong>rá parecer estranho enquadrar Ilha e mar no espaço da ancestralida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Omar Sambine. Entretanto, talvez seja <strong>de</strong> o fazer pois _ tal como os moradores <strong>de</strong><br />

Ridjalembe emigraram para Marandal, em Portagem _ em A Estranha Aventura,<br />

Omar também emigrou para um espaço <strong>de</strong> maior dinâmica e vitalida<strong>de</strong>. Desligou-se,<br />

<strong>de</strong> forma abrupta, das raízes, da tradição e dos espíritos ancestrais protectores da sua<br />

integrida<strong>de</strong> física, moral e espiritual. A consequência mais óbvia <strong>de</strong>sse “virar costas”<br />

ao mundo tradicional foi não ter a personagem conseguido constituir uma família:<br />

antes juntou-se com a mulata Suleima, conotada, por causa da sua raça mestiça, com<br />

infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e prostituição. O filho <strong>de</strong> ambos levou uma vida errante e sem rumo, em<br />

Nampula, on<strong>de</strong> intercalou prisão com liberda<strong>de</strong> - o que constitui “punição” tanto a<br />

Omar como, ainda, aos seus parentes directos. A senda <strong>de</strong> medidas punitivas<br />

infligidas eventualmente pelos espíritos ancestrais, que se sentem abandonados, vai<br />

culminar com a própria regeneração <strong>de</strong> Omar que, através <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong><br />

metamorfização, passa a viver eternamente no, com, e para o mar, numa espécie <strong>de</strong><br />

“casamento” que não admite separação. É precisamente a sua ligação com o espaço<br />

marítimo, como culminar da sua morte no mar (que, afinal não foi morte, mas uma<br />

outra vida na reincarnação aquática) que criou a lenda do estranho barco sem fundo. 53<br />

Veja-se como Omar se amantizou com o mar:<br />

«(...) Lento, foi empurrando mansamente o barco para o mar. Saltou par o barco num<br />

impulso firme e os lábios sorriam, sorriam sempre. Remou por algum tempo. Para o largo,<br />

sempre para o largo. (...)<br />

Omar Sambine ajoelhou. Pegou na catana larga e forte, na machadinha curta,<br />

arrumadas a um canto da embarcação. No silêncio da noite, por entre o ruge, ruge sensual e<br />

cálido do mar, as pancadas ressoaram uma após outra. Parou apenas quando sentiu o primeiro<br />

beijo das águas poisar-lhe nos pés.<br />

Devagarinho, mansamente, Omar Sambine <strong>de</strong>itou-se <strong>de</strong> costas (...) sentindo as águas<br />

engolfarem-se lentamente pelas aberturas rasgadas no casco da embarcação e crescerem à sua<br />

volta, tateando-lhe as pernas, lambendo-lhe o torso, mordiscando-lhe o sexo (...).» (E.A.: 126)<br />

53 . É curioso notar que há uma certa semelhança entre a forma como Omar Sambine “se mata”<br />

no mar, em A Estranha Aventura, e a forma como a personagem Juza também se mata no mar, em<br />

Portagem. A diferença é que, o primeiro morreu por amor e por paixão, tendo o segundo morrido por<br />

ciúme e vingança - em consequência da infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> da mulher. A atitu<strong>de</strong> ciumenta e vingativa <strong>de</strong> Juza<br />

é o lado perverso da manifestação do seu amor pela companheira.


A junção <strong>de</strong> Omar com o mar foi uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, pelo facto <strong>de</strong> a<br />

única esperança da sua vida (o filho) não ter correspondido às suas expectativas, pois<br />

este se tornara <strong>de</strong>linquente. Por essa via, é <strong>de</strong> crer que a sua morte não tenha sido só<br />

por amor ao mar, mas também por vingança em relação à vida. Nesse aspecto,<br />

po<strong>de</strong>mos fazer uma correlação com Juza, em Portagem.<br />

Tal como pressentiu o narrador que omnisciente, se antecipa aos<br />

acontecimentos, Juza afundou propositadamente o barco e morreu com a companheira<br />

Beatriz, assim materializando o plano <strong>de</strong> vingança.<br />

A problemática do abandono <strong>de</strong> um espaço rural, tradicional, ligado às<br />

origens, vai colocar algumas questões <strong>de</strong>licadas, como a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, a dignida<strong>de</strong> e a<br />

justiça social. Xilim, em Portagem, e Omar Sambine, em A Estranha Aventura, por<br />

exemplo, seguem um trajecto semelhante: a procura <strong>de</strong> melhores condições <strong>de</strong> vida<br />

num outro espaço diferente do seu. A essa procura correspon<strong>de</strong> também um processo<br />

<strong>de</strong> consciencialização, como a crítica já notou:<br />

«Através da viagem (movimento para fora do lugar físico e, por extensão, do “eu”<br />

subjectivo) Xilim ficará ciente da exploração comum aos negros e mulatos, saberá melhor<br />

sobre a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> no processo <strong>de</strong> distribuição da riqueza, a partir da divisão do trabalho,<br />

que também marginaliza o branco como o Esteves e o próprio Campos, perceberá a ca<strong>de</strong>ia<br />

viciosa do sistema que gera a alienação/imitação, pois seus irmãos negros e mulatos, imitam<br />

os brancos e, finalmente, receberá como irmãos os “brancos que eram compreensivos e não se<br />

pareciam com o patrão Campos”.» (Revista África 1979: 77)<br />

Encontrando outra realida<strong>de</strong> e confrontando-a, Xilim entra em processo <strong>de</strong><br />

transformação, <strong>de</strong> mudança.<br />

De um modo geral, po<strong>de</strong>-se dizer que os espaços rural e suburbano <strong>de</strong>scritos<br />

em Portagem e em A Estranha Aventura, sugerem um ambiente estático, silencioso,<br />

uma visão sempre idêntica das coisas. As al<strong>de</strong>ias ancestral, <strong>de</strong> Xilim em Ridjalembe,<br />

e natal <strong>de</strong> Omar Sambine na povoação do régulo Uhulumo, dão a imagem <strong>de</strong> espaços<br />

abandonados, on<strong>de</strong> avultam, <strong>de</strong> vez em quando, «velhos caquéticos, redutos da


existência; paira a quase completa anulação dos ruídos da vida, persistindo <strong>de</strong> forma<br />

misteriosa o elemento fantasmagórico.» 54<br />

. O espaço urbano<br />

O espaço urbano, culturalmente diversificado e caracterizado por uma enorme<br />

riqueza <strong>de</strong> eventos, <strong>de</strong>ve ser entendido como domínio mais específico do fabuloso, da<br />

história enquanto transformação. A cida<strong>de</strong> é ao mesmo tempo una e variada, pois nela<br />

convivem indivíduos com diferentes estatutos sócio-económico e cultural.<br />

Aliado ao espaço físico da cida<strong>de</strong>, aparece também o psicológico, que se<br />

constitui em função da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>ncir atmosferas <strong>de</strong>nsas e perturbantes,<br />

projectadas sobre comportamentos, também eles normalmente conturbados, das<br />

personagens.<br />

O espaço urbano <strong>de</strong>ve ser observado tendo em conta a periferia, o espaço<br />

suburbano, lugar do nativo. Na cida<strong>de</strong> estão, para os nativos, as oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

emprego, os sonhos e as frustrações, as discriminações e as <strong>de</strong>silusões. A cida<strong>de</strong> é o<br />

espaço do “outro”, do “verda<strong>de</strong>iro cidadão”: o <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> europeus portugueses.<br />

Finalmente, a cida<strong>de</strong> é o espaço do po<strong>de</strong>r. Em alguns casos excepcionais, os nativos<br />

54 . Ilustrando a ambiência psico-social <strong>de</strong> um micro universo rural, alguns espaços das obras<br />

referidas <strong>de</strong>ixam perceber, quase <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, que essa ambiência se encontra nitidamente afectada<br />

por conflitos enquadrados pelos cenários domésticos (Xilim/Luísa; Omar/Beatriz), sócio-profissional<br />

(<strong>de</strong>semprego do filho <strong>de</strong> Omar Sambine e <strong>de</strong> tantos outros), etc.. Em geral, as figuras dos negros e dos<br />

mulatos e dos outros (<strong>de</strong> origem asiática e europeia) constituem, para além do mais, intérpretes <strong>de</strong> um<br />

sistema <strong>de</strong> relações sociais e psicológicas, em que as figuras do mulato Xilim e <strong>de</strong> Omar Sambine, por<br />

exemplo, se <strong>de</strong>stacam enquanto sujeitos com ausência <strong>de</strong> afirmação social e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, naturalmente não<br />

isentos <strong>de</strong> incidências i<strong>de</strong>ológicas. A valorização das personagens (negros e mulatos) <strong>de</strong> forma<br />

disfórica, associa-se a situações em que a opressão e o terror se articulavam.<br />

«Valorizar a personagem como elemento crucial da narrativa é, com efeito, correspon<strong>de</strong>r,<br />

antes <strong>de</strong> mais, a um programa estético-i<strong>de</strong>ológico que se <strong>de</strong>sejava norteado por um “humanismo”<br />

renovado. Deste modo, o que se configura na cena literária neo-realista é uma resposta directa a um tal<br />

programa. Se no seu cerne se contemplava o homem concreto, histórico, social e económico, então o<br />

seu inequívoco prolongamento, no plano da ficção narrativa e em sintonia com as directrizes filosóficas<br />

e axiológicas do materialismo histórico, era uma personagem em que se reflectiam, <strong>de</strong> forma mais ou<br />

menos distorcida, as facetas apontadas.» (Carlos REIS, 1983: 527)


que tivessem transitado para a outra civilização (a oci<strong>de</strong>ntal), os chamados<br />

assimilados, podiam partilhar a cida<strong>de</strong>, mas sempre com limitações.<br />

Em Portagem, Marandal é o novo espaço atribuído pelas autorida<strong>de</strong>s<br />

administrativas coloniais aos ex-moradores do Ridjalembe. A transferência do grupo<br />

para esse espaço foi feita em condições <strong>de</strong>ploráveis, o que aumentou ainda mais as<br />

precárias condições dos nativos:<br />

«Os homens moradores no bairro con<strong>de</strong>nado juntaram-se todos e foram pedir um<br />

prolongamento do prazo para abandonarem aquele sítio. Pediram também que lhes fosse<br />

emprestado dinheiro para po<strong>de</strong>rem comprar algum material em segunda mão para substituir o<br />

que estivesse mais velho e não aguentasse a transferência. O chefe que os recebeu, conce<strong>de</strong>ulhes<br />

mais um mês mas informou que não lhes po<strong>de</strong>ria ser emprestado dinheiro. E prometeu<br />

que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> construído o bairro para brancos, se construiria um bairro <strong>de</strong> alvenaria para<br />

eles. Os homens saíram dali <strong>de</strong>sanimados, <strong>de</strong> cabeças baixas, com uma palavra <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgosto<br />

amortecida nos lábios. Um outro branco da brigada sentiu e interiorizou esse <strong>de</strong>sgosto. E<br />

continuou a trabalhar, meditando sobre os aspectos dolorosos das renovações prioritárias.»<br />

(Po.: 115)<br />

Ainda que, na aparência, se possa vislumbrar uma boa intenção, por parte das<br />

autorida<strong>de</strong>s, ao prometerem construir posteriormente um bairro <strong>de</strong> alvenaria para os<br />

“con<strong>de</strong>nados”, o narrador faz, implicitamente, ver outra realida<strong>de</strong>: a existência <strong>de</strong><br />

bairros separados para brancos e negros, eventualmente para outras raças, reflecte<br />

precisamente a política oficial <strong>de</strong> segregação racial, o que passou a ter influência na<br />

forma discriminatória <strong>de</strong> relacionamento entre pessoas <strong>de</strong> raças e <strong>de</strong> etnias diferentes.<br />

Por isso, a cida<strong>de</strong> é vista pelos nativos como um espaço hostil, não obstante ser<br />

também ali que se proporcionam empregos. Nas zonas periféricas da cida<strong>de</strong>, os<br />

espaços habitados por europeus eram urbanizados e havia a preocupação <strong>de</strong><br />

proporcionar um ambiente acolhedor ou minimamente habitável. Em A Estranha<br />

Aventura, o bairro ferroviário é <strong>de</strong>stinado, implicitamente, a “cidadãos” (no sentido<br />

dado ao termo pelas autorida<strong>de</strong>s coloniais) trabalhadores dos caminhos <strong>de</strong> ferro: gente


<strong>de</strong> raça branca, predominantemente. Está-se perante uma situação idêntica à <strong>de</strong><br />

Portagem: a diferença rácica implica diferenças na ocupação <strong>de</strong> espaços:<br />

«A gente que vive no bairro é gente ferroviária. De Lourenço Marques às Mahotas é<br />

meia hora <strong>de</strong> comboio, um quarto <strong>de</strong> hora <strong>de</strong> carro. Os homens vêm no comboio da manhã<br />

para a cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> trabalham nos caminhos <strong>de</strong> ferro; os garotos <strong>de</strong> escola e os adolescentes<br />

do liceu vêm no autocarro próprio que os caminhos <strong>de</strong> ferro mandam, para os trazer; ao meio<br />

dia os homens regressam a casa <strong>de</strong> comboio, os filhos, no autocarro; <strong>de</strong>pois do almoço os<br />

primeiros regressam à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comboio e o autocarro volta com os estudantes dos turnos da<br />

tar<strong>de</strong>. Há ainda um comboio, um pouco mais tar<strong>de</strong>, e as mulheres dos ferroviàrios que lá<br />

moram aproveitam-no para vir a Lourenço Marques fazer compras, se precisam.» (E.A.: 17-<br />

18)<br />

Observe-se que o bairro ferroviário é habitado também por nativos e mestiços,<br />

a julgar pelo grupo dos cinco rapazes que, juntos, partilhavam as cenas da estranha<br />

aventura, que formavam instintivamente pequenos grupos, norteados talvez pela<br />

disposição das casas dos seus pais ou pelas brigas que os haviam separado, conforme<br />

informa o narrador <strong>de</strong> A Estranha Aventura. 55<br />

Em A Estranha Aventura, no primeiro conto, a separação entre o espaço rural,<br />

suburbano e o urbano, faz-se em função do tipo <strong>de</strong> ocupantes <strong>de</strong>sses espaços e não em<br />

função da distância que os separa. O bairro ferroviário das Mahotas é um pequeno<br />

espaço urbanizado, <strong>de</strong>ntro da zona rural; é cercado <strong>de</strong> mato e <strong>de</strong> habitações precárias<br />

dos nativos, on<strong>de</strong> a rapaziada do bairro mo<strong>de</strong>rno e da zona rural circunvizinha<br />

convivia e procurava realizar os seus sonhos <strong>de</strong> aventuras infantis.<br />

No conto “Jangô”, Mavalane é também um bairro com alguma zonas<br />

urbanizadas, com características semelhantes às do bairro das Mahotas. Entretanto,<br />

Mavalane é mais extenso, relativamente mais <strong>de</strong>senvolvido: possui salas <strong>de</strong> cinema,<br />

55 . Se bem que, <strong>de</strong> um modo geral, predominassem, na época e no espaço em análise, atitu<strong>de</strong>s<br />

e comportamentos segregacionistas, são <strong>de</strong> notar algumas excepções. Neste bairro havia coabitação<br />

entre homens <strong>de</strong> raças distintas; no entanto, para serem admitidos ao mundo dito civilizado, os nativos<br />

teriam que passar por uma série <strong>de</strong> provas. Duas <strong>de</strong>las eram fundamentais: o juramento <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à<br />

Pátria (Portugal) e a aceitação da política assimilacionista. De certo que os negros e mestiços resi<strong>de</strong>ntes<br />

naquele bairro ferroviário (em particular) ou trabalhadores da função pública (em geral) integravam o<br />

lote dos chamados assimilados e, portanto, com direitos aproximados, mas não totalmente iguais, aos<br />

dos cidadãos <strong>de</strong> origem europeia.


cantinas, complexos <strong>de</strong>sportivos. Apesar disso, faz vizinhança com o mundo<br />

primitivo, com o mato, espaço <strong>de</strong> aventuras da pequenada. Diferentemente do bairro<br />

ferroviário das Mahotas, Mavalane foi construído por fundos públicos e, como o<br />

nome claramente elucida, era <strong>de</strong>stinado aos nativos: <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le havia um sub-bairro<br />

mo<strong>de</strong>lo chamado significativamente Bairro Indígena Municipal. Os seus moradores<br />

tiveram uma sorte diferente dos do Bairro Con<strong>de</strong>nado <strong>de</strong> Portagem. O bairro <strong>de</strong><br />

Mavalane é um continente, cujo conteúdo são os micro-espaços referidos: o Bairro<br />

Municipal Indígena, a cantina, os cinemas, etc.. Este é o protótipo da organização<br />

administrativa e social adoptada pela autorida<strong>de</strong> admnistrativa colonial, ao redor dos<br />

gran<strong>de</strong>s centros urbanos e nalgumas zonas privilegiadas do interior. São uma espécie<br />

<strong>de</strong> zonas satélites on<strong>de</strong> se experimentava a implementação das políticas <strong>de</strong><br />

assimilação e <strong>de</strong> civilivação do africano nativo, convertido e aculturado. Por isso, o<br />

Bairro Indígena Municipal é o protótipo <strong>de</strong> um bairro civilizado (ou para civilizar os<br />

nativos mais receptivos aos mo<strong>de</strong>los culturais da Metrópole). Nele encontramos uma<br />

miscelânia entre o mundo rural, tradicional e indígena e a “civilização” portuguesa:<br />

daí os conflitos culturais nos modos <strong>de</strong> vida entre os moradores. Este bairro, pelas<br />

suas características físicas e morais (convertido <strong>de</strong> tradicional para o mo<strong>de</strong>rno)<br />

procura ser uma réplica da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> (Lourenço Marques), que está a escassos<br />

três quilómetros.<br />

Mavalane funcionava também como uma espécie <strong>de</strong> travão ao provável afluxo<br />

<strong>de</strong> indígenas à capital - cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, imponente e cosmopolita - reservada só para os<br />

europeus. A esse propósito, o Cinema Império, que se situa <strong>de</strong>ntro daquele bairro<br />

suburbano, é o espaço <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> sonhos dos alienados e assimilados nativos, <strong>de</strong><br />

aventuras e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação com falsos-heróis, isto a partir do tipo <strong>de</strong> películas que<br />

eram exibidas nessa sala. Provavelmente, as acções <strong>de</strong> gatunagem do bando <strong>de</strong> Jangô,


(no conto com o mesmo título), para além <strong>de</strong> serem o resultado <strong>de</strong> carências <strong>de</strong> todo o<br />

tipo, po<strong>de</strong>m ser também o reflexo das imagens <strong>de</strong> heróis buscadas nos filmes exibidos<br />

no Cinema Império. Era hábito dos jovens e adultos nativos, geralmente moradores<br />

nos bairros periféricos <strong>de</strong> Mavalane, assim como no próprio Bairro Indígena, imitar as<br />

cenas dos heróis e dos protagonistas <strong>de</strong> filmes que melhor condiziam com os seus<br />

sonhos. Não fazendo a <strong>de</strong>strinça entre o ficcional e o real, encaravam todas as cenas<br />

dos filmes como reais e, consequentemente, como passíveis <strong>de</strong> imitação. Os seus<br />

ídolos ganhavam uma dimensão trans-real e constituíam exemplos a imitar e a seguir,<br />

até em nomes adoptados, como se vê em A Estranha Aventura.<br />

A propósito do Aparelho Administrativo Colonial, importa referir que as<br />

instituições representativas dos po<strong>de</strong>res executivo, judicial e legislativo constituem,<br />

no subconsciente dos nativos a representação imponente do próprio po<strong>de</strong>r em geral.<br />

Estas eram instituições vistas com <strong>de</strong>sconfiança e <strong>de</strong> soslaio. Assim, o Tribunal que<br />

julgou Xilim, em Portagem, representa a própria preservação e a manutenção da<br />

justiça. Para Xilim, mostrou-se um espaço hostil, porque o seu julgamento foi parcial,<br />

minado por preconceitos rácicos, sociais, etc. A Esquadra, local on<strong>de</strong> <strong>de</strong>correu o<br />

interrogatório, reflecte a fraqueza da polícia perante o po<strong>de</strong>r económico. Mais adiante,<br />

apercebemo-nos <strong>de</strong> certa anarquia institucional: Xilim, <strong>de</strong>tido sob suspeita <strong>de</strong> crime, é<br />

liberto <strong>de</strong> forma inexplicável para ele, o que o põe incrédulo.<br />

Estas instituições, responsáveis pela manutenção da lei e da or<strong>de</strong>m, têm, <strong>de</strong><br />

certo modo, um papel repressivo sobre os cidadãos, em geral, e sobre os nativos, em<br />

particular.<br />

Em alguns contos <strong>de</strong> A Estranha Aventura, o Narrador sublinha a crítica aos<br />

espaços que simbolizam a repressão.


Retomando a problemática do espaço social, lembraria que, no limiar dos<br />

bairros suburbanos e rurais, cuja população era predominantemente nativa,<br />

distinguindo-se esta entre autóctones (habitantes das zonas rurais e suburbanas) e<br />

assimilados (habitantes dos bairros urbanos e suburbanos) a cantina tem especial<br />

importância no estabelecimento <strong>de</strong> relações entre grupos sociais diferentes. Em<br />

«Jangô», a cantina do monhé Issufo e a loja do caneco e do alfaiate Fernan<strong>de</strong>s são<br />

espaços on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong>m reflectir a <strong>de</strong>gradação das condições <strong>de</strong> trabalho dos nativos e<br />

o seu fraco po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra. Implantado nas zonas habitacionais atrás referidas, o<br />

pequeno comércio era exercido maioritariamente por cidadãos <strong>de</strong> origem asiática. As<br />

cantinas suburbanas eram o espaço <strong>de</strong> encontro dos trabalhadores das cida<strong>de</strong>s, que<br />

regressavam a casa, ao anoitecer. Em «Os cães ladram lá fora», o narrador volta a<br />

fazer referência às lojas do caneco e do alfaiate Fernan<strong>de</strong>s. Este é o espaço on<strong>de</strong><br />

algumas mulatas e negras do Bairro têm emprego e on<strong>de</strong> se encontram fortuitamente<br />

com os brancos da cida<strong>de</strong>. É um espaço <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong> entre a ética, a moral e a<br />

promiscuida<strong>de</strong>. A retomada das mesmas lojas <strong>de</strong> um conto para o outro não é<br />

ocasional: o narrador quis, com isso reforçar uma informação importante sobre a<br />

significância <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado espaço, em «Jangô» e «Os cães ladram lá fora».<br />

O sentido global <strong>de</strong> um enunciado não resulta da soma dos sentidos das suas<br />

palavras ou frases, mas <strong>de</strong> uma sucessão <strong>de</strong> efeitos <strong>de</strong> sentidos solidários. Um<br />

enunciado joga na consecução e combinação <strong>de</strong> conjuntos (sequências, capítulos,<br />

parágrafos, episódios, contos). A análise é que vai permitir o reagrupamento do maior<br />

número <strong>de</strong>les, <strong>de</strong>finirá como equivalentes semanticamente e/ou funcionalmente.<br />

A organização administrativa e social do espaço, em Portagem e em A<br />

Estranha Aventura, obe<strong>de</strong>ce a critérios perfeitamente i<strong>de</strong>ntificáveis e perfeitamente<br />

<strong>de</strong>scriminatórios. O nativo incivilizado, segundo os mo<strong>de</strong>los da administração


colonial portuguesa, <strong>de</strong>via permanecer fiel às leis da natureza (no mato), pois ainda<br />

não tinha atingido um grau <strong>de</strong> civilização que lhe permitisse ter acesso a um “espaço<br />

evoluído”; o nativo trabalhador na cida<strong>de</strong> (geralmente pouco instruído) tinha direito a<br />

ocupar a periferia da cida<strong>de</strong>, para permitir que estivesse próximo do local <strong>de</strong> trabalho.<br />

Eventualmente, alguns bairros suburbanos eram pequenas réplicas <strong>de</strong> bairros urbanos:<br />

ali não só moravam os nativos assimilados, mas também alguns europeus que,<br />

estrategicamente, tinham a “nobre” função <strong>de</strong> civilizar o negro, pelo “bom exemplo”.<br />

As cida<strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s (como Lourenço Marques) eram habitadas quase exclusivamente<br />

por europeus e era on<strong>de</strong> se localizavam a administração e o po<strong>de</strong>r político central.<br />

Em Portagem, o princípio <strong>de</strong> oposição semântica dos espaços, dá maior<br />

<strong>de</strong>staque aos espaços suburbanos e/ou urbanizados, que melhor ilustram o drama da<br />

vida. 56<br />

É no subúrbio que o narrador dá conta da existência da cantina da Casa <strong>de</strong><br />

Caju, proprieda<strong>de</strong> do Sr. Esteves. A cantina é um espaço <strong>de</strong>gradado, principalmente a<br />

nível moral: nas suas traseiras existem quartos <strong>de</strong> aluguer para a prostituição. Na<br />

cantina confluem a miséria, o alcoolismo, o adultério, o <strong>de</strong>semprego, havendo poucas<br />

perspectivas para uma vida sã e harmoniosa. A Casa <strong>de</strong> Caju é também o espaço <strong>de</strong><br />

memória, que se reflecte nas imaginações e nas recordações angustiantes e tristes que<br />

perseguem, principalmente, Xilim e Maria Helena. Este espaço é sempre visto pelo<br />

narrador numa perspectivas disfórica: há ali negócios sujos e tráfico clan<strong>de</strong>stino;<br />

56 . Lotman procura enten<strong>de</strong>r o espaço relacionando-o com o acontecimento – e isso é<br />

particularmente interessante para o que estamos a analisar, como se vê:<br />

«Assim, o acontecimento é sempre a violação <strong>de</strong> uma interdição, um facto que suce<strong>de</strong>u, ainda<br />

que não <strong>de</strong>vesse ter sucedido. (…).<br />

Na base da organização interna dos elementos do texto (artístico, ou mitológico), se encontra,<br />

geralmente o princípio <strong>de</strong> oposição semântica binária: o mundo repartir-se-á em ricos e pobres, em<br />

“seus” e estranhos, em hortodoxos e heréticos, em pessoas cultas e não cultas, em homens da Natureza<br />

e homens da Socieda<strong>de</strong>, em inimigos e amigos (…). No texto, estes mundos recebem quase sempre<br />

uma realização espacial: o mundo dos pobres realiza-se como “subúrbios”, “casebres”, “águas<br />

furtadas”, e o mundo dos ricos, como “cida<strong>de</strong>”, “rua principal”, “palácio”. Aparecem as i<strong>de</strong>ias sobre as<br />

terras pecadoras e as terras justas, a antítese da cida<strong>de</strong> e do campo, da Europa civilizada e da ilha<br />

<strong>de</strong>sabitada, da floresta boémia e do castelo paternal.» (Iuri LOTMAN, 1979: 383-386)


Maria Helena viu-se na contingência <strong>de</strong> ter que casar “à força”; <strong>de</strong>spoletam-se ódios e<br />

vinganças (entre Justino, Sr. Esteves, Maria Helena, etc.).<br />

Em contrapartida, a cida<strong>de</strong> é o espaço das noites <strong>de</strong> luzes acesas, <strong>de</strong> lares com<br />

fartura, paz e alegria, <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> negócios. Tanto os cidadãos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência<br />

europeia, como os nativos veêm-na como lugar <strong>de</strong> esperança, <strong>de</strong> promessas, <strong>de</strong><br />

sucesso, <strong>de</strong> sonho, <strong>de</strong> evasão e até <strong>de</strong> ilusão. É o símbolo do progresso, da civilização;<br />

contudo, não pertence a todos, é só para os que po<strong>de</strong>m. Assim, funciona como uma<br />

parábola da <strong>de</strong>scriminação e da segregação.<br />

. Tempo e Tempos


Ao proce<strong>de</strong>r-se ao estudo da or<strong>de</strong>m do tempo <strong>de</strong> uma narrativa, está-se a<br />

confrontar a or<strong>de</strong>m da disposição dos acontecimentos ou dos segmentos temporais no<br />

discurso narrativo, com a or<strong>de</strong>m da sucessão <strong>de</strong>sses acontecimentos ou <strong>de</strong>sses<br />

segmentos temporais, no plano da história. É por isso que toda a problemática da<br />

anacronia constitui, em relação à narrativa na qual se insere, uma narrativa que se<br />

po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar temporalme subordinada à primeira, nessa espécie <strong>de</strong> sintaxe<br />

narrativa que se encontra quando se proce<strong>de</strong> à análise <strong>de</strong> uma obra. É importante que<br />

se estabeleça uma breve distinção entre a seguinte tipologia <strong>de</strong> tempo: quando se fala<br />

<strong>de</strong> tempo da história, tem-se em conta o próprio tempo da diegese, ou seja, refere-se,<br />

em primeira instância, ao tempo matemático propriamente dito, à sucessão<br />

cronológica <strong>de</strong> eventos susceptíveis <strong>de</strong> serem dotados com maior ou menor rigor. Em<br />

relação ao tempo do discurso, ele apresenta-se como um tempo linear, que sujeita o<br />

tempo histórico à dinâmica da sucessivida<strong>de</strong> metonímica, que é própria da narrativa.<br />

Por último, o tempo psicológico caracteriza-se por ser um tempo muitas vezes filtrado<br />

pelas vivências subjectivas da personagem. A este propósito, Alzira Seixo constata<br />

que em geral, «o romance mo<strong>de</strong>rno põe <strong>de</strong> lado o chamado tempo objectivo, mantido<br />

por relógios e calendários; impõe-se-lhe agora, (...) a transmissão <strong>de</strong> um tempo<br />

qualitativo, espesso e resistente, espécie <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> íntima que só po<strong>de</strong> existir e<br />

<strong>de</strong>finir-se em relação a uma consciência. Esse tempo espesso mostra-se diversificado<br />

e essas “várias espessuras” só se <strong>de</strong>finem em função da temporalida<strong>de</strong> intrínseca do<br />

ser humano que, existindo no presente, se manifesta dialecticamente entre a<br />

significação <strong>de</strong> um passado e a aquisição <strong>de</strong> um <strong>de</strong>vir.» 57<br />

Nas obras que constituem o corpus, gran<strong>de</strong> relevância ganha a referência à<br />

recordação e mesmo a evocação <strong>de</strong> um tempo passado mítico, consi<strong>de</strong>rado glorioso,<br />

57 . Maria Alzira SEIXO, 1984: 18-19


i<strong>de</strong>al e harmonioso. Por exemplo, a vida quotidiana <strong>de</strong> Xilim, em Portagem, e a <strong>de</strong><br />

Omar Sambine, em A Estranha Aventura, no tempo “actual”, mostra-se difícil,<br />

insuportável, caracterizada por uma série <strong>de</strong> injustiças sociais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as dificulda<strong>de</strong>s<br />

económicas, a <strong>de</strong>scriminação racial, até às <strong>de</strong> integração e adaptação culturais. O<br />

refúgio é a procura <strong>de</strong> um tempo passado, que parece ter sido glorioso e exemplar.<br />

Para tal, em muitas passagens, o narrador procura incutir, nas personagens, essa<br />

memória, através <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> processo introspectivo, on<strong>de</strong> a consciência é<br />

posta ao serviço <strong>de</strong> uma recordação que serve ao aumento <strong>de</strong> conhecimento. Um<br />

presente hostil que obriga à revisitação do passado eufórico merece a atenção <strong>de</strong><br />

Alzira Seixo:<br />

«Trata-se (...) <strong>de</strong> nos comunicar os transes <strong>de</strong> uma consciência que se busca a partir<br />

do tempo que correu. A recordação do passado vai ajudar a <strong>de</strong>finir pessoas que, uma vez<br />

ressuscitadas, vivas, tornadas presentes pela evocação, revitalizam o tempo tornando possível<br />

ao autor reencontrá-lo. É necessário, pois, o reconhecimento do passado, dada a precarieda<strong>de</strong><br />

do presente.<br />

Este reconhecimento advém-nos essencialmente através <strong>de</strong> uma meditação que se<br />

exerce sobre <strong>de</strong>terminados momentos privilegiados em que o autor se encontra em condições<br />

<strong>de</strong> atingir plenamente uma comunhão com o seu passado (…).<br />

Há uma tentativa consciente <strong>de</strong> apreensão do passado, consi<strong>de</strong>rando o domínio da<br />

recordação o único <strong>de</strong> conhecimento realmente válido. (...) Há uma revelação da personagem<br />

feita por si própria, através do quotidiano, em or<strong>de</strong>m a atingir a sua transparência absoluta, o<br />

que se consegue através do recurso constante à técnica do monólogo interior.» 58<br />

Em A Estranha Aventura, no conto com o mesmo nome, através <strong>de</strong> um<br />

discurso rememorativo na primeira pessoa, o narrador-personagem procura privilegiar<br />

três tempos verbais, cada um com o seu papel específico: o presente do indicativo é<br />

eleito para “actualizar os acontecimentos” presentes, que são relatados por este<br />

narrador (por exemplo, «Vocês não sabem (...)»; (...) as Mahotas resumem-se a vinte<br />

casas (...) (15-16). O pretérito imperfeito dá conta <strong>de</strong> acontecimentos que tiveram<br />

uma ocorrência predominantente frequentativa (como, por exemplo, em «Quando as<br />

58 . Maria Alzira SEIXO, 1984: 21-22


férias chegavam (...)» (21); «Por ali andávamos, o dia inteiro» (21). No que diz<br />

respeito ao pretérito perfeito, este privilegia, <strong>de</strong> modo geral, a narração <strong>de</strong><br />

acontecimentos e/ou <strong>de</strong> factos passados recente e pontualmente (como por exemplo<br />

em «E então, um dia, aquilo aconteceu» (25); «E <strong>de</strong> repente (...) sentimos que<br />

aquele homem (...) não pertencia mais ao nosso mundo» (27).<br />

É interessante notar que, em relação ao pretérito perfeito, e com base nos<br />

exemplos atrás aduzidos, não é propriamente o tempo verbal que marca a<br />

pontualida<strong>de</strong> e/ou a recenticida<strong>de</strong> dos acontecimentos, mas as expressões adverbiais<br />

temporal (um dia) e modal (<strong>de</strong> repente), não servindo apenas como reiteradoras da<br />

informação, mas também como especificadoras da mesma.<br />

Continuando ainda neste conto, mais do que a preocupação com os verbos e os<br />

seus valores aspectuais, o narrador interessa-se em se situar a si mesmo e aos seus<br />

actos no plano da rememoração, da recordação do seu passado, a dois níveis, tendo<br />

como parâmetro a sua faixa etária:<br />

- dos 10 aos 20 anos - tempo que abrange as suas histórias <strong>de</strong> infância, as suas<br />

aventuras, etc.;<br />

- <strong>de</strong>pois dos 20 anos - a partir <strong>de</strong> um acontecimento que leu num jornal da<br />

época, relacionado com um homem misterioso e estranho.<br />

Para o narrador, ainda na sua inocente infância, este homem estranho oscilante<br />

entre o humano e o extra-humano, situa-se num tempo impreciso e até in<strong>de</strong>terminado.<br />

Este narrador, que assume um carácter autobiográfico, posiciona-se aqui, no “agora”<br />

da leitura do jornal, servindo este <strong>de</strong> suporte para a rememoração <strong>de</strong> coisas mortas,<br />

imagens esbatidas:<br />

«E foi ao <strong>de</strong>bruçar-me, encantado, para o monte <strong>de</strong> jornais antigos que encontrei<br />

numa prateleira <strong>de</strong> um armário, que repentinamente aquele rosto estranho (...) me tocou a<br />

alma num estremeção violento. Passaram-se quase vinte anos. Mas po<strong>de</strong>riam ter passado<br />

cinquenta, cem que fossem, que esse rosto estaria tão presente na minha recordação.


Por <strong>de</strong>baixo da gravura vinha uma notícia: “ a Polícia encontrou ontem, durante a<br />

noite, perto do sítio conhecido por Mahotas, o louco que, conforme havíamos oportunamente<br />

noticiado, fugira da enfermaria dos alienados (...) e cujo para<strong>de</strong>iro se buscava há vários dias.»<br />

(E.A.: 31)<br />

O tempo revela-se no carácter rememorativo da obra: tudo nela vive pelo<br />

tempo e para o tempo, mas a recordação e a análise não rompem as fronteiras da<br />

cronologia, o leitor não per<strong>de</strong> o fio da narrativa que, em última instância, se po<strong>de</strong><br />

consi<strong>de</strong>rar linear.<br />

Em Portagem, a narrativa inci<strong>de</strong> sobre um passado que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira<br />

linha, se adivinha visto pela perspectiva do presente verbal, caracterizando-se o<br />

discurso pela alternância passado-presente, por vezes em relação <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência.<br />

As activida<strong>de</strong>s psíquicas <strong>de</strong> rememoração, <strong>de</strong> Xilim e <strong>de</strong> Justino, por exemplo,<br />

oferecem disso um quadro bem elucidativo:<br />

«Ali na cida<strong>de</strong>, João Xilim já per<strong>de</strong>u as esperanças <strong>de</strong> arranjar emprego. Terá que<br />

emigrar. Ele nasceu para andar <strong>de</strong> terra em terra, sem po<strong>de</strong>r parar muito tempo no mesmo<br />

lugar. Hesita muito, antes <strong>de</strong> se <strong>de</strong>cidir. Volta a lembrar-se do Marandal, <strong>de</strong> Patrão Campos,<br />

da mãe Kati, <strong>de</strong> Maria Helena, do capataz Uhulamo, <strong>de</strong> avó Lima. Lembra-se da sua<br />

meninice, em liberda<strong>de</strong>, para <strong>de</strong>pois o irem buscar e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ixarem-no em casa do dono da<br />

mina. Lembra-se do seu regresso à povoação, com seis anos <strong>de</strong> andanças por outros lugares,<br />

embarcado.» (Po.: 53-54)<br />

O narrador, privilegiando basicamente um discurso rememorativo, ou <strong>de</strong><br />

actualização permanente <strong>de</strong> um passado que se situa próximo do presente, faz uma<br />

espécie <strong>de</strong> filmagem do passado da personagem Xilim. Porque esse passado, ainda<br />

que recente, se apresenta em todos os seus pormenores, o narrador vê-se na<br />

contingência <strong>de</strong> ter que seleccionar os acontecimentos que acha mais marcantes,<br />

subtraindo as informações que consi<strong>de</strong>ra supérfluas; para tal recorre a elipses, ou a<br />

resumos, como forma <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nsar o tempo do discurso (afinal <strong>de</strong> contas a escrita é<br />

um acto <strong>de</strong> selecção e, <strong>de</strong> certo modo, também <strong>de</strong> omissão).<br />

A organização gráfica <strong>de</strong> Portagem também insinua passagem <strong>de</strong> tempo: os<br />

capítulos se separam por um espaço em branco, intevalo <strong>de</strong> valor espácio-temporal.


Alguns capítulos apresentam uma separação bastante curta (entre 5 a 10 centímetros),<br />

po<strong>de</strong>ndo em alguns casos o leitor suspeitar <strong>de</strong> supressão <strong>de</strong> informação. Repare-se nas<br />

páginas 44, 74, 97, 102, 111, 116 e 161: o truncar do texto não só permite <strong>de</strong>sprezar o<br />

supérfluo, obtendo daí um efeito económico e redutor do texto, mas também mudar o<br />

assunto, ou o enfoque temático, num lapso <strong>de</strong> tempo muito reduzido. Se é verda<strong>de</strong><br />

que esta estratégia permite que se concretize e se materialize a elipse, não é menos<br />

verda<strong>de</strong> que ela também contribui para a obtenção <strong>de</strong> um texto resumido ou, pelo<br />

menos, contendo a informação estritamente necessária, na óptica do narrador. Por<br />

exemplo, no capítulo 7, a temática central é a tentativa <strong>de</strong> reabilitar a mina <strong>de</strong> carvão<br />

<strong>de</strong> Marandal e a <strong>de</strong> convencer os mineiros a regressarem ao trabalho, abandonado<br />

após o aci<strong>de</strong>nte. Entretanto, através do processo elíptico atrás caracterizado, o<br />

narrador permitiu, concretamente na página 44, que se mudasse não só o assunto (em<br />

torno da mina), mas também o cenário. O centro já não é Xilim e os negros mineiros<br />

incrédulos e <strong>de</strong>sconfiados, mas Maria Helena, potencial proprietária e actual dirigente<br />

do projecto <strong>de</strong> reabilitação da mina outrora do pai. O centro é o interior <strong>de</strong> Maria<br />

Helena, os seus pensamentos (mais uma vez, a rememoração é chamada a revelar-se).<br />

Repare-se no último parágrafo trânsito <strong>de</strong> tópico, evi<strong>de</strong>nciado pela presença do espaço<br />

gráfico:<br />

«João Xilim acaba por falar com os mineiros, um a um. Louva a bonda<strong>de</strong> da filha do<br />

dono da mina, promete-lhes novas regalias para quando ele for o capataz. E os negros,<br />

relutantes a princípio, mas também sem outras alternativas <strong>de</strong> ocupação que a da emigração<br />

para a cida<strong>de</strong> ou para o Kaniamato, ace<strong>de</strong>m a pegar nas ferramentas e tornam a extrair o<br />

carvão da mina <strong>de</strong> Marandal.<br />

Maria Helena <strong>de</strong>ita-se extenuada <strong>de</strong> energia e da excitação a que se obriga durante<br />

todo o dia, querendo cumprir o melhor possível a sua função <strong>de</strong> dirigente dos trabalhadores e<br />

responsável por eles.» (Po.: 42-44)


A rememoração feita por Maria Helena estabelece estreita ligação entre o<br />

passado (o <strong>de</strong>sabamento da mina <strong>de</strong> Kamianato, a sua ida para o Colégio da cida<strong>de</strong> e<br />

o regresso a Marandal, sua terra natal) e o presente, quando se tenta reabilitar a<br />

mesma mina. O que o texto verbal não explicita é sugerido pela mancha gráfica.<br />

Assim, o leitor não só é levado a ler o tempo explicitado pelas marcas linguísticas,<br />

como também é induzido a ler um tempo oculto no interior das personagens, tempo<br />

marcado pela ausência discursiva, pelos espaços em branco que fazem, não a<br />

separação entre os capítulos e algumas subpartes <strong>de</strong>les, mas, pelo contrário, a ligação<br />

entre eles. A representação do tempo também na mancha gráfica torna todo o texto<br />

profundamente coerente e coeso.<br />

O modo <strong>de</strong> representar atemporalida<strong>de</strong>, potenciando nela muitos significados é<br />

mais elucidativo em Portagem, on<strong>de</strong> se privilegia a elipse espacial (que, pressupõe<br />

elipse temporal) e os processos rememorativo e onírico. Tudo isso manipula e<br />

complexifica o tempo - função também exercida pelas antecipações. Dessas encontra-<br />

se um exemplo na página 69, quando o narrador utiliza a estratégia <strong>de</strong> antecipação <strong>de</strong><br />

um <strong>de</strong>terminado acontecimento (neste caso, a prisão do negro Isidro) para excitar-nos<br />

a curiosida<strong>de</strong> e, ainda, convocar um tempo narrativo que, no plano da história, ocorre,<br />

a posteriori. Estratégia semelhante po<strong>de</strong> ser constatada no mesmo capítulo (74-75).<br />

Aqui se faz uma antecipação hipotética dos acontecimentos, quando o velho Isidro,<br />

sentenciado, traça mentalmente o plano que veremos realizado posteriormente (75). O<br />

procedimento narrativo <strong>de</strong> antecipar os acontecimentos (prolepse) <strong>de</strong>ve ser associado<br />

na análise, ao procedimento contrário: a anlepse. Na narração <strong>de</strong> eventos ocorridos<br />

anteriormente em relação a eventos já narrados, não é <strong>de</strong> estranhar que em Portagem<br />

a analepse seja o recurso discursivo eleito: é que esta narrativa, por privilegiar em<br />

muitas personagens um recordar permanente do passado, acaba por <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar, pela


activação da memória, uma retrospecção <strong>de</strong> feição dialéctica. De facto, à recuperação<br />

constante do passado presi<strong>de</strong>, neste caso, um critério eminentemente dinâmico. Em<br />

vez <strong>de</strong> sujeito a uma contemplação estática e passiva, o passado alterna com o<br />

presente, instituindo-se assim uma espécie <strong>de</strong> sintaxe temporal dialógica. Vejam-se<br />

alguns fragmentos elucidativos:<br />

«(...) E João Xilim <strong>de</strong>ita-se na areia da praia, <strong>de</strong> barriga para o ar, olhando a terra do<br />

outro lado da baía, aos altos e baixos, matutando nas voltas da sua vida. (...) E todos os dias,<br />

àquela hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso da faina da pesca, João Xilim recapitula fragmentos do seu<br />

passado.» (Po.: 128)<br />

«Não há dia algum em que Maria Helena não se recorda do Marandal.» (Po.: 81)<br />

O velho Justino «continua a contar costumes do mato. Mas ele já não se lembra <strong>de</strong><br />

nada do tempo <strong>de</strong> capataz antes <strong>de</strong> vir para a cida<strong>de</strong> e falta-lhe a imaginação.» (Po.: 78)<br />

Se as acções <strong>de</strong> matutar, <strong>de</strong> recapitular, <strong>de</strong> não recordar, <strong>de</strong> não se<br />

lembrar, se situam no momento presente, então, po<strong>de</strong>-se arriscar a dizer que ocorrem<br />

simultaneamente no presente <strong>de</strong> enunciação do discurso do narrador; entretanto, o<br />

objecto dos actos cognitivos atrás <strong>de</strong>stacados situa-se impreterivelmente no passado:<br />

aqui está a tal espécie <strong>de</strong> sintaxe temporal dialógica, que é reforçada pela seguinte<br />

compreensão da dinâmica temporal da analepse:<br />

«A analepse não se limita a reorganizar, <strong>de</strong> modo mais ou menos esquemático, o<br />

tempo da história ao nível do discurso. Atribui-se-lhe uma nova or<strong>de</strong>m: sendo concretizada a<br />

partir <strong>de</strong> certas perspectivas inseridas na história, a analepse participa na constituição <strong>de</strong> uma<br />

temporalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cunho psicológico, na medida em que colabora no processo <strong>de</strong> sujeição do<br />

tempo cronológico às vivências das personagens.<br />

É normalmente na vivência <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> conflito e <strong>de</strong> isolamento afectivo que se<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia a focalização interna das personagens mencionadas (...).» 59<br />

Ainda em relação a isso, lembre-se que para David Mourão-Ferreira, o tempo<br />

constitui uma componente fundamental, mas também um elemento <strong>de</strong>cisivo, quando<br />

está em causa a diferenciação e a <strong>de</strong>finição dos “tempos”. Há, na origem profunda <strong>de</strong><br />

todos os tempos literários, dois estados <strong>de</strong> duração, fundamentais e opostos: um, que<br />

59 . Carlos REIS, 1980: 45


esulta <strong>de</strong> uma atenção especial dada ao momento; outro, que provém da integração<br />

do momento na sucessão da história dos momentos. 60<br />

Antes <strong>de</strong> terminar esta abordagem do tempo, algumas consi<strong>de</strong>rações finais<br />

sobre a questão da infância e da adolescência (tempos, ida<strong>de</strong>s da vida) nas obras que<br />

venho analisando.<br />

No conto “Os Sonhos do Mufana”, duas personagens ilustram os “tempos da<br />

vida”: o rapaz <strong>de</strong> 19 anos e o menino, <strong>de</strong> 14 anos, que trabalha na sua casa. O<br />

primeiro vive na cida<strong>de</strong>, convive na praia, <strong>de</strong> preferência com raparigas sul-africanas;<br />

leva uma vida ociosa e <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong> (alimentada com a permissivida<strong>de</strong> e com a<br />

con<strong>de</strong>scendência maternas), tem uma ambição aventureira, <strong>de</strong> sonhos e planos<br />

irrealizáveis, cheios <strong>de</strong> caprichos. Alheio aos estudos e ao trabalho, este “menino”<br />

gran<strong>de</strong> vai vivendo ao sabor da fortuna do pai, que sempre se mostrou hostil à<br />

ociosida<strong>de</strong> dos filhos. Tanto a este rapaz, como à sua irmã mais nova, <strong>de</strong> 15 anos, é-<br />

lhes permitido sonhar, pois vivem folgados e indiferentes ao futuro, como a seguir se<br />

constata:<br />

«Àquela hora, o menino <strong>de</strong>ve estar na praia, estendido na areia, preso <strong>de</strong> amores a<br />

alguma sul-africana. É sempre assim, quando a época do mar chega e as caravanas dos<br />

turistas inundam a cida<strong>de</strong> e enchem a Polana <strong>de</strong> movimento e <strong>de</strong> cor.(...)<br />

E o menino, que vai fazer <strong>de</strong>zanove anos, que não mexe nenhuma palha, que não quer<br />

saber <strong>de</strong> emprego para nada como também jamais quis saber <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> estudo enquanto<br />

andou, ano após ano, a moer dinheiro ao pai, no liceu, está, àquela hora, na maior das<br />

indiferenças (...), placidamente estendido na areia fulva, como um lagarto ao sol, fazendo<br />

olhos meigos para qualquer rapariguinha sar<strong>de</strong>nta, <strong>de</strong> cabelos estopes e formas <strong>de</strong>sajeitadas.»<br />

(E.A.: 185-186)<br />

A outra personagem adolescente que se liga a este rapaz, numa relação<br />

antitética, é o mufana cuja ida<strong>de</strong> provável é <strong>de</strong> catorze anos (e a real, <strong>de</strong> doze) e, por<br />

isso, mais novo que os dois filhos do casal europeu. Este rapaz vindo da zona rural é<br />

sujeito a trabalhos domésticos:<br />

60 . David MOURÃO-FERREIA, citado por Carlos, Reis 1983: 143


«E enquanto o menino está estendido na praia, nas suas conquistas mais imaginárias<br />

do que reais, e a menina se <strong>de</strong>bruça, extasiada, para o livro branco <strong>de</strong> miolo <strong>de</strong> açúcar cor <strong>de</strong><br />

rosa _ na cozinha, o mufana está atarefado <strong>de</strong> volta da loiça, no intervalo que vai do<br />

matabicho ao almoço .(...)<br />

E enquanto o menino, que tem <strong>de</strong>zanove anos e muita dose <strong>de</strong> malandrice no corpo e<br />

<strong>de</strong> herói barato <strong>de</strong> filme americano nas veias, está espapaçado ao sol (...); enquanto a menina,<br />

que tem quinze anos, se estiraça indolentemente nos lençóis do seu corpo tépido <strong>de</strong> virgem<br />

sonhadora, enfronhada na história da criadinha que acabou por casar com o príncipe nórdico _<br />

o mufana, <strong>de</strong> doze anos mal feitos e catorze oficialmente, tem os pés nus assentes no lagedo<br />

da cozinha, lava a loiça do matabicho e pensa na camisa ver<strong>de</strong> e nos calções <strong>de</strong> ganga que viu<br />

na montra <strong>de</strong> manhã da Paiva Manso.» (E.A:. 188-189)<br />

O narrador tem a preocupação <strong>de</strong> reiterar, <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar as diferenças <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>s<br />

entre os dois irmãos e o moleque, através da referência, na página 188, repetida na<br />

página seguinte. Essa redundância não apenas reforça o tema do tempo posto nas<br />

ida<strong>de</strong>s da vida, como po<strong>de</strong>, também, ser vista como <strong>de</strong> valor irónico. Finalmente, a<br />

redundância reforça a coesão narrativa e a<strong>de</strong>nsa a dimensão dramática do texto. 61<br />

Capítulo IV – Conclusão<br />

O estudo das obras que constituem o corpus do presente trabalho permitiu que<br />

se <strong>de</strong>sse primazia à análise das questões <strong>de</strong> discurso, tendo como base as<br />

autonomias discursivas da voz do narrador, das vozes das personagens, tendo,<br />

antes sido feito um breve rastreio das bibliografias dos Autores, para permitir uma<br />

melhor compreennsão do contexto sócio-histórico, literário e i<strong>de</strong>ológico que<br />

presidiu à produção das obras em análise. Numa interacção entre as personagens e<br />

as suas vivênecias sociais, procurou-se compreen<strong>de</strong>r as relações familiares, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

os laços consanguíneos, até às relações por afinida<strong>de</strong>, o que permitiu que se<br />

61 . «(...Consi<strong>de</strong>ra-se que a reiteração <strong>de</strong> certos elementos ao longo da ca<strong>de</strong>ia sintagmática<br />

constitui um mecanismo imprescindível <strong>de</strong> estruturação da coerência textual: assim, no texto narrativo,<br />

as personagens, pela sua simples recorrência, <strong>de</strong>sempenham já uma função anafórica coersiva que em<br />

larga medida garante a legibilida<strong>de</strong> do texto. Acrescente- se que as personagens são submetidas a<br />

processos mais ou menos minu<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> caracterização, verificando-se uma certa redundância entre<br />

esses diversos processos <strong>de</strong> caracterização (...).<br />

(...) Registe-se, por fim, que há estratégias narrativas susceptíveis <strong>de</strong> serem interpretadas à<br />

luz do conceito <strong>de</strong> redundância: o sonho premonitório e as predições, por exemplo, correspon<strong>de</strong>m a<br />

movimentos <strong>de</strong> antecipação discursiva <strong>de</strong> eventos que virão a ser posteriormente confirmados no plano<br />

da história (...).» (Carlos REIS, 1994: 347)


compreen<strong>de</strong>sse melhor a problemática das complexas famílias alargadas, em<br />

especial, as africanas. A análise do Tempo e dos tempos foi feita à luz da sua<br />

dinâmica discursiva e integrada nos espaços que, por razões metodológicas, se<br />

apresentaram em duas isotopias: o rural, o suburbano, associado ao campo, ao<br />

retrógrado e à disforia, e o urbano, ligado à civilização, ao mo<strong>de</strong>rnismo, aos<br />

sonhos, etc., ou seja, à euforia.<br />

As duas obras analisadas, Portagem e A Estranha Aventura, procuram retratar<br />

a problemática social. Por parte dos narradores, na assunção do papel <strong>de</strong><br />

personagem, particularmente em Portagem e na maioria dos contos <strong>de</strong> A Estranha<br />

Aventura, po<strong>de</strong>-se constatar que há uma explícita solidarieda<strong>de</strong> com os segregados<br />

da vida (os nativos do Moçambique colonial, na sua vida doméstica, social,<br />

profissional, etc.) e uma lúcida visão humana. Há ainda uma manifesta vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

intervenção transformadora, embora esta vonta<strong>de</strong> explícita tenha sido prejudicada,<br />

na prática, pela dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> a mensagem chegar aos <strong>de</strong>stinatários <strong>de</strong>sejados<br />

pelo narrador, a maioria dos quais eram, aliás, analfabetos. Os traços que apontei<br />

aproximam Portagem e A Estranha Aventura da ficção neo-realista portuguesa. 62<br />

Tanto Guilherme <strong>de</strong> Melo, como Orlando Men<strong>de</strong>s, parece aproximarem-se,<br />

nas obras analisadas, <strong>de</strong> uma concepção marxista do fenómeno literário. Por isso,<br />

a escrita <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro mostram-nos um gran<strong>de</strong> comprometimento social, uma<br />

profunda sintonia com os problemas sociais, políticos e económicos do<br />

Moçambique colonial. Encarando a literatura como uma forma <strong>de</strong> consciência<br />

62 . Na ficção neo-realista portuguesa, «o <strong>de</strong>nominador comum será, portanto, a sondagem das<br />

existências “reduzidas”_ sua relação com o trabalho, com a dor, com o amor, sua tomada <strong>de</strong><br />

consciência (que nas páginas do livro se elabora) das formas <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong> que são objecto.<br />

Mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong>stas obras, que entre nós trouxeram para a cena literária os camponeses, os ganhões, os<br />

campinos, os pescadores, os contrabandistas, os mineiros, terão sido os romances <strong>de</strong> Gorki, e os <strong>de</strong><br />

Steinbeck, os contos <strong>de</strong> Michael Gold, as narrativas épicas e líricas <strong>de</strong> Jorge Amado.» (Urbano Tavares<br />

RODRIGUES, 1981: 13)


social, os dois Autores valorizam a dimensão i<strong>de</strong>ológica da criação literária e<br />

confiam na capacida<strong>de</strong> que a literatura tem <strong>de</strong> intervir no plano sócio-político.<br />

São, aliás, estes fundamentos i<strong>de</strong>ológicos que explicam as opções temáticas<br />

mais significativas do neo-realismo, como a miséria, a pobreza, os<br />

<strong>de</strong>snivelamentos sócioeconómicos, a <strong>de</strong>gradação do tecido social, só para citar<br />

alguns exemplos. 63 Tanto Portagem como A Estranha Aventura <strong>de</strong>ixam perceber<br />

o culminar <strong>de</strong> um vasto empenho político-cultural em Moçambique, marcado pela<br />

tentativa <strong>de</strong> criar uma dinâmica literária que, em termos estéticos, faz perceber<br />

ligações com o neo-realismo, com já se referiu. Entretanto, no plano da<br />

intervenção sócio-cultural e i<strong>de</strong>ológica, Guilherme <strong>de</strong> Melo <strong>de</strong>ixou transfigurar as<br />

suas ligações com o po<strong>de</strong>r colonial em Moçambique, evi<strong>de</strong>nciadas pela sua<br />

activida<strong>de</strong> jornalística que primava por uma <strong>de</strong>clarada antipatia pelo surgimento e<br />

pela dinâmica dos Movimentos <strong>de</strong> Libertação <strong>de</strong> Moçambique, em particuar, pela<br />

FRELIMO. Neste contexto, Guilherme <strong>de</strong> Melo segue um percurso que,<br />

i<strong>de</strong>ologicamente, o distancia do dinamismo literário <strong>de</strong> um Moçambique<br />

revolucionário e, por causa disso, não incutiu à sua obra a dinâmica <strong>de</strong> uma<br />

literatura comprometida, <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia do sistema colonial. Aliás, é com base nisto<br />

que se po<strong>de</strong> justificar a não inclusão das suas obras na literatura moçambicana do<br />

pós-in<strong>de</strong>pendência.<br />

Orlando Men<strong>de</strong>s, por sua vez, afasta-se, do ponto <strong>de</strong> vista político-i<strong>de</strong>ológico,<br />

<strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo (ainda que tematicamente esteja em sintonia com ele).<br />

Men<strong>de</strong>s aparece a dar primazia a uma literatura marcada pela tentativa <strong>de</strong><br />

dinamização <strong>de</strong> um espaço literário “nacional”, <strong>de</strong> fortes ligações com o neo-<br />

63 . «Factor <strong>de</strong> primordial importância na concretização do programa sóciocultural inerente à<br />

literatura neo-ralista, a temática constitui um dos domínios fundamentais <strong>de</strong> toda a obra literária <strong>de</strong><br />

feição comprometida e interventora, já que é no seu domínio que se insinuam as gran<strong>de</strong>s coor<strong>de</strong>nadas<br />

semânticas <strong>de</strong>terminadas pela i<strong>de</strong>ologia que lhes está subjacente.» (Carlos REIS, 1981: 17)


ealismo, o que, aliás, prosseguiu após a In<strong>de</strong>pendência Nacional do país. Deu<br />

ainda gran<strong>de</strong> contributo na promoção e na divulgação <strong>de</strong> autores moçambicanos e<br />

teve participação activa em eventos culturais e editoriais. Este seu empenho terá<br />

contribuído para a sua aceitação também como autor moçambicano, por parte do<br />

público leitor moçambicano e por parte <strong>de</strong> estudiosos da literatura em<br />

Moçambique e não só, por se ter i<strong>de</strong>ntificado com as novas condições políticas,<br />

fruto da In<strong>de</strong>pendência, isto através <strong>de</strong> uma literatura engajada, centrada na<br />

<strong>de</strong>núncia do colonialismo e na exaltação dos valores que a In<strong>de</strong>pendência<br />

trouxera.<br />

Não obstante estes percursos distintos i<strong>de</strong>ologicamente entre Guilherme <strong>de</strong><br />

Melo e Orlando Men<strong>de</strong>s, a análise <strong>de</strong> A Estranha Aventura e <strong>de</strong> Portagem<br />

permitiu-nos observar que estas duas obras abordam temáticas semelhantes, que<br />

privilegiam, em geral, as problemáticas dos <strong>de</strong>sfavoridos, das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

sociais, da miséria, da pobreza, etc., isto à luz da i<strong>de</strong>ologia marxista eleita pelo<br />

neo-realismo. A ambiência suburbana e rural <strong>de</strong> Moçambique, em sintonia com os<br />

nativos negros e mulatos, por um lado, e a ambiência urbana integrada<br />

maioritariamente por cidadãos brancos, entrelaçam uma teia <strong>de</strong> relações que, sem<br />

serem necessariamente antagónicas, se mostram em <strong>de</strong>sacordo, ou em <strong>de</strong>sarmonia<br />

com os hábitos sócio-culturais, linguísticos e até i<strong>de</strong>ológicos <strong>de</strong>stes grupos, daí os<br />

naturais <strong>de</strong>sentendimentos e conflitos a vários níveis. Assim, nesta análise tentou-<br />

se mostrar que Portagem e A Estranha Aventura po<strong>de</strong>m ser integrados na mesma<br />

estética literária, sendo que Orlando Men<strong>de</strong>s é aceite e integrado também na<br />

literatura portuguesa (para além <strong>de</strong> ser incorporado na literatura moçambicana) e<br />

A Estranha Aventura <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo não é integrado, nem numa, nem<br />

noutra. Por causa disso, mas não só, procurou-se, com este trabalho, recuperar


Melo e integrá-lo na <strong>de</strong>signada Literatura Portuguesa Ultramarina ou no<br />

Realismo contemporâneo português 64 , ainda que, em geral, consi<strong>de</strong>rem (Saraiva<br />

e Lopes) alguma literatura produzida nas ex-colónias <strong>de</strong> particular por se<br />

situar entre as novas literaturas africanas <strong>de</strong> expressão portuguesa e a<br />

literatura colonial. 65<br />

Sendo profundamente enraizadas na realida<strong>de</strong> moçambicana, as obras <strong>de</strong><br />

Guilherme <strong>de</strong> Melo e <strong>de</strong> Orlando Men<strong>de</strong>s são também universais: os problemas<br />

nelas tratados ultrapassam os limites <strong>de</strong> qualquer fronteira e inserem-se na<br />

problemática global da existência humana pois, <strong>de</strong> forma diferenciada, mas igual<br />

na essência, o homem sempre se <strong>de</strong>bateu com questões como o conflito social, a<br />

alienação e a consciência social, a posse da terra, a opressão, a <strong>de</strong>cadência dos<br />

estratos dominantes, etc..<br />

Para além das questões gerais que acabo <strong>de</strong> colocar, é importante talvez,<br />

sintetizar no fecho <strong>de</strong>ste meu trabalho, os pontos aparentemente secundários em<br />

que se encontram as obras <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo e <strong>de</strong> Orlando Men<strong>de</strong>s. O<br />

primeiro <strong>de</strong>sses pontos será a problemática da migração.<br />

A emigração, supostamente um factor <strong>de</strong> elevação do nível sócio-económico e<br />

cultural dos indivíduos oriundos das zonas rurais, dos subúrbios das gran<strong>de</strong>s<br />

cida<strong>de</strong>s ou dos países pouco <strong>de</strong>senvolvidos, é um dos aspectos comuns a A<br />

Estranha Aventura e a Portagem. No caso <strong>de</strong> Portagem, o narrador privilegia a<br />

migração interna, representada com muita força em Xilim, «o emigrante (que se)<br />

tornou diferente dos negros do Marandal (…). Escutam assombrados a linguagem<br />

nova (…). João Xilim conheceu diversos padrões da condição humana» (31). O<br />

narrador teve a preocupação <strong>de</strong> mostrar que a migração não só visa fins sócio-<br />

64 . Óscar LOPES e António SARAIVA, 1985: 1150<br />

65 . Óscar LOPES e António SARAIVA, 1985: 1150


económicos, como também contribui para uma nova abordagem da vida, uma<br />

nova visão e consequente tomada e <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> consciência para situações <strong>de</strong><br />

ausência <strong>de</strong> valores humanos básicos como Igualda<strong>de</strong>, a Fraternida<strong>de</strong> e a<br />

Liberda<strong>de</strong>. Dá uma espécie <strong>de</strong> luz, por mais ténue que seja, e permite uma visão<br />

do mundo mais alargada. Na obra <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Melo, os narradores <strong>de</strong> alguns<br />

contos dão maior relevo à migração externa, o que se po<strong>de</strong> documentar em «O<br />

moleque do violino», on<strong>de</strong> este «viera ali (…) perguntar pelo menino e dizer<br />

a<strong>de</strong>us, porque naquela manhã mesmo ia-se embora (…) para as minas <strong>de</strong><br />

Transvaal.» (E.A.: 44) Entretanto, o fenómeno <strong>de</strong> migração mostrava-se mais duro<br />

e imoral quando efectuado com fins <strong>de</strong> exploração sexual (migração para a<br />

prostituição) feminina e geralmente o espaço privilegiado era a cida<strong>de</strong> ou a<br />

periferia. Por exemplo, em Portagem, o narrador mostra a personagem Sofia como<br />

a intermediária no recrutamento <strong>de</strong> raparigas negras, do campo para a cida<strong>de</strong>, para<br />

o fim acima referido:<br />

«Sofia pensou no assunto e concordou: engajou negrinhas para servirem na cida<strong>de</strong>.»<br />

(Po.: 57)<br />

A prostituição, os negócios obscuros nas fronteiras, com vista à fuga ao fisco,<br />

caracterizados em Portagem, po<strong>de</strong>m ser integrados no lote do que se po<strong>de</strong><br />

consi<strong>de</strong>rar por contrabando, que era uma das componentes básicas do processo <strong>de</strong><br />

migração clan<strong>de</strong>stina. Se em relação aos nativos africanos a forte razão da<br />

migração era a económico-social, o mesmo não se po<strong>de</strong> dizer em relação a alguns<br />

europeus colonos que pretendiam o processo inverso, ou seja, o regresso à<br />

Metrópole, por <strong>de</strong>silusão, ou por razões afectivo-emocionais, telúricas, ligadas a<br />

um certo saudosismo nostálgico. Estas eram mais fortes que as económicas. No<br />

conto «Cacilda», enquanto a personagem com o mesmo nome, nascida em África


e filha <strong>de</strong> pais portugueses, se i<strong>de</strong>ntifica com o trópico e não sente sauda<strong>de</strong>s da<br />

<strong>de</strong>sconhecida Europa paterna, os seus progenitores, não obstante tantos anos <strong>de</strong><br />

permanência em África, não viam a hora <strong>de</strong> regressar. Este <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar <strong>de</strong><br />

contradições <strong>de</strong> sentimentos não só reflecte um certo conflito geracional, como<br />

também (reflecte) um agudo conflito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. O resultado óbvio <strong>de</strong>ste<br />

conflito foi, nalguns casos, a ruptura. Na página 140 do mesmo conto, o narrador<br />

elucida isso: «Entretanto, um novo problema surgiu na sua (Cacilda) vida: o pai<br />

aposentara-se e queria seguir, com a mulher, para a Metrópole.»<br />

Outro aspecto em que convergem A Estranha Aventura e Portagem é a<br />

preocupação, tanto <strong>de</strong> Men<strong>de</strong>s, como <strong>de</strong> Melo, em estabelecer, ou em adoptar<br />

certos símbolos, para dar significado a actos ou a fenómenos com um grau <strong>de</strong><br />

entendimento difícil através do verbo. Neste contexto, alguns símbolos procurarão<br />

explicar-se a si próprios. A título <strong>de</strong> ilustração, em Portagem, a referência ao<br />

cajueiro plantado pelo ancião da al<strong>de</strong>ia é <strong>de</strong> extrema importância para o<br />

conhecimento e a compreensão da vida cultural e, essencialmente, da alma e do<br />

espírito dos antigos escravos que por lá permaneceram. O cajueiro estabelece uma<br />

cumplicida<strong>de</strong> entre a tradição, a actualida<strong>de</strong> e o futuro <strong>de</strong> Ridjalembe; apresenta-<br />

se também como uma árvore solitária, mas não abandonada, pois ela está naquela<br />

planície on<strong>de</strong> também fica o mundo moribundo da vida toda da negra Alima. Este<br />

cajueiro foi plantado pelo avô Mafanissane (ex-escravo) no dia da sua libertação,<br />

na terra natal, Ridjalembe; por isso, é símbolo <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> recomeço <strong>de</strong> uma<br />

nova vida, <strong>de</strong> reencontro com os seus, <strong>de</strong> retorno à pseudo-liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

recordação do sofrimento, entre outras contrarieda<strong>de</strong>s que se abateram sobre si e<br />

sobre o seu povo. Ainda que a um nível diferente, mais suave, no conto «A<br />

Estranha Aventura», o canhoeiro é que serve <strong>de</strong> “árvore <strong>de</strong> tesouro” (22), para o


mundo fantástico criado entre a imaginação e a realida<strong>de</strong> dos garotos que<br />

protagonizam a aludida estranha aventura (à semelhança, como lembra o narrador,<br />

<strong>de</strong> Autores Realistas como Júlio Verne e Emílio Salgari), cujos ídolos são à<br />

imagem daqueles garotos.<br />

Outros aspectos comuns A Estranha Aventura e a Portagem po<strong>de</strong>m ser<br />

i<strong>de</strong>ntificados, mas os que foram referidos permitem que se tenha um quadro<br />

panorâmico elucidativo da aproximação entre estas duas obras.<br />

Postas algumas semelhanças entre as obras do corpus, gostaria <strong>de</strong> referir,<br />

muito rapidamente, uma diferença.<br />

No que diz respeito ao género literário, em Portagem, Orlando Men<strong>de</strong>s oscila<br />

entre o que se po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar um romance e uma novela, se bem que pareça que<br />

tenha pretendido produzir um romance, a julgar pela tentativa <strong>de</strong> tornar a narrativa<br />

complexa, num texto que se preten<strong>de</strong> mais ou menos longo. Já Guilherme <strong>de</strong><br />

Melo, em A Estranha Aventura, optou pelo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> conto, mas com uma<br />

nuance: nalguns <strong>de</strong>sses contos (se não em todos) notam-se características<br />

próximas da crónica jornalística, pois aliam a componente literária à da crítica<br />

informativa <strong>de</strong> certos acontecimentos da época.<br />

******


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