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O Quarto do Rei - Planeta

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Juliette Benzoni<br />

O <strong>Quarto</strong> <strong>do</strong> <strong>Rei</strong><br />

A Época <strong>do</strong>s Venenos <br />

Volume II<br />

Tradução<br />

Irene Daun e Lorena<br />

Nuno Daun e Lorena


<strong>Planeta</strong> Manuscrito<br />

Rua <strong>do</strong> Loreto, n.º 16 – 1.º Direito<br />

1200 -242 Lisboa • Portugal<br />

Reserva<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os direitos<br />

de acor<strong>do</strong> com a legislação em vigor<br />

© 2009, Éditions Perrin<br />

© 2010, <strong>Planeta</strong> Manuscrito<br />

Título original: La chambre du roi – Le temps des poisons<br />

Revisão: Clara Joana Vitorino<br />

Paginação: Guidesign<br />

1.ª edição: Fevereiro de 2012<br />

Depósito legal n.º 337 375/11<br />

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráfi cas<br />

ISBN: 978-989-657-228-0<br />

www.planeta.pt


ÍNDICE<br />

primeira parte<br />

Desaparecida!<br />

Madame de Montespan Faz Perguntas 11<br />

Uma Morte Suspeita 32<br />

Que É Feito de Charlotte? 53<br />

Golpe de Teatro 76<br />

segunda parte<br />

A Casa de Saint-Germain<br />

O Ferimento Envenena<strong>do</strong> 95<br />

Um Hóspede Inespera<strong>do</strong> 117<br />

Charlotte Descobre a Verdade 135<br />

A Casa Devastada 156<br />

terceira parte<br />

Das Trevas à Luz<br />

A Cadeira Espanhola 177<br />

O Duelo 197<br />

Dias de Cólera 217<br />

O Atenta<strong>do</strong> 237<br />

A Noite de Versalhes 257<br />

epílogo 279<br />

agradecimentos 281


primeira parte<br />

Desaparecida


C<br />

APÍ T U L O 1 <br />

Madame de Montespan<br />

Faz Perguntas<br />

Morreu a rainha!<br />

M Repercutidas pelas paredes de mármore e pelos espelhos, as terríveis<br />

palavras percorreram o imenso palácio mais depressa <strong>do</strong> que um vento<br />

tempestuoso, gelan<strong>do</strong> guardas, cria<strong>do</strong>s e cortesãos. Já? Tão ce<strong>do</strong>? Quan<strong>do</strong><br />

acabara de a<strong>do</strong>ecer e dera provas de boa saúde por ocasião da recente viagem<br />

às províncias de leste? A sombria notícia, porém, passou sobre a cidade,<br />

os campos e chegou a Paris, por fi m, onde os sinos das igrejas se puseram<br />

a tocar a fi na<strong>do</strong>s e tomou conta, pouco a pouco, de toda a França.<br />

Como de repente parecia grande a pequena, tímida e <strong>do</strong>ce soberana,<br />

esmagada pelo seu profun<strong>do</strong> amor por um rei que tantas vezes a rebaixara<br />

– a ela, uma infanta! – com as suas numerosas amantes, obrigan<strong>do</strong> -a<br />

a dar -lhes posição social na sua casa e a partilhar com elas a sua carruagem<br />

quan<strong>do</strong> iam de viagem. Luís XIV não iria, decerto, mostrar grande<br />

<strong>do</strong>r pelo seu desaparecimento.<br />

Após verter algumas lágrimas sobre os seus despojos ainda quentes<br />

– não era segre<strong>do</strong> para ninguém que chorava com facilidade – Sua Majestade<br />

apressara -se a seguir o costume que proibia o rei de permanecer debaixo<br />

<strong>do</strong> mesmo tecto de um defunto, refugian<strong>do</strong> -se em casa de Monsieur, o seu<br />

irmão, no château de Saint -Cloud, enquanto Maria Teresa era exposta no<br />

seu leito até ao dia seguinte – 31 de Julho de 1683 – data em que o seu<br />

corpo foi entregue à autópsia <strong>do</strong>s médicos e <strong>do</strong>s embalsama<strong>do</strong>res. O soberano<br />

só foi visto, e por breves momentos, <strong>do</strong>is dias mais tarde.<br />

No dia 2 de Agosto, sob um calor infernal acresci<strong>do</strong>, apesar das persianas<br />

fechadas, pelas múltiplas velas acesas, procedeu -se à parada habitual<br />

das homenagens no Grand Cabinet de la <strong>Rei</strong>ne. Perante o catafalco sob<br />

um <strong>do</strong>ssel de velu<strong>do</strong> negro com franjas prateadas, no qual se reproduziam<br />

‹ 11 ›


› juliette benzoni ‹<br />

as armas da defunta, desfi lou primeiro o clero: os bispos, os padres e os<br />

capelães, enquanto na base <strong>do</strong>s degraus se mantinham <strong>do</strong>is arautos vesti<strong>do</strong>s<br />

de negro com os hissopes de água benta. Um punha<strong>do</strong> de damas, de luto<br />

pesa<strong>do</strong>, velavam a rainha, substituídas de duas em duas horas por outras<br />

tantas, pertencentes à mais alta aristocracia.<br />

O rei chegou, por fi m, com a sua família e deitou umas gotas sobre o<br />

corpo da sua mulher. To<strong>do</strong>s usavam longos mantos negros com cauda,<br />

sen<strong>do</strong> o tamanho desta proporcional ao estatuto de cada um 1 . O mesmo<br />

acontecia com os fumos ata<strong>do</strong>s em volta <strong>do</strong>s chapéus.<br />

Luís XIV, arvoran<strong>do</strong> a fi sionomia exigida pelo acontecimento, ao ponto de<br />

deixar deslizar pelo seu longo rosto abaixo duas ou três lágrimas, inclinou-<br />

-se, murmurou uma curta oração, aspergiu o corpo que lhe fora sempre<br />

tão obediente e em seguida foi saudar, no pequeno altar vizinho, o receptáculo<br />

de prata <strong>do</strong>urada forra<strong>do</strong> a chumbo onde fora coloca<strong>do</strong> o coração<br />

da sua mulher, que iria fazer companhia, na capela de Val -de -Grâce, ao de<br />

Ana de Áustria, sua tia e sogra e mãe <strong>do</strong> rei.<br />

Em seguida Sua Majestade voltou aos seus aposentos para trocar as vestes<br />

fúnebres por um plastrão e umas mangas de fi na renda, subiu para a sua carruagem<br />

e partiu para Fontainebleau, onde o esperavam os prazeres da caça.<br />

Entretanto, em Versalhes e alguns instantes após a partida <strong>do</strong> rei, madame<br />

de Montespan e a duquesa de Créqui, substituídas pela duquesa de Chevreuse<br />

e pela condessa de Gramont, aban<strong>do</strong>navam a câmara -ardente com<br />

alívio e desciam a escadaria ornamentada com fumos negros, como o resto<br />

<strong>do</strong>s aposentos reais, e saíam para o parque à procura de um ar mais respirável.<br />

A marquesa parecia preocupada e a sua companheira, que a conhecia<br />

havia muito tempo, perguntou -lhe:<br />

– Dir -se -ia que qualquer coisa vos atormenta?<br />

– De facto. Sabeis dizer -me para onde foi a pequena Saint -Forgeat?<br />

Desde que voltei de Clagny para assumir as funções de superintendente<br />

da rainha, que não a vejo!<br />

– Não sei mais <strong>do</strong> que vós. Parece que se volatilizou no dia da morte da<br />

nossa pobre Maria Teresa.<br />

– Volatilizou? Como assim?<br />

1 Cinco pés (1,68 m) para o soberano e quatro polegadas (11 cm) para os marechais e os grandes<br />

dignitários.<br />

‹ 12 ›


› o quarto <strong>do</strong> rei ‹<br />

– Penso que é o termo certo. Ela aban<strong>do</strong>nou a câmara mortuária pouco<br />

depois da passagem <strong>do</strong> rei. De facto até saiu a correr! Pelo que sei foi atrás<br />

dele. Viram -na entrar no gabinete de trabalho de Sua Majestade, mas não<br />

a viram sair…<br />

Os belos olhos azuis da Montespan arregalaram -se:<br />

– Mas isso não faz senti<strong>do</strong>! Deve ter saí<strong>do</strong> mais tarde ou mais ce<strong>do</strong>, não?<br />

Não há esconderijos nos aposentos <strong>do</strong> rei e disseram -me que ele foi para<br />

Saint -Cloud logo a seguir à morte. Tê -la -á leva<strong>do</strong> com ele?<br />

– Não, claro que não, mas pode tê -la aconselha<strong>do</strong> a ir lá ter, quanto mais<br />

não seja para se juntar ao mari<strong>do</strong>, que está com Monsieur. Além <strong>do</strong> mais ela<br />

foi durante muito tempo <strong>do</strong>nzela de honor de Madame. Como está desocupada,<br />

seria natural. O que me surpreende é a partida súbita sem dizer<br />

nada a ninguém. E também não se juntou a nós na vigília… a menos que<br />

se tenha senti<strong>do</strong> de súbito incomodada. O que não seria de estranhar numa<br />

jovem recém -casada…<br />

– Achais que ela pode estar grávida? Com o mari<strong>do</strong> que tem seria um<br />

milagre.<br />

– Que há -de ser, se não isso?<br />

– Tendes razão…<br />

Consciente, talvez, da piedade um pouco forçada da duquesa, madame<br />

de Montespan absteve -se de acrescentar que só com a ajuda <strong>do</strong> Espírito<br />

Santo a jovem estaria grávida, mas, desejosa de prosseguir o seu inquérito,<br />

a dama despediu -se da sua companheira, pretextan<strong>do</strong> que tinha de<br />

escrever uma carta e voltou para o palácio. Enquanto o corpo da soberana<br />

estivesse em Versalhes, a sua função de superintendente mantinha-<br />

-se e como Charlotte continuava sob as suas ordens, a dama dirigiu -se<br />

ao quarto habitualmente ocupa<strong>do</strong> pela segunda dama de honor, por<br />

cima <strong>do</strong>s aposentos de Maria Teresa e encontran<strong>do</strong> a porta fechada, na<br />

qual tinham escrito a giz «Para madame la comtesse de Saint -Forgeat»,<br />

chamou uma camareira para que lha abrisse. O aposento, pequeno,<br />

mas mais confortável <strong>do</strong> que muitos outros, estava em perfeita ordem,<br />

ao ponto de não parecer, sequer, habita<strong>do</strong>. Nenhum objecto pessoal<br />

– frasco de perfume, lenço ou caixa de pó – ocupava o touca<strong>do</strong>r. Madame<br />

de Montespan chamou a rapariga, que entretanto se retirara por uma<br />

questão de respeito.<br />

– Dir -se -ia que este quarto não está ocupa<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> vistes a condessa<br />

pela última vez?<br />

‹ 13 ›


› juliette benzoni ‹<br />

– Na manhã seguinte à morte de Sua Majestade. Como passou a noite<br />

nos aposentos da rainha, madame la comtesse veio lavar -se, mu<strong>do</strong>u de roupa<br />

e voltou a sair. Pus tu<strong>do</strong> em ordem e depois fechei o quarto à chave como é<br />

costume, mas à noite constatei que a porta estava aberta, as arcas também,<br />

e que faltava um vesti<strong>do</strong>, um manto, roupa branca e alguns objectos de toilette,<br />

para além de um saco. Pensan<strong>do</strong> que madame la comtesse se ausentara<br />

por pouco tempo, pus de novo tu<strong>do</strong> em ordem e voltei a fechar o quarto,<br />

mas não voltei a vê -la. Talvez tenha i<strong>do</strong> ter com o mari<strong>do</strong>…<br />

Com tão pouca bagagem? Conhecen<strong>do</strong> os hábitos de vestuário deste,<br />

era impensável, mesmo em perío<strong>do</strong> de luto e mesmo em casa de Madame<br />

Palatina, que se estava nas tintas para as toilettes. Havia ali um mistério qualquer<br />

e a marquesa estava decidida a desvendá -lo. A dama, de facto, detestava<br />

perguntas sem resposta e achava estranho que o último sítio onde a<br />

jovem entrara fosse o gabinete <strong>do</strong> rei. A menos que…<br />

As atenções que Luís XIV dispensava à jovem e encanta<strong>do</strong>ra Charlotte<br />

após o casamento, atenções que madame de Montespan se esforçara por<br />

promover com o objectivo de o desviar da insuportável Maintenon, talvez<br />

estivessem na origem <strong>do</strong> seu súbito desaparecimento. Como a rainha<br />

já não era obstáculo aos desejos <strong>do</strong> rei, cuja violência Athénaïs conhecia<br />

melhor <strong>do</strong> que ninguém, talvez Sua Majestade tivesse decidi<strong>do</strong> afastar a<br />

jovem condessa e colocá -la num sítio discreto à sua disposição, onde ela<br />

teria um guarda -roupa cem vezes melhor e algumas jóias. Bastava recordar<br />

a maneira insolente com que ele desfl orara, três anos antes, Angélique<br />

de Fontanges em plena noite no Palais Royal, em casa <strong>do</strong> seu irmão Monsieur,<br />

levan<strong>do</strong> -a consigo no dia seguinte à vista de to<strong>do</strong>s.<br />

Como Charlotte fora ter com ele ao gabinete de livre vontade, ele devia<br />

ter aproveita<strong>do</strong> a ocasião e manda<strong>do</strong> a bela jovem para Fontainebleau ou<br />

para outro sítio qualquer da vizinhança… De facto a ideia era sedutora e<br />

talvez, por fi m, madame de Saint -Forgeat acabasse por engravidar, o que<br />

seria engraça<strong>do</strong>! Os dias da Maintenon estariam conta<strong>do</strong>s!<br />

Charlotte não lhe escondera que não se sentia atraída pelo rei, mas a<br />

marquesa sabia, por experiência própria, que era difícil resistir -lhe quan<strong>do</strong><br />

ele se empenhava. Madame de Montespan sabia que fi caria com remorsos,<br />

coisa sem importância desde que alcançasse o objectivo deseja<strong>do</strong>: a eliminação<br />

da velha galdéria!<br />

Mas o optimismo da marquesa desapareceu depressa porque, de volta<br />

aos seus aposentos, encontrou a princesa de Lillebonne a uma das janelas<br />

‹ 14 ›


› o quarto <strong>do</strong> rei ‹<br />

que davam para o pátio de Marbre. A dama aproximou -se, mas viu apenas<br />

uma carruagem com as armas <strong>do</strong> duque de La Rochefoucauld a dirigir -se<br />

para a saída <strong>do</strong> palácio:<br />

– Estais assim tão interessada no duque? – perguntou -lhe ela, rin<strong>do</strong>.<br />

– Nele não, mas no que vai na carruagem dele. A Maintenon, que vai<br />

ter com o rei a Fontainebleau. Ouvi -o dizer há pouco que a sua presença<br />

seria, para ele, o melhor <strong>do</strong>s consolos…<br />

– Quan<strong>do</strong> a rainha ainda está em Versalhes? Meu Deus!<br />

– É verdade! Receio que nos esteja a preparar para dias ainda mais austeros<br />

<strong>do</strong> que no passa<strong>do</strong>…<br />

– Espero que ele não vá dar à viúva Scarron o lugar de uma infanta de<br />

Espanha?<br />

Em solteira Vaudémont -Lorraine, a princesa, uma das damas mais importantes<br />

<strong>do</strong> reino, não gostava de Luís XIV.<br />

– Acho -o muito capaz disso – deixou ela cair, desdenhosa. – Aquela mulher<br />

está sempre a repetir -lhe que quer reconciliá -lo com Deus e reabrir -lhe<br />

as portas <strong>do</strong> Céu!<br />

– Como se elas tivessem alguma coisa que ver com as <strong>do</strong> Paraíso! Ele<br />

tem de perceber a diferença!<br />

– Aproxima -se <strong>do</strong>s cinquenta, a idade perigosa!<br />

– Sê -lo -á menos sob a autoridade de uma pedante que já a ultrapassou?<br />

– Preferíeis uma jovem à semelhança da pobre Fontanges? – ironizou<br />

madame de Lillebonne.<br />

– Cem vezes sim! Pelo menos a corte não era este sítio sinistro em que<br />

se transformou!…<br />

Sem mais uma palavra, madame de Montespan regressou aos seus aposentos,<br />

trocou o grande traje de luto por outro menos solene, ordenou que<br />

a penteassem e partiu para Saint -Cloud, para onde Madame regressara.<br />

A dama era muito amiga de Monsieur r e não tanto da sua mulher, a qual,<br />

moralista como era, não apreciara os seus amores fulgurantes com o seu<br />

cunha<strong>do</strong>, mas que lhe apreciava o espírito mordaz, a vitalidade e a generosidade<br />

para com os pobres.<br />

A princesa man<strong>do</strong>u -a entrar assim que lha anunciaram, apesar de estar<br />

em négligé é por causa <strong>do</strong> calor.<br />

Madame, como era costume, não estava sentada à escrivaninha a escrever,<br />

antes estendida numa espreguiçadeira com um leque na mão, fungan<strong>do</strong><br />

as lágrimas que não conseguia evitar. Do fun<strong>do</strong> de uma profunda<br />

‹ 15 ›


› juliette benzoni ‹<br />

reverência, madame de Montespan pediu -lhe que lhe desculpasse o momento<br />

inoportuno:<br />

– Não, não, não vos desculpeis. Agrada -me ver uma pessoa que não se<br />

acha obrigada a ter o ar de Deus na Terra! Todas estas fi sionomias crispadas<br />

são insuportáveis quan<strong>do</strong> o desgosto é verdadeiro.<br />

– Eu sei que Madame gostava muito da rainha…<br />

A dama não acrescentou – o que ninguém ignorava, aliás – que aquele coração<br />

cândi<strong>do</strong> amava ainda mais o rei, razão pela qual odiava madame de Maintenon.<br />

– É verdade, gostava muito dela, foi uma verdadeira amiga. E agora vinde<br />

sentar -vos. Deveis estar com sede. Vou mandar vir uma limonada fresca.<br />

E dizei -me o que vos traz porque me pareceis muito preocupada.<br />

– E estou. Vossa Alteza sabe onde está Charlotte de Fontenac… quero<br />

dizer, madame de Saint -Forgeat?<br />

– Ignoro, por minha fé! Pensais que está aqui?<br />

– Seria o mais natural. A morte de Sua Majestade deixa -a sem emprego,<br />

como a mim, aliás, e se tivermos em conta os laços que a ligam a vós… Sem<br />

falar no facto de o seu mari<strong>do</strong>…<br />

– … estar com o meu? Não é razão: eles não se devem ter visto mais de<br />

duas vezes desde o casamento. Quanto a estar ao pé de mim, seria lógico.<br />

De facto, a minha intenção é reivindicá -la. Mas por que a procurais?<br />

– Porque se volatilizou, literalmente. A última vez que a viram, a rainha<br />

acabava de falecer e ela precipitava -se para a suíte <strong>do</strong> rei para falar com ele.<br />

– Porquê tanta pressa? Que tinha ela de tão importante a dizer -lhe?<br />

– Não sei. Repito -vo -lo, eu não estava lá, mas alguém me disse que ela<br />

parecia muito perturbada.<br />

– E esse alguém não teve a curiosidade de esperar que ela saísse? Coisa<br />

rara, essa falta de interesse na corte.<br />

– Concor<strong>do</strong>, mas é assim… Confesso que me demorei um instante na<br />

ideia de que… enfi m, como a pequena agrada visivelmente ao nosso Sire…<br />

– … pensastes que, defi nitivamente viúvo, o rei teria podi<strong>do</strong>… escamoteá-<br />

-la, tal como fez com a Fontanges, mas com mais discrição e mandá -la esperar<br />

num sítio qualquer? – Irritada, a soberba Montespan hesitou, coran<strong>do</strong>,<br />

um espectáculo inespera<strong>do</strong> que Madame saboreou com gula, o que teve o<br />

condão de a distrair <strong>do</strong> desgosto. – Tanto mais que ele só a casou para lhe<br />

tirar o estatuto de rapariga, já que aquele queri<strong>do</strong> Saint -Forgeat tem as<br />

apreciáveis qualidades de um mari<strong>do</strong> sur<strong>do</strong>, mu<strong>do</strong> e cego? A ideia é boa,<br />

não há dúvida – acrescentou a princesa.<br />

‹ 16 ›


› o quarto <strong>do</strong> rei ‹<br />

– Infelizmente tive de renunciar à ideia. Antes de vir ter convosco vi o<br />

duque de La Rochefoucauld partir para Fontainebleau na companhia da<br />

Maintenon…<br />

– Oh não!…<br />

– Infelizmente sim! Como se fosse a única capaz de apaziguar a imensa<br />

<strong>do</strong>r <strong>do</strong> rei! Tu<strong>do</strong> o que aquela mulher conseguiu dele foi algumas lágrimas<br />

e umas gotas de água benta, infelizmente.<br />

– Espero que ele volte para o funeral?!<br />

– Gostaria de ter a certeza!<br />

O tom era de dúvida total, mas Madame não fi cou chocada porque tinha<br />

de se render à evidência: quan<strong>do</strong> na noite <strong>do</strong> dia 10 de Agosto Maria Teresa<br />

partiu para Saint -Denis, o seu mari<strong>do</strong> não a acompanhou. Só cinco princesas<br />

seguiam com a rainha, para além das suas damas: a Delfi na, Madame,<br />

a princesa de Conti, mademoiselle de Montpensier e mademoiselle de Bourbon.<br />

Pelo la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s homens Monsieur r e o pobre Verman<strong>do</strong>is, que mais pouco<br />

tempo tinha de vida e que chorava copiosamente. Dez guardas a cavalo<br />

escoltavam a carruagem fúnebre, segui<strong>do</strong>s de cerca de sessenta «pobres»<br />

vesti<strong>do</strong>s de cinzento, mas <strong>do</strong> rei nem sinal!<br />

O percurso nocturno passou por Ville -d’Avray, Saint -Cloud, o bosque<br />

de Bolonha, a Porte des Sablons e a planície de Saint -Denis, presencia<strong>do</strong><br />

por uma multidão, parte da qual se juntou ao cortejo. Por fi m o féretro<br />

foi deposita<strong>do</strong> no coro da necrópole <strong>do</strong>s reis de França, à espera da<br />

cerimónia solene <strong>do</strong> dia 1 de Setembro, na presença <strong>do</strong> Delfi m, <strong>do</strong>s tribunais<br />

soberanos, <strong>do</strong> Parlamento, <strong>do</strong>s Impostos e da Casa da Moeda, da<br />

Universidade, <strong>do</strong> Châtelet, <strong>do</strong> Corps de Ville e, bem entendi<strong>do</strong>, daqueles<br />

e daquelas que já lá estavam no dia 10 de Agosto… A missa foi celebrada<br />

por um <strong>do</strong>s capelães da rainha e o ilustre Bossuet pronunciou uma<br />

admirável… e interminável oração: «Ela [a rainha] não teme a Deus e<br />

aos homens: a maledicência nunca a atingiu, desde a infância até à morte,<br />

e uma glória tão pura, uma reputação tão bela é um perfume precioso<br />

que regozija o céu e a terra…»<br />

Preferin<strong>do</strong> ouvir os pássaros à sombra das belas árvores de Fontainebleau,<br />

Luís XIV não ouviu nada nem participou na missa de Notre -Dame,<br />

onde Paris prestou homenagem à sua defunta soberana.<br />

Mais tarde soube -se que no momento em que madame de Maintenon<br />

apareceu na sua frente, de luto pesa<strong>do</strong> e com uma fi sionomia atormentada,<br />

o rei não conseguiu deixar de dizer, rin<strong>do</strong>:<br />

‹ 17 ›


› juliette benzoni ‹<br />

– Santo Deus, Madame, parece que acabais de enterrar a vossa família<br />

toda! Não vos julgava tão afectada.<br />

– É o que pensais? Por minha fé, importo -me tanto quanto vós!<br />

E foi a sua vez de rir… Não havia remédio para aqueles <strong>do</strong>is.<br />

Maria Teresa já estava morta há um mês e ninguém sabia de Charlotte.<br />

Interroga<strong>do</strong> por Madame, Adhémar de Saint -Forgeat pareceu cair das nuvens.<br />

O fi dalgo não sabia onde estava a sua mulher, da qual não queria saber,<br />

aliás, de acor<strong>do</strong> com o acor<strong>do</strong> tácito feito entre ambos no dia seguinte às<br />

núpcias. Oxalá não lhe tivesse aconteci<strong>do</strong> nada de mal.<br />

– Que querias tu que lhe tivesse aconteci<strong>do</strong>? – ironizou o cavaleiro de<br />

Lorena, que passava por ali. – Ela é uma mulher demasia<strong>do</strong> bonita para não<br />

ser cortejada. Como já não está ao serviço austero da nossa defunta rainha,<br />

concedeu a si própria, talvez, uma distracção bem merecida?<br />

O sarcasmo feriu a bela serenidade conjugal:<br />

– Distracção? Que entendes por isso, cavaleiro?<br />

– Apenas que ela pode estar numa lua -de -mel que tu não julgaste útil<br />

oferecer -lhe! A natureza tem horror ao vazio e as mulheres também.<br />

– E a minha honra? – gritou Saint -Forgeat. – Que acontece à minha<br />

honra?<br />

– Messieurs, messieurs! – interveio Madame. – Não acho que seja caso<br />

para brincadeiras…<br />

– Mas eu não estou a brincar!<br />

– A mim parece -me que sim e monsieur r de Saint -Forgeat tem razão em<br />

insurgir -se contra uma suposição de muito mau gosto. Mademoiselle de<br />

Fontenac…<br />

– É fi lha da sua mãe… o que diz tu<strong>do</strong>! – replicou Lorena, aze<strong>do</strong>.<br />

– Nesse caso, por que não impedistes o vosso amigo de casar com ela,<br />

em vez de o incitardes? Além <strong>do</strong> mais só uma alma perversa lança suspeitas<br />

sobre uma jovem pela qual tenho um afecto particular e que conheço<br />

o sufi ciente para saber que nunca se aban<strong>do</strong>naria a uma paixão, por mais<br />

louca que fosse, neste momento de luto incomensurável que se abate sobre<br />

nós. Ela amava a rainha que a socorreu e quan<strong>do</strong> a nossa soberana expirou,<br />

bem a vimos, perdida de desgosto, a correr atrás <strong>do</strong> rei, imploran<strong>do</strong>-<br />

-lhe o favor de uma curta audiência. Foi nesse momento que desapareceu.<br />

– Nunca mais ninguém a viu?<br />

– Ninguém, o que deve chegar para refrear essa vossa língua de víbora,<br />

monsieurr cavaleiro de Lorena!<br />

‹ 18 ›


› o quarto <strong>do</strong> rei ‹<br />

Foi quanto bastou. Não só o belo Filipe não ripostou, como lançou ao<br />

seu «confrade» um olhar perplexo de sobrolho franzi<strong>do</strong>:<br />

– Por outras palavras, é a Sua Majestade que é preciso fazer a pergunta?<br />

Arriscas -te, Saint -Forgeat!<br />

– Eu? Perguntar ao rei?<br />

– Por que não? No fi m de contas ela é tua mulher…<br />

– Que belo mari<strong>do</strong> me saístes! – escarneceu Madame. – Ficai descansa<strong>do</strong>s, messieurs.<br />

O que tanto vos assusta, a mim não me mete me<strong>do</strong>! Eu vou ter com o rei.<br />

Ora, no momento em que a princesa tomava a decisão, já mais alguém<br />

entrava em acção. Madame de Montespan vivera demasia<strong>do</strong> tempo na intimidade<br />

de Luís para temer fosse o que fosse. O desaparecimento de Charlotte<br />

enervava -a e a dama estava decidida a descobrir a causa.<br />

Assim, quan<strong>do</strong> Luís saía da capela após um derradeiro sinal da cruz,<br />

fechan<strong>do</strong> pie<strong>do</strong>samente o seu missal, a passagem foi -lhe de súbito barrada<br />

pela reverência da marquesa, estenden<strong>do</strong> -lhe na frente uma torrente de<br />

tafetá moiré é cinzento e azul.<br />

– Sire – disse ela com o seu mais cintilante sorriso –, peço ao rei que me<br />

ouça em audiência privada.<br />

– Quereis falar -nos, Madame? A propósito de quê?<br />

– De um facto que Vossa Majestade julgará, talvez, de pouca importância,<br />

mas que a mim me afl ige.<br />

– Bem, dêmos alguns passos juntos, nesse caso.<br />

– O rei sabe que tenho grande prazer em caminhar na sua companhia,<br />

mas a felicidade é tão grande que prefi ro tê -la sozinha! – respondeu ela,<br />

lançan<strong>do</strong> um olhar à sua rival atrás de Luís XIV, com as pálpebras modestamente<br />

baixadas. – Sobretu<strong>do</strong> hoje, que o que tenho a dizer não é para<br />

to<strong>do</strong>s os ouvi<strong>do</strong>s. O gabinete de Vossa Majestade parece -me o local ideal.<br />

– Seja! Vinde!… Vemo -nos mais tarde, Madame – acrescentou ele para<br />

a Maintenon, que se afastou visivelmente agastada depois de ter <strong>do</strong>bra<strong>do</strong><br />

o joelho ao de leve sob o olhar trocista da sempre bela Athénaïs. Cinco<br />

minutos mais tarde os guardas suíços fechavam as portas <strong>do</strong> gabinete real<br />

sobre o casal. Luís entregou o chapéu, as luvas e o missal ao seu cria<strong>do</strong>,<br />

despedin<strong>do</strong> -o com um gesto e sentou -se à sua secretária, indican<strong>do</strong> uma<br />

cadeira à sua visitante. – Pronto! Estamos sós! Dizei, mas depressa porque<br />

ainda tenho muito que fazer hoje. Que quereis?<br />

– Fazer uma pergunta a Vossa Majestade… se Ela me permitir!<br />

– Fazei.<br />

‹ 19 ›


› juliette benzoni ‹<br />

– Desejo saber onde está madame de Saint -Forgeat, que ninguém vê<br />

desde o dia funesto em que a rainha nos deixou.<br />

– E devemos saber?<br />

O emprego da primeira pessoa <strong>do</strong> plural e o sobrolho franzi<strong>do</strong> não escaparam<br />

à marquesa, que já estava habituada.<br />

– Não vejo quem para além <strong>do</strong> rei. Ela entrou neste gabinete muito preocupada<br />

e pelo que sei não voltou a sair.<br />

– Devíeis ter cuida<strong>do</strong> com o que dizeis, Madame, e a quem o dizeis. Imaginais<br />

o quê? Que a temos escondida num armário há um mês?<br />

– Isso não faria senti<strong>do</strong>. O rei partiu para Saint -Cloud pouco depois.<br />

– Então? Asseguramos -vos que ela estava presente quan<strong>do</strong> deixámos o<br />

palácio e que ignoramos o que é feito dela.<br />

– Ela fi cou sozinha nesta divisão?<br />

– Fazeis demasiadas perguntas, Madame, o que não é costume quan<strong>do</strong><br />

alguém se dirige ao rei e devíeis sabê -lo!<br />

– Tendes razão, Sire, mas eu conheci uma época… maravilhosa em que<br />

nos ríamos desprendi<strong>do</strong>s depois de fazermos amor, quan<strong>do</strong> para mim o rei<br />

se chamava Luís… Sire, eu tenho muita amizade por aquela pequena Charlotte…<br />

talvez devi<strong>do</strong> a uma semelhança que acorda em mim alguns remorsos,<br />

mas também porque o azar parece encarniçar -se contra ela, privan<strong>do</strong> -a<br />

das protecções uma a seguir à outra.<br />

– Ela tem mari<strong>do</strong>, que eu saiba? E não esqueçais, Madame…<br />

– Sobretu<strong>do</strong> há alguém que dá a impressão de se dar ao trabalho de a<br />

destruir e não me pergunteis quem porque sabei -lo tão bem como eu e eu<br />

não vos responderia. É por isso que ouso repetir a minha pergunta, que<br />

será a última: ela fi cou aqui?<br />

– Não. Ela estava com aquele Louvois quan<strong>do</strong> nós partimos, o que devia<br />

tranquilizar -vos. Ele é um <strong>do</strong>s vossos amigos, se não me engano?<br />

– De facto! No entanto não lhe confi aria uma jovem tão bela quanto<br />

madame de Saint -Forgeat. Os seus apetites são exigentes e sujeitos, por<br />

vezes, a estranhas explosões.<br />

– Falais por experiência própria?<br />

– Ele não ousaria. Seria dar mostras de uma rara presunção aventurar-<br />

-se em terras <strong>do</strong> rei mais sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, invioláveis…<br />

A lisonja era um pouco excessiva, mas a Montespan conhecia Luís XIV<br />

como a palma das suas mãos e, de facto, o rei amansou, ao ponto de assumir<br />

um ar sonha<strong>do</strong>r que não se coadunava com a sua pessoa:<br />

‹ 20 ›


› o quarto <strong>do</strong> rei ‹<br />

– Terras belas, sombrosas e <strong>do</strong>ces, onde eu gostava de me perder.<br />

Uma súbita vaga de esperança fez inchar o coração da marquesa… que<br />

morreu mal nasceu:<br />

– Sire – disse uma voz se<strong>do</strong>sa –, não seria melhor dizer a verdade a madame<br />

de Montespan, em vez de a deixardes perdida em conjecturas estranhas?<br />

A Maintenon! Lá estava ela, saída não se sabia de onde e sem que a<br />

tivessem chama<strong>do</strong>, o que podia signifi car muita coisa, mas o sangue Mortemart<br />

estava para lá de tais contingências. Do alto da sua soberba, Athénaïs<br />

olhou para a intrusa:<br />

– Ah! Estáveis então aí? Continuais com esse curioso hábito de escutar<br />

às portas?<br />

Luís XIV voou em socorro da sua confi dente:<br />

– Não vos admito esse tom, marquesa! Madame de Maintenon pode<br />

entrar quan<strong>do</strong> quiser desde que lhe confi ei a salvação da minha alma…<br />

– O padre de La Chaise está <strong>do</strong>ente, ao ponto de requerer a ajuda de<br />

Madame? Que má notícia porque se trata de um homem de espírito em<br />

to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> termo. O que não é o caso de outras pessoas!<br />

– Acabai com o jogo, Madame! Desagrada -me!<br />

– O rei vê -me desolada e não segue o conselho que acabam de lhe dar?<br />

Que verdade é essa que eu devia conhecer?<br />

– Com permissão de Vossa Majestade, di -la -ei eu: madame de Saint-<br />

-Forgeat ofendeu o rei. Sua Majestade não quis ouvi -la mais e entregou a<br />

monsieur r de Louvois o cuida<strong>do</strong> de acalmar a jovem fúria.<br />

– Fúria? Charlotte? Quan<strong>do</strong> a morte da rainha a mergulhara na angústia?<br />

– Como sabeis? Não estáveis aqui!<br />

– Mas estavam outras pessoas, que mo disseram. Mas já que sabeis tanto,<br />

Madame, dir -me -eis em que a pobre criança ofendeu Sua Majestade?<br />

– Eu não tenho as vossas curiosidades intempestivas, Madame. Sei que<br />

ela se deu como culpada, mas ignoro de quê! – disse a Maintenon, muito<br />

virtuosa.<br />

– A sério? Não sereis vós a ofendida? Não sois vós que desde a sua chegada<br />

à corte não parais de a perseguir?<br />

– Eu? Inventais, Madame! Eu não tenho qualquer razão…<br />

– Tendes sim! Demasia<strong>do</strong> jovem, demasia<strong>do</strong> bela e sobretu<strong>do</strong> aquela<br />

semelhança que vós achais perigosa!<br />

– A memória prega -vos partidas, Madame. Não fui eu que suplantei e<br />

reduzi ao desespero mademoiselle de La Vallière.<br />

‹ 21 ›


› juliette benzoni ‹<br />

– Talvez o lamente mais <strong>do</strong> que vós! Não somos senhoras <strong>do</strong>s nossos<br />

corações quan<strong>do</strong> amamos e quan<strong>do</strong> o objecto da nossa paixão se apaga…<br />

Paixão que vibrou por um instante na voz quente da antiga favorita, encontran<strong>do</strong><br />

eco inespera<strong>do</strong> no coração de Luís. O rei virou -se para a Maintenon:<br />

– Obriga<strong>do</strong> por terdes queri<strong>do</strong> ajudar -me, Madame – disse ele com <strong>do</strong>çura –,<br />

mas gostaria de continuar com este encontro… Vemo -nos mais tarde! – Não<br />

havia mais nada a fazer senão saudar e retirar, mas as faces da Maintenon<br />

fi caram marcadas por um rubor súbito, sinónimo de uma cólera contida.<br />

Encantada com a pequena vitória, Athénaïs absteve -se, sabiamente, de a<br />

comentar, tanto mais que Luís se aproximava com uma chama no fun<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>s olhos que ela já não esperava ver: – Resta alguma coisa dessa paixão?<br />

– murmurou ele, tão próximo que ela lhe sentiu o bafo. – Ou não passa de<br />

um punha<strong>do</strong> de cinzas?…<br />

– Por baixo as brasas continuam ardentes, pedin<strong>do</strong> apenas que as façam<br />

regressar à vida…<br />

Seguiu -se um silêncio estranho e vivo ou um gemi<strong>do</strong> sur<strong>do</strong> ao qual respondeu<br />

um suspiro. Quan<strong>do</strong> os lábios de ambos se separaram, Athénaïs ouviu:<br />

– Vou caçar para os la<strong>do</strong>s de Clagny daqui a pouco. Espera lá por mim!<br />

Ao aban<strong>do</strong>nar o gabinete real, a marquesa quase esquecera a razão que<br />

a levara lá… Não conseguia pensar noutra coisa que não naquelas horas<br />

vin<strong>do</strong>uras, durante as quais o Sol lhe abraçaria de novo a cama solitária!<br />

Madame de Montespan partiu de imediato para o seu castelo de Clagny.<br />

Quanto a Madame, teve de se deitar, acometida por uma gripe violenta<br />

que a isolou e a impediu de visitar o rei como era sua intenção. Entretanto<br />

a corte partia para Fontainebleau, o que lhe permitiu, com grande satisfação,<br />

fi car em Saint -Cloud para tratar da sua indisposição.<br />

Entretanto representava -se uma tragicomédia. O rei, ten<strong>do</strong> recebi<strong>do</strong><br />

um correio de Versalhes, informan<strong>do</strong> -o de que os primeiros trabalhos para<br />

a reconstrução da ala norte acabavam de desabar, fi cou verde de cólera e<br />

descarregou a sua ira sobre Colbert, responsável, segun<strong>do</strong> ele, pelo desastre,<br />

já que era ele o responsável pelas construções reais, acusan<strong>do</strong> -o de ter<br />

escolhi<strong>do</strong> mal os empreiteiros:<br />

– Ou os homens não valem nada ou então são os materiais que são de<br />

pouca qualidade, o que me faz desconfi ar! O meu palácio merece o melhor.<br />

Que isto não volte a acontecer!<br />

– Sire – disse o ministro, lívi<strong>do</strong> –, o rei nunca me falou nesse tom e eu<br />

não creio…<br />

‹ 22 ›


› o quarto <strong>do</strong> rei ‹<br />

– O que eu disse quer apenas dizer que há um começo para tu<strong>do</strong>! Vós<br />

sabeis muito bem que eu exijo perfeição! Fazei com que os danos sejam<br />

repara<strong>do</strong>s depressa!<br />

Alguns minutos mais tarde Colbert, obriga<strong>do</strong> a sufocar a raiva, aban<strong>do</strong>nava<br />

Fontainebleau, chegava a Versalhes, descarregava o seu furor sobre<br />

os mestres -de -obras, regressava à sua casa de Paris, deitava -se e três dias<br />

mais tarde morria… deixan<strong>do</strong> toda a gente espantada.<br />

Com efeito, madame Colbert, ao ver o seu mari<strong>do</strong> fechar -se no quarto,<br />

recusan<strong>do</strong> -se a comer, enviara um mensageiro ao rei a dar -lhe parte da situação.<br />

Este limitara -se a enviar -lhe uma pequena nota, ordenan<strong>do</strong> ao seu<br />

ministro que se alimentasse e que tivesse cuida<strong>do</strong> consigo. Colbert, porém,<br />

não quis responder -lhe.<br />

«Agora é ao rei <strong>do</strong>s reis que vou prestar contas…»<br />

Acabavam para o ministro os quebra -cabeças das incessantes exigências<br />

fi nanceiras de um rei -construtor demasia<strong>do</strong> faustoso. Colbert partiu deste<br />

mun<strong>do</strong>, se não feliz, pelo menos alivia<strong>do</strong> por se livrar, aos sessenta e quatro<br />

anos, de um cargo demasia<strong>do</strong> pesa<strong>do</strong> para a sua idade. Os numerosos<br />

inimigos deste grande ministro de uma delicadeza gelada, que madame de<br />

Sévigné alcunhara de o Norte, regozijaram -se, tal como o seu rival Louvois,<br />

<strong>do</strong>ravante to<strong>do</strong> -poderoso.<br />

Entretanto a morte de Colbert, tão próxima da da rainha, estendia um<br />

véu de bruma sobre a corte supostamente mais brilhante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O fi m<br />

fora demasia<strong>do</strong> súbito e a ideia <strong>do</strong> veneno infi ltrou -se de novo entre os<br />

extravagantes grupos de cortesãos. Maria Teresa, de perfeita saúde, desaparecera<br />

no espaço de quatro dias e Colbert, rijo, talha<strong>do</strong> para viver cem<br />

anos, não durara tanto. Era perturba<strong>do</strong>r. Tanto mais que a partir daquela<br />

data o rei mu<strong>do</strong>u sensivelmente e virou -se para a virtude, dedican<strong>do</strong> -se aos<br />

exercícios de piedade a maior parte <strong>do</strong> tempo, quan<strong>do</strong> até então se dedicava<br />

às loucuras da carne. O rosário e o missal tornaram -se tão vulgares<br />

entre as damas quanto os leques e o clã das devotas recebeu recrutas inesperadas,<br />

entre elas a condessa de Gramont, a duquesa de Lude, madame de<br />

Soubise, madame de Thianges, irmã de madame de Montespan e até esta<br />

última. Tal como o tout -Versailles, a bela marquesa fazia a si própria a pergunta:<br />

iria o rei casar -se de novo?<br />

Aos quarenta e cinco anos e <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s apetites que se lhe conheciam,<br />

era pouco provável que Sua Majestade pudesse continuar a viver só.<br />

O regresso inespera<strong>do</strong> aos bons costumes destinar -se -ia a convencer alguma<br />

‹ 23 ›


› juliette benzoni ‹<br />

princesa a ocupar o lugar – tão pouco invejável, feitas as contas – da defunta<br />

infanta? Como tal, seria mal escolhi<strong>do</strong> o momento de empurrar para a sua<br />

cama uma jovem tão encanta<strong>do</strong>ra quanto Charlotte, mesmo que fosse possível<br />

tirá -la de lá realiza<strong>do</strong> o casamento. Assim, madame de Montespan preferiu<br />

deixar -se de perguntas até nova ordem… Sobretu<strong>do</strong> se o destino da<br />

jovem estava, de momento, nas mãos <strong>do</strong> universal Louvois! O qual, aliás,<br />

era um <strong>do</strong>s seus amigos…<br />

%<br />

Entretanto, em Paris alguém se atormentava com o destino da jovem.<br />

Mademoiselle Léonie des Courtils de Chavignol velara pela pequena desde<br />

a morte <strong>do</strong> seu pai até à sua entrada nas Ursulinas de Saint -Germain, de<br />

onde ela acabara por fugir, em especial desde que uma certa manhã – a<br />

<strong>do</strong> dia 28 de Dezembro anterior – o jovem polícia Alban Delalande, em<br />

cuja casa ela encontrara refúgio depois de ter si<strong>do</strong> posta no olho da rua<br />

pela mãe de Charlotte, voltara páli<strong>do</strong> à rue Beautreillis, de olhar apaga<strong>do</strong>,<br />

sem forças e que, sem sequer lhe dar os bons -dias, esvaziara uma garrafa<br />

antes de se deixar cair de bruços sobre a mesa, sacudi<strong>do</strong> por uma vaga de<br />

soluços. O espectáculo de desespero, durante o qual a velha <strong>do</strong>nzela não<br />

se mexera, fora substituí<strong>do</strong> por um sono pesa<strong>do</strong>. Sentada num tamborete,<br />

a mulher, de mãos no colo, não dissera uma palavra, consciente de que não<br />

valeria de nada. Era melhor deixar Alban ir até ao fi m daquela manifestação<br />

de sofrimento inesperada por parte de um homem da sua têmpera,<br />

próxima de uma crise de nervos que resultava de uma tensão reprimida<br />

durante muito tempo.<br />

Regressa<strong>do</strong> o silêncio, mademoiselle Léonie levantou -se, olhou por um<br />

instante para o a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>, levantou -lhe a cabeça na intenção de lhe lavar<br />

o rosto, constatou que era impossível sem o afogar, refl ectiu e concluiu,<br />

por fi m, que a única coisa a fazer era deitá -lo, coisa que nunca conseguiria<br />

sozinha, razão pela qual necessitava da ajuda de uns braços vigorosos.<br />

Madame Justine Pivert, porteira <strong>do</strong> príncipe de Mónaco, rue des Lions-<br />

-Sain -Paul, encarregada da lida da casa quatro dias por semana, não bastaria<br />

para a ajudar a levar o corpo inerte para o quarto <strong>do</strong> primeiro andar. A velha<br />

<strong>do</strong>nzela tirou o avental, assegurou -se de que a touca lhe tapava convenientemente<br />

os cabelos grisalhos e dirigiu -se ao vizinho da frente, um velho e<br />

simpático cavalheiro que conhecera na igreja vizinha no início <strong>do</strong> Inverno.<br />

Ao sair da missa, a velha <strong>do</strong>nzela torcera o tornozelo ao descer os degraus<br />

‹ 24 ›


› o quarto <strong>do</strong> rei ‹<br />

cobertos de neve e vira -se sentada num deles. Ele ajudara -a a levantar -se<br />

e até lhe propusera levá -la na sua carruagem. O mau tempo convencera -a<br />

a aceitar apesar da distância curta. De facto, o cavalheiro também morava<br />

na rue Beautreillis, numa casa confortável que o seu irmão mais velho, conselheiro<br />

no Parlamento, lhe deixara. Ele próprio ocupara durante quinze<br />

anos um posto na embaixada de França em Madrid, onde levava uma vida<br />

mesquinha e falsamente beata num país hostil à França e sob o olhar desconfi<br />

a<strong>do</strong> da temível Inquisição. A morte <strong>do</strong> conselheiro, solteirão e sem<br />

fi lhos, portanto, muito mais rico <strong>do</strong> que ele, tirara -o daquela triste situação<br />

e fi zera -o reviver. Desde então levava uma vida epicurista na sua bela<br />

mansão provida de um jardim elegante, na qual acumulava livros rodea<strong>do</strong><br />

de Eglantine, a sua hábil cozinheira, e de Fromentin, o sóli<strong>do</strong> cria<strong>do</strong> que<br />

lhe servia também de cocheiro.<br />

Entre o cavalheiro e mademoiselle Léonie, na qual ele reconhecera,<br />

sem hesitar, uma dama de bom nascimento, nascera uma simpatia mútua.<br />

Os <strong>do</strong>is tinham em comum o espírito vivo, a língua afi ada, o gosto pelas<br />

coisas boas e pelas belas -letras, ou seja a Gramática, a Eloquência, a Poesia,<br />

a História e a Literatura. A amizade, porém, tornou -se ainda mais forte<br />

quan<strong>do</strong> Isi<strong>do</strong>re confi ou à sua nova amiga o que ele considerava o acontecimento<br />

da sua vida: o seu regresso de Espanha como chaperon de duas <strong>do</strong>nzelas<br />

de honor da rainha Maria Luísa, de regresso a França por ordem <strong>do</strong><br />

rei. Uma delas chamava -se Cécile de Neuville e a outra Charlotte de Fontenac,<br />

cuja recordação lhe provocava sempre uma lágrima ao canto <strong>do</strong> olho.<br />

– Nunca vivi momentos tão agradáveis quanto os passa<strong>do</strong>s naquela longa<br />

viagem através de <strong>do</strong>is reinos. Elas eram encanta<strong>do</strong>ras! Teria gosta<strong>do</strong> de<br />

ser a<strong>do</strong>pta<strong>do</strong> por uma ou pelas duas com o estatuto de velho tio, mas pertenciam<br />

ambas à corte e não ousei impor -me… Tanto mais que nunca mais<br />

as vi! – concluíra ele com um suspiro.<br />

Perante uma tal manifestação de confi ança, mademoiselle Léonie, que se<br />

anunciara a princípio como prima de Alban Delalande, não se fi zera rogada<br />

e contara -lhe a sua própria história, na qual o seu interlocutor vira um sinal<br />

<strong>do</strong> céu. A partir de então as relações de boa vizinhança tinham -se torna<strong>do</strong><br />

em quase laços de família, razão pela qual, na triste manhã em que Alban<br />

regressou a casa no esta<strong>do</strong> de um navio naufraga<strong>do</strong>, mademoiselle Léonie<br />

não hesitou em atravessar a rua para lhe pedir ajuda.<br />

Cinco minutos mais tarde a velha <strong>do</strong>nzela voltava a atravessar a rua<br />

escoltada pelo vigoroso Fromentin e pelo próprio Isi<strong>do</strong>re, excita<strong>do</strong> como<br />

‹ 25 ›


› juliette benzoni ‹<br />

uma pulga e fervilhante de curiosidade. Alban, esse, continuava numa situação<br />

vizinha <strong>do</strong> coma.<br />

– Estou a ver! – comentou o cria<strong>do</strong>, discreto, lançan<strong>do</strong> mãos à obra sem<br />

sequer arregaçar as mangas, levan<strong>do</strong> o jovem polícia às costas pelas escadas<br />

acima como se se tratasse de um saco de trigo, depositan<strong>do</strong> -o na cama,<br />

pon<strong>do</strong> mademoiselle Léonie no olho da rua e reclaman<strong>do</strong> a assistência <strong>do</strong><br />

seu patrão: – Despimo -lo e deitamo -lo – explicou ele. – Depois se vê!<br />

Mas não viram nada: assim que se viu entre os lençóis, Alban, de barriga<br />

para cima, desatou a ressonar sem mexer uma pálpebra.<br />

– Tem para algumas horas – prognosticou monsieur Isi<strong>do</strong>re. – O melhor<br />

é deixá -lo <strong>do</strong>rmir… Dizeis que ele só bebeu uma garrafa? – acrescentou<br />

ele, vira<strong>do</strong> para mademoiselle Léonie. – Da<strong>do</strong> o arcaboiço, é surpreendente<br />

estar embriaga<strong>do</strong> a tal ponto. Devia aguentar a bebida com mais galhardia!<br />

É verdade que está com um aspecto terrível. Que lhe terá aconteci<strong>do</strong>?<br />

– É o que eu quero saber. Se o vísseis há pouco!… A imagem <strong>do</strong> desespero!<br />

Tenciono fi car aqui até ele acordar.<br />

A velha <strong>do</strong>nzela parecia tão determinada que os <strong>do</strong>is homens não se propuseram<br />

rendê -la. Era preferível Alban ver um rosto familiar assim que<br />

acordasse. Fosse como fosse, não estavam longe.<br />

O regresso à superfície processou -se por volta da meia -noite. Mademoiselle<br />

Léonie, ocupada a tricotar perto da chaminé, ouviu -o mexer -se, aproximou-<br />

-se e viu -lhe os olhos, abertos, cheios de lágrimas… A anciã sentou -se na<br />

beira da cama, pegou na mão de Alban e perguntou -lhe <strong>do</strong>cemente:<br />

– Há <strong>do</strong>is dias que não vos vejo. Que se passou para estardes nesse esta<strong>do</strong>?<br />

O jovem polícia tentou sorrir, mas conseguiu apenas uma careta:<br />

– É bastante ridículo, não é? Não pensei que me fi zesse tanto mal!<br />

– Falais de quê? Ou de quem? De… Charlotte?<br />

Havia muito tempo que, sem necessidade de qualquer alusão, mademoiselle<br />

Léonie adivinhara o amor que ele tinha pela jovem. O jovem polícia<br />

fi cou surpreendi<strong>do</strong>:<br />

– Sabíeis?<br />

– Era o segre<strong>do</strong> de Polichinelo. E agora dizei -me o que se passou.<br />

Aconteceu -lhe alguma coisa de grave?<br />

– A mim, sim… Ontem à noite casou -se na capela de Versalhes com<br />

aquele imbecil <strong>do</strong> Saint -Forgeat. Foi tu<strong>do</strong> tão depressa que só tive tempo<br />

de me misturar com os cria<strong>do</strong>s que levavam os archotes à saída da capela.<br />

Ela… ela estava de uma beleza capaz de tentar um santo!…<br />

‹ 26 ›


› o quarto <strong>do</strong> rei ‹<br />

– Mas quem é esse Saint -Forgeat?<br />

– Um <strong>do</strong>s amigos de Monsieur! Um cabeça -no -ar coberto de fi tas.<br />

– Não estou a ver Charlotte apaixonar -se por esse tipo de homem.<br />

– E não está! Ele não passa de um disfarce. Estou convenci<strong>do</strong> de que ela<br />

está destinada a outro, agora que é condessa de Saint -Forgeat.<br />

– A quem?<br />

– Ao rei, ora essa! Se vísseis como ele olhava para ela! Comia -a com os olhos!<br />

– Ah sim? E a… Maintenon? Que disse ela?<br />

– Nada. Não estava lá. O golpe foi monta<strong>do</strong> contra ela pela Montespan,<br />

que foi testemunha! Estava encantada! Recomeça o caso Fontanges!<br />

– Sonhais! Essa história pregou -lhe um susto de morte…<br />

– Sim, mas ainda tem mais me<strong>do</strong> da Maintenon… Pronto, contei -vos<br />

tu<strong>do</strong>. E agora vou pedir -vos uma promessa.<br />

– Que promessa? – perguntou ela, de súbito inquieta com a dureza que<br />

viu nos olhos <strong>do</strong> jovem.<br />

– Quero que me jureis que nunca mais pronunciareis o seu nome na<br />

minha presença. Nunca mais, entendeis? Tenho de arrancar <strong>do</strong> coração<br />

um amor que pode ser a minha perdição!<br />

– Mas…<br />

– Se me tendes alguma amizade, jurai!… Suplico -vos. Só o trabalho me curará!<br />

– Seja, juro!…<br />

Mademoiselle Léonie mantivera a sua promessa, não sem difi culdade, porque<br />

aquele casamento, de tal mo<strong>do</strong> inespera<strong>do</strong>, inquietava -a; não conseguia<br />

imaginar, nem por um só instante, Charlotte transformada em odalisca,<br />

submeten<strong>do</strong>, sem a sombra de um protesto, o seu corpo juvenil aos desejos<br />

libidinosos de um homem a envelhecer. Naquele ponto a velha <strong>do</strong>nzela<br />

estava de acor<strong>do</strong> com Sainfoin du Bouloy, a quem, não ten<strong>do</strong> prometi<strong>do</strong><br />

nada por aquele la<strong>do</strong>, contara o problema, ten<strong>do</strong> fi ca<strong>do</strong> mais aliviada: um<br />

far<strong>do</strong> torna -se consideravelmente mais leve quan<strong>do</strong> partilha<strong>do</strong>! O antigo<br />

conselheiro fora peremptório:<br />

– Aquela jovem é demasia<strong>do</strong> recta, demasia<strong>do</strong> orgulhosa, demasia<strong>do</strong> límpida<br />

para se deixar manipular assim. Além <strong>do</strong> mais… e apesar de não os<br />

ver juntos há muito tempo… juraria que ela estava apaixonada por aquele<br />

polícia obtuso!<br />

– Ele não é obtuso, tenta apenas afastar a imaginação de certas imagens<br />

demasia<strong>do</strong> realistas! Talvez para não enlouquecer… ou tornar -se regicida!<br />

Acho -o capaz de tais extremos!<br />

‹ 27 ›


› juliette benzoni ‹<br />

– Ainda não chegámos a esse ponto! No actual contexto das coisas,<br />

é preferível cumprirdes a vossa promessa e… serdes previdente.<br />

E assim se fez. Os dias passaram -se na monotonia quotidiana <strong>do</strong> costume.<br />

Alban voltara a ser o que era antes <strong>do</strong> seu golpe de desespero, pelo<br />

menos na aparência, mas mademoiselle Léonie vigiava -o como se de um<br />

ferve<strong>do</strong>r de leite ao lume se tratasse, ao mesmo tempo que lamentava não<br />

poder entrar no mun<strong>do</strong> protegi<strong>do</strong> de Versalhes para tentar, pelo menos,<br />

sondar Charlotte. Não a via havia tanto tempo! No fun<strong>do</strong> era provável<br />

que a jovem condessa lhe pedisse delicadamente que a deixasse em paz,<br />

que se metesse no que lhe dizia respeito, uma eventualidade contra a qual<br />

monsieur r Isi<strong>do</strong>re protestava devi<strong>do</strong> às três semanas que passara na compa-<br />

nhia da jovem:<br />

– Tenho a certeza de que ela gostaria muito de vos ver! – afi rmou ele,<br />

peremptório. – Entendíeis -vos bem com ela em pequena?<br />

– Muito bem. Ela confi ava em mim porque sabia que eu gostava <strong>do</strong> seu<br />

pai e que ele também gostava de mim!<br />

– Como vedes! De qualquer maneira, neste momento a corte galopa<br />

pelos grandes caminhos das províncias de leste. Dir -vos -emos quan<strong>do</strong> ela<br />

regressar…<br />

A corte regressou e Versalhes voltou a viver. Mas por pouco tempo!<br />

A morte da rainha sepultou -a no luto, ao mesmo tempo que o rei fugia<br />

primeiro para Saint -Cloud e depois para Fontainebleau. E foi então que<br />

mademoiselle Léonie decidiu assistir ao funeral em Saint -Denis, incitada<br />

pelo seu vizinho, que se propôs levá -la na sua carruagem.<br />

– Ela tem de lá estar. To<strong>do</strong> o séquito da rainha está lá para acompanhar<br />

o féretro até ao túmulo. Tentaremos falar -lhe depois da cerimónia…<br />

Infelizmente a multidão era tanta que quase desesperaram. Monsieur<br />

Isi<strong>do</strong>re, temerário devi<strong>do</strong> à sua riqueza recente, conseguiu convencer um<br />

<strong>do</strong>s sacristães da basílica, recorren<strong>do</strong> a uma moeda de ouro, a introduzi-<br />

-los nas dependências e de lá num confessionário de onde, apesar de aperta<strong>do</strong>s,<br />

puderam ver as damas que os interessavam em volta da duquesa de<br />

Créqui, dama de honor, e da marquesa de Montespan, superintendente da<br />

casa da defunta. Ora, quan<strong>do</strong> a cerimónia começou, os <strong>do</strong>is companheiros<br />

constataram que o rei não estava presente… e que Charlotte também não!<br />

Aperta<strong>do</strong>s como sardinhas em lata, mademoiselle Léonie e monsieur rIsi- <strong>do</strong>re tiveram de suportar até ao fi m a majestosa celebração, consideravelmente<br />

alongada pelo interminável sermão de Bossuet, numa posição<br />

‹ 28 ›


› o quarto <strong>do</strong> rei ‹<br />

desconfortável, apesar de nem um nem outro serem gor<strong>do</strong>s, a primeira<br />

sentada no banco estreito e o segun<strong>do</strong> no chão…<br />

Quan<strong>do</strong>, por fi m, o féretro desceu à cripta e o arauto proclamou «A rainha<br />

morreu, a rainha morreu, a rainha morreu. Rezai a Deus pela sua<br />

alma», a basílica começou a esvaziar -se segun<strong>do</strong> a ordem protocolar mas<br />

com alguma pressa, cada um e cada uma com pressa de regressar à sua carruagem<br />

para ir jantar. Os <strong>do</strong>is cúmplices saíram <strong>do</strong> seu esconderijo massajan<strong>do</strong><br />

os joelhos e os <strong>do</strong>rsos anquilosa<strong>do</strong>s, com mademoiselle Léonie muito<br />

sombria: as ausências de Luís XIV e da jovem, incrível a <strong>do</strong> primeiro nas<br />

exéquias da sua mulher e preocupante a da segunda, a quem o reconhecimento<br />

obrigava a seguir até ao fi m aquela que a salvara, abriam as portas às<br />

piores conjecturas. Teria Alban razão? Teria o ciúme razão ao menos uma<br />

vez? Teriam os <strong>do</strong>is fugi<strong>do</strong> para viver o amor perfeito à sombra das belas<br />

árvores de Fontainebleau?<br />

– É tão impensável quanto escandaloso! – fulminou ela, terminan<strong>do</strong> o<br />

seu pensamento em voz alta.<br />

– Dir -se -ia que pensamos a mesma coisa! – acrescentou monsieur r Isi<strong>do</strong>re<br />

com voz afl autada. – Pode ser que seja um sacrilégio, mas não consigo deixar<br />

de imaginar o nosso Sire e aquela criança encanta<strong>do</strong>ra a brincarem juntos<br />

enquanto a rainha é sepultada. Toda a família real estava presente: o Delfi<br />

m e a Delfi na, Monsieur r e Madame, a Grande Mademoiselle, os príncipes, as<br />

princesas, as antigas amantes <strong>do</strong> rei… com a Montespan à cabeça, os dignitários,<br />

sem contar com os tribunais soberanos, a Universidade, etc. etc.!<br />

– Um momento! – interrompeu -o a velha <strong>do</strong>nzela. – Deixai -me refl ectir!<br />

– Em quê, meu Deus?<br />

– Deixai -me, já vos disse! – Os <strong>do</strong>is cúmplices caminharam uns momentos<br />

em silêncio e estavam quase a chegar à carruagem quan<strong>do</strong> mademoiselle<br />

Léonie parou no meio da rua. – Faltava lá outra pessoa!<br />

– Quem?<br />

– Madame de Maintenon! Vivi tempo sufi ciente em Saint -Germain para<br />

saber quem ela é e sou formal: ela devia estar no seu lugar entre as damas<br />

da Delfi na, de quem era segunda dama de honor… e brilhava pela ausência!<br />

– Sim, devia estar presente, mas gostaria de saber no que estais a pensar!<br />

Se elas estão ambas em Fontainebleau, parece -me difícil que o nosso Sire<br />

escute os conselhos de virtude de uma enquanto se atira à outra!<br />

Mademoiselle Léonie fi cou da cor de um tomate.<br />

– Importais -vos de vos calar? Não se brinca com a honra de uma jovem!<br />

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› juliette benzoni ‹<br />

– Eu não estou a brincar, estou a tentar compreender!<br />

– Também eu, mas não estaremos a imaginar? A Maintenon já não é<br />

nova e pode estar <strong>do</strong>ente! O calor é sufocante, até parece que vai trovejar…<br />

– Tsss, tsss, tsss!… Não percebeis nada de mulheres e sobretu<strong>do</strong> daquela!<br />

Se o rei estivesse presente, ela tê -lo -ia segui<strong>do</strong>, agonizante ou não! Apesar<br />

de não frequentar a corte, leio as gazetas, vou a certas tabernas e estou<br />

ao corrente…<br />

– Do deboche? Era o que me faltava!<br />

Uma careta trocista enrugou a fi gura de Sainfoin du Bouloy, aproximan<strong>do</strong>-<br />

-lhe o longo nariz <strong>do</strong> queixo.<br />

– Minha cara <strong>do</strong>nzela – zombou ele –, quereis fazer -me acreditar que<br />

um ou <strong>do</strong>is copos de vinho ou de aguardente numa taberna vos escandalizam?<br />

Não é mais repreensível <strong>do</strong> que em casa, é mais diverti<strong>do</strong> e ouvem-<br />

-se coisas! Que fazemos agora?<br />

– Voltamos à rue Beautreillis, claro! No entanto… está -me a vir uma<br />

ideia à cabeça.<br />

– Mais depressa viria se a partilhásseis comigo! – disse monsieur Isi<strong>do</strong>re,<br />

encoraja<strong>do</strong>r.<br />

– E se eu pedisse uma audiência à senhora duquesa de Orleães? Charlotte<br />

esteve vários anos ao seu serviço e ela era muito amiga da rainha.<br />

Vistes como ela chorava, há pouco? Além <strong>do</strong> mais eu sou nobre! – acrescentou<br />

mademoiselle Léonie, empertigan<strong>do</strong> -se. – Ela não pode deixar de<br />

me receber!<br />

– Ela receber -vos -ia mesmo sem isso porque é a melhor pessoa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

e a mais acessível de todas as princesas. Passamos pelo Palais Royal para<br />

saber se ela está!<br />

– E se não estiver?<br />

– Vamos comer qualquer coisa a um bom albergue. Reparastes que não<br />

disse taberna? E depois levo -vos a Saint -Cloud, mas não vos escon<strong>do</strong> que<br />

preferia Paris.<br />

– Porquê?<br />

– Porque Madame, tal como Monsieur, estão sempre dispostos a ouvir<br />

as gentes de uma capital da qual se sentem tanto mais próximos quanto<br />

o rei tem tendência a desdenhá -las.<br />

O mais difícil foi encontrar a carruagem. A basílica, a cidade e até os seus<br />

arre<strong>do</strong>res transbordavam de gente que aproveitara a demora da cerimónia<br />

para dizer uma oração ou duas. Por fi m foi Fromentin quem os encontrou<br />

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› o quarto <strong>do</strong> rei ‹<br />

depois de ter consegui<strong>do</strong> estacionar o veículo num beco. O valente cria<strong>do</strong><br />

subira para cima de um marco, à esquina de uma rua, para lhes fazer sinal.<br />

Mademoiselle Léonie deixou -se cair nas almofadas com um suspiro de alívio.<br />

No entanto ainda não tinham chega<strong>do</strong> ao cabo <strong>do</strong>s seus trabalhos. Sair<br />

daquela multidão era um feito e eram quase onze horas da noite quan<strong>do</strong><br />

chegaram à rue Beautreillis.<br />

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