HISTÓRIA DA POESIA UNIVERSAL ( Breve Relato ) MONOGRAFIA ...
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<strong>HISTÓRIA</strong> <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong> <strong>UNIVERSAL</strong><br />
( <strong>Breve</strong> <strong>Relato</strong> )<br />
<strong>MONOGRAFIA</strong><br />
JERÔNIMO MENDES<br />
CURITIBA / PR , MARÇO DE 2001
Aos meus filhos e esposa,<br />
pela paciência colecionada durante o tempo<br />
em que dedico-me mais aos livros do que a eles . . .<br />
2
“ Nadamos, dia a dia, num rio de desilusões e somos efetivamente<br />
entretidos com casas e cidades no ar, com as quais os homens à nossa volta são<br />
enganados. Mas a vida é uma sinceridade.<br />
Que nos seja fornecida a cifra e, se as pessoas e coisas são partituras de<br />
uma música celestial, que possamos ler os acordes. Fomos lesados em nossa razão;<br />
no entanto, houve homens que gozaram uma existência rica e afim. O que eles<br />
sabem, sabem para nós.<br />
Em cada nova mente transpira um novo segredo da natureza ; nem pode<br />
a Bíblia ser dada por completa até que nasça o último grande homem ” .<br />
RALPH WALDO EMERSON<br />
3
ÍNDICE<br />
INTRODUÇÃO 5<br />
CONCEITO DE <strong>POESIA</strong> 8<br />
O FLORESCER <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong> 13<br />
1. OS PRIMEIROS POETAS 14<br />
2. A PROFISSÃO DE POETA 31<br />
3. A <strong>HISTÓRIA</strong> ATRAVÉS <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong> 41<br />
4. OS GRANDES POETAS 50<br />
A UTILI<strong>DA</strong>DE <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong> 77<br />
1. <strong>POESIA</strong> EM FORMA DE PROTESTO 78<br />
2. A POPULARI<strong>DA</strong>DE <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong> ATRAVÉS <strong>DA</strong> MÚSICA 89<br />
3. O FUTURO <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong> E A <strong>POESIA</strong> DO FUTURO 94<br />
4. O ENSINO <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong> NAS ESCOLAS 99<br />
CONCLUSÃO 107<br />
BIBLIOGRAFIA 111<br />
1. GERAL 112<br />
2. ESPECÍFICA 114<br />
4
INTRODUÇÃO<br />
O assunto desenvolvido nesta monografia, História da Poesia Universal, à<br />
primeira visita pareceu-me complexo e extenso demais, considerando todo o período<br />
da existência humana e da transformação das artes em geral. Quanta ambição de<br />
minha parte ! Ousar o estudo de um assunto tão extenso e difícil ao mesmo tempo.<br />
O fato de cultivar uma preferência incomum nos dias de hoje, o gosto pela<br />
poesia, desde os tempos de criança, contribuiu sobremaneira para buscar, a<br />
qualquer custo, demonstrar a merecida importância que a arte poética exerceu ao<br />
longo dos séculos em todos os povos, da antigüidade aos dias de hoje.<br />
Durante o desenvolvimento do trabalho, tive a oportunidade de navegar<br />
por mares nunca dantes navegados e a pesquisa foi se tornando fascinante à<br />
medida que o meu interesse foi se aprofundando, quase que inconscientemente.<br />
Ao iniciar a reunião do material, após definido o tema, nunca imaginei que<br />
poderia ir tão longe, pois a pesquisa, com propósito e determinação, exigiu-me um<br />
tempo extraordinário, embora gratificante.<br />
Para facilitar a exposição das idéias e dos acontecimentos, optei pela<br />
ordem cronológica da história da poesia, iniciando pelos primeiros poetas da Grécia<br />
Antiga e, avançando através dos séculos, procurei demonstrar a participação da<br />
poesia no desenvolvimento dos povos, como instrumento de criação, arte ou mesmo<br />
como instrumento de protesto.<br />
Minha preocupação maior foi encontrar uma forma de não tornar a leitura<br />
e a seqüência do trabalho monótona e repetitiva. Por isso, apesar de muitos tópicos<br />
exigirem a reapresentação da obra ou vida de um ou outro poeta, conseguimos, em<br />
consenso, variar os nomes para evitar duplicidade de informações e citações, ou<br />
ainda, para apresentar o maior numero de poetas possível, a fim de enriquecer,<br />
divulgar e premiar também poetas pouco mencionados na literatura atual.<br />
5
Em conseqüência, nenhuma fonte de pesquisa foi descartada : jornais,<br />
livros de poesia, estudos de críticos literários, biografias, enciclopédias e folhetins.<br />
As interpretações dos estudiosos de poesia foram analisadas<br />
profundamente como forma de promover a reflexão e o consenso interior para se<br />
utilizar ou não a informação apresentada.<br />
Dessa forma, o leitor poderá encontrar no transcorrer da leitura, desde o<br />
primeiro capítulo, pequenos trechos de poemas, todos em forma de versos e<br />
nenhum em forma de prosa, de poetas pouco estudados na literatura, mas de<br />
grande impacto para o seu povo e sua época.<br />
Naturalmente, encontrará os grandes clássicos que fizeram a história da<br />
Poesia Universal feito Camões, Aligheri, Shakespeare, Rimbaud e Drummond, os<br />
quais não posso excluir pelo fato de o mundo já tê-los elevado à condição de<br />
imortais. Eles não pertencem mais ao seu povo e sim à humanidade que os elegeu<br />
eternos.<br />
As pequenas biografias apresentadas de diversos poetas tem caráter<br />
exclusivamente pedagógico, pois, sem falsa modéstia, não encontrei nenhum livro<br />
que reunisse um grande número deles com detalhes tão particulares de suas vidas,<br />
o que pode ser encontrado somente em livros que estudam os autores<br />
separadamente.<br />
Antes do final, o leitor terá condições de comprovar os objetivos abaixo<br />
estabelecidos para o desenvolvimento da monografia e, assim como eu, poderá<br />
chegar à conclusão única de que os povos amam seus poetas e, por mais que não<br />
os valorizem em termos editoriais, não conseguem viver sem os seus versos :<br />
Demonstrar a importância da poesia no desenvolvimento dos povos<br />
Comprovar a sobrevivência da poesia em meio à transformação cultural<br />
Elaborar propostas alternativas para o ensino da poesia nas escolas<br />
O tema escolhido, e aqui desenvolvido com afinco e disposição, é<br />
universal. Todo cidadão pode não ter lido os versos, mas sabe o nome de um poeta<br />
qualquer, conhecido ou não.<br />
Se perguntarmos a um adolescente ou mesmo uma criança o nome de<br />
um poeta do seu país, tomando-se o Brasil como exemplo, lembrar-se-á de<br />
6
Drummond, Cecília Meireles, Castro Alves, João Cabral de Melo Neto, Mário<br />
Quintana, Leminski ou Helena Kolody no Paraná.<br />
Essa é a grande vantagem da poesia. Perante o caos literário, sobrevive,<br />
pois o esforço dos poetas em busca do entendimento da sua mensagem e, por sua<br />
vez, da glória, é sobre-humano. Duvidam ? Eis aqui o pensamento do escritor norte-<br />
americano Don Marquis e avaliem a dificuldade da profissão :<br />
“ Publicar um livro de poesia é como atirar um pétala de rosa no Grand<br />
Canyon e ficar esperando pelo eco ” .<br />
Este pensamento foi determinante para a escolha do tema e a realidade<br />
da poesia leva-nos a concordar com ele. Infelizmente há um paradoxo difícil de ser<br />
esclarecido ou interpretado, mas creiam que houve grande tentativa de minha parte :<br />
“ Se os povos amam seus poetas e a poesia está presente na mente das<br />
pessoas, qual a razão para ela estar sendo sacrificada pelo meio editorial em favor<br />
dos absurdos literários despejados diariamente nas livrarias ?” .<br />
Espero, sinceramente, esclarecer em grande parte todas essas duvidas<br />
durante a leitura da monografia, desprovido de todo sentimentalismo poético que,<br />
geralmente, acaba por atropelar a razão em favor da emoção.<br />
7
CONCEITO DE <strong>POESIA</strong><br />
Ao longo do desenvolvimento da monografia foi difícil encontrar<br />
alguma citação ou autor que tenha apresentado qualquer definição precisa de<br />
poesia sem demonstrar uma ponta de preocupação com a importância da<br />
interpretação por parte do leitor.<br />
O conceito de poesia, se acreditamos que podemos conceituá-la, é<br />
coisa bem diversa do conceito do verso, razão pela qual pude ler e avaliar<br />
inúmeros poemas expressos tanto em verso como em prosa. Segundo Wanke<br />
(1985:76), Tratados têm sido escritos procurando definir poesia, o que demonstra<br />
dificuldade do entendimento ”.<br />
Uma das mais abrangentes e interessantes definições de Poesia<br />
encontrada ao longo da pesquisa foi, certamente, a de William Wordsworth,<br />
poeta inglês do século passado, que disse, no prefácio de suas Baladas Líricas<br />
: “Poetry is emotion recollected in tranquility”, ou seja, “ Poesia é a emoção<br />
novamente colhida (ou recolecionada) em tranqüilidade ”.<br />
Nesta definição, a Poesia aparece do ponto de vista não do leitor,<br />
mas do poeta, ou seja, a poesia é olhada pelo que a faz, o que, realmente nos<br />
interessa. E nos mostra os elementos básicos da coisa : primeiro, o poeta<br />
demonstra claramente suas sensações, sentindo-as, e só depois, tranqüilo, ele<br />
se lembra do que sentiu e as coloca em palavras, para transmiti-las.<br />
Guilherme de Almeida (1890-1969), um dos mais lúcidos poetas,<br />
tentou definir Poesia por exclusão, dizendo que “Poesia não é a rosa” . E<br />
explicava :<br />
8
“E não é mesmo. Se Poesia fosse a rosa, para que o canteiro ? ... Poesia é<br />
terra. Separada desta, será apenas verso, pedaço, coisa amputada que murcha,<br />
apodrece, acaba ” 1 .<br />
Outra definição importante a considerar, vêm do Príncipe dos Poetas<br />
Brasileiros, Olavo Bilac, acrescentando a seguinte equação : “ A rosa está para a<br />
Terra assim como a Poesia está para o homem ” 2 .<br />
Mas o homem considerado em suas funções mais altas, ou seja, o<br />
som, a idéia expressa, a emoção transmitida, o deleite da leitura e até, em<br />
alguns casos, a forma das palavras - como o pintor utiliza as cores, o escultor<br />
as formas, o músico os sons harmoniosos, etc.<br />
Todo o artista tem sua matéria-prima, seu instrumental, sua<br />
tecnologia. O escultor tem, como matéria-prima, o mármore, o gesso, a areia, o<br />
ferro-velho, etc. E é com eles que trabalha, para produzir seu produto, a<br />
escultura. O pintor tem as tintas, as cores, que manipula com o pincel, os<br />
dedos, a espátula, na tela, no papel, na parede - onde expõe seu produto com<br />
enorme satisfação após acabado. O músico dispõe do som dos instrumentos<br />
musicais - alguns muito estranhos, convenhamos - que combina ou descombina<br />
para apresentar seu produto, a música.<br />
A palavra, matéria-prima do poeta, é o mais nobre dos materiais de<br />
que o homem dispõe. A palavra nasceu com a civilização e só com ela morrerá.<br />
O homem sem a palavra não é o homem. Para que possa aprender a pensar, a<br />
criança tem de aprender a entender e a manejar as palavras de sua língua. As<br />
próprias línguas são reflexos do grau de civilização do povo que as domina e o<br />
mesmo ocorre com a poesia. Novamente citamos Wanke (1985 : 77) :<br />
“ Quando, através de um trabalho com a palavra, escrito ou falado, o artista<br />
consegue transmitir sentimento, fazer com que o leitor, o ouvinte se sinta comovido,<br />
sublimado, arrebatado, terá ele atingido a Poesia : aquela emoção recolhida pelo poeta<br />
Worsworth em um momento, e depois fixada, em outra ocasião - agora tranqüila - para<br />
seus leitores ”.<br />
Sem falsa modéstia, avaliei, no curto período em que me propus a estudar<br />
a arte poética, que a Poesia de que estamos falando até aqui, sempre com inicial<br />
maiúscula, é uma qualidade subjetiva inerente a uma composição feita com<br />
palavras.<br />
_______________<br />
1. Diversos AUTORES, Curso de Poesia, Academia Brasileira de Letras, p.32<br />
2. Id., Ibid., p.35<br />
9
Infelizmente, se compararmos as diversas interpretações das mais<br />
diferentes correntes poéticas, cada qual tenta enaltecer e fazer vingar a própria<br />
definição, mas acabam-se criando confusões com as acepções diversas do mesmo<br />
vocábulo e, assim, temos que o termo Poesia significa, também, uma composição<br />
feita de versos.<br />
O que causa maiores problemas ainda é que, além de uma Poesia não<br />
conter absolutamente Poesia, um trecho em prosa pode perfeitamente ser Poesia<br />
pura. A Rosa-Poesia carece de ser alimentada pela Terra-Homem através da seiva<br />
da emoção da palavra. Daí uma tendência, surgida especialmente entre os<br />
modernistas e os da geração de 45, de se abandonar a palavra Poesia na acepção<br />
de produto versificado para, neste caso, adotar só a palavra poema.<br />
Uma Poesia pode ser um amontoado de versos feitos<br />
intencionalmente sem Poesia e pode até acontecer que o poeta, pensando estar<br />
compondo Poesia - comunicação de sentimentos - está apenas fazendo um<br />
bestialógico, o que pudemos comprovar facilmente entre muitos poetas<br />
herméticos ou rebuscados.<br />
Em nossa pesquisa, ninguém melhor do que Geir Campos 1 , tradutor e<br />
professor universitário brasileiro, cita tantos autores e definições interessantes,<br />
de pura reflexão, a fim de enriquecer o estudo e o conceito de Poesia, embora,<br />
admitamos, não se pode atribuir um texto como verdadeiramente único e<br />
absolutamente ideal para quaisquer dos autores citados, apesar de, entre eles,<br />
termos muitos dos maiores nomes da Poesia de todos os tempos :<br />
“ Poesia é, antes de tudo, comunicação, efetuada por palavras apenas, de<br />
um conteúdo psíquico (afetivo-sensório-conceitual), aceito pelo espírito como um<br />
todo, uma síntese ” e o definidor explica ainda que “nesse conteúdo anímico<br />
predominará às vezes o sensório, outras vezes o afetivo, outras o conceitual, pois o<br />
poeta, ao expressar-se nunca transmite puros conceitos, quer dizer, nunca<br />
transmite conceitos sem mescla de sensorialidade ou sentimentalidade ” (Bousono<br />
in Campos, 1975 : 130).<br />
: 130).<br />
_________________<br />
“Poesia é a arte de excitar a alma”(Hardenberg in Campos, 1975 :130).<br />
“Toda verdadeira poesia é uma visão de mundo”( Eliot in Campos, 1975<br />
1. Pequeno Dicionário da Arte Poética, p. 130.<br />
10
“ Poesia são as melhores palavras em sua melhor ordem ” (Coleridge in<br />
Campos, 1975 : 130).<br />
Ao fundirmos os três últimos conceitos, o próprio Campos (1975 : 130)<br />
faz uma espécie de liga conceitual de elevado teor filosófico-literário, com um<br />
enfoque individual, um enfoque social e um enfoque estético da arte<br />
poética : “ Poesia é a arte de excitar a alma com uma visão de mundo através das<br />
melhores palavras em sua melhor ordem ”, uma conceituação ampla e capaz de<br />
abranger inclusive as experiências de todas as escolas poéticas.<br />
Outro estudioso, Robert de Souza, em Un Débat sur La Poésie, tenta<br />
resumir o pensamento poético do Abade Henri Brémond, grande poeta e<br />
estudioso da literatura francesa, em seis itens :<br />
“ 1) Todo poema deve suas características essenciais a uma espécie de<br />
realidade unificadora e misteriosa; 2) não basta, nem é necessário, ler poeticamente<br />
um poema, para captar-lhe o sentido, uma vez que existe certo encantamento<br />
obscuro e independente do significado das palavras; 3) poesia não pode se reduzir a<br />
um discurso prosaico, pois constitui um meio de expressão que ultrapassa as formas<br />
comuns da prosa; 4) poesia é uma espécie de música e ao mesmo tempo não é<br />
apenas música, pois age como uma espécie de condutor de corrente pelo qual se<br />
transmite a natureza íntima da alma; 5) é a encantação que proporciona a<br />
comunicação inconsciente do estado de alma em que se encontra o poeta até o<br />
momento em que se manifesta por idéias e sentimentos, momento esse que se revive<br />
confusamente lendo o poema; 6) a poesia é uma espécie de magia mística<br />
semelhante ao estado de oração ” .<br />
Se recorrermos ao dicionário, teremos uma definição formal de<br />
Poesia, mas nunca a definição que nos agrade ou que corresponda à realidade<br />
que buscamos. Faz muito mais sentido e causa maior conforto as definições<br />
embevecidas de imaginação e lirismo, como as que acabamos de mencionar<br />
anteriormente no texto.<br />
Silveira Bueno (1996:512), em seu Minidicionário da Língua<br />
Portuguesa, define : “ Poesia - arte de escrever em verso; composição poética;<br />
inspiração; o que desperta sentimento do belo ” .<br />
11
E muitas outras definições podemos encontrar pelo caminho da<br />
pesquisa, de diferentes épocas, escolas, autores e adeptos da literatura,<br />
portanto, conforme citado por Wanke anteriormente, de difícil entendimento.<br />
Homem e poesia, Poesia e vida, vida e arte estão intimamente<br />
ligados, não há como separá-los, mesmo porque os conceitos se confundem.<br />
Somos testemunhas da influência da Poesia desde os primeiros séculos até<br />
hoje, pois a Poesia esteve presente em todas as épocas, em todos os povos,<br />
em todos os dias e assim deve permanecer por milhares de anos.<br />
Vejamos esta máxima de Emerson ( 1994 : 243), retirada do seu livro<br />
Ensaios : “ A vida pode ser um poema lírico ou uma epopéia, bem como um poema<br />
ou um romance ”.<br />
Até onde o entendimento nos permitiu alcançar, concordamos que a<br />
Poesia requer inspiração, sensibilidade, vibração de nervos e sentimento. É<br />
pura imaginação e poucos foram os privilegiados ao longo dos séculos, talvez<br />
mais em séculos anteriores onde ela foi praticada com afinco, dedicação e<br />
pureza de espírito.<br />
Seu conceito é amplo e ao mesmo tempo restrito, depende da<br />
perspectiva do leitor. Como diria Maiakovski, célebre poeta russo do início do<br />
século : “ A Poesia começa onde existe uma tendência ” .<br />
12
O FLORESCER <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong><br />
13
1. OS PRIMEIROS POETAS<br />
Poeta, do grego poietes, significava autor. Era o indivíduo que<br />
compunha a letra e a música dos dramas, das epopéias 1 e dos cantos<br />
sentimentais. “ Hoje chamamos poeta ao escritor que compõe versos, é o literato<br />
que pensa por meio de imagens ” (Macedo, 1979 : 14).<br />
De acordo com os registros oficiais, a Poesia ganhou impulso e teria<br />
começado a existir como expressão de arte na primavera de 534 a.C., na Grécia<br />
antiga, época em que as primeiras tragédias foram encenadas, por decreto<br />
oficial, no Festival de Dioniso, em Atenas.<br />
A tragédia grega, pelo que apuramos ao longo da pesquisa nos<br />
poucos livros que se propõem a desvendar o assunto, era mais do que um<br />
entretenimento público promovido pelo governo para distrair a multidão, e mais<br />
do que um ritual em honra ao Deus Dioniso 2 , a quem os gregos tanto<br />
louvavam.<br />
Reconhecidamente, ela assinalou o florescimento de uma arte cujas<br />
raízes se estendem pelo menos até a Idade do Bronze 3 . Tanto no conteúdo<br />
como na forma, a Poesia se revelou a expressão completa da essência de um<br />
povo.<br />
Os temas das tragédias eram mitológicos, extraídos da numerosa<br />
coleção de histórias existentes nas epopéias e nos hinos de Homero e seus<br />
sucessores.<br />
_____________<br />
1. Exposição de feitos grandiosos, narrados pelos poetas antigos<br />
2. Deus da fertilidade e criatividade, segundo a mitologia grega<br />
3. Período pré-histórico compreendido entre 3.500 e 3.000 a.C., quando o bronze<br />
era o principal material utilizado para fabricação de armas e utensílios<br />
14
Todos os que se dizem um pouco conhecedores do assunto sabem<br />
que nos antigos e familiares relatos da Ilíada e Odisséia 1 encontravam-se todos<br />
os tipos de personagens; suas aventuras, seus amores e dilemas espelhavam<br />
todas as possíveis situações humanas.<br />
Homero, principal poeta da antiga literatura grega, parece ter vivido<br />
700 a.C., provavelmente na área jônica 2 . A tradição diz que era cego e que<br />
pode ter cantado para as cortes reais da mesma forma que os bardos cantam<br />
no seu poema Odisséia. Não se sabe quanto suas palavras originais<br />
correspondem aos textos hoje disponíveis, mas parece claro que a base do<br />
poema, assim como a da sua Ilíada, foi oral.<br />
Ao mesmo tempo, suas obras, como as conhecemos atualmente,<br />
apresentam uma unidade impressionante, apesar de serem muito longas. A<br />
Ilíada concentra-se em uma série de episódios conectados um com o outro<br />
durante o sítio de Tróia.<br />
A Odisséia, que pode ter sido escrito por um outro autor, conta as<br />
perambulações de um dos líderes gregos, Ulisses (Odisseu), em Tróia, durante<br />
o longo e atribulado retorno a seu reino de Ítaca.<br />
A Ilíada, enquanto relata a inimizade entre Aquiles e Agamenon,<br />
incorpora muito da mitologia em dez anos da guerra de Tróia; as fortes cenas de<br />
lutas são ofuscadas por suaves quadros da vida cotidiana.<br />
Da mesma forma, na Odisséia, o relato sobre o retorno de Ulisses a<br />
Ítaca e a vingança sobre os pretendentes de sua mulher são colocados no<br />
cenário mais amplo da volta dos heróis gregos, oferecendo muitos detalhes a<br />
respeito de outras fases da vida de Ulisses em Tróia e em outros locais.<br />
A Ilíada e Odisséia são consideradas os maiores poemas épicos da<br />
Grécia Antiga. A época em que receberam sua forma final é controversa, mas<br />
pode ter sido no final do século 7 a.C..<br />
A estrutura dos versos e a disposição dos cânticos são o resultado de<br />
uma longa tradição oral rapsódica que contava histórias e lendas da era heróica<br />
da Grécia, no final do período micênico; mas eles também contém elementos<br />
que podem ser posteriores a este período.<br />
_______________<br />
1. Considerados os maiores poemas épicos da Grécia antiga<br />
2. Atualmente Turquia Ocidental<br />
15
Os maiores poetas trágicos (ou os mais conhecidos) - Ésquilo,<br />
Sófocles, Eurípedes - explicitavam os personagens e as situações para as<br />
audiências, relevando-lhes a própria condição humana.<br />
Eram comuns, entre os intelectuais admiradores da Poesia na época,<br />
dilemas dignos de estudo e investigação em todas as peças encenadas : Que<br />
tipo de escolha tem os seres humanos em sua existência ? Como os indivíduos<br />
podem entender a ambigüidade no mundo e conviver com o fato de que ele é,<br />
ao mesmo tempo, bom e mau, protetor e cruel, agressivo e amável ?<br />
Os poetas trágicos exploravam a fundo as questões mais simples do<br />
cotidiano e transformavam-nas em peças teatrais que arrastavam multidões.<br />
Mas eles não foram os primeiros a explorar os mitos. Gerações de poetas líricos<br />
haviam moldado a língua grega em versos de incomparável beleza (mais<br />
adiante veremos alguns trechos desses poemas).<br />
As formas poéticas eram tão familiares para os gregos quanto para os<br />
mitos; os poemas sempre eram declamados em público e nunca escritos para<br />
leitores solitários. Os próprios versos eram musicais, com ritmos diferentes em<br />
cada tipo de poema e apropriados para cada ocasião, intimamente ligados à dor<br />
ou alegria do poeta. Embora declamassem também em banquetes e reuniões<br />
íntimas, os poetas alcançavam fama e fortuna nas disputas promovidas em<br />
festivais religiosos.<br />
Paramentados e engrinaldados, eles participavam de diversas<br />
competições: de rapsódia, nas quais declamavam versos, em geral, épicos, sem<br />
acompanhamento musical; de citaródia, isto é, a declamação individual com<br />
acompanhamento de lira; e de canto coral, para o qual os poetas treinavam<br />
tanto os cantores quanto os dançarinos.<br />
As competições eram realizadas em toda Grécia - em Delfos, em<br />
Esparta, em Olímpia -, exceto, até o início do século VI a.C., em Atenas. Os<br />
poetas foram levados para lá por Psístrato e seus filhos; as competições de<br />
rapsodos foram introduzidas lá durante as festividades panatenaicas. E foi em<br />
Atenas, numa época de agitação política e ameaça externa, que ocorreu a<br />
síntese representada pela tragédia.<br />
Segundo a lenda, o responsável por tal síntese foi o poeta Tépsis de<br />
Icária, que teve a idéia de introduzir um ator para servir de contraponto ao coro.<br />
O ator representava mascarado, o que era uma inovação surpreendente para a<br />
16
época e estimulava a curiosidade e imaginação da população : ele não<br />
declamava seus próprios versos, mas era alguém que personificava outra<br />
pessoa, mas terminava por arrebatar todas as glórias.<br />
Tépsis venceu o primeiro concurso de dramaturgia realizado no<br />
Festival de Dionísos, mas de suas obras restam apenas fragmentos. A<br />
amplitude da tragédia grega pode ser vista nas obras de seus sucessores.<br />
Esses poetas competiam não apenas nos festivais atenienses, mas também por<br />
toda a Grécia.<br />
Eles levaram adiante a inovação de Tépsis e introduziram outros<br />
atores em suas peças. Também orquestraram os diferentes ritmos e formas dos<br />
poetas líricos - as rapsódias, as citaródias e os coros - em obras únicas,<br />
harmonias que cantavam as paixões do coração humano, semelhante hoje ao<br />
que podemos admirar em óperas, músicas românticas impregnadas de poesia<br />
pura, capazes de remeter o mais cruel dos homens ao mundo da imaginação e<br />
fantasia por conta da sua própria fragilidade.<br />
Os palcos eram no início muito simples; o público sentava-se em<br />
degraus de pedra em volta da orquestra. As apresentações eram durante o dia,<br />
ao ar livre.<br />
Os poetas apresentavam três tragédias (geralmente sobre temas<br />
diferentes) e uma peça satírica, mais leve. Poucos se atreviam a apresentar<br />
peças que sustentassem, de alguma forma, posições contrárias às imposições<br />
do governo ou algo semelhante, não muito diferente de algum tempo em nosso<br />
país. Ofereciam-se prêmios ao melhor poeta e o vitorioso recebia uma coroa de<br />
hera 1 .<br />
Podemos avaliar a presença maciça da poesia na cultura dos<br />
habitantes da Grécia antiga e, muito provavelmente, de outros que também se<br />
deslocavam até as cidades onde as peças, mescladas à poesia, eram<br />
encenadas.<br />
Era comum na época, reunião de um grupo de pessoas em torno de<br />
algum poeta de plantão, disposto a iniciar uma declamação digna de apreciação<br />
mesmo sob forte pressão dos olheiros do governo oficial que temiam vulgarizar<br />
_____________<br />
1. Planta típica da época, símbolo da união e do casamento ( deusa do casamento)<br />
17
a poesia, motivo pelo qual, inclusive, as competições e mesmo eventos de<br />
simples apresentações, obedecerem a um rígido cronograma oficial.<br />
Se a poesia, aliada ao teatro, foi tão importante para a época em que<br />
os estudos da arte eram levados a sério, por prazer e gosto, cabe-nos<br />
questionar a razão, 2.500 anos depois, pela qual a poesia não conseguiu<br />
sustentar a mesma importância, embora resista à indiferença dos editores<br />
preocupados mais com o título do que o conteúdo nos tempos atuais.<br />
Os jônicos 1 também se distinguiram pela elegância de sua cerâmica<br />
e, não menos importante, pela sua poesia, demonstrando uma profunda<br />
compreensão dos prazeres e desapontamentos da vida, expressa nas odes 2 de<br />
Safo 3 , a poetisa do amor que viveu na ilha de Lesbos.<br />
Alceu, poeta da mesma ilha, provavelmente foi o que melhor resumiu<br />
o espírito da cultura jônica. “ Traga-me vinho ” , solicitava, “ vinho e verdade ” .<br />
Os relatos são obscuros, mas, ainda na Grécia antiga, conta-se que o<br />
poeta ático Tepsis era também um amante da arte de representar e teria dado o<br />
passo decisivo ao colocar um ator em cena, cujo papel era conduzir o diálogo<br />
com o coro.<br />
O ateniense Ésquilo teria colocado o segundo e Sófocles, o terceiro<br />
ator, unindo assim, a simplicidade da poesia e o mágico poder da<br />
representação. A união das duas especialidades da arte deu origem ao que se<br />
chamou na época de teatro grego.<br />
Embora o público dedicasse maior admiração pelo conjunto da<br />
representação, as cenas não seriam possíveis de se realizar sem os<br />
declamadores, ou seja, um completava o outro para promover o encanto da<br />
população e arrastar multidões onde quer que houvesse encenação.<br />
Elegias 4 , sátiras e canções de amor para cantores solo; hinos, peãs 5<br />
e cantos processionais para coros - tudo isso foi legado pelos poetas líricos da<br />
Grécia aos dramaturgos atenienses.<br />
_______________<br />
1. Povo da Ásia Menor, habitante das margens do Mar Mediterrâneo (Turquia)<br />
2. Poesia sentimental caracterizada pela elevação de pensamento e entusiasmo<br />
3. Poetisa da Ilha de Lesbos, a mais famosa da época<br />
4. Lamento ou canto fúnebre, acompanhado com som de uma flauta<br />
5. Na versificação greco-latina, o Metro ou Pé formado por 4 sílabas, sendo uma<br />
longa e três breves.<br />
18
Cada tipo de verso tinha sua própria forma. Todos partilhavam da rica<br />
herança da mitologia. Notamos que a mitologia era o principal motivo da maioria<br />
dos poemas da época, com seus personagens heróicos e misteriosos,<br />
recheados de feitos e proezas inimagináveis para os dias de hoje.<br />
Infelizmente, apenas uma pequena parte da produção desses poetas<br />
líricos foi preservada - o suficiente para revelar a variedade de seus estilos e<br />
personalidades, de costumes e preferências da época.<br />
Excepcional dentre eles foi Safo, nascida em Lesbos no século VII<br />
a.C., tanto por ser mulher quanto por seu gênio delicado. Platão, filósofo grego,<br />
a chamou de décima musa.<br />
Safo era famosa por suas canções de amor e por seu deleite com a<br />
natureza, revelado em poemas como o dedicado à estrela vespertina, cujo teor<br />
fazemos questão de transcrever :<br />
ESTRELA VESPERTINA<br />
Estrela da Tarde<br />
Tu és a pastora da tarde,<br />
Vésper, e trazes para casa<br />
tudo o que a Aurora dispersou.<br />
Trazes a ovelha, trazes a cabra,<br />
trazes as crianças para junto das mães.<br />
Alceu conheceu e amou Safo; há fragmentos suficientes de seus<br />
poemas para que se saiba que não foi correspondido. Os poemas de Alceu<br />
refletem uma vida dedicada à guerra e à política - e uma vigorosa apreciação<br />
dos prazeres da vida, como podemos apreciar no poema que segue :<br />
INVERNO<br />
Zeus faz chover, e do céu<br />
cai terrível tormenta. Os rios congelaram ...<br />
Afugenta o inverno. Junta lenha ao fogo<br />
e tempera, sem exagerar na água, o doce vinho.<br />
Envolve nossas cabeças em macias<br />
19
coroas cerimoniais de pele.<br />
Não devemos nos deixar invadir pela tristeza.<br />
Não iremos a arte alguma com o pesar, minha Bukchis.<br />
O melhor a fazer é prepararmos muito vinho, e tomá-lo.<br />
Simônides de Ceos, nascido por volta de 550 a.C., era um poeta<br />
cortesão muito viajado que contava com a proteção dos tiranos de Atenas, da<br />
Tessália e da Siracusa.<br />
Ele era um mestre, admirado pela perfeição de suas canções, pela<br />
elegância de seus epigramas funerários 1 e pela profundidade com que tratava<br />
os temas mitológicos.<br />
Seu lamento por Dânae era um exemplo típico. Dânae teve um filho -<br />
o herói Perseu - de Zeus. O pai de Dânae colocou-a, juntamente com o bebê,<br />
numa arca que foi lançada ao mar. Eles sobreviveram graças a um milagre.<br />
Simônides :<br />
Eis uma simples demonstração de um pequeno epigrama funerário de<br />
EPITÁFIO<br />
Este é o túmulo de Megístias, morto pelos persas<br />
e medos após cruzarem o Rio Spercheios;<br />
de um advinho que, mesmo vendo claramente<br />
a morte aproximar-se,<br />
jamais pensou em abandonar os reis de Esparta.<br />
Mais jovem do que Simônides, Píndaro de Tebas foi tão apadrinhado<br />
quanto este e alcançou fama ainda maior. Grandioso, idealista e profundamente<br />
religioso, ele celebrou suas odes e as vitórias gregas nas Guerras Persas 2 e as<br />
vitórias dos atletas em Olímpia.<br />
Abaixo podemos apreciar um trecho da introdução de sua primeira<br />
Ode Olímpica, em homenagem a Hierão, atleta vencedor das corridas a cavalo :<br />
______________<br />
1. Nos tempos antigos, era uma pequena composição em verso colocada nos<br />
túmulos ou nos templos e terminava por uma nota mordaz.<br />
2. Famosas guerras travadas entre os povos da Grécia antiga e da Pérsia (Irã)<br />
20
OLÍMPICA I<br />
O melhor elemento é a água e o ouro,<br />
como fogo que se inflama, brilha na noite<br />
mais do que a orgulhosa opulência.<br />
Se jogos celebrar desejas,<br />
ó minh´alma -<br />
nunca mais quente do que o sol procures outro astro<br />
que brilhe de dia no céu deserto -<br />
nunca superior à de Olímpia<br />
uma competição celebraremos.<br />
De lá o renomado hino envolve<br />
o gênio dos poetas que para louvar<br />
o filho de Cronos ao lar vieram<br />
rico e feliz de Hierão.<br />
Da justiça ele detém<br />
o cetro da fecunda Sicília, colhendo<br />
o que há de mais alto de todas as virtudes<br />
e gloria-se também<br />
com as excelências do canto com que nos recreamos<br />
amiúde ao redor de sua mesa amiga<br />
Avaliando superficialmente o poema podemos arriscar-nos a insinuar<br />
que, ignorando a má interpretação dos tradutores através dos séculos, por<br />
influências pessoais, Píndaro e os demais poetas da época utilizavam um nível<br />
elevado teor metafórico.<br />
Dentre dezenas de poetas trágicos, três eram considerados os<br />
maiores. Ésquilo, o mais velho, nasceu cerca de uma década antes de 500 a.C.<br />
Filho de aristocrata, participou da Batalha de Maratona.<br />
O jovial e culto Sófocles, nascido por volta de 497 a.C., combateu<br />
sob Péricles na guerra contra Samos. Sete de suas 130 peças foram<br />
preservadas. Eurípedes, nascido por volta de 480 a.C., era um filósofo austero,<br />
recluso e menos idealista do que os outros dois. Das noventa peças que<br />
escreveu, restam dezoito.<br />
21
Quase todas essas tragédias foram primeiro apresentadas como<br />
trilogias, as quais eram seguidas por peças de sátiros – selvagens pantominas<br />
em homenagem a Dioniso – no Teatro de Dioniso Eleutério, junto à Acrópole<br />
Ateniense.<br />
Os Persas, escrito por Ésquilo e apresentado em 472 a.C. com o<br />
jovem Péricles como líder do coro, inovou ao tratar de um tema contemporâneo.<br />
A peça descreve a derrota de Xerxes 1 frente aos gregos. No poema, Ésquilo<br />
descreve a batalha naval de Salamina com detalhes muito mais vividos do que<br />
os encontrados nos relatos históricos.<br />
A maioria dos seus temas posteriores foi extraída da mitologia e das<br />
lendas - épicos sombrios e taciturnos, repletos de paixão e de sangue, nos<br />
quais os feitos desastrados dos mortais são mostrados em flagrante contraste à<br />
majestade e ao poder dos deuses e deusas do Olimpo.<br />
Das setenta peças que escreveu, apenas sete sobreviveram. A<br />
Orestéia, a grande trilogia de Ésquilo, conta a antiquíssima história da casa de<br />
Atreu em dois registros : o da intimidade do amor e do ódio humanos, e o da<br />
história em seu sentido mais amplo. Atreu, rei de Micenas (ou Argos), matou os<br />
filhos de seu irmão Tiestes; apenas um deles, Egisto, sobreviveu.<br />
Mais tarde, os filhos de Atreu, Agamenon e Menelau, casam-se com<br />
as irmãs Clitemnestra e Helena. Quando esta abandona Menelau por causa de<br />
Páris, de Tróia, os irmãos montam uma expedição que dá início à guerra de<br />
Tróia, tendo Agamênon sacrificado a própria filha para que os bons ventos<br />
facilitassem a travessia marítima.<br />
Em Agamênon, a primeira das peças, o rei retorna vitorioso de Tróia.<br />
Em sua ausência, Clitemnestra tomara Egisto com amante e, juntos, eles<br />
governam Micenas; para vingar a filha e se manter no poder, ele mata<br />
Agamênon.<br />
A riqueza da linguagem e a concentração metonímico-metafórica é de<br />
causar alegria e espanto aos olhos de um bom amante da literatura. Vide abaixo<br />
uma parte do poema :<br />
______________<br />
1. Antigo imperador persa<br />
22
AGAMÊNON<br />
( . . . ) foi Helena<br />
levar a Tróia lágrimas e sangue.<br />
Mas aqui, em seu lar abandonado,<br />
lamentações se ouviam, relembrando<br />
a ingrata que partira. Seu marido,<br />
sem comer, sem dormir, qual um fantasma<br />
percorre os aposentos do palácio,<br />
com o pensamento posto além dos mares,<br />
chorando de saudade, e não de ódio.<br />
Um fantasma rondando pela casa,<br />
que um túmulo parece, e não palácio.<br />
O corpo escultural de sua amada<br />
não lhe sai da memória um só momento.<br />
Tem impressão de vê-la: corre em frente<br />
esperando abraça-la . . . Em vão, em vão.<br />
Desfaz-se logo o sonho. Em vão, em vão . . .<br />
Em As Coéforas, Orestes, filho de Agamênon e Clitemnestra, retorna<br />
de seu esconderijo e, para vingar o pai, mata tanto a mãe quanto Egisto.<br />
Deusas selvagens, as Eumênides, ou Fúrias, o perseguem, exigindo que<br />
paguem com seu sangue pela morte de Clitemnestra.<br />
Na peça final, As Eumênides, deusas mais jovens, lideradas por<br />
Atena, julgam Orestes perante um júri de mortais e decidem que a vingança foi<br />
redimida. Eles aceitam as Eumênides na hierarquia dos novos deuses, como<br />
protetoras de Atenas.<br />
Explorando essa trama de relacionamento, Ésquilo discute questões<br />
mais abrangentes. Quando atos privados orientaram decisões governamentais,<br />
o resultado foi morte e destruição, canta o coro, referindo-se a Helena, no<br />
trecho de Agamênon destacado anteriormente. A exigência de vingança<br />
aprisiona as nações por gerações; um coro de prisioneiros de guerra lamenta o<br />
fato na passagem de As Coéforas. No entanto, em uma nova fase da civilização,<br />
23
esses costumes podem ser alterados e As Eumênides terminam com uma suave<br />
canção de paz, conforme podemos apreciar no texto que segue :<br />
Marchai para o vosso lar, grandes amantes da honra,<br />
Filhas da Noite Ancestral, vossa paz foi alcançada.<br />
(E toda palavra é santa).<br />
Nas profundezas da terra, na imemorial caverna,<br />
honradas com sacrifício, com reverência e temor.<br />
(E toda palavra é santa).<br />
Temidas e amigas deusas, que amam e guardam a nossa<br />
terra; e embora devorem chamas, abrem um caminho de<br />
luz, que repousem satisfeitas, todas as vezes<br />
proclamem o triunfo da alegria !<br />
Derramai de novo o vinho em sacrifício incruento,<br />
e o onisciente Zeus guarde a cidade de Palas.<br />
O Deus e o Destino juntos, todas as vezes proclamem<br />
o triunfo da alegria !<br />
Ésquilo procurou no trágico destino de seus personagens confirmar a<br />
justiça da ordem divina. “Zeus, que orienta os pensamentos dos homens”,<br />
escreveu ele, “estabeleceu que só se alcança a sabedoria através do sofrimento”.<br />
Sófocles, aristocrata, general e amigo de Péricles, considerado muito<br />
culto e jovial na época, nasceu por volta de 497 a. C., combateu sob Péricles na<br />
guerra contra Samos, conforme dito anteriormente.<br />
Adotou uma visão mais equilibrada do relacionamento entre os<br />
homens e os deuses. Sua principal preocupação era o caráter e o modo pelo<br />
qual qualquer excesso - de orgulho, por exemplo - podia transformar o equilíbrio<br />
natural e levar à ruína.<br />
Extremamente produtivo, elaborou seus dramas com graça e nobreza<br />
impecáveis. Também foi um inovador, ampliando os recursos e a flexibilidade de<br />
forma trágica - por exemplo, acrescentando um terceiro ator, como citamos no<br />
início do capítulo. Sete de suas 130 peças foram preservadas.<br />
A trilogia tebana de Sófocles é um estudo da ambigüidade. Ele mostra<br />
que uma pessoa pode ser, ao mesmo tempo, inocente e culpada, praticando o<br />
24
mal com as melhores intenções. A coragem e a aceitação parecem ser as<br />
únicas reações frente a um universo racional.<br />
A primeira peça, Rei Édipo 1 , revela uma história de horror. tão sábio<br />
que solucionou o enigma da Esfinge, casou-se com a rainha de Tebas e passa a<br />
governar essa cidade. No início da peça, Tebas está amaldiçoada : ela abriga<br />
um parricida 2 que desposou a própria mãe, afrontando os deuses. Édipo é esse<br />
homem.<br />
Desconhecendo seu parentesco, Édipo havia matado um homem, seu<br />
pai, e se casado com uma mulher que era sua mãe. Pouco a pouco ele se<br />
aproxima da verdade; nessa fala, Tirésias, o advinho cego, começa a esclarecê-<br />
lo. Quando compreende o que ocorreu, Édipo fura os próprios olhos e se exila.<br />
Toda grandeza do poema pode ser avaliada no pequeno trecho que segue :<br />
_______________<br />
REI ÉDIPO<br />
Se tu possuis o régio poder, ó Édipo,<br />
eu posso falar-te de igual para igual !<br />
Tenho esse direito ! Não sou teu subordinado,<br />
mas sim de Apolo; tampouco jamais seria<br />
um cliente de Creonte. Digo-te, pois,<br />
já que ofendeste minha cegueira,<br />
que tu tens os olhos abertos à luz,<br />
mas não enxergas teus males, ignorando<br />
quem és, o lugar onde estás, e quem é aquela<br />
com quem vives. Sabes tu, por acaso,<br />
de quem és filho ?<br />
Sabes que és o maior inimigo<br />
dos teus, não só dos que há se encontram no Hades,<br />
como dos que ainda vivem na terra ? Um dia virá,<br />
em que serás expulso desta cidade pelas maldições<br />
maternas e paternas. Vês agora tudo claramente;<br />
1. Rei de Tebas, famoso por solucionar o enigma da Esfinge<br />
2. Pessoa que matou pai, mãe ou qualquer dos ascendentes<br />
25
mas em breve cairá sobre ti a noite eterna.<br />
E agora . . . podes lançar toda a infâmia sobre mim,<br />
e sobre Creonte, porque nenhum mortal, mais do que tu,<br />
sucumbirá ao peso de tamanhas desgraças !<br />
No poema Édipo em Colona, o rei, abandonado por todos, com<br />
exceção de sua filha Antígona, acaba seus dias em uma colina fora de Atenas.<br />
Seu destino - e o da humanidade - é lamentado pelo coro nos versos mostrados<br />
abaixo :<br />
ÉDIPO EM COLONA<br />
Embora tendo vivido uma vida plena,<br />
por vezes um homem ainda deseja o mundo.<br />
Juro que nisso não vejo sabedoria.<br />
As horas intermináveis trazem apenas sofrimento<br />
que aumenta a cada dia; e, quanto ao prazer,<br />
se alguém se curva sob o peso da idade excessiva<br />
não encontra em parte alguma seu prazer.<br />
A derradeira acompanhante é a mesma para todos,<br />
jovens e velhos, pois à sua chegada se revela<br />
a herança do outro mundo que cabe a cada um<br />
cessam para sempre o epitalâmio 1 ,<br />
a música e a dança. A morte é o desfecho . . .<br />
No entanto, o amaldiçoado Édipo também é abençoado: a terra se<br />
abre em Colona para levá-lo à morte e libertá-lo, tornando sagrado o local em<br />
que ele perece.<br />
Antígona, produzida em 441 a.C. por Sófocles, relata o trágico destino<br />
da filha de Édipo, de Tebas, condenada por enterrar o cadáver de seu irmão<br />
rebelde. Antígona também mostra um homem que, imaginando agir<br />
corretamente, faz o mal.<br />
_______________<br />
1. Canto ou poema com que se celebram núpcias, depois de realizadas; a celebração<br />
antecipada faz o protalâmio.<br />
26
Creonte, tio e sogro de Antígona, salvou Tebas de revolucionários,<br />
dentre os quais o agora morto irmão de Antígona. Para servir de exemplo,<br />
Creonte proíbe que o corpo deste seja enterrado. Antígona não pode permitir o<br />
sacrilégio, embora seu ato de desafio implique morte. Ela sepulta o corpo do<br />
irmão, admitindo o que fez. Como punição, ela é enterrada viva. Creonte<br />
percebe sua injustiça tarde demais e também é punido: Antígona se enforca em<br />
sua sepultura e o filho de Creonte também se suicida.<br />
Na peça, o coro lamenta por Antígona, referindo-se a mitos trágicos<br />
familiares aos gregos: o de Dânae, mencionado anteriormente; o de Licurgo,<br />
que se enfureceu contra o deus Dioniso, enlouqueceu e matou seu filho Drias ;<br />
o de Fineus, cuja segunda mulher provocou a cegueira dos filhos de seu<br />
primeiro casamento com Cleópatra 1 .<br />
Eurípedes, nascido por volta de 480 a.C., era um filósofo austero,<br />
recluso e menos idealista do que os outros dois.<br />
Das noventa peças que escreveu restam somente dezoito. Escreveu<br />
suas peças numa fase tardia da época de Péricles, quando as crenças e os<br />
valores tradicionais do mundo helênico estavam sendo questionados.<br />
Na sua maioria, as peças refletiam a incerteza, retratando um mundo<br />
no qual os deuses estavam perdendo seu poder sobre os gregos, cuja atenção<br />
se voltava para as dúvidas e contradições da existência humana. “ Ele retrata os<br />
homens como eles são ”, disse Sófocles, que admirava a obra do dramaturgo<br />
mais jovem, “ eu retrato os homens como eles deveriam ser ”.<br />
As obras de Eurípedes revelam uma percepção incomparavelmente<br />
profunda das paixões e motivações de seus conterrâneos.<br />
As Troianas, encenada em 416 a.C., de Eurípedes, relata o cerco de<br />
Tróia e suas conseqüências fascinando a imaginação de todos os gregos,<br />
especialmente a dos dramaturgos.<br />
A peça é um longo lamento pelos horrores da guerra - pelos<br />
guerreiros que morreram e pelas mulheres levadas cativas. Neste pequeno<br />
trecho, Hécuba, a rainha troiana, chora pelo cruel destino que coube a ela e<br />
suas crianças :<br />
_____________<br />
1. Rainha do Egito antigo<br />
27
AS TROIANAS<br />
Ai de mim ! Aqui estou, ao lado das tendas de Agamenon.<br />
Levam-me para a escravidão, uma velha igual a mim, com<br />
a cabeça dilacerada pela afiada lâmina do sofrimento.<br />
É demais ! Lastimosas viúvas dos guerreiros de Tróia e vós,<br />
virgens noivas da violência, Tróia está fumegante,<br />
choremos por Tróia . . .<br />
Eurípedes escreveu também tragédias sobre Ifigênia, a filha de<br />
Agamênon; sobre Medéia, a assassina; e também sobre Hipólito, o filho de<br />
Teseu, injustamente acusado de tentar seduzir sua madastra. No entanto, sua<br />
obra mais brilhante e aterrorizante talvez seja a que tem como tema o próprio<br />
deus que era o patrono da arte teatral.<br />
As Bacantes foi escrita no final da vida de Eurípedes, quando o<br />
dramaturgo havia deixado a enfraquecida e dilacerada Atenas e vivia na região<br />
selvagem da Macedônia.<br />
Dioníso era um espírito primitivo da fertilidade e da criatividade, que<br />
deu aos homens o conhecimento do vinho. Era um deus venerado por toda a<br />
Grécia com rituais orgiásticos, muitas vezes sangrentos. Aqueles que o<br />
aceitavam, diziam os crentes, tornavam-se parte do deus e recebiam a<br />
inspiração divina. Aqueles que o recusavam eram levados à loucura.<br />
Na peça de Eurípedes, o jovem deus Dioniso surge com seu alegre<br />
séquito 1 em Tebas, para ser venerado e provar sua própria divindade : dizia-se<br />
que ele era filho de Zeus 2 e uma princesa tebana.<br />
Penteu, o rei de Tebas, um homem inflexível e irritável,<br />
repudia o deus e comete o sacrilégio de colocá-lo a ferros. Em seguida, Dioniso<br />
enlouquece as mulheres de Tebas e as envia - lideradas pela mãe de Penteu -<br />
às montanhas para que festejem como suas seguidoras, as bacantes 3 .<br />
_____________<br />
1. Acompanhamento, cortejo.<br />
2. O maior de todos, deus dos deuses da mitologia grega.<br />
3. Sacerdotisas de Baco, deus do vinho.<br />
28
Ele também enlouquece Penteu e o atrai para o local onde se<br />
encontram as bacantes. Lá, Penteu é morte de maneira terrível por sua mãe<br />
enlouquecida, que havia sido levada a um frenesi animalesco. Por decoro, tal<br />
cena de violência não aparece na tragédia: um mensageiro descreve o que<br />
ocorreu na montanha.<br />
Quase todas as tragédias escritas foram primeiro apresentadas como<br />
trilogias, as quais eram seguidas por peças de sátiros - selvagens pantominas 1<br />
em homenagem a Dioniso - no teatro Dioniso Eleutério, junto à Acrópole<br />
ateniense.<br />
A enorme concha de pedra do anfiteatro podia receber 15 mil<br />
espectadores e apresentava excelente acústica. No interior da concha, havia a<br />
orquestra circular ou plataforma de dança, com o altar de Dioniso ao centro e,<br />
atrás, a skene, ou cena.<br />
Esta era uma plataforma encimada por uma edificação retangular de<br />
madeira, cuja fachada ocultava os camarins e os acessórios. Pelas três portas<br />
da cena, os atores ou declamadoras faziam suas entradas e saídas.<br />
A peça começava quando um ator, usando a máscara de linha e<br />
gesso, túnica, capa e coturnos especiais, declamava o prólogo. Em seguida, o<br />
coro começava a declamar seus versos. O segundo e o terceiro ator entravam e<br />
davam início aos diálogos, os quais se alternavam com comentários do coro, até<br />
que a peça chegasse ao final e o coro e os atores cantassem juntos o komoses,<br />
lamento final.<br />
Não se conhece a música de acompanhamento das tragédias, mas as<br />
palavras dos poetas ainda ressoam com toda a sua força.<br />
O importante de tudo que foi relatado neste capítulo é a conclusão<br />
lógica e pura de que a poesia dos primeiros tempos exerceu papel<br />
importantíssimo na formação cultural dos povos e foi motivo de júbilo para<br />
aqueles que dedicaram-se ao desenvolvimento das suas formas diversas e<br />
estruturação do pensamento poético, classificadas em odes, elegias, sátiras,<br />
epopéias, hinos ou outro gênero.<br />
_______________<br />
1. Arte ou ato de expressão por meio de gestos.<br />
29
Os principais poetas eram considerados parte da elite cultural da<br />
época e arrastavam multidões, desde simples curiosos e admiradores de rua<br />
que se aglomeravam nos locais escolhidos para encenações ao ar livre até os<br />
mais afamados filósofos e pensadores da antigüidade, fossem eles críticos ou<br />
incentivadores de qualquer modalidade.<br />
A notoriedade da poesia nos primórdios era muito superior à que<br />
verificamos na atualidade uma vez que os poemas eram declamados sempre<br />
em público e nunca para ouvintes solitários. Toda expectativa dos ouvintes era<br />
trabalhada com antecedência pelos poetas e demais pessoas que promoviam os<br />
eventos poéticos aliados ao teatro onde os poetas se preparavam ao máximo<br />
para não decepcionar a platéia.<br />
30
2. A PROFISSÃO DE POETA<br />
Os registros históricos consultados durante a evolução do trabalho<br />
não descartam o fato de a poesia ter sido a única fonte de ocupação e,<br />
possivelmente, de renda de muitos poetas ao longo da história humana.<br />
Na Grécia antiga, os poetas alcançavam fama e fortuna nas disputas<br />
promovidas em festivais religiosos, patrocinados freqüentemente pelo governo<br />
da época, principalmente em períodos de agitação política ou ameaça externa<br />
para distrair a população, conforme pude verificar.<br />
Embora a poesia tenha sido mais valorizada como arte pelos<br />
primeiros literatos, nota-se que os grandes poetas da antigüidade - sem<br />
menosprezar os talentos de cada poeta em particular - buscavam a<br />
independência financeira e aliavam-na ao gosto pela literatura e dramaticidade<br />
interpretadas através do teatro, o que poderia servir, inclusive, como forma de<br />
entreter grande parte da população sempre descontente com os seus<br />
governantes, motivo pelo qual os próprios faziam questão de estimular a<br />
constante realização dos eventos e premiar os vencedores dos concursos.<br />
Apesar da importância na antigüidade, a poesia nunca pôde ser<br />
reconhecida oficialmente em qualquer civilização ou cultura como profissão<br />
propriamente dita e sempre ficou rotulada por muitos como literatura, por outros<br />
como arte e por tantos outros como poesia mesmo, sendo esta última nem<br />
sempre classificada como arte.<br />
Diferente dos primeiros tempos, a história registra que muitos poetas<br />
obrigaram-se a viver clandestinamente ou na solidão por conta de suas poesias<br />
31
ditas infames, impróprias ou mesmo como ato puro de rebeldia e afronta aos<br />
governantes, e assim acabaram por merecer o repúdio incondicional ao invés do<br />
reconhecimento.<br />
Consta que o imperador romano Augusto foi um dos grandes<br />
incentivadores e patrocinadores oficiais aos escritores e poetas do seu tempo.<br />
Para assessorá-lo, recorria ao rico Caio Mecenas, um de seus amigos mais<br />
velhos e íntimos, que exercia o papel de caçador de talentos.<br />
Mecenas trouxe para o círculo imperial homens brilhantes de vários<br />
níveis da sociedade romana. Os poetas Ovídio e Propércio eram cavaleiros, o<br />
historiador Tito Lívio vinha de uma família da Gália Cisalpina, o grande poeta<br />
Virgílio era filho de um pequeno agricultor e Horácio nascera de uma família de<br />
libertos e todos eles gozavam de boa reputação e segurança financeira.<br />
Para esses homens, o patrocínio do imperador significava status<br />
social e conforto, à custa de alguma liberdade intelectual. Augusto certamente<br />
gostava quando um de seus protegidos produzia um poema épico para maior<br />
glorificação de Roma. Virgílio estava trabalhando numa obra desse tipo quando<br />
morreu, em 19 a.C. O poeta deixara ordens para que queimassem o poema,<br />
caso não conseguisse completá-lo. O imperador discordou – e o mundo ganho<br />
Eneida.<br />
Os chineses presumiam que um cavalheiro seria capaz de se<br />
expressar em verso em qualquer ocasião. A composição poética fazia parte dos<br />
concursos para o serviço público no governo Tang e todos os burocratas<br />
utilizavam suas habilidade poéticas na celebração de excursões imperiais,<br />
eventos auspiciosos ou na partida de autoridades.<br />
Tais ocasiões não encorajavam a originalidade : os chineses<br />
admiravam mais o equilíbrio e a capacidade técnica. Até os grandes poetas<br />
usavam o verso como outras culturas poderiam usar um diário para registrar as<br />
minúcias do dia-a-dia, bem como as epifanias de grande significado. E isso só<br />
tornou mais notável a audácia e o lirismo dos principais poetas Tang.<br />
Vladimir Maiakovski foi um dos maiores poetas que a literatura já<br />
produziu. Foi membro do partido Socialista e, acusado de escrever manifestos,<br />
foi preso por várias vezes, julgado e condenado. Quando saiu da prisão, em<br />
1910, julgava-se incapaz de escrever versos.<br />
32
Maiakovski pertencia a um grupo denominado futurista. Depois da<br />
Revolução de Outubro sua atividade literária tornou-se muito mais intensa,<br />
abrangendo quer a poesia, quer o teatro, embora nunca tivesse ganho muito<br />
dinheiro com isso, mas sustentava-lhe o ego e a sobrevivência mais moral do<br />
que física.<br />
Um dos aspectos mais interessantes desta nova fase na vida do<br />
escritor foram os inúmeros recitais de poesia feitos através de toda União<br />
Soviética.<br />
Posteriormente, tendo retomado a opção pela literatura, mais precisa<br />
mente a poesia, declara :<br />
“ Vou falar do meu ofício não como mestre, mas como aquele que faz<br />
versos. O meu artigo não tem nenhum significado teórico. Falo do meu trabalho,<br />
que, no fundo, segundo minhas observações e minha convicção, pouco se distingue<br />
do trabalho de outros poetas profissionais ” .<br />
Aliada ao exemplo acima, por muito tempo e ainda hoje a poesia<br />
carrega o estigma de ter sido associada ao prazer da bebida, da solidão, das<br />
doenças e do sofrimento geral em razão de que muitos poetas desafogavam<br />
toda sua mágoa e tristeza nos poemas, o que poder ser comprovado nas mais<br />
diferentes correntes e escolas poéticas surgidas a partir da Antigüidade, Idade<br />
Média e Contemporânea.<br />
Apesar da dificuldade do reconhecimento da profissão, encontramos<br />
muitos autores que se declararam verdadeiros poetas profissionais.<br />
Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, mesmo tendo ganhado a<br />
vida como funcionário público e jornalista, e alegando ter se dedicado à<br />
literatura por prazer, não hesitou em afirmar no prefácio de sua Antologia<br />
Poética (1962) :<br />
“ Hoje estou aposentado nas duas atividades que exerci a vida toda, mas<br />
posso considerar-me escritor profissional, pois a fonte do meu principal sustento<br />
resulta do fato de escrever e publicar livros, que o público tem recebido com<br />
simpatia”<br />
33
Contudo, amargando algumas derrotas na carreira literária que<br />
influíram profundamente no estilo de compor sua poesia, desabafa toda sua<br />
dificuldade em lidar com as palavras e talvez delas prover o seu sustento,<br />
facilmente identificado em parte do poema descrito abaixo (1962 : 182 ) :<br />
O LUTADOR<br />
Lutar com palavras<br />
é a luta mais vã.<br />
Entanto lutamos<br />
mal rompe a manhã.<br />
. . .<br />
Lutar com palavras<br />
parece sem fruto.<br />
Não tem carne e sangue<br />
Entretanto, luto.<br />
. . .<br />
Luto corpo a corpo,<br />
luto todo o tempo,<br />
sem maior proveito<br />
que o da caça ao vento.<br />
Apesar de muito criticado e ridicularizado quando jovem, por conta do<br />
seu poema No meio do caminho, julgado escandaloso pela crítica da época,<br />
Drummond conseguiu recuperar-se do trauma e seu poema acabou traduzido<br />
para 17 idiomas pelo mundo afora.<br />
Para aqueles que rotularam-no idiota, o tempo foi o único capaz de<br />
corrigir a injustiça que pesou sobre seus ombros e suas retinas fatigadas 1<br />
porque, a despeito de todas as descomposturas praticadas contra ele,<br />
houveram também os elogios mais entusiásticos, segundo a antologia<br />
organizada de sua obra e por estímulos de companheiros de geração e pessoas<br />
mais velhas nas quais o poeta depositava inteira confiança.<br />
_______________<br />
1. A Palavra Mágica, p. 119<br />
34
Ainda no prefácio de sua Antologia Poética (1962), o poeta consolida<br />
toda sua intelectualidade e gosto pelo exercício da profissão: “Acho que a<br />
literatura, tal como as artes plásticas e a música, é uma das grandes consolações da<br />
vida, e um dos modos de elevação do ser humano sobre a precariedade de sua<br />
condição” .<br />
A maioria dos grandes poetas, embora movidos pela paixão da arte<br />
de escrever, sempre estiveram divididos, haja vista que a profissão de poeta<br />
nunca foi capaz de se manter como meio de sustento e alimentar a esperança<br />
de ninguém, ao contrário do que ocorreu nos primeiros tempos.<br />
Um exemplo infeliz da tentativa de sobrevivência por meio da poesia<br />
foi o caso de Augusto dos Anjos, um dos maiores poetas brasileiros do início do<br />
século XX.<br />
Apesar de ter morrido à míngua, o poeta foi reconhecido<br />
postumamente após um árduo trabalho de seus amigos e irmão para divulgar<br />
sua obra.<br />
Em vida, Augusto dos Anjos amargou todas as incertezas que a<br />
profissão de poeta e o desprezo pela sua arte acabaram lhe proporcionando -<br />
poesia muito diferente das demais que ganhavam o início do século com o fim<br />
do Simbolismo, Parnasianismo e o advento do Modernismo em 1922.<br />
Até os 24 anos, o poeta viveu no Engenho do Pau-d´Arco na Paraíba<br />
do Norte, de onde se afastava periodicamente para breves estadas na Paraíba<br />
ou no Recife, mas sonhava com a fama e o reconhecimento literário, o que, por<br />
conseqüência, poderiam elevar o seu padrão de vida e amenizar os prejuízos<br />
financeiros da família.<br />
O Poeta Raquítico ou Doutor Tristeza, como era julgado e conhecido<br />
na Paraíba por conta de seus versos fúnebres e amargos, sempre almejou o<br />
sucesso através da poesia, embora sustentasse o casamento pelo exercício da<br />
profissão paralela de professor. Era advogado também, mas optou pelas letras.<br />
Insatisfeito com os proventos ganhos como professor do Liceu<br />
Paraibano e pouco valorizado pela imprensa, Augusto dos Anjos resolveu deixar<br />
a Paraíba rumo ao Rio de Janeiro onde, supostamente, gozaria de todo<br />
prestígio e compensação financeira pelo seu reconhecido mérito, como ele<br />
próprio pensou :<br />
35
“No Rio de Janeiro as coisas seriam diferentes. Publicaria, logo à<br />
chegada, o seu livro, afirmação de sua personalidade independente, o Eu. Levava<br />
algum dinheiro. Não precisaria do auxílio de ninguém nem dependeria de parentes.<br />
Faria relações com poetas, escritores e jornalistas, que lhe reconheceriam o talento,<br />
e tudo facilitariam ao novo companheiro de letras. Conquistaria, em suma, pelo<br />
próprio mérito, todas as posições que almejasse, na imprensa e no magistério” 1 .<br />
Decorrido quase um ano, pouco se havia alterado na vida de Augusto<br />
dos Anjos. Conseguiu, apenas, a nomeação de professor substituto de<br />
Geografia, Cosmografia e Corografia do Brasil no Ginásio Nacional.<br />
A situação do poeta era mais do que precária e os vencimentos<br />
insuficientes para cobrir as despesas da família. Perdera o primeiro filho e o<br />
parto prematuro indicava todas as dificuldades por que passou. A esperança de<br />
sobreviver pela poesia foi morrendo aos poucos e junto com ela o ímpeto do<br />
poeta em prosseguir com seus objetivos.<br />
na Paraíba :<br />
Em carta datada de 11 de setembro de 1991, declara à irmã<br />
“ Desempregado, com responsabilidades pesadas a me abarrotarem a<br />
alma, vítima de uma desilusão de minha própria terra, tudo isto, como um<br />
amálgama negro, engendrou esse silêncio malsinado, que não corresponde<br />
absolutamente a uma depressão quantitativa dos afetos à família, tanto por mim<br />
estimada. Agora, a nomeação que acabo de receber veio sanear um pouco o meu<br />
abalado território cerebral ” 2 .<br />
Para completar a receita do orçamento doméstico, tinha de desdobrar-<br />
se em aulas particulares, em bairros diferentes e tornou-se posteriormente<br />
agente de companhia de seguros, sem êxito, porém.<br />
Era total e absoluta sua incapacidade para ganhar dinheiro.<br />
Teve que se resignar ao ganha-pão de professor. Nenhum editor quisera<br />
publicar seus manuscritos poéticos. Acabou por financiar a edição, de parceria<br />
com o seu irmão, Odilon.<br />
_______________<br />
1. Augusto dos ANJOS, Apud Francisco A Barbosa, Eu e Outras Poesias, p.59<br />
2. Id., Ibid., p. 67<br />
36
Um outro poderia acreditar na obra, como um negócio capaz de<br />
proporcionar lucros, pelo menos é o que transparece nas cláusulas do contrato<br />
firmado por ambos, em reprodução ipisis litteris conforme abaixo :<br />
Cláusula II - “ Fica considerada como despesa de impressão a quantia de<br />
cinqüenta mil contos de réis, dispendida com a fotografia de Augusto dos Anjos, a<br />
fim da mesma figurar no livro”, e ainda, “Fica considerada como despesa à parte<br />
tudo que for gasto com a venda e colocação do livro, cabendo a quem houver feito<br />
dita despesa reavê-la, oportunamente ” .<br />
A grande verdade é que, apesar de todo seu talento, cultura e<br />
excepcionalidade, Augusto dos Anjos morreu frustrado, pobre e não pôde ver<br />
seu grande sonho realizado, a arte da sobrevivência pelo suor da sua poesia.<br />
O poeta voou alto, tinha asas possantes, mas era frágil e impotente 1 ,<br />
sem forças para vencer a realidade da vida, o que lhe causou profundo<br />
desânimo com o Rio de Janeiro, ao contrário do que almejava ao sair da<br />
Paraíba.<br />
Em 1914 mudou-se para Leopoldina, em Minas Gerais, tendo aceito o<br />
cargo de Diretor do Grupo Escolar da cidade com a ajuda de seu cunhado<br />
Rômulo Pacheco, ligado à política local. Agarrou-se ao cargo como um náufrago<br />
à espera da salvação 2 .<br />
Para sua escrita, porém, o poeta se utilizou de toda sua paixão e<br />
obedeceu exclusivamente ao temperamento que lhe coube por dádiva divina.<br />
Tal como inúmeros poetas de sua época e de outras, não conseguiu<br />
plena realização como poeta de profissão, mas nunca será esquecido, por toda<br />
grandeza de sua obra, reconhecida tardiamente nos meios literários.<br />
Morreu no mesmo ano em que se mudou para tentar a sorte em<br />
Leopoldina, acometido de uma congestão pulmonar, mas deixo aqui nossa<br />
homenagem ao grande Poeta Raquítico transcrevendo um de seus formidáveis<br />
sonetos, grande pela idéia predominante, pela verdade científica, pelo<br />
sentimento doloroso e pela estrutura 1 2 , como diria Órris Soares, amigo do<br />
poeta, em elogio feito no ano de 1919 :<br />
_______________<br />
1. Órris SOARES in: Augusto dos Anjos, O Eu e Outras Poesias, p.39<br />
2 . Órris Soares era tio-avô do humorista brasileiro Jô Soares<br />
37
LAMENTO <strong>DA</strong>S COISAS<br />
Triste a escutar, pancada por pancada,<br />
a sucessividade dos segundos,<br />
ouço, em sons subterrâneos, do orbe oriundos,<br />
o choro da Energia abandonada.<br />
É a dor da força desaproveitada<br />
- O cantochão dos dínamos profundos,<br />
que, podendo mover milhões de mundos,<br />
jazem ainda na estática do nada !<br />
É o soluço da forma ainda imprecisa . . .<br />
Da transcendência que não se realiza . . .<br />
Da luz que não chegou a ser lampejo . . .<br />
E é, em suma, o subconsciente aí formidando<br />
da Natureza que parou chorando<br />
no rudimentarismo do desejo !<br />
Diferente do que poderia ser, nenhum poeta conseguiu manter-se<br />
financeiramente pela própria poesia. Ao exercício da arte de poetar, por<br />
necessidade desenfreada da sobrevivência, a grande maioria obrigou-se a<br />
associá-la a uma atividade paralela, incondicionalmente, o que não deixa de<br />
causar indignação e espanto, uma vez que a poesia sempre esteve presente na<br />
cultura de todos os povos e todos sempre fizeram questão de enaltecer seus<br />
poetas.<br />
À exceção dos primeiros e de alguns da atualidade, dificilmente<br />
encontramos algum registro de poetas que tenham enriquecido ou simplesmente<br />
vivido bem por simples exercício de sua poesia.<br />
Sófocles, Horácio, Píndaro, Shakespeare, Auden, João Cabral de<br />
Mello Neto, Manuel Bandeira ou mesmo Drummond, a despeito de toda a fama<br />
e herança cultural acumulada para o bem da humanidade, nunca puderam<br />
orgulhar-se da poesia como meio de sobrevivência.<br />
38
Aos poetas sempre estiveram ligados as demais profissões como<br />
embaixador, general, professor, escritor ou mesmo cantor, motivo pelo qual<br />
podemos insinuar que a poesia não serve como referência profissional.<br />
Atualmente, poucos poetas se dizem felizes e contentes com o tímido<br />
reconhecimento do público, traduzido em números.<br />
O exemplo de Augusto dos Anjos no início do século e Mário Quintana<br />
falecido há pouco tempo não deixam dúvidas de quanto a poesia é ingrata,<br />
mesmo sendo objeto de estudo e avaliação em qualquer escola ou universidade<br />
de renome.<br />
Mário Quintana, poeta gaúcho, viveu os últimos dias de sua vida<br />
vivendo de favores alheios apesar de sua vasta produção poética. Orides<br />
Fontela, poetisa paulista reconhecida pelos críticos como uma das maiores da<br />
atualidade brasileira, sofre para pagar as despesas de aluguel e manutenção de<br />
um apartamento no centro de São Paulo.<br />
Auden na Inglaterra, Eliot e Emerson nos Estados Unidos, Trakl na<br />
Polônia, Petrarca na Itália, Maiakovski na Rússia, Baudelaire e Rimbaud na<br />
França, todos eles foram vítimas do mesmo mal e em razão de toda indiferença<br />
em vida, gozam hoje de reconhecimento, respeito e consideração da crítica<br />
literária, dos estudiosos conscientes que acabaram concluindo a importância da<br />
poesia no mundo antigo, medieval e contemporâneo.<br />
O objetivo principal no capítulo ao fazer uma analogia e tentar<br />
associar a atividade do poeta à profissão foi demonstrar a contradição que<br />
existe no fato do público louvar a poesia em todos os tempos e ao mesmo<br />
tempo não possuir o discernimento e a crítica necessária para reverter toda<br />
injustiça que os poetas conseguem, na maioria dos casos, postumamente.<br />
Assim sucedeu com Augusto dos Anjos, Gregório de Matos Guerra,<br />
Shakespeare, Cecília Meireles e Mário Quintana, e os textos consultados não<br />
indicam que haja tendência de reversão, para tristeza dos amantes da boa<br />
poesia.<br />
Tudo o que constatei durante a execução deste capítulo levou-me a<br />
acreditar que a poesia não reconhecida como profissão é uma grande injustiça,<br />
difícil de ser corrigida, embora seja obrigação de todos reconhecê-la como arte<br />
pura e legítima, confiada somente aos iluminados que ousaram cultivá-la por<br />
39
gosto, paixão e até por necessidade de expor tudo aquilo que os mortais<br />
comuns não conseguem.<br />
Talvez seja da natureza do poeta produzir palavras difíceis e dificultar<br />
o entendimento, guardar para si mesmo aquilo que apenas ele entende num<br />
primeiro piscar de olhos, razão pela qual sua obra seja motivo de estudo e não<br />
de riquezas materiais.<br />
Emerson, em Ensaios (1994 : 228) sobre o intelecto, resume o<br />
trabalho do poeta e sua perfeita relação com a natureza :<br />
“O intelecto precisa ter a mesma perfeição naquilo que apreende e<br />
naquilo que produz. Por essa razão, um índice de mercúrio da eficiência intelectual<br />
é a percepção da identidade. Falamos com pessoas cultivadas que parecem ser<br />
estranhos na natureza. O poeta, cujos versos devem ser esféricos e completos, é<br />
alguém que não pode ser enganado pela natureza, não importa qual a máscara de<br />
estranheza que ela possa vestir . . . Hermes, Heráclito, Empédocles, Platão, Plotino,<br />
Olimpiodoro e o resto têm algo de tão vasto em sua lógica, tão primário em seu<br />
pensamento, que parece anteceder a todas as distinções ordinárias da retórica e da<br />
literatura, e ser ao mesmo tempo poesia, música, dança, astronomia e matemática ”.<br />
40
3. A <strong>HISTÓRIA</strong> ATRAVÉS <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong><br />
A poesia sempre foi companheira da história da humanidade, pelo<br />
menos é o que pude perceber estudando os mais diferentes autores, antigos e<br />
atuais. Todos os feitos históricos, narrados em epopéias, sátiras, fábulas,<br />
epigramas, odes ou elegias, eram frutos de algum acontecimento associado ao<br />
cotidiano das pessoas ou à saga de um povo e seus governantes.<br />
A história também pode ser considerada o registro e interpretação de<br />
eventos do passado. Começou com a recontagem de lendas transmitidas pela<br />
tradição oral: as narrativas épicas de Homero foram as expressões poéticas da<br />
história oral, enquanto no período clássico da Grécia Antiga, Heródoto,<br />
Tucídides, Sófocles e Ésquilo entre outros escreveram narrativas da história de<br />
seu tempo.<br />
Em capítulo anterior, quando descrevi algumas informações sobre os<br />
primeiros poetas, notei que os poemas, a exemplo da Ilíada de Homero,<br />
independente do lirismo e da extensão do texto, e na qualidade de mais antigos<br />
registros literários remanescentes, relatam detalhes de todos os acontecimentos<br />
possíveis da época ajudando a reconstruir a antiga história da Grécia<br />
fornecendo muitas evidências incidentais.<br />
Emerson, em Ensaios (1994 : 15), associa história à poesia em cada<br />
parágrafo, frase ou capítulo, fazendo menções aos acontecimentos e referindo-<br />
se ao fato da poesia estar sempre presente nos principais acontecimentos dos<br />
povos e ao longo dos tempos :<br />
41
“ O Jardim do Éden, o sol imóvel sobre Gibeão são poesia, desde então,<br />
para todas as Nações . A história universal, os poetas, os romancistas, mesmo em<br />
seus quadros mais faustosos - nos palácios sacerdotais e imperiais, nos triunfos da<br />
vontade ou do gênio - em nenhum lugar deixam de ter ressonância em nosso ouvido,<br />
em nenhum lugar nos fazem sentir que somos intrusos, que aquilo é para homens<br />
melhores; pelo contrário, é verdade que em suas pinceladas mais grandiosas<br />
sentimo-nos o mais à vontade possível. Tudo o que Shakespeare diz do rei, aquele<br />
garoto magricela que lê em um canto sente ser verdadeiro em relação a si mesmo.<br />
Nos compartilhamos dos sentimentos que despertam os grandes momentos da<br />
história, as grandes descobertas, as grandes resistências, as grandes prosperidades<br />
dos homens - pois ali a lei foi promulgada, o mar foi esquadrinhado, a terra foi<br />
descoberta ou rajada de vento soprou a nosso favor, do mesmo como, naquele<br />
lugar, teríamos feito ou aplaudido, e nada escapou à poesia, tudo se registrou<br />
através dela ” .<br />
Através de poemas, muitos fatos chegaram ao nosso conhecimento.<br />
Ilíada e Odisséia, poemas épicos de Homero, conforme citado anteriormente,<br />
relatam muito bem todos os costumes e preocupações dos governantes da<br />
Grécia antiga com uma riqueza de detalhes jamais conseguida pelos registros<br />
oficiais da história.<br />
Além de Homero e outros importantes poetas da antigüidade, muitos<br />
outros foram surgindo ao longo da história e cada um foi incorporando à sua<br />
maneira a verdade dos fatos em forma de poesia.<br />
A literatura latina teve início tardio, no final do século III a.C., com as<br />
peças de Plauto e, pouco depois, de Terêncio, ambos seguidores do modelo<br />
tradicional e comédia dos gregos.<br />
Na época do nascimento do imperador Augusto, porém, os poetas<br />
romanos já haviam adquirido impulso próprio. Costumavam utilizar pessoas<br />
reais como personagens de suas obras. Por exemplo, Lésbia, a quem Catulo 1<br />
se dirigia em seus elegantes poemas de amor e desilusão era, na verdade, uma<br />
dama chamada Clódia, ao que consta, casada com um cônsul.<br />
_______________<br />
1. Considerado o maior lírico da poesia latina<br />
42
E não havia dúvidas de que Júlio César e seu Chefe do Estado-Maior<br />
eram o alvo das farpas de Catulo: “ ambos adúlteros, igualmente ávidos, parceiros<br />
na competição pelas mocinhas da cidade ” . César tinha espírito esportivo : depois<br />
de exigir e receber desculpas, convidou o poeta para jantar.<br />
Mas foi Augusto quem ofereceu patrimônio oficial inestimável aos<br />
escritores do seu tempo. Para assessorá-lo, recorria ao rico Caio Mecenas, um de<br />
seus amigos mais velhos e íntimos, que exercia o papel de caçador de talentos.<br />
Mecenas trouxe para o círculo imperial homens brilhantes de vários níveis<br />
da sociedade romana. Os poetas Ovídio 1 e Propércio 2 eram cavalheiros, o<br />
historiador Tito Lívio 3 vinha de uma família da Gália Cisalpina, o grande Virgílio 4<br />
era filho de um pequeno agricultor e Horácio 5 nascera numa família de libertos.<br />
to 4 e juntos descrevam minuciosamente os grandes acontecimentos do império.<br />
Os primeiros poemas líricos de Horácio, Epodos, seguem a tradição<br />
de Arquíloco. Os quatro volumes de Odes são ainda mais notáveis - escritas em<br />
versos que mostram da melhor maneira a concisão latina, abrangem grande<br />
variedade de assuntos, com predomínio do amor, da política, da filosofia, da<br />
poesia e da amizade na época.<br />
Segundo a Bíblia, o povo de Israel superou na lírica todos os outros<br />
povos. Cantou desde Moisés até Cristo. Os Salmos, por exemplo, são hinos<br />
sagrados por meio dos quais o povo de Deus costumava louvar o Altíssimo,<br />
implorar a sua misericórdia, agradar os benefícios recebidos e recordar os<br />
prodígios de sua paternal providência em torno de Israel. Foram compostos por<br />
vários escritores sagrados, sendo Davi 6 o autor de sua maior parte.<br />
Eram denominados Salmos por serem cantados ao som de um<br />
instrumento que os gregos denominavam Saltério. Dividiam-se em cinco livros e<br />
atualmente acham-se reunidos num único livro.<br />
_______________<br />
1. Mestre da poesia erótica, um dos primeiros poetas latinos<br />
2. Poeta latino, amigo de Ovídio e admirador de Catulo, famoso por suas elegias<br />
3. Orador, estadista e historiador romano no início do Seculo I a.C.<br />
4. Um dos maiores poetas latinos, autor de Eneida<br />
5. Poeta latino da mesma época de Virgílio e Catulo<br />
6. Segundo Rei de Israel, governante da tribo de Judá, famoso por derrotar o<br />
gigante Golias<br />
43
A coleção dos Salmos 1 não têm uma ordem especial; todas as cinco<br />
divisões foram indiscriminadamente organizadas por cada colecionador com os<br />
salmos que lhe vinham às mãos. Pertencem esses hinos a todos os gêneros da<br />
lírica hebraica : são hinos, ações de graças, orações, pias meditações, poemas<br />
históricos, didáticos, penitenciais. Tornaram-se célebres os salmos messiânicos,<br />
isto é, aqueles que tratam da vinda do Messias, Cristo; realmente, são<br />
considerados como grandes profecias.<br />
Segundo os historiadores, tudo leva a crer que os Salmos tenham<br />
sido escritos em forma de versos e graças à doxologia, ciência que estuda o<br />
culto à glória e aos deuses, conseguimos entender a sua disposição e perfeita<br />
combinação das palavras para facilitar o acompanhamento de instrumento e<br />
música.<br />
Outro poeta de grande importância para a história da humanidade foi<br />
Camões 2 . Sua Ode XI, publicada na edição dos “ Colóquios dos Símplices e<br />
Drogas da Índia ”, relata sua viagem de regresso à pátria e suas andanças pela<br />
Índia e pela China, a qual, inclusive, foi financiada pelos amigos.<br />
Praticamente tudo que existe hoje sobre a vida de Camões é<br />
resultado das analogias feitas por especialistas na obra do poeta, pois a<br />
precariedade dos registros históricos não nos permite conhecê-lo de outra forma<br />
senão interpretando seus poemas.<br />
Em 1571, um ano depois que Camões desembarcou em solo<br />
português, após 17 anos de exílio na Índia por ter agredido o rei de Portugal, de<br />
vida penosa, agitada e dificílima nas terras do Oriente, o poeta obtém, através<br />
de amigos influentes, a permissão e o alvará régio para a publicação de Os<br />
Lusíadas.<br />
De Camões, em verdade, pouco sabemos. Nasceu pobre, viveu,<br />
morreu mais pobre ainda. Em sua poesia, e sobretudo nas poucas cartas que<br />
indubitavelmente são dele, pode-se ler que, como português, incorporou na<br />
alma toda a nossa condição : pobreza, vagabundagem, cadeia, sofrimento,<br />
paixão, insatisfação com os governantes de sua época.<br />
______________<br />
1. Conjunto de hinos sagrados do Antigo Testamento Bíblico<br />
2. Poeta português do Sécuylo XVI, famoso por seus escritos Os Lusíadas<br />
44
Erros, má fortuna e amor ardente se conjugaram para fazer daquele<br />
alto espírito do maneirismo europeu uma das figuras mais desgraçadas da via-<br />
sacra nacional.<br />
Quando foi preso em Goa, ilha sob domínio português, a nau 1 em<br />
que viajava naufragou e ele teve de nadar até as margens do Rio Mekong para<br />
salvar os manuscritos de Os Lusíadas, obra então quase finalizada.<br />
O importante da obra de Camões é ressaltar que o poeta foi capaz de<br />
enaltecer a história e, apesar de ter morrido na miséria, confunde-se com a<br />
própria história através dos tempos.<br />
Não há estudioso capaz de falar em poesia ou literatura portuguesa<br />
sem lembrar de Os Lusíadas, clássico da poesia que já nem pertence mais ao<br />
poeta e sim à humanidade, digno de respeito, consideração e estudo.<br />
Camões viu a história, narrou-a e tornou-se história, inegavelmente,<br />
através de sua obra e de todo o sofrimento que acumulou em vida, como poeta,<br />
náufrago e exilado. Um pouco do pensamento do poeta pode ser analisado no<br />
poema abaixo:<br />
______________<br />
A DITOSA PÁTRIA<br />
Eis aqui, quase cume da cabeça<br />
De Europa toda, o Reino Lusitano,<br />
Onde a terra se acaba e o mar começa<br />
E onde Febo repousa no Oceano.<br />
Este quis o Céu justo que floresça<br />
Nas armas contra o torpo mauritano,<br />
Deitando-o de si fora; e lá na ardente<br />
África estar quieto o não consente.<br />
Esta é a ditosa pátria minha amada,<br />
À qual se o Céu me dá que eu sem perigo<br />
Torne, com esta empresa já acabada,<br />
Acabe-se essa luz ali comigo.<br />
1. Grande embarcação, navio<br />
45
José de Anchieta, nosso primeiro poeta nacionalista veio para o Brasil<br />
em 1553, com a Companhia de Jesus, na comitiva de Duarte da Costa 1 .<br />
Durante o período de colonização, sua missão principal foi a de catequizar os<br />
índios e ser professor nos primeiros colégios destinados aos filhos de<br />
portugueses que aqui chegaram, fidalgos, em primeira instância.<br />
Estudiosos e pesquisadores o definem como iniciador da nossa<br />
poesia, independente de ter vindo de Portugal e de ter nascido na Espanha,<br />
pois aqui viveu na época de transição histórica, a chamada fase lingüista do<br />
português.<br />
Alguns estudos críticos de Anchieta, a participação na formação<br />
histórica do país foi de tal maneira intensa e fecunda que seus historiadores ou<br />
mesmo seus biógrafos quase sempre se esquecem que ao lado do homem de<br />
ação lúcida, de colonizador obstinado, coexistia um escritor sensível.<br />
Toda a obra literária de Anchieta está ligada à realidade<br />
brasileira da época do descobrimento. Escreveu dois grandes poemas, um<br />
dedicado à Virgem Maria e outro aos feitos de Mém de Sá 2 , em 4 línguas : o<br />
próprio latim, o espanhol, o português e a chamada língua geral baseada no<br />
dialeto dos Tupinambás 3 , ou língua mais falada na costa do Brasil, ao seu<br />
tempo.<br />
Seus escritos foram classificados em cartas, fragmentos históricos,<br />
sermões, poesia lírica e autos de catequese, os últimos colhidos nos próprios<br />
costumes ou cerimônias indígenas. Os originais do chamado caderno Anchieta,<br />
com 208 folhas, encontram-se nos arquivos da Companhia de Jesus, em Roma.<br />
Ao que tudo indica, essas páginas escritas por Anchieta o<br />
acompanharam ao longo de sua vida no Brasil até os últimos momentos e estão<br />
recheadas de acontecimentos históricos do período em que os primeiros<br />
habitantes do Brasil tiveram o imenso gosto de companhia e puderam<br />
testemunhar a coragem do evangelizador e poeta em solo brasileiro.<br />
_______________<br />
1. Segundo Governador Geral do Brasil, a serviço do Reino de Portugal<br />
2. Terceiro Governador Geral do Brasil, a serviço do Reino de Portugal<br />
3. Uma das principais tribos da costa marítima brasileira à época do descobrimento<br />
46
No período Romântico brasileiro, encontramos um número sem fim de<br />
poemas e poetas a descreverem todo tipo de ação feito do seu respectivo<br />
tempo. Gonçalves de Magalhães narra Napoleão em Waterloo de maneira<br />
brilhante, algo escrito com riqueza de detalhes ou mesmo de imaginação digna<br />
de quem devorou por inteiro e absorveu todo conhecimento histórico daquela<br />
fatídica batalha em que grande imperador francês foi derrotado.<br />
Alguns poemas monumentais não devem ser esquecidos jamais pela<br />
humanidade e, principalmente, pelos brasileiros. São poemas que relatam uma<br />
época sem precedentes, de transformação e muitas injustiças, onde os poetas<br />
escancaram toda verdade não adquirida pela simples leitura de livros escolares.<br />
I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias; Os Jesuítas e Navio Negreiro, de<br />
Castro Alves; Pedro Ivo, de Álvares de Azevedo; Morte e Vida Severina e o Auto<br />
do Frade, de João Cabral de Melo Neto; Natureza Intima e Lamento da Coisas,<br />
de Augusto dos Anjos e os Estatutos do Homem, de Thiago de Mello.<br />
Há nos poemas todo um mistério irrefutável e intimamente ligado à<br />
história, não somente pela verdade poética do seu conteúdo, mas também pelo<br />
fato de não distorcerem os acontecimentos e ampliarem o nível de<br />
conhecimento tão limitado pelo registro histórico e pelo conhecimento do<br />
homem.<br />
Wystan Hugh Auden, poeta inglês nascido no início do século, era o<br />
nome de um santo do século IX por quem o pai do poeta tinha particular afeição.<br />
Médico, Dr. George Auden dedicava-se também aos estudos arqueológicos,<br />
históricos e clássicos, tendo passado um pouco desses gostos ao filho caçula.<br />
Segundo José Paulo Paes (1986:7), em sua introdução quase didática<br />
sobre a Vida e Poética de W.H.Auden, enquanto poeta, ele é uma das mais<br />
convincentes ilustrações daquilo que os críticos costumar chamar de falácia<br />
biográfica , ou seja, o equívoco de querer explicar as particularidades da obra<br />
de um escritor pelos acontecimentos de sua vida civil.<br />
Na sua poesia, o pendor para a generalização leva de vencida a<br />
preocupação com o particular, o crítico obnubila o sentimental, e os poemas, em<br />
vez de estarem voltados para o registro de incidentes da vida do poeta ou de<br />
traços de sua personalidade, interessam-se antes pelo sucesso e pelas idéias<br />
mais candentes que foi dado a ele viver.<br />
47
Em Valência, onde chegou em janeiro de 1937, não foi ser soldado<br />
nem motorista de ambulância como pretendia; puseram-no na propaganda pelo<br />
rádio.<br />
De volta à Inglaterra, escreveu um poema sobre a Guerra Civil<br />
Espanhola denominado Espanha, no qual oferece à história um série de<br />
acontecimentos da época e, mais tarde, numa declaração pública contentou-se<br />
em dizer, laconicamente, que apoiara o governo republicano espanhol “ porque<br />
a sua derrota pelas forças do fascismo internacional seria um grande desastre para<br />
a Europa” 1 .<br />
Em janeiro de 1938, viajou ao Oriente onde ele e outro colega foram<br />
fazer a cobertura da guerra sino-japonesa para um livro encomendado pela<br />
editora americana Randon House. Passaram três meses na China e alguns dias<br />
no Japão. Essa excursão inspirou Auden, em cuja obra há vários poemas sobre<br />
lugares, “ Uma Viagem “, em que, além da peça de abertura, em versos livres,<br />
acerca do seu desencanto com a utopia do bom lugar, inclui sonetos ferinos<br />
sobre o Egito, Hong-Kong e Macau.<br />
A desilusão política de Auden é retratada em diversos poemas seus e<br />
quase todos o poeta faz um balanço de influências intelectuais, religiosas e<br />
políticas que sofreu :<br />
_______________<br />
Mas de súbito e sem aviso,<br />
despencou toda a Economia:<br />
para instruir-me havia Bretch 2 .<br />
Por fim, coisas pavorosas,<br />
que Hitler e Stalin faziam<br />
trouxeram-me Deus à mente.<br />
Como estava certo do erro ?<br />
Por Kierkegaard, Wiliam e Lewis<br />
fui à fé reconduzido.<br />
1. The English Auden, cit., p.18<br />
2. Poeta, dramaturgo e romancista alemão do início do século<br />
48
Ao citar Auden tentamos traçar um paralelo entre a vocação do poeta<br />
e a importância histórica do seu trabalho transformado em poesia onde,<br />
claramente constatado em seus escritos, há dados inequívocos da sua<br />
excepcional facilidade em avaliar os acontecimentos e registrá-los com riqueza<br />
de detalhes.<br />
Poetas como Auden, Milton, Valery, Apollinaire e Heine são a própria<br />
história da humanidade. Através deles os estudiosos contemplam as verdades e<br />
mentiras de seu tempo e dificilmente podemos encarar qualquer poema ou<br />
mesmo texto em prosa que não haja um mínimo de verdade absoluta.<br />
A história está para a poesia e a poesia está para a história, são<br />
inseparáveis e nada pode desfazer esta junção. Seja por Homero, Horácio,<br />
Sófocles ou mesmo por Shakespeare, a história sempre chegou com detalhes<br />
embora as dúvidas sejam muitas pela fragmentação da obra de muitos poetas.<br />
49
4. OS GRANDES POETAS<br />
Apesar da livre opção e vontade própria de incluir um capítulo sobre<br />
os grandes poetas que surgiram desde a antigüidade até os dias de hoje, seria<br />
prematuro e arriscado de minha parte afirmar que a humanidade teve um ou<br />
outro de maior importância que os demais.<br />
O envolvimento com a poesia durante a execução da monografia já<br />
me permite afirmar que os poetas, mesmo citados em enciclopédias e livros de<br />
história como Grandes para um ou outro autor, foram para seu tempo e sua<br />
época e, portanto, devem ser avaliados sob diferentes pontos de vista, a<br />
começar pela obra de cada um em particular.<br />
Píndaro, Sófocles e Temístocles foram importantíssimos para o povo<br />
da Grécia antiga assim com Virgílo, Alighieri, Petrarca e Ovídio foram para os<br />
italianos. Se perguntarmos aos americanos qual o poeta mais importante da<br />
humanidade é muito provável que elejam Ezra Pound ou Emerson, os alemães<br />
dirão Goethe e os britânicos não hesitarão em apontar Shakespeare como o<br />
maior de todos os tempos.<br />
Verdade pura, todos tiveram sua importância no desenvolvimento da<br />
história e da literatura universal. Não pretendo, na minha humilde capacidade de<br />
analogia dos poemas estudados, fazer juízo de qualquer autor que seja, pelo<br />
simples fato de saber que a humanidade conhece a todos e a eles dedica todo o<br />
respeito que lhes cabe.<br />
A bem da verdade, o mais importante é saber que todos os nomes<br />
atualmente registrados na história, por acaso ou pela influência exercida em<br />
cada época, se perpetuaram por uma razão única : ter se distinguido da filosofia<br />
e dos costumes tradicionais.<br />
50
Na maioria dos poetas pesquisados, todos os casos encontrados<br />
sobressaíram-se no seu tempo por algum motivo contrário à ordem ou tradição,<br />
aos costumes ou à lei, por rebeldia, melancolia, utopia ou mesmo por um<br />
romantismo mais acentuado.<br />
Sob o ponto de vista didático e em razão do farto material disponível<br />
nas bibliotecas, concentrei minha pesquisa nos autores de maior conhecimento<br />
do público, quer pelo amplo número de livros publicados, quer pela influência<br />
exercida pela mídia sobre determinados autores, quer também pela propaganda<br />
cultural de determinadas classes literárias que estabelecem uma espécie de<br />
cânone da literatura mundial, a exemplo do que fez o crítico e estudioso norte-<br />
americano Harold Bloom 1 .<br />
Meu objetivo no capítulo não se restringe a eleger os melhores e sim<br />
demonstrar a importância da obra de cada um dos escolhidos sob o nosso<br />
cânone, a fim de enriquecer o trabalho e defender meu ponto de vista sobre a<br />
importância da poesia no decorrer da história.<br />
Conforme discorrido anteriormente, Homero foi um dos mais<br />
importantes poetas da antiga literatura grega, não somente pelo fato de ter<br />
produzido toda sua obra mesmo cego, mas também pelo fato de ter relatado<br />
acontecimentos de caráter histórico e informativo de sua época, através dos<br />
seus dois maiores poemas, considerados por muitos historiadores os maiores<br />
épicos da antigüidade: Ilíada e Odisséia.<br />
Homero é para a Grécia o que Shakespeare é para a Inglaterra. Não<br />
se pode ignorar a importância do poeta hoje, decorridos quase 3.000 anos do<br />
seu tempo, pois permanece objeto de estudo em universidades, escolas<br />
poéticas e causa o mesmo fascínio de antes. Livros são escritos sobre a sua<br />
obra e as interpretações são mais diferentes possíveis.<br />
As obras do poeta, como conhecemos atualmente, apresentam uma<br />
unidade impressionante, apesar de serem muito longas. Do ponto de vista<br />
histórico, Ilíada e Odisséia são de extrema importância pela simples razão de<br />
ajudarem a reconstruir a antiga história da Grécia.<br />
_______________<br />
1. O Cânone da Literatura Ocidental<br />
51
Mais adiante, Horácio, Virgílio e Ovídio exerceram influência<br />
suficiente para registro de seus nomes nos anais da história da literatura<br />
universal.<br />
Horácio, que viveu de 65 a 8 a.C., tinha uma personalidade áspera e<br />
autodepreciativa, comprovada através de seus poemas Sátiras e Epístolas.<br />
Seus quatro volume de Odes são ainda mais notáveis, escritos em versos que<br />
mostram da melhor maneira a concisão latina, abrangendo grande variedade de<br />
assuntos, com predomínio do amor, da política, da filosofia, da poesia e da<br />
amizade.<br />
Filho de um esclarecido escravo liberto, nasceu na região de Venosa<br />
e contou sempre com o apoio do pai em todos os momentos de sua formação.<br />
Estudou em Roma e Atenas. Republicano convicto, tomou o partido de Bruto 1 e<br />
não hesitou em confessar, candidamente, que abandonara as armas no campo<br />
de batalha de Filipos, onde Otávio derrotara as forças de Bruto e Cássio.<br />
Juntamente com Virgílio e Catulo, Horácio forma a tríade maior da<br />
poesia latina clássica. Seus mestres foram os poetas gregos - não os mais<br />
próximos, os alexandrinos, mas os recuados, os fundadores da lírica helênica :<br />
Arquíloco, Safo e Alceu.<br />
Sua obra chegou-nos praticamente completa; são sátiras, epodos,<br />
epístolas e, principalmente, odes (em quatro livros), estudadas, esmiuçadas e<br />
traduzidas em inumeráveis línguas, tanto no Ocidente como no Oriente, ao<br />
longo desses dois milênios, como o pequeno fragmento que transcrevemos a<br />
seguir :<br />
Pobre vida a da moça que não pode<br />
namorar (vigilância)<br />
nem se permite um gole<br />
para afogar as mágoas (e as más línguas?)<br />
Admirado, traduzido e imitado há dois milênios, Caio Valério Catulo<br />
(82-52 a.C.), pode ser considerado o maior lírico da poesia latina. Segundo<br />
Décio Pignatari em seu 31 Poetas 214 Poemas (1996 : 118),<br />
_______________<br />
1. Soldado romano do Século I a.C., um dos assassinos do imperador Júlio César<br />
52
“ . . . sua lírica, não raro atravessada por laivos epigramáticos irônicos,<br />
jocosos ou satíricos, é louvada pela sua inovadora simplicidade direta - escorada,<br />
porém, por uma sábia estrutura que não se exibe - e pela inflamada crispação<br />
interna que a paixão amorosa provoca ”.<br />
Nascido em Verona, de pais abastados e muito bem relacionados,<br />
viveu na Roma de Júlio César e Cícero; o primeiro era hóspede freqüente de<br />
seu pai (que não impediu algumas farpas do filho); o segundo está ligado a ele<br />
pelos dois pontos que mais poderiam tocá-lo : sua poesia e sua amada-amante.<br />
Quanto ao primeiro, o orador criticava em Catulo e seus jovens<br />
amigos poetas as liberdades métricas, a irreverência, os coloquialismos<br />
familiares e populares e o pouco apreço que tinham pelos severos mestres do<br />
passado, Ênio em especial; chamava-os neoteroi , inovadores, em grego, de<br />
propósito, pelo vezo que tinham de imitar poesia grega, tanto a lírica arcaica e<br />
pioneira de Arquíloco e Safo como a mais recente, a alexandrina. Segundo<br />
ponto : Chegou a referir-se a Clódia, esposa de um cônsul romano, como<br />
“meretriz barata”, em pleno fórum, além de insinuar que ela mantinha relações<br />
incestuosas com o irmão.<br />
Contudo, suas odes tornaram-se famosas e foram traduzidas em<br />
diversas línguas nos últimos dois mil anos, como a que podemos ler a seguir :<br />
Tordo, prazer da minha namorada,<br />
brinquedo vivo que ela leva ao seio<br />
e que incita a bicadas doídas,<br />
com a ponta do dedo, quando quer<br />
- Ó, meu bem, minha luz, meu bem-querer -<br />
distrair-se com algo divertido,<br />
para acalmar a dor, quem sabe ? de uma<br />
paixão voraz - pudesse eu brincar<br />
com você, como o faz a sua dona,<br />
pra amortecer as dores do meu peito !<br />
53
Marco Valério Marcial, nascido no ano 40 d.C. na hoje província de<br />
Saragoça, Espanha, foi para Roma em 64, retornando depois de 30 anos à terra<br />
natal, onde morreu, no ano de 104, presumivelmente.<br />
Viveu a vida típica de um cliente , homem supostamente livre, que<br />
vive de badalações e de prestar serviço aos poderosos, a começar pelo bestial<br />
Domiciano 1 .<br />
O poeta foi um cronista social obsceno e pornográfico de seu tempo,<br />
por isso mesmo criticado, quando não desdenhado e desprezado.<br />
Seus epigramas - mais de um milhar -, distribuídos em doze livros,<br />
vêm atravessando os séculos, influenciando muitos escritores e poetas, entre os<br />
quais Rabelais, Quevedo, Gregório de Matos e Bocage.<br />
Com o poeta Juvenal, também espanhol e seu amigo, formaram a<br />
maior dupla satírica latina, descontando-se, logicamente, Horácio, que operou<br />
em outro registro.<br />
Marcial deixou a marca de seu talento também em muitas passagens<br />
como a do “ plátano de César “ e a do “ rol das coisas boas da vida “ .<br />
Muito censurado, só encontrou as primeiras traduções sem travas nos<br />
anos 60 e 70, especialmente graças ao trabalho pioneiro do historiador Guido<br />
Ceronetti, do qual muito os historiadores atuais se valem, descontando suas<br />
excessivas liberdades formais.<br />
Sua obra, porém, continha poemas mais suaves, a despeito de toda<br />
sua fama de satírico e pornográfico, embora recheada de metáforas picantes :<br />
_______________<br />
Para embrulhar atuns não faltem capas,<br />
Não fiquem sem cartucho as azeitonas,<br />
E nem padeça a traça a fome vil.<br />
Vá, papiro do Egito, é o que possuo :<br />
O inverno ébrio quer novas piadas.<br />
Eu jogo dados de papel, não dardos,<br />
E tanto faz um crepe como um seis.<br />
Lanço cubos de um copo-pergaminho:<br />
Lucros nem perdas não me traz o acaso.<br />
1. Irmão e sucessor de Tito no império romano<br />
54
Entre a elite bem-dotada da China do Século VIII estavam dois dos<br />
maiores poetas da história : Li Po e Tu Fu.<br />
Li Po nasceu em 701, em algum lugar da Ásia Central, onde sua<br />
gente viveu por mais de um século antes de retornar e se instalar em Sichuan,<br />
por volta de 705. A família talvez estivesse envolvida com o comércio, visto<br />
como uma ocupação inferior pela corte, o que talvez explique porque a carreira<br />
de Li Po no serviço público definhara.<br />
Recusou-se a prestar concurso público e assumiu sua nômade<br />
pobreza. De qualquer forma, ele era um rebelde e um andarilho por natureza,<br />
um romântico, místico e libertino, viciado em vinho, amor e poesia.<br />
Li Po é o grande poeta da China, inventor e mestre. Dizem que tinha<br />
muito de não-chinês, que era da Ásia Central e que aprendeu muito com as<br />
apreciadas dançarinas e cantoras do Turquestão, nos cabarés de suas<br />
andanças.<br />
Bêbado iluminado (Tu Fu o considerava um mago), crêem os espíritos<br />
taoístas, em lenda célebre, que Li Po morreu afogado ao se debruçar de um<br />
barco para beijar o reflexo da lua na água; os confucianos, dizem que de<br />
pneumonia.<br />
Seu poema “ Bebendo sozinho com a lua “ demonstra a notabilidade,<br />
audácia e o lirismo dos principais poetas Tang :<br />
De um cântaro de vinho entre flores<br />
eu bebia sozinho. Ninguém comigo -<br />
E então, erguendo minha taça, pedi à clara lua<br />
que trouxesse minha sombra e fizesse de nós, três.<br />
E minha sombra pendeu de mim ociosamente.<br />
Ainda assim, por momentos tive amigos<br />
para me animar no fim da primavera ( . . . )<br />
Cantei. A Lua me estimulou.<br />
Dancei. Minha sombra cambaleou atrás.<br />
Tanto quanto soube, fomos joviais companheiros.<br />
Depois fiquei bêbado, e nos perdemos.<br />
55
Tu Fu, amigo do Li Po, nascido em 712, era um homem sério,<br />
estudioso, profundamente comprometido com o humanismo confucionista e com<br />
o serviço público, muito valorizado na China.<br />
Tendo prestado concurso, Tu Fu foi reprovado e contentou-se com<br />
posições subalternas de extranumerário. Com freqüência, usava a poesia como<br />
protesto político, atacando a injustiça social, assumindo a voz de um soldado<br />
camponês e colocando-se em algum passado distante.<br />
No final da vida, Tu Fu testemunhou a rebelião contra o imperador<br />
Hsuan-tsung e escreveu sobre a fome e desordem que tomaram conta da China<br />
e seus poemas era tão apreciados quanto os de Li Po. Vejamos um pedaço de<br />
sua obra através da Canção do Mar do Sul :<br />
Vindo do mar do Sul,<br />
Disse o Hóspede-Enigma :<br />
“ É de sereia. Aceite<br />
Esta pequena lágrima” .<br />
Era uma estranha pérola<br />
com laivos e sinais,<br />
que tentei decifrar<br />
com leituras banais.<br />
Mas, quando abri o escrínio,<br />
que mudança funesta :<br />
um coágulo de sangue<br />
- É tudo o que me resta !<br />
Homens como esses participaram de uma explosão gloriosa da<br />
literatura e das artes e não podem ser ignorados jamais, pois somente o fato de<br />
hoje termos uma pequena mostra de sua obra, 1300 anos depois, revela a<br />
importância e o impacto forte de sua poesia no período em que viveram.<br />
Dante Alighieri, poeta italiano do século XIII, nasceu e passou<br />
metade da vida em Florença até que os acontecimentos políticos o obrigaram ao<br />
exílio, procurando refúgio em uma corte após outra.<br />
56
Os anos de Florença foram marcados por sua paixão por Beatriz<br />
Portinari, que morreu em 1290, com menos de 20 anos, e que permaneceu fonte<br />
de inspiração e devoção para o poeta até o fim de sua vida.<br />
Este amor trágico inspirou belos poemas líricos em Vida Nova, no ano<br />
de 1293. No exílio, escreveu dois tratados latinos : Sobre a Língua do Povo, da<br />
maior relevância ao colocar o italiano como idioma literário, e No Governo do<br />
Mundo, que apoiava o Sacro Império Romano contra as reivindicações do<br />
papa.<br />
A Divina Comédia, sua obra mais conhecida, foi iniciada em 1308,<br />
mas concluída somente ao final da vida. Trata-se de um poema em três partes,<br />
Inferno, Purgatório e Paraíso, que descreve a jornada de Dante para encontrar<br />
Deus, acompanhado de Virgílio, até o ponto em que Beatriz (a graça divina)<br />
deve guiá-lo.<br />
A obra é uma cosmografia 1 completa do conhecimento medieval e<br />
uma profunda recapitulação da doutrina cristã da queda e da redenção,<br />
colocada em versos de sublime e majestosa beleza, especialmente na criação<br />
de imagens.<br />
Representa o pináculo da poesia italiana.<br />
Não menos importante, Luís Vaz de Camões, poeta português do XVI,<br />
por volta de 1542, já com pendores literários, freqüentava a nobreza, mas suas<br />
posições políticas levaram-no ao exílio em Ribatejo.<br />
“ Nada talvez seja mais obscuro do que a biografia de Camões. A maioria<br />
dos fatos relevantes e importantes ligados a sua trajetória pessoal estão envolvidos<br />
numa névoa espessa que a passagem do tempo não consegue dissipar ”.<br />
Com essas palavras, o pesquisador José Emílio de Major Neto<br />
(1993 : 6) expõe a vida conturbada de Camões. Quase tudo que sabemos são<br />
informações truncadas, incompletas e muitas vezes contraditórias, a maioria<br />
não passível de informação documental.<br />
Sabe-se que desde antes do fim da adolescência o poeta já se<br />
encontrava em Lisboa, e neste ano prestou serviços militares na África, onde<br />
perdeu um dos olhos, numa batalha ou acidente.<br />
_______________<br />
1. Descrição astronômica do mundo<br />
57
Apesar da precariedade dos dados históricos de sua vida e obra, a<br />
vida de Camões foi turbulenta e instável, repleta de vicissitudes, marcada por<br />
enormes dificuldades, pela pobreza e pela miséria, e com certeza pela inimizade<br />
e perseguição por parte de forças poderosas suas contemporâneas.<br />
Contudo, Camões é uma das figuras de maior relevo da tradição<br />
literária em língua portuguesa e, sem dúvida alguma, um dos maiores poetas do<br />
seu tempo. Sua obra é a base para a compreensão do complexo cultural que<br />
envolve o século XVI e o fenômeno histórico e estético chamado Renascimento.<br />
Os ecos de seus temas, procedimentos formais e estilísticos são<br />
facilmente detectáveis ao longo dos últimos quatro séculos de cultura literária,<br />
quer em Portugal, quer no Brasil.<br />
Camões ocupa assim um lugar de destaque, quer entre os mais<br />
prestigiados autores de seu tempo, quer como o mais ilustre representante de<br />
toda uma cultura e tradição literária no seio das modernas literaturas européias.<br />
Sua obra mais famosa, Os Lusíadas, foi escrito quase integralmente<br />
no exílio e, atualmente, é objeto de estudo e qualquer lugar do mundo.<br />
O centro temático mais relevante da obra de Camões é o amor e suas<br />
implicações profundas em relação à condição humana, tal como no soneto<br />
LXXIII apresentado a seguir :<br />
Amor é fogo que arde sem se ver,<br />
é ferida que dói e não se sente,<br />
é um contentamento descontente,<br />
é dor que desatina sem doer.<br />
É um não querer mais que bem querer,<br />
é solitário andar por entre a gente,<br />
é não contentar-se de contente,<br />
é cuidar que se ganha em se perder.<br />
É um estar-se preso por vontade,<br />
é servir, a quem vence, o vencedor,<br />
é um ter com quem nos mata lealdade.<br />
58
Mas como causar pode o seu favor<br />
nos mortais corações conformidade,<br />
sendo a si tão contrário o mesmo amor ?<br />
Miguel de Cervantes, romancista, dramaturgo e poeta espanhol do<br />
século XVI, criou personagens universalmente conhecidos, como D. Quixote, o<br />
cavaleiro errante, e seu criado Sancho Pancho. Escreveu principalmente nos<br />
doze últimos anos de vida, depois de uma carreira como soldado, quando foi até<br />
prisioneiro de piratas e preso na Espanha sob acusação de mal uso do dinheiro<br />
público.<br />
O longo poema Viagem a Parnaso (1614) obteve pouco sucesso, mas<br />
seu fracasso relativo foi seguido pela aclamação da sua paródia do romance de<br />
cavalaria As Aventuras de Quixote (1605-15), motivo pelo qual Cervantes é<br />
admirado e estudado até os dias de hoje.<br />
Minha pesquisa não teria valido a pena se não tivesse esperado<br />
ansiosamente pelo estudo e inclusão da vida e obra do dramaturgo e maior<br />
poeta inglês de todos os tempos : Wiliam Shakespeare.<br />
Para a grande maioria, artistas, jovens, velhos, poetas, escritores ou<br />
não, Shakespeare é considerado o maior poeta de todos os tempos. Seus<br />
versos são declamados repetitivamente nos teatros cênicos, nos principais<br />
meios de comunicação, em novelas, peças teatrais e nas escolas.<br />
Suas obras, traduzidas e apresentadas em todas as partes do mundo,<br />
tornaram-no o mais célebre dos escritores. Sabe-se que já trabalhava no teatro<br />
londrino em torno de 1592, porém nada se conhece a respeito de sua educação<br />
ou profissão anteriores.<br />
Como autor e ator, trabalhou para a Companhia de Lord Chamberlain,<br />
conhecida a partir de 1603 como Companhia Real, o grupo mais importante a<br />
ocupar, desde 1599, o Globe Theatre, do qual era sócio.<br />
Shakespeare é autor de 38 peças conhecidas, que dividem sua<br />
carreia em aproximadamente quatro períodos.<br />
No primeiro, compreendido até 1594, escreveu diferentes tipos de<br />
comédia, tais como O Esforço do Amor Perdido, a Comédia dos Erros e A<br />
Megera Domada.<br />
59
A abordagem da história da Inglaterra, por ele elaborada em suas<br />
obras, teve início com primeira tetralogia, que compreende Henrique IV e<br />
Ricardo III. A sangrenta Titus Andronicus é sua primeira tragédia.<br />
Entre 1594 e 1599, permaneceu concentrando-se em comédias e<br />
peças históricas. As comédias deste período - Sonho de Uma Noite de Verão,<br />
As Alegres Comadres de Windsor, O Mercador de Veneza - são produto de sua<br />
melhor inspiração romântica, enquanto o domínio completo da Narrativa<br />
aparece na segunda tetralogia : Ricardo III, Henrique IV e Henrique V.<br />
Na terceira fase, entre 1599 e 1608, o poeta abandonou a comédia<br />
romântica e a história inglesa, passando a produzir tragédias, peças de humor<br />
negro ou episódicas, como Medida por Medida, Tudo Está Bem quando Acaba<br />
Bem e Troilus e Criseida.<br />
De um modo geral, Rei Lear, Macbeth, Hamlet e Otelo são<br />
consideradas suas quatro maiores tragédias, embora um segundo grupo de<br />
peças romanas se caracterize por presenças igualmente notáveis, como Antonio<br />
e Cleópatra, Júlio César e Coriolano. A esta fase também pertence Timon de<br />
Atenas, possivelmente escrita em parceria com Thomas Middleton 1 .<br />
A fase final da produção shakespeariana corresponde ao período<br />
entre 1608 e 1613 e é dominada por um novo estilo de comédia, que aborda<br />
temas como a perda e a reconciliação : Péricles, Cimbelina, Conto de Inverno e<br />
A Tempestade, conhecidas como seus últimos trabalhos românticos.<br />
A consagração de Shakespeare deve-se a seus notáveis e<br />
complexos personagens, à dinâmica de suas peças, obtida através de<br />
alternância de cenas curtas e rápidas e, acima de tudo, à sutil e extraordinária<br />
riqueza de seus versos brancos, que apresentam metáfora profunda e retórica<br />
elaborada.<br />
A juventude de Shakespeare se deu num tempo em que o povo inglês<br />
era persistente com relação aos entretenimentos dramáticos. A corte se ofendia<br />
facilmente com as alusões políticas e tentava suprimi-los.<br />
Os puritanos, um grupo crescente e enérgico, sendo os religiosos em<br />
meio ao da Igreja Anglicana, teriam suprimido os entretenimentos, mas o povo<br />
os desejava, certamente.<br />
_______________<br />
1. Dramaturgo e escritor amigo de Shakespeare<br />
60
O poeta levava a sua poderosa execução aos mínimos detalhes, até a<br />
perfeição. Ele tinha o poder de criar uma pintura. O seu poder lírico está no<br />
gênio da peça escrita. Os sonetos, são tão inimitáveis quanto os últimos.<br />
“ Shakespeare é o único biógrafo de Shakespeare; e até mesmo ele nada<br />
pode dizer, exceto para o Shakespeare em nós; a saber, em nosso momento mais<br />
perceptivo e simpático” 1 .<br />
É fácil perceber que o que é melhor escrito ou feito pelo gênio no<br />
mundo não foi trabalho de um homem, mas surgiu de uma ampla obra social,<br />
quando mil pessoas produziam como uma, compartilhando o mesmo impulso.<br />
Shakespeare era um homem do povo e com eles teve uma perfeita<br />
relação de amor e respeito, dando ao povo o que o povo queria : emoção.<br />
Seus poemas, sonetos, peças ou tragédias são a expressão da<br />
consciência humana, no seu grau mais profundo de reflexão e martírio. Talvez<br />
por este motivo, Shakespeare está tão perto de nós, a tilintar nossos cérebros e<br />
tenha condenado toda humanidade a conviver com sua obra e jogar-se a seus<br />
pés, involuntariamente.<br />
No poema A Graça do Perdão, inserido na peça O Mercador de<br />
Veneza, que transcrevemos a seguir, Shakespeare coloca-nos em choque<br />
conosco mesmo, forçando-nos à reflexão pura e simples, desprovida de um<br />
esforço maior, pela simples leitura de suas linhas :<br />
_______________<br />
A graça do perdão não é forçada;<br />
Desce dos céus como uma chuva fina<br />
Sobre o solo: abençoada duplamente,<br />
Abençoa a quem dá e a quem recebe;<br />
É mais forte que a força: ele guarnece<br />
O monarca melhor que uma coroa;<br />
O cetro mostra a força temporal,<br />
atributo de orgulho e majestade,<br />
onde assenta o temor devido aos reis;<br />
Mas o perdão supera essa imponência :<br />
É um atributo que pertence a Deus,<br />
1. Ralph Waldo EMERSON, Ensaios, p.143<br />
61
E o terreno poder se faz divino<br />
Quando, à piedade, curva-se à justiça.<br />
Sobre Shakespeare não cabe mais nada. Difícil interpretá-lo, fácil<br />
admirá-lo. Os artistas sabem do que estamos falando, ao suarem e<br />
permaneceram noites acordados tentando a incorporação e a melhor<br />
interpretação de seus personagens e do espírito shakespeareano.<br />
Para fazer Shakespeare é preciso estudá-lo, conhecer sua obra como<br />
a palma da mão, colocar-se no seu tempo e pensar como ele, sob pena de<br />
admirá-lo em vão, sem qualquer efeito. Talvez seja esse o motivo que nos leve<br />
a carregá-lo na memória, na alma e por toda eternidade, sem sombra de dúvida.<br />
Charles Baudelaire, poeta francês do início do século XIX, foi pouco<br />
apreciado enquanto viveu, mas é hoje considerado um dos expoentes da<br />
literatura francesa. A coletânea de poemas As Flores do Mal, quando publicada<br />
em 1857, provocou um processo no qual o poeta foi acusado de atentar contra a<br />
moral pública.<br />
Em As Flores do Mal, Baudelaire apresenta os contrastes entre as<br />
aspirações ideais de um homem e a desilusão experimentada na sua existência<br />
cotidiana. Buscando a beleza não em abstrações, mas na sórdida realidade da<br />
vida parisiense, especialmente em Quadros Parisienses, o poeta descobre<br />
reflexos do além em toda a criação.<br />
No entanto, vencido pelo desgosto, se rebela contra Deus e busca a<br />
liberdade oferecida pela morte, que lhe permitirá observar o mundo atrás da<br />
fachada da existência.<br />
Os poemas nos quais exibe mestria no controle da rima e do ritmo<br />
apresentam um colorido exótico herdado do romantismo, ainda que baseados<br />
em observação da vida real e executados numa forma perfeita que antecipa as<br />
características dos parnasianos.<br />
Ao longo dos séculos, dois alemães se destacaram pela importância<br />
de sua obra poética, coincidentemente, ambos nascidos no século XVIII.<br />
Johann Wolfgang von Goethe, poeta, dramaturgo, novelista e filósofo<br />
alemão, é considerado um dos maiores poetas de língua alemã. Nascido no ano<br />
de 1809, Goethe produziu uma obra que abrange desde o subjetivismo do<br />
62
movimento Sturm and Drang ( Tempestade e Ímpeto) até a consciência<br />
harmônica do classicismo.<br />
Sua obra inclui poesia lírica, épica e baladas, romances, contos e<br />
obras autobiográficas. A publicação de Götz von Berlichingen (1771), uma peça<br />
no estilo da tradição de Shakespeare, retratando um herói destruído pela<br />
degeneração da idade, firmou seu conceito no meio literário.<br />
No ano seguinte, o poeta apareceu com Os Sofrimentos do jovem<br />
Werher, romance epistolar sobre um forasteiro muito sensível sem lugar no<br />
mundo.<br />
Sua obra-prima é Fausto, um drama em duas partes, do qual se<br />
ocupou de 1770 até 1831. O trabalho reflete o desenvolvimento das<br />
observações colhidas ao longo de toda uma vida marcada por sofrimento,<br />
tragédia, humor e ironia.<br />
“ Goethe, um homem com um centena de braços, olhos de Argus, capaz e<br />
feliz de poder, com essa giratória miscelânea de fatos e ciências e, por sua própria<br />
versatilidade, capas de delas dispor facilmente; uma mente masculina,<br />
desembaraçada pela variedade de casacos da convenção com que a visa se<br />
incrustou, facilmente capaz, por sua sutileza, de penetrá-la e retirar a sua força da<br />
natureza, com a qual ele vivia em perfeita comunhão 1 .<br />
Faz um grande diferença para a força de qualquer sentença saber se há<br />
um homem atrás dela ou não. Goethe é o tipo da cultura, o amador de todas as<br />
artes, ciências e acontecimentos ; artístico, mas não artista; espiritual, mas não<br />
espiritualista. O que também é estranho e nos chamou atenção durante a<br />
pesquisa sobre sua vida, é que ele vivia numa cidadezinha , num estado<br />
insignificante, num estado derrotado, num tempo em que a Alemanha não<br />
representava um país tão importante nos negócios do mundo a ponto de inchar o<br />
peito de seus filhos com qualquer orgulho metropolitano, como o que devia alegrar<br />
um gênio francês, inglês ou, antes, um romano ou ático. No entanto, não há traço<br />
algum de limitação provinciana em sua musa. Ele não é um devedor de sua posição,<br />
mas nasceu com um gênio livre e controlador.<br />
_______________<br />
1. Ralph Waldo EMERSON, Ensaios, p. 183<br />
63
Helena, ou a segunda parte de seu poema Fausto , é uma filosofia da<br />
literatura em poesia. A maravilha do poema está na inteligência superior do<br />
poeta. Assim, ele é um poeta de um laurel mais orgulhoso do que qualquer um<br />
dos contemporâneos.<br />
O que distingue Goethe dos leitores franceses e ingleses é uma<br />
propriedade que ele compartilha com a sua nação - uma referência habitual à<br />
verdade interior. Na Inglaterra e na América há respeito pelo seu talento e em<br />
todos os países em que sua obra foi traduzida, os homens de talento escrevem<br />
com o talento.<br />
“ Talento apenas não faz um escritor. Deve haver algum homem por trás<br />
do livro; uma personalidade que, pelo nascimento e por suas qualidades, está<br />
empenhada nas doutrinas ali descritas e que existe para ver e declarar coisas assim<br />
e não de outro modo ” 1 .<br />
Goethe, a cabeça e o corpo da nação alemão, segundo seus<br />
biógrafos e estudiosos, não fala do talento, mas a verdade brilha através dele.<br />
Ele é bastante sábio, embora seu talento freqüentemente cubra a sabedoria. Ele<br />
é o tipo da cultura, o amador de todas as artes, ciências e acontecimentos,<br />
motivo pelo qual permanece vivo no coração da classe literária mundial, incapaz<br />
de não consultar os seus escritos para encher-se de sabedoria e conhecimento<br />
da filosofia.<br />
A sua autobiografia, sob o título de Poesia e Verdade da Minha Vida,<br />
é a expressão da idéia, agora familiar ao mundo através da mente alemã, mas<br />
uma novidade para outros países quando o livro apareceu, a de que um homem<br />
existe para cultura , não para aquilo que ele pode executar, mas pelo que pode<br />
ser executado nele. A reação das coisas sobre o homem é o único resultado<br />
digno de nota.<br />
Henrique Heine é considerado o segundo maior poeta alemão do<br />
século passado e o maior poeta judeu de língua alemã, em qualquer tempo. O<br />
primeiro, naturalmente, é Goethe, que, de resto, velho e consagrado, não deu a<br />
mínima atenção ao seu conterrâneo.<br />
_______________<br />
1. Ralph Waldo EMERSON, Ensaios, p. 189<br />
64
Sua origem criou alguns problemas para Hitler, mas não para Ezra<br />
Pound, que o admirava e traduziu, neste século finalizante.<br />
Foi contemporâneo de Byron 1 e, pode-se dizer, byroniano, pelo<br />
cinismo anti-romântico e pelas posições políticas rebeldes e revolucionárias,<br />
mas superou-o pela finura e precisão de sua arte poética.<br />
Converteu-se ao catolicismo e ao protestantismo, seguindo conveniên<br />
cias; foi amigo de Marx 2 , criou o famoso slogan “A religião é o ópio do povo “,<br />
encontrou abrigo na Paris das lutas republicanas, expulso da Alemanha pela<br />
política prussiana.<br />
Sua prosa narrativa de viagens e suas canções tornaram-no famoso<br />
antes dos trinta anos, bastando dizer que o seu livro de canções teve treze<br />
edições enquanto ainda era vivo, canções essas que foram musicadas por<br />
Schubert e Schumann 3 , entre outros.<br />
Em 1848, data de publicação do Manifesto Comunista , em visita ao<br />
Museu Louvre, em Paris, sofreu um desmaio diante da Vênus de Milo: era a<br />
sífilis medular que o mandou para a cama durante oito anos, enquanto duas<br />
mulheres se picavam ao seu redor, pela grande fama e pequena fortuna, por<br />
conta de seus poemas românticos, como a jóia que coletamos de sua obra :<br />
Violeta - brilho dos olhos<br />
Lírio - brilho das mãos<br />
Rosa - brilho das faces<br />
Violeta, rosa, lírio :<br />
Flores do coração secas.<br />
Jean-Nicolas Arthur Rimbaud é o demoníaco anjo loiro da poesia<br />
ocidental modera e um dos maiores mestres da poesia de todos os tempos 4 .<br />
Amigo de Baudelaire, foi um nômade que rompeu as convenções poéticas,<br />
estéticas e sexuais de sua época 5 .<br />
_______________<br />
1. Poeta inglês do século XIX<br />
2. Pensador e filósofo alemão, criador do Marxismo<br />
3. Compositores alemão e austríaco do século XIX<br />
4. Décio PIGNATARI, 31 poetas 214 Poemas, p.130<br />
5. Rodrigo Garcia LOPES, Illuminuras, Prefácio<br />
65
Nascido em Charleville, pequena cidade do interior da França, nas<br />
Ardenas, fugiu de casa pela primeira vez, aos dezessete anos; nessa e em<br />
muitas outras ocasiões, nos rolos que apresentava em suas andanças,<br />
resgatado<br />
pela mãe (por quem, de resto, não nutria estima qualquer).<br />
Em 1862 ingressou no Collège Charleville e em 1870 fez amizade<br />
com seu professor de retórica George Izambard. Em 1871 escreveu ao amigo<br />
Paul Demeny a “ Carta do Vidente “, seu manifesto poético e existencial.<br />
Rebelde, ateu, antimonarquista, não tardou a mandar-se para Paris,<br />
novamente, a Paris da Comuna, à qual aderiu, embora estivesse em Charleville,<br />
quando os communards foram esmagados.<br />
Como que entediado, escreveu suas primeiras obras-primas com<br />
dezessete anos, tais como Ma bohème e Cabaret vert. Como se isso fosse<br />
pouco, pouco antes de completar dezoito anos compôs Le bateau ivre (O Barco<br />
Bêbado), um de seus poemas mais surpreendentes e famosos, ao lado do<br />
poema em prosa, Une saison en enfer (Uma Temporada no Inferno), que<br />
compôs e publicou às suas custas.<br />
Em 1872 fugiu para a Bélgica com seu amigo poeta Verlaine, dez<br />
anos mais velho e que abandonou a mulher grávida e saiu pelo mundo,<br />
seduzido pelo anjo loiro. Em seguida partem para a Inglaterra onde, juntos,<br />
levaram uma vida miserável, entre disputas, discussões, tiros e cacetadas. Em<br />
Paris, dois tiros, um fere-lhe a mão : dois anos de cadeia mais multa.<br />
Em 1875, viveu em Stuttgart, na Alemanha, onde escreveu seus<br />
manuscritos famosos de Illuminations. Depois de viajar pela Áustria e Holanda,<br />
retornou, retornou à Alemanha e trabalhou como intérprete do Circo Loisset,<br />
excursionando pela Suécia e Dinamarca.<br />
Rimbaud é um grande entre grandes, os grandes eram todos<br />
simbolistas e levavam o nome de Baudelaire, Mallarmè, Corbière, Verlaine.<br />
Em sua vida nômade, conheceu Alexandria, trabalhou no Chipre e<br />
visitou o Oriente Médio. Realizou expedições, comercializou peles, marfim e<br />
chegou a traficar armas e escravos na África.<br />
Segundo Rodrigo Garcia Lopes (1996 : 164), a poesia do trajeto de<br />
Rimbaud reflete a velocidade e pressa de ver e viver tudo ao mesmo tempo :<br />
66
“ ... suas idas e vindas a Londres, suas vadiagens por Paris, Bruxelas,<br />
Stuttgart, no período de redação de suas famosas Iluminuras, acabaram fazendo<br />
com que o dinamismo também se revelasse a nível textual. O poeta insistia na Ação;<br />
ler, escrever e pensar caminhando, incorporando ou coletando os dados tal como<br />
acontecem durante o trajeto embriagado pelas ruas em que se “caça crônicas”<br />
como se fosse um “cavaleiro selvagem ”.<br />
Rimbaud morreu em dezembro de 1891, vítima de um tumor<br />
cancerígeno no joelho direito agravado por uma antiga sífilis e depois de ter<br />
uma das pernas amputada.<br />
Há um século o poeta vêm apaixonando e alimentando diversas<br />
gerações de leitores sendo capaz de influenciar escritores tão diferentes com<br />
Proust, Ezra Pound, Samuel Beckett e Jim Morrison. Um pouco de sua obra,<br />
hoje parte integrante e fundamental na poesia universal :<br />
MARINHA<br />
As carroças de cobre e prata -<br />
as proas de prata e aço -<br />
Espalmas espumas, -<br />
esgarçam macos de sarças.<br />
As correntezas da roça,<br />
E os sulcos imensos do refluxo,<br />
fluem em círculos rumo a leste,<br />
rumo às hastes da floresta, -<br />
rumo aos fustes do quebramar,<br />
cujo ângulo é ferido por turbilhões de luz .<br />
Aos 33 anos estava de cabelos brancos. Aos vinte, não era mais<br />
poeta. Nesta década corrente, no centenário de sua morte, foi lembrado e muito<br />
comemorado, onde quer e por quem que tivesse interêsse real pela poesia do<br />
planeta Terra. Rimbaud foi um dos seus melhores representantes.<br />
Ralph Waldo Emerson, ensaísta, professor e poeta, foi um dos<br />
grandes expoentes da literatura norte-americana do século XIX. Depois de<br />
abandonar o trabalho como prelado da igreja unitarista, passou a residir em<br />
67
Concord, Massachussetts, onde se tornou figura central entre os<br />
transcendentalistas.<br />
O verdadeiro evangelho do grupo, apresentado em seu ensaio Nature<br />
(1836), mereceu pouca atenção, mas com os discursos O Erudito Americano<br />
(1837) e O Endereço da Escola Divin (1838), despertou muita polêmica.<br />
A publicação dos primeiros volumes de Ensaios (1841) e Poemas<br />
(1847), e de Homens Representativos (1850), resultou em grande prestígio<br />
dentro e fora dos Estados Unidos. Emerson foi o maior pensador do chamado<br />
“renascentismo americano” de meados do século XIX.<br />
Em seus Ensaios sobre Auconfiança, História, Leis Espirituais e<br />
Amizade entre outros, Emerson despeja toda sabedoria de um homem<br />
consciente dos valores da vida e maturidade suficiente para orientar uma<br />
multidão de pessoas.<br />
Todos eles são iniciados por um poema de maior profundidade que o<br />
outro e em simples há muito mais verdades que nas centenas de páginas<br />
restantes, tal como o abertura do ensaio Prudência, que transcrevemos a<br />
seguir:<br />
“ Nenhum poeta cantou de bom grado um tema<br />
caro aos velhos e infame aos jovens,<br />
nas desdenhes o amor pelas vozes na melodia<br />
nem os objetos das artes.<br />
A grandeza da perfeita esfera celeste<br />
deve-se aos átomos que juntos se mantêm” 1 .<br />
O sensível polonês Guillaume-Albert-Wladimir-Alexandre-Apollinaire-<br />
Kostrowitzky é o maior poeta francês do Século XX, ao lado de Paulo Valéry,<br />
que representa a sensibilidade antiga, simbolista e pós-simbolista.<br />
Imerso nas vanguardas artísticas do início do século, tais como<br />
cubismo, futurismo e orfismo, é um poeta confluente e defluente. Confluem<br />
Mallarmé (ideografia) e Rimbaud (dessemantização); defluem muitos, a partir de<br />
dada e o surrealismo, incluindo brasileiros de gerações literárias várias, como<br />
Mário de Andrade, Vinícius de Moraes, Oswald de Andrade.<br />
_______________<br />
1. Ensaios, p. 149<br />
68
Segundo Décio Pignatari (1996 : 132), talvez o projeto mais revolucio<br />
nário de Apollinaire esteja menos nos seus caligramas, mesmo ambiciosos,<br />
como o de Lettre Océan, do que na paratatização sistemática, que ele chamava<br />
de simplificação sintática, cujo melhor exemplo é o de As Janelas, inspirado<br />
num quadro pioneiro do abstracionismo geométrico, da autoria de Robert<br />
Delaunay.<br />
Filho de uma aventureira e de um padre, viveu na França estranhas e<br />
tumultuadas peripécias, que incluem involuntária receptação de estatuetas<br />
roubadas do Louvre, composição de anônimas obras pornográficas e reiterados<br />
casos de amor conflituosos, o mais célebre dos quais com uma<br />
aristocrática quarentona hunguenote, Louise de Coligny-Châtillon, a Lou (loup =<br />
lobo) de seus poemas ( repelido, engaja-se no exército francês, como<br />
artilheiro, e vai para a guerra; a moça, patrioticamente tocada pelo seu gesto,<br />
vai ao seu encontro, mas o namoro dura poucas semanas: apavorada com a<br />
truculência erótico - amorosa do poeta, rompe e foge).<br />
Naturalizou-se francês, foi ferido na cabeça, condecorado, passou por<br />
uma trepanação, apanhou uma pneumonia e deu-se bem, mas não escapou da<br />
gripe espanhola, que o matou a poucos dias do armistício. Foi dos primeiros<br />
poetas a registrar poemas em disco. Retratado por Picasso, o Douanier<br />
Rousseau, Marie Laurencin (também sua namorada) e Vlaminck.<br />
Seus poemas, escritos sem pontuação, revelam uma clara tentativa<br />
de vanguardismo, tanto na forma quanto no conteúdo, a exemplo do que<br />
transcrevemos a seguir , em seus Versos a Lou :<br />
[ . . . ]<br />
Os ramos que se agitam são seus olhos que tremem<br />
Vejo você em toda parte você tão bela tão terna<br />
Os pregos dos meus sapatos brilham como os seus olhos<br />
A vulva das jumentas é rosada como a sua<br />
E nossas armas engraxadas são como quando você me quer<br />
A doçura da minha vida é como quando você me ama . . .<br />
Outro poeta de maior importância no desenvolvimento da poesia foi o<br />
norte-americano Thomas Stearns Eliot , nascido em 1888, naturalizado cidadão<br />
britânico e morto em 1965 e, seguramente, a mais potente influência moderna<br />
69
dos domínios da crítica da poesia e talvez o mais discutido e comentado poeta<br />
da modernidade.<br />
T. S. Eliot trouxe ao espírito a idéia de Henry James, procurando na<br />
Inglaterra uma tradição que não encontrou na América, a preferência pela ilha.<br />
Tal tradição, que ele iria investigar nos clássicos greco-latinos e nos pilares da<br />
literatura inglesa; desde Chaucer e Milton, Dryden e Coleridge, ele trouxe para a<br />
sua própria poesia, toda ela eminentemente alusiva.<br />
Por outro lado, criou a idéia da “poesia dos poetas” chegando a<br />
certas obscuridades - como as que se encontram em The Waste Land (A Terra<br />
abandonada), o poema mais influente do século.<br />
A elite cultural freqüentemente considera a possibilidade de que seus<br />
versos resistirão mais ao tempo que os de Pound 1 , também criptógrafo de sua<br />
poesia. É que perpassa pela poesia de Eliot um sopro às vezes mais liberto e<br />
espontâneo que a atmosfera freqüentemente irrespirável do Pound dos Cantos 2 .<br />
Os ensaios de Eliot são verdadeiros clássicos da modernidade, deles<br />
derivando inúmeras expressões e conceitos que balizaram grande parte da<br />
crítica e da teoria literárias desde então. Eliot também tentou também um revival<br />
do drama em verso.<br />
O pequeno trecho do poema A Canção de Amor de J. L. Prufrock que<br />
aqui transcrevemos foi aquele com que se lançou na poesia - já estribado em<br />
uma epígrafe de um poeta que marcaria muito os seus passos - Dante 3 - o que<br />
desde já reflete um recurso freqüente na técnica eliotiana, ou seja, a mesclagem<br />
do coloquial e do elevado, que tanto o caracterizou :<br />
_______________<br />
Vamos, pois, você e eu,<br />
quando o entardecer se expande contra o céu<br />
como um paciente anestesiado na mesa;<br />
vamos por certas ruas quase sem passantes,<br />
os refúgios murmurantes<br />
1. Poeta e crítico literário norte-americano deste século<br />
2. Jorge WANDERLEY, 22 Ingleses Modernos, p.83<br />
3. Referimo-nos aqui ao poeta italiano Dante Alighieri, pelo qual Eliot tinha grande<br />
admiração e que terminou por influenciar todo seu pensamento poético<br />
70
de inquietas noites nos hotéis baratos de uma só dormida<br />
E restaurantes cheios de serragem<br />
que as conchas de ostra vai unida :<br />
ruas que seguem como debates tediosos<br />
com objetivos insidiosos<br />
de levá-lo a uma pergunta esmagadora . . .<br />
Oh, não diga “qual, essa questão esquisita ?”<br />
Continuemos, façamos nossa visita.<br />
Seu poema A Terra Devastada, enigmático e dividido em cinco partes,<br />
reflete a experiência fragmentada do homem urbano do século XX .<br />
A obra tornou-se um marco do modernismo e fez de Eliot um porta-<br />
voz de uma geração secularizada e desiludida. A partir de 1925, reuniu um<br />
grupo de poetas, inclusive Auden, Spencer e Pound, que representou a<br />
principal corrente do moderno movimento poético.<br />
Eliot exerceu grande influência como crítico e poeta. Entre seus vários<br />
livros de crítica está O Bosque Sagrado: Ensaios sobre Poesia e Crítica (1920).<br />
Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1948.<br />
Entre os grandes mestres da literatura universal e mais influentes na<br />
língua portuguesa destacamos Fernando Antonio Nogueira Pessoa. Filho de<br />
família burguesa, foi criado na África do Sul, fazendo do inglês sua segunda<br />
língua.<br />
De volta a Lisboa, abandonou os estudos universitários para tornar-se<br />
autodidata. Ganhava a vida como correspondente de casas comerciais, até que<br />
em 1912 publicou os primeiros ensaios de crítica da moderna poesia<br />
portuguesa, na revista A Águia.<br />
O ano de 1914 foi decisivo para a evolução literária de Fernando<br />
Pessoa; nesta data nasceram os três principais heterônimos, personalidades<br />
distintas a quem o poeta atribuiu a autoria de suas poesias, em estilos bastante<br />
diferentes, mas que apresentam a unidade no que diz respeito à natureza<br />
psicológica enigmática de cada um.<br />
São eles : Alberto Caeiro , observador irônico, autor dos ciclos O<br />
Guardador de Rebanhos e Poemas Inconjuntos ;Álvaro de Campos, influenciado<br />
71
por Whitman 1 , canta a cidade moderna e a técnica em Tabacaria, Ode Triunfal<br />
e Ode Marítima ; Ricardo Reis compõe odes bucólicas e elegíacas.<br />
As poesias assinadas com o próprio nome são mais simples e cheias<br />
de emoção, como O Último Sortilégio e Autopsicografia. Seus poemas<br />
apareceram nas revistas Orfeu, Portugal Futurista e Presença, das quais<br />
participava com o círculo de amigos.<br />
Apenas com a publicação das Obras Completas, em 1943, teve início<br />
a sua influência sobre as novas gerações de poetas, inclusive no Brasil.<br />
Fernando Pessoa é tido como o maior poeta português desde Camões.<br />
Duílio Colombini foi um dos maiores especialistas brasileiros em<br />
Fernando Pessoa e, durante vinte anos, lecionou em diversas faculdades e<br />
universidades, entre elas a USP, divulgando a obra e vida de poeta.<br />
A seguir transcrevemos um pequeno poema minimalista de Pessoa,<br />
inserido na compilação de sua obra pelo estudioso e de grande profundidade :<br />
Ah, tudo é símbolo e analogia !<br />
O vento que passa, a noite que esfria,<br />
São outra coisa que a noite e o vento -<br />
Sombras de vida e de pensamento.<br />
Tudo o que vemos é outra coisa.<br />
A maré vasta, a maré ansiosa,<br />
É o eco de outra maré que está<br />
Onde é real o mundo que há.<br />
Tudo o que temos é esquecimento.<br />
A noite fria, o passar do vento,<br />
São sombras de mãos, cujos gestos são<br />
A realidade desta ilusão.<br />
Outros poetas de nome internacional deveriam ser citados nesta<br />
monografia pela sua importância no mundo da poesia, mas não podemos<br />
encerrar este capítulo sem mencionar alguns poetas brasileiros que hoje gozam<br />
de todas as glórias do mundo da literatura, grandes pela coragem exercida no<br />
seu tempo, grande pelas mensagens perpetuadas nos poemas.<br />
_______________<br />
1. Poeta norte-americano do século passado que exerceu grande influência na poesia de<br />
seu país liberando seus seguidores das convenções formais<br />
72
No Brasil, Gregório de Matos Guerra, O Boca do Inferno, é com<br />
certeza um dos autores mais controversos do período colonial e da literatura em<br />
seus primórdios.<br />
Nascido na Bahia a 20 de dezembro de 1623 (A data não é precisa,<br />
alguns historiadores datam o nascimento no ano de 1636), filho de família<br />
abastada, estudou no colégio dos Jesuítas de Salvador.<br />
Em 1650 viajou para Lisboa com o objetivo de dar continuidade à sua<br />
formação intelectual, onde se matriculou na Universidade de Coimbra, tornando-<br />
se Bacharel.<br />
Seu prestígio literário sempre sofreu apreciáveis oscilações, e ainda<br />
hoje o consenso crítico sobre sua obra e importância no processo global da<br />
nossa formação literária não foi estabelecido.<br />
As reações em torno da sua produção variam, ao longo do tempo, e<br />
em função de vários fatores, da apologia e adesão gritante, à críticas<br />
insubstanciais, passando por avaliações insustentáveis.<br />
Gregório de Matos foi, sem dúvida, um dos maiores representantes da<br />
literatura barroca nacional. A parte mais significativa de sua obra é lírica, de<br />
caráter sacro, porém ficou mais conhecido pela sátira à nobreza e ao clero, o<br />
que lhe valeu um sem-número de desafetos.<br />
Hoje, porém, há quase um consenso de que foi ele o iniciador da<br />
literatura brasileira, apesar do caráter esparso de sua obra, escrita na Bahia, em<br />
Coimbra, em Angola e no Recife, lugares onde estudou e ocupou cargos<br />
públicos de destaque.<br />
Gregório de Matos se constitui num problema literário de amplas<br />
proporções, e as diversas formulações em torno de sua obra e de sua validade<br />
estética e cultural trazem embutidas matrizes e paradigmas de compreensão e<br />
avaliação da tradição e da cultura brasileira.<br />
Para muitos é o nosso primeiro grande autor propriamente nacional,<br />
aquele que começou estabelecer o diálogo permanente - do qual se alimenta a<br />
cultura brasileira - entre o dado local e as matrizes externas; para outros não<br />
passa deu poeta de relevo e importância relativas.<br />
Independente dessas divergências conceituais e críticas é inegável<br />
que ele está incorporado de uma forma ou de outra à cultura letrada brasileira, e<br />
continua despertando interesse pelos mais variados motivos.<br />
73
Como se sabe sua obra poética é basicamente dividida em dois eixos<br />
principais : a produção lírica e a satírica. A primeira foi nitidamente marcada<br />
pela temática amorosa, ou pela temática religiosa, em meio as quais repontam<br />
sempre temáticas seiscentistas por excelência.<br />
Já a segunda oscila entre a sátira social e a sátira política, de maior<br />
ou menor abrangência, indo do geral ao particular, do dado individual às<br />
estruturas coletivas.<br />
Seu conjunto de poemas dá bem a dimensão da produção poética e<br />
do comportamento intelectual, e mesmo pessoal, que lhe valeu o qualificativo de<br />
Boca do Inferno. Neles é possível apreciar diversas facetas do autor, e avaliar<br />
um conjunto de comportamentos e valores culturais particulares ao século XVII<br />
que gravitam em torno da questão da sexualidade, e que ainda têm razoável<br />
circulação no nosso imaginário.<br />
Ao mesmo tempo documento histórico e obras literárias autônomas,<br />
independentemente da perspectiva pela qual forem avaliadas, os poemas têm<br />
um valor cultural e antropológico indiscutível 1 , motivo pelo qual não deixamos<br />
de transcrever um trecho da sua preciosidade, enviado a umas freiras que<br />
mandaram perguntar por ociosidade, ao poeta, a definição de príapo 2 , e ele<br />
mandou a definição em décimas :<br />
_______________<br />
Ei-lo, vai desenfreado,<br />
que quebrou na briga o freio,<br />
todo vai de sangue cheio,<br />
todo vai ensangüentado.<br />
Meteu-se na briga armado,<br />
como quem nada receia<br />
foi dar um golpe na veia,<br />
deu outro também em si,<br />
bem merece estar assi<br />
quem se mete em casa alheia.<br />
1. José Emílio de Major NETO, Poemas do Boca do Inferno, p. 9<br />
2. Relativo a pênis no português coloquial<br />
74
Em 1969, James Amado publicou todos os escritos que se atribuem<br />
ao poeta, em sete volumes e muito do que escreveu chegou fragmentado aos<br />
dias de hoje, mas, sem dúvida, Gregório de Matos não será ignorado jamais.<br />
Para não alongarmos demais a monografia, optamos pela inclusão da<br />
vida e obra de Gregório de Matos Guerra e, sem menosprezar os demais<br />
importantes poetas (principalmente os da fase romântica, como Gonçalves Dias,<br />
Castro Alves, Casimiro de Abreu e Gonçalves de Magalhães entre outros).<br />
Incluímos também aquele que, talvez pela maior proximidade com ele<br />
neste século, vêm provocando ao longo de cinqüenta anos um gosto maior pela<br />
poesia e literatura nacional, digno das mais tresloucadas críticas e também dos<br />
mais sinceros e honestos elogios : Carlos Drummond de Andrade, mineiro de<br />
Itabira.<br />
Drummond, como ficou conhecido no mundo todo, teve seus poemas<br />
traduzidos para mais de 25 países. Poeta e prosador, em 1930, junto com<br />
outros companheiros, fundou A Revista, que teve vida curta mas considerável<br />
influência no movimento modernista.<br />
Seus primeiros livros, Alguma Poesia (1931), Brejo das Almas (1934)<br />
e Sentimento do Mundo (1940) mostraram o impasse entre o artista e o mundo.<br />
Em A Rosa do Povo (1945) apresentou uma poesia de certa forma engajada. A<br />
partir de Claro Enigma (1951) registro o vazio da vida humana e o absurdo do<br />
mundo, e enriqueceu a pesquisa de novas formas da utilização das palavras.<br />
Em 1928, seu poema No Meio do Caminho, publicado em São Paulo<br />
na Revista Antropofagia, se transformou no maior escândalo literário da época :<br />
No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma<br />
pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no<br />
meio do caminho tinha uma pedra.<br />
Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida<br />
de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me<br />
esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra /<br />
tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do<br />
caminho tinha uma pedra.<br />
75
Drummond foi um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos e<br />
exerceu grande influência nas gerações que se seguiram. Tem sido traduzido<br />
para vários idiomas e consta de inúmeras antologias estrangeiras,<br />
principalmente o poema O Mundo é Grande :<br />
O mundo é grande e cabe<br />
nesta janela sobre o mar.<br />
O mar é grande e cabe<br />
na cama e no colchão de amar.<br />
O amor é grande e cabe<br />
no breve espaço de beijar.<br />
Depois de estudar todos esses poetas, pergunto a mim mesmo :<br />
Quem foi o maior poeta dos últimos tempos ? Quem é o maior de todos ? Todos<br />
são maiores ?<br />
Felizmente, pela mais simples e humilde interpretação, não posso<br />
julgar esse ou aquele como maior ou melhor de todos. Como já disse<br />
anteriormente, cada um teve sua importância em sua respectiva época e minha<br />
alegria maior foi saber que todos tiveram foram brilhantes à sua maneira.<br />
A poesia universal não foi generosa com todos os poetas, mas, com<br />
toda deficiência, reconheceu tardiamente alguns e outros ainda penam no<br />
anonimato. Deixamos de citar vários nomes de grande influência no meio<br />
literário e que, certamente, poderíamos discorrer sobre eles com o amplo e farto<br />
material que tivemos ao nosso alcance.<br />
Milton, Hartcrane, W.B. Yeats, D.H.Lawrence, Brodski, Pound,<br />
Michelangelo, Byron, Petrarca, Burns, Cecília Meireles, Fagundes Varella,<br />
Cecília Meireles, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Thiago de<br />
Mello, a lista parece interminável, mas, em verdade, é limitada, pois são mentes<br />
privilegiadas, amadas pelos seus povos e seguidores.<br />
Os alemães continuam amando Heine e Goethe; os ingleses,<br />
Shakespeare e Auden; os franceses, Rimbaud e Baudelaire; os norte-<br />
americanos, Emerson e Eliot; os portugueses, Camões e Fernando Pessoa; os<br />
chilenos amando Neruda e nós, brasileiros, seguiremos amando Castro Alves,<br />
Augusto dos Anjos, Drummond, Thiago de Mello . . .<br />
76
A UTILI<strong>DA</strong>DE <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong><br />
77
1. <strong>POESIA</strong> EM FORMA DE PROTESTO<br />
De alguma forma, a poesia sempre esteve ligada às causas rebeldes,<br />
em todos os tempos, desde os grandes dramaturgos até os dias de hoje, nas<br />
odes de Píndaro e Temístocles ou nos versos brancos de Thiago de Mello,<br />
Ferreira Gullar ou Drummond.<br />
Alceu, poeta do Século VII a.C., contemporâneo e conterrâneo de<br />
Safo, pertencia à aristocracia de Lesbos, que entrou em choque com outras<br />
forças sociais aspirantes ao poder, representadas pelos chamados tiranos, tais<br />
como Melancro, Pítaco e Mirsilo (cuja morte o poeta festejou). Participou<br />
intensamente dessas lutas, com seus irmãos. Percorreu o Egito e a Trácia<br />
(provavelmente exilado), onde se situa o rio Ebro, celebrado em seus versos.<br />
Sua obra, originalmente distribuída em dez livros, apesar de ter<br />
chegado a nós muito fragmentada, contém a expressão e a força de suas<br />
convicções políticas e de oposição aos governos.<br />
Catulo, já estudado no capítulo anterior, apesar da sua lírica<br />
predominante, apresenta em seus textos marcas profundas da sua convicção<br />
satírica, jocosa e por vezes irônica mesmo, louvada pela sua simplicidade<br />
direta.<br />
Júlio César e seu chefe de estado-maior eram o alvo das farpas de<br />
Catulo: “ ambos adúlteros, igualmente ávidos, parceiros na competição pelas<br />
mocinhas da cidade “. César, como vimos anteriormente, tinha espírito<br />
esportivo. Depois de exigir e receber desculpas, convidou o poeta para jantar.<br />
78
Cabe, para melhor interpretação da parte inicial do capítulo que<br />
estamos estudando, um pequeno trecho do poema mais famoso de Catulo :<br />
Rufo, que acreditei, erroneamente,<br />
ser amigo, de graça (mas, de graça ?<br />
Paguei um alto preço e sofri danos),<br />
Como pôde você insinuar-se,<br />
Abrasar as entranhas deste pobre,<br />
Levar toda a riqueza de uma vida ?<br />
Levou, levou o meu vento ardente,<br />
roubou a praga do meu amor, ai.<br />
Ninguém representou melhor a poesia satírica latina do início do<br />
primeiro milênio do que Marcial, poeta espanhol nascido no ano 40 d.C.. Pelo<br />
fato de ter vivido uma vida livre e a serviço dos poderosos, foi cronista social<br />
obsceno e pornográfico e por isso mesmo muito combatido e perseguido no seu<br />
tempo.<br />
Com seu amigo espanhol Juvenal formaram a maior dupla da poesia<br />
satírica latina, além de Horácio, no século anterior. Censuradíssimo, só<br />
encontrou as primeiras traduções sem maiores empecilhos nos anos 60 e 70,<br />
especialmente graças ao trabalho do pioneiro e estudioso de sua obra Guido<br />
Ceronetti, do qual muitos historiadores ao longo tempo também se valeram.<br />
Abaixo, alguns trechos dos seus famosos epigramas dão razoável<br />
dimensão da obscenidade do poeta, despejada sem escrúpulo sobre seus<br />
inimigos e, inclusive, sobre aquelas que, embora estivessem na cama dos<br />
muitos poderosos, faziam questão de ignorá-lo por sua língua ferina :<br />
I, 24<br />
Veja, Deciano, aquele homem despenteado,<br />
cenho cerrado, que até incute medo,<br />
e que só fala dos varões de antigamente :<br />
Casou-se ontem, acredite : ele era a noiva.<br />
I, 57<br />
De que tipo de garota eu gosto, Flaco ?<br />
79
sua poesia :<br />
Entre a difícil e a fácil, meio a meio.<br />
A namorada ideal é assim que eu quero :<br />
Não infernize a minha vida e não me farte.<br />
Em outro, rebate as críticas de seus contemporâneos que zombam de<br />
Você não publica teus versos, Lélius,<br />
mas critica os meus,<br />
põe fim às tuas críticas<br />
ou publica os teus.<br />
No epigrama II, 62, sua obscenidade vai ao extremo :<br />
Você depila peito, braços, pernas<br />
e apara em arcos os pentelhos. Dou fé,<br />
Labieno : é pra agradar a namorada<br />
- Mas, e o cú depilado, pra quem é ?<br />
Os poetas latinos do início do século I d.C., salvo algumas raras<br />
exceções como Propércio, dedicaram-se a maior parte do tempo a estudar o<br />
comportamento de inimigos e desafetos para transformá-lo em verdadeiro objeto<br />
de crítica e sátira sem qualquer constrangimento.<br />
Seus protestos ou sátiras eram puras ofensas que, muitas vezes,<br />
demoravam a ser compreendidas e chegavam aos ouvidos dos destinatários por<br />
outros de maneira distorcida.<br />
Desta forma, não raro os poetas debruçavam-se em réplicas e<br />
tréplicas constantes por conta de sua responsabilidade na manutenção da<br />
palavra (ou ofensa) perante os cidadãos da época.<br />
Catulo e Marcial foram bons no que se propuseram a fazer e por<br />
conta de seus protestos muitos imperadores romanos como Júlio César e<br />
Cláudio perderam boa parte do seu tempo tentando justificar-se dos insultos e<br />
verdades.<br />
80
Camões, apesar de ter cantado muitos amores, soube servir-se se sua<br />
indiscutível capacidade intelectual para atirar suas farpas contra tudo aquilo que<br />
julgara inútil em vida.<br />
A mesmo tempo homem de “armas” e de “ letras “, temperamento<br />
aventureiro, ousado e reflexivo, ele é o representante típico de um modelo e<br />
ideal de homem que é central para a cultura do século XVI.<br />
“ Sua vida traz em si a plenitude da experiência da condição humana :<br />
soldado, marinheiro, colonizador e estrangeiro, poeta, homem de cultura<br />
assombrosa e requintada, universal para os moldes de seu tempo, e em permanente<br />
conflito com as vicissitudes do mundo e da vida. E sua obra é, sem dúvida, o espelho<br />
fiel desta plenitude e universalidade ” 1 .<br />
Seu espírito rebelde e suas desavenças com o rei de Portugal<br />
custaram-lhe anos de exílio e terminaram por obrigá-lo a desempenhar funções<br />
longe da terra natal, a serviço da corte, em países onde não tinha a menor<br />
afinidade com a língua e costumes.<br />
Por este motivo talvez tenha produzido uma obra tão vasta e de<br />
caráter turbulento, despejado com fervor em grande parte dos seus poemas,<br />
como o que transcrevemos em seguida :<br />
_______________<br />
[ TANTA GUERRA, TANTO ENGANO . . . ]<br />
No mar tanta tormenta e tanto dano,<br />
tantas vezes a morte apercebida;<br />
Na terra tanta guerra, tanto engano,<br />
tanta necessidade aborrecida !<br />
Onde pode acolher-se um fraco humano,<br />
Onde terá segura a curta vida,<br />
que não se arme e se indigne o céu sereno<br />
contra um bicho da terra tão pequeno ?<br />
1. José Emílio de Major NETO, Poemas do Boca do Inferno, p.12<br />
81
Nosso maior representante da poesia em forma de protesto foi,<br />
certamente, Gregório de Matos Guerra, motivo que lhe valeu o apelido de Boca<br />
do Inferno e chegou a ser banido para Angola no de 1694.<br />
A parte mais significativa de sua obra é lírica, de caráter sacro, porém<br />
ficou mais conhecido pela sátira à nobreza e ao clero, escrita nos mais diversos<br />
lugares onde estudou e ocupou cargos públicos de destaque.<br />
No poema que segue, Gregório de Matos descreve o que era naquele<br />
tempo a cidade da Bahia e não poupa elogios (?) aos desmandos de Portugal,<br />
embora a interpretação seja difícil somente numa primeira avaliação e leitura de<br />
seus versos :<br />
A cada canto um grande conselheiro,<br />
que nos quer governar cabana e vinha.<br />
Não sabem governar sua cozinha<br />
e podem governar o mundo inteiro.<br />
Em cada porta um bem freqüente olheiro<br />
que a vida do vizinho e da vizinha<br />
pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha<br />
para levar à praça e ao terreiro.<br />
Muitos mulatos desavergonhados,<br />
trazidos sob os pés dos homens nobres<br />
posta nas palmas toda a picardia,<br />
Estupendas usuras nos mercados,<br />
todos os que não furtam muito pobres<br />
e eis aqui a cidade da Bahia.<br />
Este soneto dá uma boa idéia da dimensão da produção poética e do<br />
comportamento agressivo, mas intelectual e pessoal, do Boca do Inferno.<br />
Mais para o nosso século, vamos nos prender aos autores brasileiros<br />
que melhor representaram a classe de protestantes (esta definição é nossa,<br />
surgiu espontaneamente) do Brasil do início do século até os dias de hoje.<br />
82
Augusto dos Anjos, mencionado no capítulo dos Grandes Poetas,<br />
nunca se filiou a qualquer escola poética, dada sua riqueza de sensações e<br />
estilo próprio. O título de seu único livro, Eu, agregado posteriormente a Outras<br />
Poesias pelos amigos e estudiosos do poeta, é um monossílabo que fala 1 .<br />
Segundo apuramos, três fatores fizeram a profunda tristeza de<br />
Augusto dos Anjos : um de caráter individualíssimo, outro mesológico 2 e o<br />
terceiro espiritual.<br />
Seu protesto era contra a vida, contra tudo e contra todos. Histérico,<br />
neurastênico, desequilibrado, a esse tipo de julgamento teve de acostumar o<br />
poeta, O Doutor Tristeza.<br />
Cesário Verde, antigo professor da Paraíba, enfurecido com os temas<br />
escritos por Augusto dos Anjos no jornal O Comércio, deu-se ao trabalho de<br />
mandar imprimir e fazer distribuir pelas ruas da cidade uma “ carta aberta ”,<br />
cheia de impropérios, atacando rudemente o Poeta Raquítico , mas a resposta<br />
não tardou a chegar, em versos alexandrinos 3 , e merece ser lembrada :<br />
_______________<br />
BILHETE POSTAL<br />
Ilustre professor da Carta Aberta: - Almejo<br />
que uma alimentação a fiambre e a vinho e a queijo<br />
lhe fortaleça o corpo e assim lhe fortaleça<br />
as mãos, os pés, a perna et coetera e a cabeça.<br />
Continue a comer como um monstro no almoço,<br />
inche como um balão, cresça como um colosso<br />
e vá crescendo e vá crescendo e vá crescendo,<br />
e fique do tamanho extraordinário e horrendo<br />
do célebre Titão e do Hércules lendário;<br />
O seu ventre se torne um ventre extraordinário,<br />
cheio do cheiro ruim de fétidos resíduos,<br />
as barrigas então de cinqüenta indivíduos<br />
1. Órris SOARES in : Augusto dos Anjos, Eu e Outras Poesias, p.34<br />
2. Relativo a mesologia, a relação entre o s seres e seu meio ambiente<br />
3. Versos de doze sílabas, empregados pela primeira vez por Alexandre de Bernay, num<br />
poema dedicado a Alexandre, O Grande<br />
83
não poderão caber na sua ampla barriga;<br />
Não mais lhe pesará a desgraça inimiga,<br />
O seu nome também não será mais Antonio.<br />
Todos hão de chamá-lo o colosso, o demônio,<br />
a maravilha das brilhantes maravilhas.<br />
As hienas carniçais, as leoas e as novilhas,<br />
diante do seu vigor recuarão, e diante<br />
do estribado metal de sua voz atroante<br />
decerto correrão mansas e espavoridas.<br />
Se as minhas orações forem, pois, atendidas,<br />
o senhor há de ser o Teseu do universo.<br />
Seja um gigante, pois; não faça porém, verso<br />
de qualidade alguma e nem também me faça<br />
artigos tresandando a bolor e a cachaça,<br />
ricos de incorreções e erros de gramática,<br />
tenha vergonha, esconda essa tendência asnática,<br />
que somente possui o seu cérebro obtuso -<br />
Esconda-a, e nunca mais se exponha a fazer uso<br />
da pena, e nunca mais desenterre alfarrábios.<br />
Os tolos, em geral, são tidos como sábios,<br />
que sabem calar-se e reprimir-se sabem,<br />
o senhor é palpavo e os palpavos não cabem<br />
no centro literário e no centro político.<br />
Respeite-me, portanto !<br />
O Poeta Raquítico .<br />
Durante a ditadura militar, Carlos Drummond de Andrade já<br />
com o peso da idade e os ombros que suportam o mundo 1 , sofreu calado,<br />
intimidado pelo regime militar que não poupou os manifestos nacionalistas nas<br />
suas mais diferentes formas : exílio, tortura, cassação de direitos políticos.<br />
_______________<br />
1. Famoso poema de Drummond incluído em diversos antologias nacionais e<br />
internacionais<br />
84
É possível identificar em diversos poemas de Drummond, com um<br />
pouco de esforço intelectual, o seu repúdio e ódio pela sistemática do governo<br />
ditatorial, intrinsecamente manifestada por uma questão de segurança.<br />
Em seus Poema Salário, O Novo Homem, Caça Noturna e O<br />
Prisioneiro, o poeta não esconde a insatisfação pelas coisas vis, pelo que<br />
considera indigno ao ser humano, que representam o confronto direto entre a<br />
sua eterna convicção e tudo o que se produz de ruim no mundo.<br />
Certas Palavras resume seu manifesto de oposição e protesto ao<br />
sistema controlador da liberdade, do direito à liberdade de vida e expressão,<br />
como podemos avaliar a seguir :<br />
Certas palavras não podem ser ditas<br />
em qualquer lugar e hora qualquer.<br />
Estritamente reservadas<br />
para companheiros de confiança,<br />
devem ser sacramente pronunciadas<br />
em tom muito especial<br />
lá onde a polícia dos adultos<br />
não adivinha nem alcança.<br />
Entretanto são palavras simples :<br />
definem partes do corpo, movimentos, atos<br />
do viver que só os grandes se permitem<br />
e a nós é defendido por sentença dos séculos.<br />
É tudo proibido. Então falamos.<br />
Aos 17 anos, o poeta desentendeu-se com seu professor de<br />
português no internato onde estudava, exatamente ele, o jovem que nos<br />
certames literários do colégio, por sua maestria, era chamado de “general ”. A<br />
conseqüência desse incidente é a expulsão do colégio ao término do ano de<br />
1919.<br />
Durante os anos de internato, Drummond descobriu que Itabira era<br />
sua : a terra e a livre - seu quarto, infinito. Tristeza, saudades, solidão e rebeldia<br />
85
marcaram este período, duramente protestado em seu poema Fim da casa<br />
Paterna, como retratamos abaixo, em um pequeno trecho do poema :<br />
E chegada a hora negra de estudar.<br />
Hora de viajar rumo à sabedoria do colégio.<br />
Além, muito além de mato e serra<br />
fica o internato sem doçura ...<br />
O colchão diferente.<br />
O despertar em série (nunca mais acordo<br />
individualmente, soberano).<br />
A fisionomia indecifrável<br />
dos padres professores.<br />
Até o céu diferente : céu de exílio.<br />
Quase ao mesmo tempo, Thiago de Mello, embora vivendo no Chile,<br />
teve mais oportunidade de combater tudo aquilo que julgou contrário aos seus<br />
princípios e preceitos básicos da boa convivência e relacionamento. Por esse<br />
motivo, o poeta irrompeu na paisagem da poesia brasileira como um força<br />
elementar.<br />
“ Uma personalidade indomável ; um grande individualista que tinha o<br />
direito de falar de si próprio e das suas emoções porque manifestava sentimentos<br />
representativos ” 1 . Foi o primeiro grande poeta que o Amazonas deu ao Brasil e<br />
um cidadão aberto aos anseios coletivos do povo brasileiro.<br />
Thiago de Mello colocou seus versos a serviço dos oprimidos e<br />
humilhados porque imaginou que a redenção deles marcaria a sua e a nossa<br />
liberdade.<br />
Em abril de 1964, quando optou pelo exílio no distante Chile (onde<br />
desempenhava a função de adido cultural da embaixada brasileira), a ter de se<br />
sujeitar aos desmandos da ditadura militar instalada no Brasil, o poeta produziu<br />
um das jóias raras da poesia nacional, seu célebre poema Os Estatutos do<br />
Homem, uma espécie de Ato Institucional Permanente, como ele mesmo definiu,<br />
dedicando-o a Carlos Heitor Cony, seu amigo das letras.<br />
_______________<br />
1. Mensagem de Otto Maria CARPEAUX para a orelha do livro do FAZ ESCURO, MAS EU<br />
CANTO, 15ª Ed., 1996<br />
86
No poema, Thiago de Mello desabafa toda sua indignação contra o<br />
novo regime e, ao contrário do que se tentava implantar no país, pregou a<br />
liberdade com maestria e a valorização da ética e do bom senso, protestando<br />
sem ironia e com muita esperança contra tudo aquilo que jamais desejou para o<br />
povo brasileiro.<br />
Vejamos, então, seu protesto calado, ou parte dele, hoje traduzido em<br />
várias línguas e momento da resistência do povo brasileiro contra a opressão :<br />
ARTIGO I<br />
Fica decretado que agora vale a verdade,<br />
que agora vale a vida,<br />
e que de mãos dadas,<br />
trabalharemos todos pela vida verdadeira . . . .<br />
. . .<br />
ARTIGO II<br />
Fica decretado que todos os dias da semana,<br />
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,<br />
têm direito a converter-se em manhãs de domingo . . . .<br />
. . .<br />
ARTIGO III<br />
Fica decretado que, a partir deste instante,<br />
haverá girassóis em todas as janelas,<br />
que os girassóis terão direito<br />
a abrir-se dentro da sombra;<br />
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,<br />
abertas para o verde onde cresce a esperança . . .<br />
. . .<br />
ARTIGO V<br />
Fica decretado que os homens<br />
estão livres do jugo da mentira.<br />
Nunca mais será preciso usar<br />
a couraça do silêncio<br />
nem a armadura das palavras.<br />
O homem se sentará à mesa<br />
87
com seu olhar limpo<br />
porque a verdade passará a ser servida<br />
antes da sobremesa.<br />
. . .<br />
ARTIGO XII<br />
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.<br />
Tudo será permitido,<br />
inclusive brincar com os rinocerontes<br />
e caminhar pelas tardes<br />
com uma imensa begônia na lapela.<br />
Parágrafo Único:<br />
Só uma coisa fica proibida : amar sem amor.<br />
. . .<br />
ARTIGO FINAL<br />
Fica proibido o uso da palavra liberdade,<br />
a qual será suprimida dos dicionários<br />
do pântano enganoso das bocas.<br />
A partir deste instante<br />
a liberdade será algo vivo e transparente<br />
como um fogo ou um rio,<br />
e a sua morada será sempre<br />
o coração do homem.<br />
Ao inserir a pérola poética de Thiago de Mello, encerro o capítulo com<br />
o sentimento do dever cumprido, ou seja, o de enaltecer o valor da poesia como<br />
instrumento de protesto e resistência aos mais diferentes tipos de opressão<br />
acumulada em milênios da existência humana, por conta de corruptos e tiranos<br />
detentores do poder em todas as épocas, muitas vezes tomado à força.<br />
Naturalmente, não fui capaz de avaliar cada poeta em particular à<br />
altura dos grandes estudiosos e críticos do mundo literário, mas descobri, em<br />
curto espaço de tempo, a força de suas palavras, a profundidade de suas<br />
mensagens e reconheço na sobrevivência poética de todos o verdadeiro valor<br />
que representavam para o seu povo, caso contrário, teriam caído no<br />
esquecimento e não seria possível tomar conhecimento de suas obras.<br />
88
2. A POPULARI<strong>DA</strong>DE <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong> ATRAVÉS <strong>DA</strong> MÚSICA<br />
Alguns estudiosos da literatura afirmam que a poesia vive hoje o seu<br />
apogeu no mundo artístico através da música popular. Muitos compositores ou<br />
mesmo intérpretes se valeram de trechos encontrados em poemas de autores<br />
conhecidos e mesmo desconhecidos da poesia universal.<br />
Nos poetas da antigüidade descobrimos a conjunção da poesia e do<br />
teatro cênico, representada nas grandes tragédias e declamadas ao som da lira,<br />
como recurso único de elevação do espírito poético e provocação da emoção da<br />
platéia presente.<br />
Robert Burns, poeta camponês e glória da literatura escocesa, levou<br />
uma vida atribulada e miserável, mas entre bebedeiras e prostitutas, compôs<br />
centenas de canções líricas e satíricas, que se adaptavam às melodias<br />
tradicionais correntes na Escócia de seu tempo e que são cantadas até hoje<br />
pelos escoceses; muitas delas, no entanto, mereceram composições originais<br />
(Mendelssohn 1 musicou algumas).<br />
Apollinaire, estudado no capítulo Os Grandes Poetas, foi um dos<br />
primeiros a registrar seus poemas em disco com seu célebre poema “ Le Pont<br />
Mirabeau ” e descobriu que música e poesia estão intimamente ligadas.<br />
Discorrendo aqui por minha conta e risco, ao desenvolver o capítulo<br />
pareceu-me muito familiar a associação existente entre poesia e música, do<br />
ponto de vista cultural e artístico, ao lembrar as composições da nossa própria<br />
_______________<br />
1. Pianista, compositor e músico alemão do Século XIX<br />
89
terra, expressa nos versos de Ari Barroso, Noel Rosa, Pixinguinha, Chico<br />
Buarque, Milton Nascimento ou mesmo nos contemporâneos como Renato<br />
Russo e Herbert Viana entre outros.<br />
Quem não consegue enxergar a poesia em estado puro presente nos<br />
versos da composição de Pais e Filhos, grande sucesso musical de Renato<br />
Russo, líder do conjunto Legião Urbana, falecido recentemente ?<br />
“ É preciso amar as pessoas<br />
como se não houvesse amanhã ” .<br />
Ou então nos versos inesquecíveis de John Lennon, ex-integrante dos<br />
Beattles quando, já separado de seus companheiros, foi capaz de exprimir em<br />
versos tudo que a população da Terra sentia, ao final da Guerra do Vietnã,<br />
através da composição Imagine, em 1970 :<br />
Imagine there´s no heaven<br />
(Imagine que não existe o céu)<br />
It´s easy if you try<br />
(é fácil se você tentar)<br />
No hell below us<br />
(nem inferno abaixo de nós)<br />
Above us only sky<br />
(acima de nós apenas o céu)<br />
You may say I´m a dreamer<br />
(você pode dizer que sou um sonhador)<br />
But I´m not the only one<br />
(mas eu não sou o único)<br />
I hope someday you´ll join us<br />
(Eu espero junte-se a nós algum dia)<br />
And the world will be as one . . .<br />
(e o mundo será somente um)<br />
Não dá para separar a música do poema. Seguramente, a união é<br />
indissolúvel, existe a música e a poesia e uma sem a outra talvez não tivesse<br />
feito tanto sucesso nem surtido o efeito necessário para promover a reflexão e<br />
90
trabalhar a emoção dos ouvintes, nem seria eternizada na memória e na cultura<br />
do povo inglês e todos aqueles o idolatram.<br />
Grandes compositores como Mozart, Schubert, Strauss, Vivaldi e<br />
Bach curvaram-se à exploração da poesia como forma de enriquecer suas<br />
músicas e ao ouvirmos as composições, lembramos e até chegamos a<br />
comprovar o conceito formal de poesia descrito no início da monografia, de<br />
autoria do estudioso e poeta Eno Teodoro Wanke : “ Quando ... o artista<br />
consegue transmitir sentimento, fazer com que o leitor, o ouvinte se sinta<br />
comovido, sublimado, arrebatado, terá ele atingido a poesia ”.<br />
No Brasil, Noel de Medeiros Rosa, reconhecidamente O Poeta da Vila,<br />
era um carioca impenitente e acabou unindo o útil ao agradável quando<br />
resolveu musicar seus versos de amor à Vila Isabel, bairro famoso do Rio de<br />
Janeiro, e sensibilizou a alma do povo, não somente pela melodia contagiante,<br />
mas, sobretudo, pelo sabor dos seus versos.<br />
Em seu versos, o poeta Noel Rosa procurava retratar, ainda que<br />
metaforicamente, um país ilhado em pobreza, com a fome e a miséria<br />
alastrando-se como praga. Foi parabenizado pela originalidade de suas letras e<br />
engenho sidade do seu samba, que ele próprio cantava com graça e especial<br />
sabor, imprimindo sua marca pessoal, notável principalmente pelo fraseado,<br />
pela habilidade com que pronunciava, nítida e rapidamente, os versos longos<br />
nos quais um intérprete menos ágil tropeçaria.<br />
Rendo aqui minha singela homenagem também ao poeta Luiz<br />
Gonzaga do Nascimento, o Rei do Baião , cantor, músico e compositor<br />
nordestino que popularizou a poesia de sua terra em todo o Brasil, tornando-se<br />
um dos artistas mais admirados no país.<br />
Asa Branca, toada de 1947, consagrou-se um hino nordestino e foi<br />
adaptada em diversas línguas, flagrante do folclore e espírito do povo do<br />
nordeste.<br />
Em seu extenso reinado da música, o Rei do Baião gravou 192 discos<br />
e deixou um precioso legado musical. Com Asa Branca, soube transmitir com<br />
emoção todo sofrimento de um povo castigado pela seca e miséria :<br />
Quando olhei a terra ardendo<br />
qual fogueira de São João,<br />
91
eu perguntei a Deus do céu,<br />
por que tamanha judiação ?<br />
Por fim, Vinícius de Moraes e Tom Jobim se revelaram os maiores<br />
expoentes da poesia aliada à musica no Brasil. Suas famosas canções, escritas<br />
em parceria, são dotadas da mais profunda inspiração poética, aliadas ao ritmo,<br />
balanço, melodia e harmonia existente entre os dois compositores.<br />
Vinícius sempre soube deixar as gerações para trás quando se sentia<br />
envelhecido. Ao sentir que a grande poesia estava tirando o vigor do seu<br />
coração, mudou de turma e soube perseguir o tempo sem perder o passo. Seus<br />
novos parceiros atuaram como zeladores do compromisso da experiência com a<br />
poesia.<br />
Há quem afirme que a dupla Tom/Vinícius se desfez por ciúmes do<br />
encontro de Vinícius com novos parceiros. Tom nunca se afastou<br />
completamente de Vinícius.<br />
Em 1977, quando já contabilizam 56 músicas em parceria, os dois<br />
subiram ao palco do Canecão para mais um dos shows inesquecíveis da casa.<br />
Tom Jobim nunca negou que devia tudo, ou quase tudo, ao sentimentalista<br />
poeta Vinícius de Moraes e tinha medo de que a música viesse a incomodar os<br />
versos e a poesia do amigo e companheiro.<br />
Vinícius sempre renegou a posição de mestre. Tom testemunhou que<br />
para o poeta, o mais atroz de todos os enigmas era a mulher, que tantos versos<br />
lhe inspirou. Juntos, unindo música e poesia, criaram belas canções como<br />
Garota de Ipanema, O Grande Amor, Eu Sei Que Vou te Amar e A Felicidade,<br />
aqui representada pelo seu refrão inesquecível : “Tristeza não tem fim,<br />
felicidade sim “.<br />
Num curto espaço de tempo, consigo lembrar razoavelmente de<br />
alguns poucos mestres provável e perfeita união entre música e poesia, mesmo<br />
deixando diversos poetas-compositores de lado, por falta de tempo para<br />
aprofundar-me num assunto extremamente rico e cativante.<br />
Diversos artigos que consultei nos periódicos mais expressivos do<br />
país, tratam a música quase sempre como impossível de ser realizada sem a<br />
junção com a poesia, mesmo que não expressa em versos e somente no interior<br />
daquele que se responsabilizou pela união de ambas.<br />
92
Como exemplo, cito alguns títulos de reportagens envolvendo poetas<br />
e músicos ao mesmo tempo ou de músicas expressando poesias :<br />
“ A VIVA VOZ - Poesias de Helena Kolody vão ser lançadas em CD<br />
até o final do ano”“ (Gazeta do Povo, 30/08/97).<br />
PR, 07.09.97).<br />
“ AO SOM <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong> <strong>DA</strong> LETRAS BRASILEIRAS ” (O Estado do<br />
“ O BARDO MULTIMÍDIA - Poesia Musical de Arnaldo Antunes ”<br />
(Folha de São Paulo, 05.12.97).<br />
“ TOM E VINÍCIUS - Os Poetas compositores e parceria “ (Jornal<br />
Revista da Poesia, Ano III, N.º 10, Curitiba).<br />
Muito mais encontraríamos, certamente, mas encerramos o capítulo<br />
com a mais profunda certeza de que poesia e música se completam, e talvez<br />
seja este o motivo que faça a poesia resistir a todas as tormentas provocadas<br />
pela mudança na cultura dos povos, divididos entre a leitura e o computador, a<br />
miséria e a riqueza, a paz e a guerra.<br />
93
3. O FUTURO <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong> E A <strong>POESIA</strong> DO FUTURO<br />
Há anos os mortais comuns ouvem dizer que o fim da poesia está<br />
próximo ou, então, que a poesia acabou. Verdadeira tolice. A execução desse<br />
trabalho deu-me a certeza de que a poesia está mais viva do que nunca, tem<br />
resistido ao tempo, da antigüidade até a época contemporânea, de Homero a<br />
Camões, de Shakespeare a João Cabral de Melo Neto.<br />
Em cinco mil anos de existência e glória, a poesia sofreu diversas<br />
transformações e a mutação deu-se por meio de diferenças de idéias e<br />
pensamentos, as chamadas correntes poéticas, convertidas posteriormente ao<br />
conceito de Escolas Poéticas pelos historiadores da literatura universal e da<br />
poesia propriamente dita.<br />
Lirismo, Romantismo, Parnasianismo, Simbolismo e Modernismo<br />
foram algumas das principais escolas que sustentaram pensamentos muito<br />
particulares ou em bloco através de poetas e escritores em todos os tempos.<br />
Em defesa das idéias, a evolução da poesia foi visível e os debates calorosos<br />
nas mais diferentes épocas somente contribuíram para enaltecer valor artístico<br />
que a mesma sempre mereceu, embora não tenha conseguido atingir em sua<br />
plenitude.<br />
No Brasil, a partir de 1922, com o advento do Modernismo e a eclosão<br />
da poesia moderna, representada por Oswald de Andrade, Cecília Meireles e<br />
Guilherme de Almeida, muitas transformações ocorreram na arte da poesia.<br />
94
Oswald de Andrade, poeta e escritor, lançou o manifesto da poesia<br />
Pau-Brasil , ao qual se contrapunham os membros do grupo “verde-amarelo”,<br />
formado por Menotti Del Picchia , Raul Bopp, Cassiano Ricardo e outros, que<br />
pretendiam conferir à arte uma função social e política.<br />
Duas das mais importantes obras da literatura moderna do país e,<br />
provavelmente, do continente, são as de Manuel Bandeira, que aliou amargura,<br />
humor e ironia e uma grande sensibilidade em livros como Libertinagem e<br />
Pasárgada, e Carlos Drummond de Andrade, que uniu o lirismo ao seu<br />
indubitável senso de humor em obras como Claro Enigma e Lição de Coisas.<br />
O modernismo na poesia eclodiu com a Geração de 45, na qual<br />
desfilaram nomes como João Cabral de Melo Neto, José Paulo Paes, Thiago de<br />
Mello e Moacir Félix, contrapondo-se a alguns ideais do modernismo de 22 e<br />
englobando tendências díspares, ainda que defendendo, em comum, normas<br />
estéticas que aspiram à nitidez e à disciplina de expressão poética.<br />
De lá para cá a poesia mundial e brasileira nunca foram as mesmas.<br />
O poeta Mário Faustino, com uma atividade intelectual pragmática, procurava<br />
contribuir para elevar a educação literária nacional, através de exaustivo<br />
trabalho de crítica poética e tradução de autores estrangeiros em ascensão.<br />
Ainda na década de 50, nasceu o movimento concretista, talvez o<br />
primeiro movimento internacional que teve, na condição de criador, a<br />
participação direta de poetas brasileiros, entre os quais Décio Pignatari e os<br />
irmão Augusto e Haroldo de Campos, fundadores do grupo Noigandres, que<br />
colocou em xeque toda a tradição em poesia, observando os impactos criativos<br />
sofridos pela linguagem poética ao longo do século.<br />
Para os mentores do movimento, estava encerrado o ciclo histórico do<br />
verso, substituído pela associação formal dos vocábulos e pela sua disposição<br />
espacial na página, em alinhamentos geométricos. Pretendia-se, assim, libertar<br />
a poesia da sua limitação literária para integrá-la a outras formas de arte.<br />
No embalo das teorias da informação evocadas pelos concretistas,<br />
são lançados nas décadas de 60 e 70 os manifestos da poesia práxis e do<br />
poema processo, respectivamente defendidos, sobretudo, pelos poetas Mário<br />
Chamie e Wladimir Dias-Pino.<br />
95
Como reação à ditadura militar, surge entre 1964 e 1968 o grupo<br />
Violão-de-Rua, vinculado à UNE 1 , onde alguns poetas abandonaram seus<br />
projetos estetizantes por uma linguagem popular .<br />
Ao longo destas três últimas décadas, o poeta Ferreira Gullar<br />
desenvolveu uma obra com características variadas, reconhecida, todavia, pelo<br />
teor de contestação da ordem social aliado à apurada percepção formal.<br />
A década de 70 viu nascer um movimento poético de contracultura,<br />
liderado pela chamada Geração Marginal, onde se estabelecia uma quase<br />
espontânea crítica comportamental (Ana Cristina César, Cacaso, Francisco<br />
Alvim).<br />
Na década de 80 nota-se o resgate da poesia do mato-grossense<br />
Manoel de Barros, em consonância com o crescente interesse pela ecologia, e<br />
de Drummond, falecido em 1980, quando o povo brasileiro começava a<br />
assimilar a idéia da abertura política decretada pelo presidente Gal. Figueiredo.<br />
Em 1967, respondendo a um inquérito sobre a razão por que se<br />
escrevem poemas e romances, o escritor e crítico literário Ítalo Calvino teve a<br />
oportunidade de reconhecer que a literatura entrara a viver de sua própria<br />
negação.<br />
Segundo Calvino, exaurida, depois de sucessivas experiências no<br />
plano das questões sociais e políticas, as letras se haviam requintado no<br />
maneirismo de soluções acentuadamente formais.<br />
Sempre que a literatura dá a impressão de ter chegado a um impasse,<br />
como se não soubesse como ir adiante de si mesma, em busca de novos caminhos e<br />
soluções, suscita a perplexidade que conduz à sua condenação 2 .<br />
Essa nossa breve exposição de fatos e acontecimentos em menos de<br />
cem anos mostra a instabilidade da poesia e da literatura em geral diante das<br />
transformações do mundo moderno. Nesse fim de milênio, manda a verdade<br />
que se reconheça, que a literatura passa por uma espécie de eclipse parcial.<br />
______________<br />
1. União Nacional dos Estudantes, organização estudantil de maior força oposicionista<br />
durante o regime militar instalado no ano de 1964 no Brasil<br />
2. Josué MONTELLO, A literatura como perplexidade de solução, Revista Brasileira, p. 7<br />
96
Isto significa dizer que, descontadas as devidas proporções, a poesia<br />
perdeu a luz intensa que a brilhava. Daí as sombras que sobre ela se<br />
acumulam, por vezes levando-nos a supor que os poetas constituem uma<br />
espécie em via de extinção.<br />
Sou levado a crer que não é bem assim. É bem verdade que os<br />
jornais de hoje se retraíram diante do que é puramente literário. Até a crítica,<br />
que transformava o texto em debate público, se converteu por força da pressão<br />
exercida pelas novas formas de jornalismo, ajustadas a outros campos do<br />
conhecimento e da expressão.<br />
As revistas literárias, que poderiam suplantar esse silêncio, oscilam e<br />
levam um bom tempo para reaparecer, quando não desaparecem para sempre,<br />
desmotivadas pela falta de recursos e de incentivos de todas as partes.<br />
A televisão, que poderia abrir um largo caminho às letras, só<br />
ocasionalmente o faz, haja vista que, na rotina dos noticiários, não há espaço,<br />
mínimo que seja, para o aparecimento de um livro, ainda que se trate de um<br />
clássico da literatura nacional. Nesse ponto, cabe ressaltar apenas o excelente<br />
serviço da TV Educativa e da TV Cultura, com programas especialmente<br />
consagrados à poesia e literatura corrente.<br />
Em nossa pesquisa, apuramos que Augusto Frederico Schimidt<br />
profetizou, já quase no fim dos anos 30, a morte da Poesia. Mas a verdade é<br />
que, para o bem de todos, o óbito anunciado não ocorreu. Parafraseando o<br />
escritor Isaac B. Singer, Prêmio Nobel e Literatura, podemos pensar : “Como a<br />
poesia já existe, não podemos mais viver sem ela ” .<br />
Assim como o teatro sobreviveu ao impacto do cinema, o livro<br />
sobreviverá ao impacto da imagem, na instantaneidade dos recursos da<br />
televisão e do vídeo.<br />
A literatura do nosso tempo, apesar de não viver os melhores dias,<br />
saberá suplantar a crise, quer como interesse, quer como fonte de novas<br />
experiências. Enquanto existir a palavra escrita, somos levados a crer que<br />
continuará a existir a poesia, como requinte da forma e da expressão, na<br />
harmonia do verso ou da prosa.<br />
Atualmente, pelo mundo afora, a despeito de todas as experiências<br />
desenvolvidas em torno das novas tendências da poesia, a poesia de todos os<br />
97
tempos resiste bravamente aos mais diferentes experimentos e tentativas de<br />
mudança.<br />
Convivemos com a poesia tradicional, metrifica e rimada que<br />
eternizou a escola romântica através da geração dos condoreiros ; com a<br />
poesia de versos livres (ou brancos), onde a mensagem, distante da rima e da<br />
métrica, pode soar estranha, mas apresenta, se bem concebida, a arte poética<br />
em estado puro ; com a poesia visual, onde as palavras são substituídas pela<br />
interpretação espontânea e natural por parte de quem aprecia a imagem (muitas<br />
vezes confundida com poesia concreta) e, por fim, com a poesia através da<br />
musica, esta última mais resistente às oscilações do plano literário.<br />
A quem pertence o futuro da poesia ? Aos Deuses ou aos poetas ?<br />
Trata-se de uma resposta dificílima perante tantas controvérsias e diferenças de<br />
idéias e pensamentos. Quem pode afirmar dizer quem está certo ? Os<br />
concretistas, o modernistas, os de escola nenhuma ?<br />
Sou obrigado a concordar que a poesia maior é aquela que soa<br />
melhor aos nossos ouvidos e aos nossos olhos. Somente aquele estado da<br />
emoção recolhida é capaz de prever a sobrevivência ou a morte da poesia.<br />
Tudo o que aprendi durante o trabalho faz-me acreditar que a poesia<br />
não morrera jamais, está enraizada na alma humana, seja visual ou escrita,<br />
embora eu seja mais adeptos à poesia de versos clássicos, rimados e<br />
metrificados, com a qual aprendi a conviver desde pequeno e que soa melhor<br />
aos meus ouvidos.<br />
Como reflexão, valeu desenvolver o capítulo em cima de tudo aquilo<br />
que a poesia já produziu, da evolução que sofreu e das tendências futuras, mas<br />
o futuro, sinceramente, quero estar vivo para testemunhar.<br />
98
4. O ENSINO <strong>DA</strong> <strong>POESIA</strong> NAS ESCOLAS<br />
Numa rápida avaliação, isenta de pesquisa e leitura, arrisco-me em<br />
afirmar que a poesia é pouco divulgada no mundo atual, nas escolas de primeiro<br />
e segundo grau, limitando-se ao estudo nada aprofundado em capítulos<br />
resumidos da nossa decadente literatura pedagógica.<br />
Convivemos então com o ensino mirrado de poesia incutida nas aulas<br />
curtas de Língua Portuguesa nas Escolas, sem a mínima preocupação com a<br />
divulgação mais ampla e séria de alguns milênios de história da poética<br />
universal.<br />
Desta forma crescemos desinteressados e descrentes com a literatura<br />
geral, e a poesia, parte integrante dela, fica restrita aos versos e rimas<br />
expressas pelo ímpeto da juventude apaixonada e cheia de sonhos. Ninguém<br />
pode dizer que não se tornou um pouco poeta na adolescência, movido por um<br />
amor relâmpago e secreto.<br />
Uma breve reflexão lembra a poesia na escola quando éramos<br />
obrigados a devorar um livro por conta de algum trabalho exigido para<br />
complemento de notas escolares ou quando recorremos a versos alheios<br />
(muitas vezes, por ingenuidade, fazendo de conta que eram nossos) para enviar<br />
cartas aos amigos ou mesmo paixões secretas.<br />
A poesia nas escolas sempre restringiu-se ao estudo formal das<br />
escolas poéticas, de poucos poetas em particular ou de mínimas redações<br />
envolvendo, geralmente, versos de poetas conhecidos e admirados no meio<br />
pedagógico. Estímulo ? Muito pouco, acreditem.<br />
Para melhor desenvolver este capítulo, proponho-me a trabalhar a<br />
resposta para algumas perguntas que exigem reflexão honesta :<br />
99
Por quê apreciar poemas na Escola Primária ?<br />
O mundo de hoje, com suas múltiplas solicitações, exige indivíduos<br />
criadores. Haverá criação somente pela educação da sensibilidade e da<br />
imaginação. E a poesia estimula a inteligência, educa a sensibilidade, incentiva<br />
a criatividade, desperta a apreciação pelo belo, contribui para a elevação<br />
espiritual das novas gerações pelo contato e apreciação de valores.<br />
Em geral, as crianças gostam de poesias. Cassiano Nunes e Mário da<br />
Silva Britto, estudiosos da literatura brasileira, afirmam que “poesia é a infância<br />
que permanece em nós” , o que significa que a alma infantil é “alma poeta”. Há<br />
perfeita identificação entre elas, pela amplitude de imaginação e pureza ao<br />
mesmo tempo.<br />
Na verdade, a poesia atrai a criança desde os seus primeiros anos de<br />
vida. Nos braços maternos ou no berço, observamos suas reações às cantigas<br />
de ninar. Ao choro sucede a calma e à calma sucede o sono. São a rima e a<br />
melodia que já encontraram ressonância em seus ouvidos.<br />
A rima e o ritmo, a melodia e o movimento são elementos que mais<br />
atraem a criança, segundo os pesquisadores. Ela se diverte com a rima, com os<br />
sons diferentes das palavras, mesmo antes de compreendê-las.<br />
Alice Ruiz afirma que “ toda pessoa que faz poesia traz a sua criança<br />
interior à flor da pele e tem, como as crianças, a capacidade de equilibrar seu<br />
amor pela verdade e, ao mesmo tempo, pela invenção e pela liberdade da<br />
imaginação” 1 .<br />
Quem faz poesia sabe, como as crianças, brincar com a realidade,<br />
com a linguagem, com os sentimentos e pensamentos. Por tudo que disse e<br />
acredito, há muita coisa na poesia para ser apreciada pelas crianças e, no<br />
entanto, é raro que isso aconteça.<br />
Grande parte das escolas ainda apresenta apenas a poesia de um<br />
passado muito remoto, cheio de regras rígidas e formalidade, com uma dicção<br />
dura e, principalmente, uma linguagem arcaica sobre temas antigos que nada<br />
tem a ver com os sentimentos, linguagem e realidade de hoje.<br />
______________<br />
1. Resenha, Jornal Occinho, Fundação Cultural de Curitiba, p. 13<br />
100
Esse tipo de educação é um meio eficaz e rápido de afastar as<br />
crianças da poesia, já que poesia, antes de mais nada, é capacidade de refletir,<br />
em palavras, o que acabou de mudar, mas ainda não foi dito.<br />
Felizmente algumas escolas esforçam-se para perceber essa falha e,<br />
poeticamente, inovam. A poesia que apresentam aos seus alunos é<br />
contemporânea e estimula a criar. Criar é uma forma profunda do conhecimento<br />
e não conhecemos ninguém melhor na criação do que uma criança.<br />
Como apreciar poemas em classe ?<br />
Acredito que a atitude do professor em face da linguagem literária é<br />
um dos pontos mais importantes na apreciação dos poemas em classe. A<br />
maneira como o professor vê e sente a poesia, seu real interesse, é que vai<br />
determinar o despertar e a prontidão do aluno para o assunto.<br />
Quando o professor prepara-se para trazer o poema à classe, não<br />
basta lê-lo uma vez, mas tantas vezes quantas forem necessárias, até que se<br />
sinta capaz de transmitir a mensagem poética às crianças. O professor deve<br />
procurar refletir sobre a nova dimensão que o autor deu às coisas, observar a<br />
sua linguagem e profundidade de pensamento.<br />
O poeta escreve para ser ouvido. Poesia é música, é arte oral. E<br />
como a música, precisa ser ouvida para ser apreciada. Quem arrisca ensinar<br />
poesia para seus alunos, deve ler uma, duas ou mais vezes, fazendo com que a<br />
voz siga o ritmo e as nuanças sugeridas pelas mensagens poéticas.<br />
À leitura do poema ergue-se a troca de idéias entre professor e<br />
alunos. Neste caso, o professor deve determinar um resultado positivo ou<br />
negativo na atitude da criança para com este ou aquele poema.<br />
Após a leitura, o professor deve colher as reações, fazer perguntas,<br />
mas com cuidado para não cercá-las de imaginação, sugerindo a resposta e<br />
estimulando a criatividade, abundante na infância e adolescência.<br />
“ Partilhar um poema com as crianças é apreciá-lo naquilo que ele tem<br />
de mais profundo, mais significativo. É despertar a classe para experiências<br />
variadas, abrindo perspectivas para o prazer estético. É estimular a imaginação,<br />
101
fazendo-as enxergar as coisas como o autor viu, por meio de suas palavras que,<br />
num toque de magia, tudo transformam ” 1 .<br />
O objetivo do educador, ao apresentar e apreciar poemas na escola<br />
primária, é procurar tornar a criança antes de tudo, amante da poesia. Não<br />
deve se exaltar na leitura do verso, analisar palavra por palavra como se fosse o<br />
último encontro com aquele poema. Seria a obra de arte feita para ser vista e<br />
apreciada apenas uma vez ? Não. Logo, a poesia, como arte, deve ter seu<br />
lugar comum na vida diária da classe.<br />
E a criança, não vai ler poemas ? Alguns educadores defendem que<br />
nos primeiros anos, não. Ela poderá ler depois de muito convívio com o poema,<br />
ou, então, quando dominar as habilidades de interpretação da leitura, quando a<br />
mecânica não lhe prejudicar a compreensão. Somente depois a criança lerá,<br />
após ouvir a leitura do professor para que o imite.<br />
E é por isso que o poema está presente nos livros básicos. A criança<br />
precisa aprender a ler poemas, oralmente, pela imitação do professor. Sem<br />
incentivos ou guias, a criança carrega a poesia na alma, inconscientemente,<br />
mas nunca terá sido despertada para o estudo e amor pela poesia.<br />
Numa pesquisa realizada no Brasil na década passada, observou-se<br />
que as crianças de quatro a cinco anos de idade passam um terço do seu tempo<br />
brincando do “ faz de conta ”, chamando a atenção alguns aspectos deste tipo<br />
de brincadeira, que são a concentração e o envolvimento que as crianças<br />
demonstram nesta sua participação, com grande eficiência na comunicação,<br />
dentro de contextos imaginários armados.<br />
Para se estudar a fantasia das crianças, torna-se necessário, em<br />
contrapartida, entender-se também a realidade de vida das mesmas e seus<br />
anseios pessoais já despertos ou latentes.<br />
Venturelli 2 afirma que a inocência da criança vem em forma de<br />
manual poético, por onde o mundo se entremostra, como se fosse pela primeira<br />
vez. E então o menino - e poeta - vê o mundo, vive o mundo, ama o mundo, ou<br />
seja, nas três partes que integram essa estética sem premeditações, onde tudo<br />
é mercado.<br />
______________<br />
1. Iêda Dias da SILVA, Jornal Revista da Poesia, Ano II, nº 5<br />
2. Introdução à Arte de Ser Menino, Jornal da Fundação Cultural de Curitiba, no. 1, 1997<br />
102
Convém aos pais e professores estimularem a criatividade livre das<br />
crianças, sem modelos nem imposições de preferência, dando valor ao colorido<br />
de seus rabiscos, desenhos, pinturas, gravuras e escritos desta idade em<br />
diante, pois desenvolvendo a escrita, elas sabem criar versos, onde exprimem<br />
as suas variadas combinações de emoções. Freud 1 , pai da psicanálise, diz :<br />
“ O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um<br />
mundo de fantasia que leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande<br />
quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a<br />
realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação<br />
poética ”.<br />
Para educar e ensinar poesia às crianças é necessário não só ter<br />
conhecimentos de pedagogia e história. É importante que o profissional saiba<br />
dessa outra dimensão da realidade, do jogo, de como ela se constitui e qual é<br />
sua função no período de vida a que chamamos de infância.<br />
Como avaliar os poemas ?<br />
O que se pretende ao sugerir o convívio dos poemas com a classe é a<br />
educação da sensibilidade e da imaginação; é despertar e encaminhar a criança<br />
na apreciação da arte literária, tornando a poesia parte de sua vida.<br />
O que um professor deve querer alcançar é uma reação positiva do<br />
seu aluno face a um poema novo ou já conhecido; é sua manifestação de gosto,<br />
de prazer, de compreensão; é seu desejo de ler mais poemas e, com o espírito<br />
poético, ter condições de avaliar seu discípulos no caminho das emoções.<br />
Pontos importantes a serem considerados<br />
1. A aula de poesia deve ser uma hora de entretenimento e prazer para<br />
o professor e alunos. Nenhum sacrifício deve ser imposto aos dois lados ;<br />
______________<br />
1. Sigmund FREUD, Apud Taya S. Risério, Escritores Criativos e Devaneios, p.150<br />
103
2. Passar um poema para prosa seria destruir a obra do autor, seria o<br />
mesmo que quebrar a estátua do escultor ou rasgar a tela do pintor ;<br />
3. O professor deve apresentar um poema à altura do nível intelectual e<br />
aprendizado da criança. De nada adiantaria debater um épico de Camões onde<br />
ele próprio teria dificuldade no entendimento ;<br />
4. Os alunos devem ser estimulados à exposição de suas idéias, por<br />
mais estapafúrdias que possam parecer. O professor não deve se empolgar e<br />
falar mais do que o aluno. Ele é um mero condutor e orientador.<br />
Propostas alternativas para o ensino da poesia nas Escolas<br />
O que apresento aqui, como proposta alternativa, limita-se ao meu<br />
entendimento básico de poesia que a monografia me proporcionou em pouco<br />
tempo de pesquisa, avaliação e fato reservatório de idéias e reservas poéticas,<br />
como diria Maiakovski, que faço questão de partilhar com o amigo leitor :<br />
1. Os alunos devem ser estimulados à pratica da poesia, em versos<br />
livres, inicialmente, sobre determinado assunto de seu interesse. A rima deve<br />
ser incentivada, pois soa melhor aos ouvidos de quem faz, quem lê e quem<br />
escuta.<br />
É sabido que toda criança gosta de rimar, mesmo em brincadeiras<br />
com os colegas. Brincadeiras do tipo “Você sabia ? “ e “Faz de conta “ são<br />
clássicos entre as crianças por que estimulam a imaginação e a poesia deve<br />
seguir o mesmo caminho ;<br />
2. Já que o escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca, a<br />
aula de poesia deve ser um jogo de idéias, palavras, uma espécie de brain<br />
storming entre professor e aluno, de maneira que eles possam os verdadeiros<br />
criadores sem se sentir conduzidos por ninguém. Após determinado o tema da<br />
poesia, o professor deve associar as palavras que podem melhor encaixar-se no<br />
assunto e buscar as rimas ou sinônimos em meio à tempestade cerebral que<br />
estará sendo provocada nas crianças.<br />
104
3. Algo que existe mais nos poemas que nos textos em prosa são<br />
imagens, coisas em que podemos pensar como se fossem cenas, paisagens,<br />
retratos, mas nada parecidos com aquilo que a gente vê. Essas imagens exigem<br />
que a gente ponha o cérebro a trabalhar mais, pois as palavras as vão criando,<br />
mas é preciso ter fantasia, capacidade para ver o que não existe, para ficar<br />
encantado com a arte do poeta. Imaginem essa cena :<br />
Papai e mamãe<br />
moram separados,<br />
como só tenho um coração,<br />
cada um mora de um lado.<br />
O autor é Ulisses Tavares, que escreveu essa quadrinha no livro Aos<br />
poucos fico louco. Se pensarmos a respeito, são só palavras, mas elas não<br />
dizem só aquilo que dizem quando as usamos. Por exemplo : ninguém mora<br />
num coração. Nem é verdade que o coração é onde está o amor. Mas então o<br />
poeta anda mentindo ? Não, ele só finge que o coração é como uma casa.<br />
Todos esses grupos que palavras criam essas igualdades (coração =<br />
casa) têm o nome metáfora e há muitos estudiosos que garantem que a poesia<br />
se esconde aí.<br />
Então, para se gostar de um poema, não basta ler ou ouvir e deixar<br />
que ele vá passando. É preciso tentar pegá-lo com a gente pega um bichinho de<br />
estimação : com muito jeito, um olho atento, um ouvido para os ruidinhos que<br />
ele faz, uma cabeça capaz de imaginar de onde ele veio, o que ele está<br />
achando de ficar na sua mão e para onde ele quer ir depois que você soltá-lo. É<br />
isso que muito adulto não sabe mais fazer, mas as crianças não esquecem.<br />
4. Uma alternativa encontrada em alguns livros que pesquisamos,<br />
embora pouco divulgada, é o processo de leitura criativa de um poeta bastante<br />
divulgado pela imprensa brasileira, na sua cidade ou no seu país, podendo ficar<br />
a critério do professor ou mesmo das crianças que sempre trazem na mente<br />
algum versinho conhecido.<br />
105
A seguir transcrevo uma pequena mostra dessa idéia, retirada do<br />
Jornal Occinho, editado pela Fundação Cultura de Curitiba, onde as crianças se<br />
divertem com a poesia e brincam com as palavras de um poeta bem humorado<br />
que foi o Paulo Leminski :<br />
Haicais do Autor Haicais das crianças<br />
Primeiro frio do ano primeiro frio do ano<br />
fui feliz e meu irmão nasceu<br />
se não me engano sem algum plano<br />
. . .<br />
jardim da minha amiga chaminé da minha casa<br />
todo mundo feliz vive um passarinho<br />
até a formiga que quebrou a asa<br />
. . .<br />
mar é um elo amar é belo<br />
entre o azul entre o sapato<br />
e o amarelo e o chinelo<br />
Eu poderia apresentar aqui diversas propostas alternativas para<br />
ensino da poesia, mas seria mais feliz se tendo a oportunidade e a maturidade<br />
suficiente para vender a idéia para mim mesmo na arte de ensinar.<br />
Antes de pensarmos no que é melhor para as nossas crianças, qual a<br />
melhor forma de orientá-las e educá-las, propomos uma reflexão sobre o lugar<br />
que nós, adultos, pais, professores, estamos atribuindo a elas.<br />
Qual o lugar que a infância ocupa no pensamento do adulto de hoje ?<br />
E a partir dessa questão poderemos trilhar as particularidades inerentes a uma<br />
realidade infantil, e as possíveis relações entre a dimensão lúdica da realidade,<br />
a sexualidade na infância e própria capacidade criativa da espécie humana.<br />
Para encerrar esse capítulo, tomei aqui o exemplo do pensador<br />
alemão Friedrich Nietsche a respeito do jogo infantil e suas possíveis relações<br />
com o pensar e atividade criativa do homem adulto : “ Maturidade do homem :<br />
significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar ” .<br />
106
CONCLUSÃO<br />
Concluir um trabalho não é tarefa muito fácil, como sugerem os<br />
entendidos. As idéias e informações acumuladas ao longo de três meses de<br />
trabalho contínuo e árduo ainda me confundem a cabeça, mas trouxeram uma<br />
única certeza : apesar do gosto particular pela poesia, nunca pensei em levar o<br />
estudo a sério e que acabaria tão envolvido.<br />
Como já vimos anteriormente, a poesia não pode ser feita como se faz<br />
um bolo, ou seja, com receita. Parece claro, mas há pessoas que supõem ser<br />
suficiente colocar no papel algumas palavras de maneira metrificada, dentro das<br />
regras tradicionais, para se ter Poesia.<br />
Outras são ainda mais radicais e acham que, se o poema não está<br />
metrificado, ele não pode, simplesmente, conter Poesia. No entanto, a Poesia<br />
independe da forma como vem escrita ou falada.<br />
José de Alencar, o genial romancista brasileiro, que hoje é lido tanto<br />
ou até mais do que quando era vivo, descobriu isso em 1865. Cansado de tentar<br />
produzir um grande poema indianista, Os Filhos de Tupã, descobriu não ser<br />
capaz de fazê-lo em versos, pelo menos de maneira satisfatória para sua<br />
autocrítica aguçada. Romance era o que ele sabia fazer, por isso atingiu o<br />
máximo de sua produção poética com Iracema, um romance-poema que pode<br />
ser lido com satisfação e deleite ainda hoje.<br />
Quando estudei os primeiros poetas, de longe comecei a entender<br />
todos os mistérios que envolvem a criação poética. Mistérios que tornaram<br />
prodigiosos e amados nomes como Homero, Sófocles, Shakespeare e<br />
Drummond.<br />
107
Fui feliz em testemunhar a importância dos poetas para o seu povo,<br />
amante do seu lado rebelde, pois os poetas sempre tomaram as rédeas do<br />
pensamento popular e não mediram esforços para expressar toda a ironia e<br />
descontentamento em relação à opressão dos tiranos em todos os tempos.<br />
Mas, nem só de rebeldia viveram os poetas. Foram também a<br />
expressão máxima dos sentimentos inerentes a todo ser humano, e como seres<br />
humanos, amaram, pecaram, tomaram as dores, indignaram-se e jamais<br />
sofreram o desprezo, a não ser dos seus oponentes.<br />
Através de ideais e convicções, materializados em poemas, souberam<br />
resistir ao tempo e ao jugo homem. Toda a universidade que se preza dedica<br />
um estudo mais que profundo para a história da poesia. Na Universidade de<br />
Oxford, em Londres, a cadeira especial de Ensino da Poesia é muito disputada<br />
e exige dedicação mais do que simples curiosidade.<br />
Qualquer escola, cidade, estado ou país, tem o seu poeta por<br />
excelência. E se os poetas estão em toda parte, quem poderá negar a<br />
importância da poesia como arte e instrumento de reflexão ? E dos poetas que<br />
já cumpriram o seu papel na face da Terra, mas continuam causando a mesma<br />
perplexidade de antes ?<br />
Diante da indiferença dos editores em relação à produção poética de<br />
qualquer país, causa-me espanto e indignação quando deparo-me com as<br />
barbaridades publicadas e lançadas diariamente nas livrarias.<br />
No mundo atribulado de hoje, as divergências religiosas e culturais<br />
neutralizam a capacidade de convivência pacífica do homem ao mesmo tempo<br />
que elevam-no à condição de predador e ávido por sobrevivência, instinto<br />
atribuído, até pouco tempo, exclusivamente aos animais.<br />
O ser humano sustenta uma necessidade desenfreada de acúmulo de<br />
poder e dinheiro; é o jogo da sobrevivência, onde tudo converge para o “salve-<br />
se-quem puder”. A escala de valores foi por água abaixo e o homem já<br />
consegue rir da desgraça alheia.<br />
Neste caso, a poesia apresenta-se como instrumento de reflexão e os<br />
poetas vem cumprindo sua difícil tarefa, a duras penas, numa sociedade cada<br />
dia mais inculta.<br />
Por esse motivo penso que a poesia vêm resistindo bravamente, a<br />
despeito de todas as anunciações de sua morte e das decadentes produções<br />
108
literárias, onde os repugnantes conquistam a simpatia popular por conta do<br />
baixo nível de cultura ou esclarecimento das pessoas.<br />
Todos os concursos literários que conheço incluem e abrem espaço,<br />
inevitavelmente, para a poesia, na esfera regional, nacional ou internacional. E<br />
se abrem espaço, significa que os estudiosos do assunto não mais podem viver<br />
somente de ficção, humor e da violência despejada nos romances e livros de<br />
contos, mas suas almas clamam pelo mistério e a sedução da metáfora<br />
obrigatória na criação poética.<br />
Os livros de história jamais deixaram de registrar a existência dos<br />
poetas em qualquer século da existência humana. Minha pesquisa confirmou o<br />
registro inequívoco de poetas e mais poetas em quase todas as fases do<br />
desenvolvimento cultural da humanidade, da Grécia Antiga ao mundo<br />
contemporâneo. Toda época teve o seu representante.<br />
Por esse motivo, custa-me entender o menosprezo da atualidade em<br />
relação ao mundo poético e daí a nossa necessidade e propósito de divulgar<br />
sua origem e desenvolvimento como forma de preservar a espécie.<br />
Minhas propostas alternativas para o ensino da poesia nas escolas,<br />
apesar de soarem humildes, significam a retomada dos valores literários<br />
restritos, atualmente, à elite cultural da humanidade.<br />
Salvo um ou outro caso isolado, a poesia é pouco divulgada nas<br />
escolas e vai se afunilando em debates de difícil acompanhamento nas<br />
universidades e nos encontros culturais promovidos por fundações ou<br />
secretarias de educação.<br />
É preciso reinventá-la, estimular a criação poética, buscar o prazer da<br />
leitura e devolver à poesia o lugar de destaque que lhe pertenceu, desde os<br />
tempos de Homero e de Davi. E ninguém melhor do que as crianças, símbolos<br />
de pureza e imaginação, para absorver um papel tão importante nos destinos<br />
do desenvolvimento cultural da humanidade, para o seu próprio bem.<br />
Tive a infelicidade de encontrar alguns comentários nos livros<br />
pesquisados, decretando a poesia como arte ultrapassada e decadente.<br />
Quanta pobreza de espírito e falta de percepção ! A poesia é eterna,<br />
oscilante, mas eterna. Ao confronto com tamanha heresia, cabe-me confortar a<br />
alma na poesia de todos os tempos, deslumbrante, onde Augusto dos Anjos<br />
esculpiu a humana mágoa, Baudelaire cultivou as flores do mal, Drummond<br />
109
esistiu a todas as pedras no caminho e João Cabral de Melo Neto ainda<br />
cumpre sua sina. Esse trabalho foi realizado em torno de uma necessidade<br />
popular. Parafraseando o grande poeta Fernando Pessoa, “ tudo vale a pena<br />
quando a alma não é pequena ”.<br />
Pelos versos de Ferreira Gullar, carregaremos a esperança que<br />
nunca morre, pois a poesia já é parte integrante da nossa alma :<br />
“ Como dois e dois são quatro,<br />
sei que a vida vale a pena,<br />
embora o pão se pouco<br />
e a esperança pequena ”.<br />
E viva a poesia, cheia de vida, de encanto e de alegria. E para provar<br />
que a poesia vive em mim, deixo aqui, ao final desse humilde trabalho, a poesia<br />
que hei de levar comigo até o fim dos meus dias :<br />
Viver em paz comigo mesmo<br />
(ainda que eu morra infeliz)<br />
ser alegre todo dia<br />
(ainda que eu deite triste)<br />
dar amor a vida toda<br />
(ainda que eu fique sozinho)<br />
deixar as águas rolarem<br />
(ainda que eu naufrague)<br />
enfrentar a tempestade<br />
(ainda que o vento me leve)<br />
crer na força das palavras<br />
(ainda que eu morda a língua)<br />
contemplar de frente o sol<br />
(ainda que eu siga no escuro)<br />
esperar pelo possível<br />
(ainda que pareça impossível)<br />
construir a liberdade<br />
(ainda que eu viva preso)<br />
voar alto cada dia<br />
(ainda que eu desça ao abismo)<br />
ser capaz da forma justa<br />
(ainda que eu me faça injusto)<br />
tomar as dores do mundo<br />
(ainda que eu viva de enganos)<br />
crescer segundo a segundo<br />
(ainda que dure mil anos)<br />
110
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