Download - Teatro Nacional São João no Porto
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percepcionava, não teria sido suficiente, muito embora seja exequível<br />
dado que a escrita de Kane abre possibilidades de encenação. Para um<br />
encenador, é uma grande tentação entrar por essas aberturas. Mas,<br />
em cena, lidamos com o que é vivo. Os actores exprimem algo que vem<br />
forçosamente de algures. Purificados instaura um universo que reúne<br />
várias pessoas, esse universo é metafórico e é preciso encontrar um<br />
sentido para o teatro, senão os actores não conseguem representá ‑lo.<br />
Na sua encenação, a ideia de castigo, de redenção e de purificação<br />
é muito nítida. Foi um parti ‑pris seu?<br />
A <strong>no</strong>ção do mal está fortemente presente em Purificados. Acho que<br />
se pode encontrar uma explicação para esta presença <strong>no</strong> quadro de<br />
uma reflexão moral. Na peça, a língua, as mãos, e depois os pés de<br />
Carl são cortados por Tinker. Ora, cortam ‑se as mãos a quem rouba,<br />
corta ‑se a língua a quem mente; e é o mesmo homem, Tinker, que dá<br />
a vida (permite a Grace mudar de sexo e tornar ‑se Graham) ou inflige<br />
a punição. Há pois, efectivamente, uma dimensão de redenção, de<br />
castigo, de ressurreição. Coisa que é muito religiosa e também muito<br />
polaca. E é preciso não esquecer que Sarah Kane era fervorosamente<br />
cristã até aos dezoito a<strong>no</strong>s.<br />
Isso explica a sua opção por essa perspectiva?<br />
Aqui na Polónia, não se pode fazer Sarah Kane à maneira dos alemães,<br />
que a encenam com brutalidade, para fazer tremer a sociedade alemã.<br />
A meu ver, o objectivo desta autora não é mostrar a brutalidade de<br />
um universo, como as encenações alemãs podem dar a entender. Não<br />
se trata de um filme de terror, do género O Silêncio dos I<strong>no</strong>centes, o<br />
Tinker não é um serial killer. Por toda a parte na Polónia se fala de<br />
Sarah Kane desde esta encenação. O espectáculo foi um choque para<br />
toda a gente, contrariamente, aliás, ao que eu pensava. De repente,<br />
tor<strong>no</strong>u ‑se o tema teatral mais discutido neste país, desde há a<strong>no</strong>s e<br />
a<strong>no</strong>s a esta parte. Porque ecoa algo que está <strong>no</strong> ar do tempo. Desde<br />
as mudanças políticas ocorridas <strong>no</strong> país, as pessoas debatem ‑se<br />
num contexto moral, cada vez que, por exemplo, reflectem acerca<br />
do passado sem mentirem a si mesmas, sobre o papel da Polónia<br />
durante a Segunda Guerra Mundial. A <strong>no</strong>ssa liberdade condena ‑<strong>no</strong>s<br />
a essas questões de responsabilidade. Somos vítimas ou carrascos na<br />
Europa? Ora, na peça, a ideia moral é muito forte e é a esse nível que<br />
o choque entre o espectáculo e o seu público acontece. De um modo<br />
mais geral, creio que a peça de Sarah Kane pertence ao lugar onde é<br />
levada à cena. A estrutura que <strong>no</strong>s oferece é tão aberta que é preciso<br />
preenchê ‑la com a matéria francesa, alemã ou polaca, consoante<br />
o local onde for encenada. Encerra um imaginário universal, como<br />
aconteceu com os imaginários de Koltès, de Shakespeare ou dos<br />
antigos Gregos. Há mil maneiras de a abordar. Nisso é muito moderna<br />
porque não limita, abre. É preciso, depois, encontrar a porta.<br />
Sabia, antes de montar a peça, que o espectáculo ia enveredar por<br />
esta orientação “moral”?<br />
Tive esse pressentimento, essa intuição. O espectáculo fala a toda a<br />
gente porque toda a gente se sabe condenada e Sarah Kane mostra a<br />
todos que há pior. O tratamento das cenas violentas (<strong>no</strong>meadamente<br />
as amputações) nasceu <strong>no</strong> palco. Claro que era preciso encontrar a<br />
solução e escavar o sentido dessa violência, para que a representação<br />
não se reduzisse ao choque infligido ao espectador. Mas Purificados<br />
não é um texto em que uma pessoa se possa preparar de antemão para<br />
tudo quanto ele a vai fazer viver. Pessoalmente, perturba ‑me muito.<br />
No fim, tor<strong>no</strong>u ‑se uma questão pessoal. Tinha de me identificar<br />
com Sarah Kane, de saber o que ela dizia, porquê. De algum modo,<br />
interiorizei Sarah Kane. A violência dela tor<strong>no</strong>u ‑se a minha violência.<br />
Uma violência interior que não nasce na rua, uma violência que vem<br />
do medo da vida.<br />
Quando fala de Tinker, fica ‑se com a impressão de que essa<br />
personagem é o equivalente de Deus…<br />
O medo de Tinker leva ‑o a fazer o que faz. Mas não deixa de ser<br />
huma<strong>no</strong>, é um de nós. É uma vítima, está perdido. Pode ser Deus,<br />
cada um vê nele o que quiser. Tinker busca histericamente o sentido<br />
da vida. É como uma criança que deseja que o seu branco seja branco<br />
e o seu negro seja negro.<br />
Não faz juízos morais sobre as acções das personagens?<br />
Não há bonzinho nem vilão, nem nenhum juízo a fazer. Gostava de<br />
abrir um caminho interior em cada um de nós e que só a nós próprios<br />
conduzisse, à <strong>no</strong>ssa sexualidade, ao <strong>no</strong>sso medo da vida e ao desejo<br />
de <strong>no</strong>s encontrarmos com a <strong>no</strong>ssa segunda metade, conforme a ideia<br />
platónica de que cada um tem uma criatura que lhe é semelhante.<br />
Trata ‑se de uma problemática muito homossexual. A dimensão<br />
homossexual é um acrescento meu, vem do meu imaginário. Mas não é<br />
redutor, é uma ideia por acréscimo. Aliás, a experiência homossexual é<br />
vivida mais livremente hoje em dia, e enriquece o homem. •<br />
* Excerto de “Il y a peu de beauté, <strong>no</strong>us parlons avec des ordures”. OutreScène: la<br />
revue du Théâtre National de Strasbourg. N.º 1 (Fév. 2003). p. 45 ‑49.<br />
Trad. Regina Guimarães.