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Oczyszczeni<br />

Cleansed (1998)<br />

de Sarah Kane<br />

tradução para polaco Krzysztof Warlikowski,<br />

Jacek Poniedziałek<br />

encenação Krzysztof Warlikowski<br />

ce<strong>no</strong>grafia Małgorzata Szcze´sniak<br />

música Paweł Mykietyn<br />

voz Renate Jett<br />

desenho de luz Felice Ross<br />

interpretação<br />

Mariusz Bonaszewski Tinker<br />

Małgorzata Hajewska ‑Krzysztofik Grace<br />

Redbad Klijnstra Graham<br />

Stanisława Celińska Mulher<br />

Jacek Poniedziałek Rod<br />

Thomas Schweiberer Carl<br />

Tomasz Tyndyk Robin<br />

Renate Jett (Monólogos, canções)<br />

Fabian Włodarek (Músico)<br />

produção<br />

Wrocławski Teatr Współczesny (Polónia)<br />

co ‑produtores TR Warszawa (Polónia),<br />

Teatr Polski in Poznań (Polónia)<br />

estreia [15Dez01] Wrocławski Teatr<br />

Współczesny (Polónia)<br />

Espectáculo em língua polaca, legendado em português.<br />

<strong>Teatro</strong> <strong>Nacional</strong> <strong>São</strong> <strong>João</strong><br />

5+6 Dezembro 2008<br />

Estreia <strong>Nacional</strong><br />

sex+sáb 21:30<br />

dur. aprox. [2:30] sem intervalo<br />

classif. etária M/18 a<strong>no</strong>s<br />

Ficha Técnica TNSJ<br />

relações internacionais José Luís Ferreira,<br />

Joana Guimarães (assistente)<br />

coordenação de produção Maria <strong>João</strong> Teixeira<br />

assistentes de produção Maria do Céu,<br />

Mónica Rocha<br />

direcção técnica Carlos Miguel Chaves<br />

direcção de palco Rui Simão<br />

direcção de cena Pedro Guimarães<br />

assistência de direcção de cena Pedro Manana<br />

luz Filipe Pinheiro (coordenação),<br />

José Carlos Cunha<br />

maquinaria Filipe Silva (coordenação),<br />

Joaquim Marques, Lídio Pontes<br />

vídeo Fernando Costa<br />

som António Bica, <strong>João</strong> Oliveira<br />

legendagem Sofia Barbosa<br />

assistentes de camarins Ana Novais,<br />

Carla Martins<br />

apoios TNSJ<br />

apoios à divulgação<br />

agradecimentos<br />

Polícia de Segurança Pública<br />

Tourtransfer<br />

<strong>Teatro</strong> <strong>Nacional</strong> <strong>São</strong> <strong>João</strong><br />

Praça da Batalha<br />

4000 ‑102 <strong>Porto</strong><br />

T 22 340 19 00 | F 22 208 83 03<br />

<strong>Teatro</strong> Carlos Alberto<br />

Rua das Oliveiras, 43<br />

4050 ‑449 <strong>Porto</strong><br />

T 22 340 19 00 | F 22 339 50 69<br />

Mosteiro de <strong>São</strong> Bento da Vitória<br />

Rua de <strong>São</strong> Bento da Vitória<br />

4050 ‑543 <strong>Porto</strong><br />

T 22 340 19 00 | F 22 339 30 39<br />

www.tnsj.pt<br />

geral@tnsj.pt<br />

Wrocławski Teatr Współczesny<br />

Rua Rze´znicza, 12<br />

50 ‑132 Wrocław<br />

Polónia<br />

T (+48) 71 358 89 10<br />

www.wteatrw.pl<br />

edição Centro de Edições do TNSJ<br />

coordenação <strong>João</strong> Luís Pereira<br />

documentação Paula Braga<br />

design gráfico <strong>João</strong> Faria, <strong>João</strong> Guedes<br />

fotografia Stefan Okołowicz, Anna Ło´s<br />

impressão Aprova, AG<br />

Não é permitido filmar, gravar ou fotografar<br />

durante o espectáculo. O uso de telemóveis,<br />

pagers ou relógios com sinal so<strong>no</strong>ro é incómodo,<br />

tanto para os actores como para os espectadores.


— — — — — — — — — — — — — — — —<br />

A catástrofe de amor está talvez próxima daquilo a que se chamou,<br />

<strong>no</strong> campo psicológico, uma situação extrema, que é “uma situação<br />

vivida pelo sujeito como devendo irremediavelmente destruí ‑lo”;<br />

a imagem foi retirada do que se passou em Dachau. Não será<br />

indecente comparar a situação de um sujeito que sofre de amor com<br />

a de um preso <strong>no</strong> campo de concentração de Dachau? Será possível<br />

encontrar ‑se uma das injúrias mais inimagináveis da História<br />

num incidente fútil, infantil, sofisticado, obscuro, ocorrido com<br />

um sujeito confortável que é apenas vítima do seu Imaginário?<br />

Estas duas situações têm, <strong>no</strong> entanto, isto em comum: são,<br />

literalmente, pânicos; são situações sem continuação, sem regresso<br />

– projectei ‑me <strong>no</strong> outro com uma força tal que, com a sua falta, já<br />

não posso deter ‑me, recuperar ‑me: estou perdido para sempre. •<br />

Roland Barthes – Excerto de “A catástrofe”. In Fragmentos de um Discurso<br />

Amoroso. Lisboa: Edições 70, imp. 2001. p. 65.<br />

— — — — — — — — — — — — — — — —<br />

Purificados também é uma reflexão sobre a minha própria vida.<br />

Sem que seja <strong>no</strong> entanto autobiográfico. Numa passagem de<br />

Fragmentos de um Discurso Amoroso, Roland Barthes diz que<br />

a situação de um apaixonado infeliz é comparável à de um<br />

prisioneiro de Dachau. Comecei por ficar muito indignada com<br />

esta comparação, parecia ‑me impossível que os sofrimentos<br />

de amor pudessem ser tão terríveis quanto os de um campo de<br />

concentração. Mas depois de muito reflectir, compreendi melhor<br />

o que Roland Barthes quer dizer. Ele fala da perda de si. Quando<br />

alguém se perde de si próprio, o que é que ainda lhe resta?<br />

Desembocamos numa ausência total de saída, numa espécie de<br />

loucura. •<br />

Sarah Kane – Excerto de “Une conversation avec Nils Tabert”. OutreScène:<br />

la revue du Théâtre National de Strasbourg. N.º 1 (Fév. 2003). p. 71.<br />

— — — — — — — — — — — — — — — —<br />

Sarah Kane despe ‑se em público. Como eu próprio pude fazê ‑lo<br />

com Hamlet ou com As Bacantes. Nós oferecemo ‑<strong>no</strong>s ao olhar.<br />

Sarah Kane, talvez por ser mulher, ou porque era homossexual,<br />

tem a coragem de ser verdadeira com ela própria. De uma certa<br />

maneira, ela restitui ao amor uma expressão de candura. Ao<br />

escrever este texto, Purificados, ela confia ‑<strong>no</strong>s um pensamento<br />

ter<strong>no</strong>. Como se desenhasse uma flor, para dar luz e alegria ao seu<br />

universo interior. Ela diz, aliás, que quando escrevia Purificados<br />

estava apaixonada, o que não era o caso quando escrevia Falta. E,<br />

como diz Roland Barthes, estar apaixonado é ser prisioneiro de<br />

Dachau. Há uma fatalidade do enclausuramento. •<br />

Krzysztof Warlikowski – Excerto de “Il y a peu de beauté, <strong>no</strong>us parlons<br />

avec des ordures”. OutreScène: la revue du Théâtre National de Strasbourg.<br />

N.º 1 (Fév. 2003). p. 49.


— — — — — — — — — — — — — — — — —<br />

Redenção, castigo,<br />

ressurreição<br />

Entrevista com Krzysztof Warlikowski*<br />

Joëlle Gayot Purificados é um texto de uma violência extrema.<br />

Em que estado de espírito abordou esta encenação?<br />

Krzysztof Warlikowski O primeiro imperativo era rodear ‑me<br />

de actores que conheço muito bem, que me conhecem e que têm<br />

confiança em mim. Trabalhar com desconhecidos estava fora de<br />

questão. Durante mais de dois meses, eu e os actores avançámos<br />

neste texto que exige um investimento fora do comum. Quando<br />

Sarah Kane escreve Purificados, temos a impressão de estar diante<br />

de uma pura ficção. Contrariamente a Falta ou a 4.48 Psicose, os seus<br />

últimos escritos em que a ficção só se sustenta na palavra, Purificados<br />

conserva ainda uma estrutura teatral. Todavia, apesar das aparências,<br />

acabamos por perceber que a ficção é, <strong>no</strong> fundo, pouco precisamente<br />

desenhada, e qualquer pessoa pode ser Graham ou Grace. Sarah<br />

Kane deixa espaço aos actores. Ao investirem as suas personagens,<br />

eles podem e devem preenchê ‑las com a sua própria vida. Devem<br />

transferir ‑se a si próprios, os seus problemas, as suas angústias para<br />

os papéis a interpretar. Isso não é possível sem uma ligação profunda<br />

com a vida íntima. Foi isso que assustou alguns actores: a actriz que<br />

interpreta a personagem da mulher do peep ‑show quase desistiu,<br />

aquela que interpreta a personagem de Grace vai muito longe na<br />

relação de inquietude, dominada pelo medo, que a liga ao seu próprio<br />

corpo. Há um eco entre elas e as palavras de Sarah Kane.<br />

Sarah Kane expõe problemas que tocam a identidade de muito<br />

perto. Fala de homossexualidade, de incesto, de sexualidade<br />

mal definida. Não se sai intacto das palavras dela. Têm um efeito<br />

contagioso e arrastam para longe aqueles que as manipulam.<br />

Interpretar as peças da sua autoria contentando ‑se com um jogo de<br />

marionetas é aberrante. É preciso entregar ‑se com toda a sinceridade<br />

e honestidade que ela demonstrou ao escrevê ‑las, de outro modo não<br />

vale a pena representá ‑las. Sarah Kane não é convencional. O saber<br />

fazer ou a técnica não bastam. É preciso ser verdadeiro e ser capaz<br />

do mesmo abando<strong>no</strong> de si que ela manifesta ao contar directamente<br />

coisas muito pessoais. Estou a falar dos actores, mas também de mim,<br />

encenador. Damos a ver de nós uma parte muito íntima.<br />

Estava apreensivo com a ideia de representar este texto de Sarah<br />

Kane, aqui, na Polónia?<br />

Várias vezes adiei este projecto em tor<strong>no</strong> do qual trabalho, <strong>no</strong><br />

entanto, há já três a<strong>no</strong>s. Preferi fazer Hamlet antes. Quando escolhi<br />

montar a peça Purificados, lutei e até quase me revoltei contra<br />

ela. Não a compreendi, embora ela criasse imagens em mim. Esta<br />

encenação suscitou uma grande polémica na Polónia, dentro dos<br />

círculos intelectuais. Dizia ‑se que Sarah Kane é uma autora que “vem<br />

da overdose”, cuja escrita decorre do excesso, do excesso de álcool,<br />

do excesso de droga, etc. Alguns críticos pensavam que os textos dela<br />

eram próprios de uma inglesa “intoxicada”, que captava imagens em<br />

estado de ingénuo e incompreensível delírio. As pessoas sentiam ‑se<br />

agredidas por ela e eu quis perceber porquê, onde residia ao certo<br />

a agressão. Se tivesse ficado ao nível das imagens que há três a<strong>no</strong>s


percepcionava, não teria sido suficiente, muito embora seja exequível<br />

dado que a escrita de Kane abre possibilidades de encenação. Para um<br />

encenador, é uma grande tentação entrar por essas aberturas. Mas,<br />

em cena, lidamos com o que é vivo. Os actores exprimem algo que vem<br />

forçosamente de algures. Purificados instaura um universo que reúne<br />

várias pessoas, esse universo é metafórico e é preciso encontrar um<br />

sentido para o teatro, senão os actores não conseguem representá ‑lo.<br />

Na sua encenação, a ideia de castigo, de redenção e de purificação<br />

é muito nítida. Foi um parti ‑pris seu?<br />

A <strong>no</strong>ção do mal está fortemente presente em Purificados. Acho que<br />

se pode encontrar uma explicação para esta presença <strong>no</strong> quadro de<br />

uma reflexão moral. Na peça, a língua, as mãos, e depois os pés de<br />

Carl são cortados por Tinker. Ora, cortam ‑se as mãos a quem rouba,<br />

corta ‑se a língua a quem mente; e é o mesmo homem, Tinker, que dá<br />

a vida (permite a Grace mudar de sexo e tornar ‑se Graham) ou inflige<br />

a punição. Há pois, efectivamente, uma dimensão de redenção, de<br />

castigo, de ressurreição. Coisa que é muito religiosa e também muito<br />

polaca. E é preciso não esquecer que Sarah Kane era fervorosamente<br />

cristã até aos dezoito a<strong>no</strong>s.<br />

Isso explica a sua opção por essa perspectiva?<br />

Aqui na Polónia, não se pode fazer Sarah Kane à maneira dos alemães,<br />

que a encenam com brutalidade, para fazer tremer a sociedade alemã.<br />

A meu ver, o objectivo desta autora não é mostrar a brutalidade de<br />

um universo, como as encenações alemãs podem dar a entender. Não<br />

se trata de um filme de terror, do género O Silêncio dos I<strong>no</strong>centes, o<br />

Tinker não é um serial killer. Por toda a parte na Polónia se fala de<br />

Sarah Kane desde esta encenação. O espectáculo foi um choque para<br />

toda a gente, contrariamente, aliás, ao que eu pensava. De repente,<br />

tor<strong>no</strong>u ‑se o tema teatral mais discutido neste país, desde há a<strong>no</strong>s e<br />

a<strong>no</strong>s a esta parte. Porque ecoa algo que está <strong>no</strong> ar do tempo. Desde<br />

as mudanças políticas ocorridas <strong>no</strong> país, as pessoas debatem ‑se<br />

num contexto moral, cada vez que, por exemplo, reflectem acerca<br />

do passado sem mentirem a si mesmas, sobre o papel da Polónia<br />

durante a Segunda Guerra Mundial. A <strong>no</strong>ssa liberdade condena ‑<strong>no</strong>s<br />

a essas questões de responsabilidade. Somos vítimas ou carrascos na<br />

Europa? Ora, na peça, a ideia moral é muito forte e é a esse nível que<br />

o choque entre o espectáculo e o seu público acontece. De um modo<br />

mais geral, creio que a peça de Sarah Kane pertence ao lugar onde é<br />

levada à cena. A estrutura que <strong>no</strong>s oferece é tão aberta que é preciso<br />

preenchê ‑la com a matéria francesa, alemã ou polaca, consoante<br />

o local onde for encenada. Encerra um imaginário universal, como<br />

aconteceu com os imaginários de Koltès, de Shakespeare ou dos<br />

antigos Gregos. Há mil maneiras de a abordar. Nisso é muito moderna<br />

porque não limita, abre. É preciso, depois, encontrar a porta.<br />

Sabia, antes de montar a peça, que o espectáculo ia enveredar por<br />

esta orientação “moral”?<br />

Tive esse pressentimento, essa intuição. O espectáculo fala a toda a<br />

gente porque toda a gente se sabe condenada e Sarah Kane mostra a<br />

todos que há pior. O tratamento das cenas violentas (<strong>no</strong>meadamente<br />

as amputações) nasceu <strong>no</strong> palco. Claro que era preciso encontrar a<br />

solução e escavar o sentido dessa violência, para que a representação<br />

não se reduzisse ao choque infligido ao espectador. Mas Purificados<br />

não é um texto em que uma pessoa se possa preparar de antemão para<br />

tudo quanto ele a vai fazer viver. Pessoalmente, perturba ‑me muito.<br />

No fim, tor<strong>no</strong>u ‑se uma questão pessoal. Tinha de me identificar<br />

com Sarah Kane, de saber o que ela dizia, porquê. De algum modo,<br />

interiorizei Sarah Kane. A violência dela tor<strong>no</strong>u ‑se a minha violência.<br />

Uma violência interior que não nasce na rua, uma violência que vem<br />

do medo da vida.<br />

Quando fala de Tinker, fica ‑se com a impressão de que essa<br />

personagem é o equivalente de Deus…<br />

O medo de Tinker leva ‑o a fazer o que faz. Mas não deixa de ser<br />

huma<strong>no</strong>, é um de nós. É uma vítima, está perdido. Pode ser Deus,<br />

cada um vê nele o que quiser. Tinker busca histericamente o sentido<br />

da vida. É como uma criança que deseja que o seu branco seja branco<br />

e o seu negro seja negro.<br />

Não faz juízos morais sobre as acções das personagens?<br />

Não há bonzinho nem vilão, nem nenhum juízo a fazer. Gostava de<br />

abrir um caminho interior em cada um de nós e que só a nós próprios<br />

conduzisse, à <strong>no</strong>ssa sexualidade, ao <strong>no</strong>sso medo da vida e ao desejo<br />

de <strong>no</strong>s encontrarmos com a <strong>no</strong>ssa segunda metade, conforme a ideia<br />

platónica de que cada um tem uma criatura que lhe é semelhante.<br />

Trata ‑se de uma problemática muito homossexual. A dimensão<br />

homossexual é um acrescento meu, vem do meu imaginário. Mas não é<br />

redutor, é uma ideia por acréscimo. Aliás, a experiência homossexual é<br />

vivida mais livremente hoje em dia, e enriquece o homem. •<br />

* Excerto de “Il y a peu de beauté, <strong>no</strong>us parlons avec des ordures”. OutreScène: la<br />

revue du Théâtre National de Strasbourg. N.º 1 (Fév. 2003). p. 45 ‑49.<br />

Trad. Regina Guimarães.


— — — — — — — — — — — — — — —<br />

“Lágrimas geladas”<br />

Georges Banu*<br />

Warlikowski situa ‑se <strong>no</strong> exacto coração da erosão das<br />

diferenças sexuais, que desorienta e delicia. Porque<br />

as fronteiras – outrora estanques, agora perturbadas –<br />

parecem porosas, ele avança para uma espécie de <strong>no</strong> man’s<br />

land sexual onde hetero e homossexualidades coabitam,<br />

onde a aproximação dos corpos joga sob o sig<strong>no</strong> do amor<br />

indiferenciado. Pode ser puro e angélico ou dilacerante,<br />

caricatural, grotesco. Mas será sempre intenso. Sem exclusão<br />

partidária, nem sanção moral, Warlikowski reivindica essa<br />

ambivalência moderna. Ela não atenua as paixões, liberta ‑as e<br />

garante‑lhes um direito de cidadania sem fixação de sexo.<br />

Em Purificados de Sarah Kane, como em Madame de<br />

Sade de Mishima ou em Anjos na América de Tony Kushner,<br />

Warlikowski trabalha sobre o corpo travestido. Romântico<br />

inveterado, desloca e assume o registo da paixão amorosa<br />

entre dois homens: o corpo travestido traduz a dilaceração de<br />

um eros insatisfeito e magoado. Este gesto nada tem de teatral<br />

ou dissimulado, é grito… E, na sala, ouvimos o seu desamparo.<br />

Aqui, a desordem afectiva é acompanhada de desgaste<br />

corporal e a reunião de ambas as coisas confirma a imensidão<br />

da carência. Há em Warlikowski uma incandescência trágica da<br />

qual o desconforto do corpo travestido atesta a deflagração.<br />

Para além das diferenças e das identidades, procurar o amor<br />

e não conseguir alcançá ‑lo, eis a confissão de uma cena que<br />

nenhum interdito vem obstruir e que, ao mesmo tempo, se<br />

mostra sedenta desses sentimentos capazes de dilatar o ser<br />

e o levam a ultrapassar os seus limites. “Alegria espaçosa”…<br />

alegria dolorosa. É de uma paixão que se assume e de uma<br />

ferida que sangra, de uma paixão para além dos sexos, que<br />

o corpo travestido aqui é testemunho. Como <strong>no</strong>s poemas de<br />

Miguel Ângelo ou <strong>no</strong>s sonetos de Shakespeare!<br />

[…] No contexto de um desconforto do ser a todos<br />

os níveis, o encenador está literalmente “esquartejado”.<br />

Condição de um “esfolado vivo” da qual a cena regista e revela<br />

o insuportável regime de existência. Estamos perante um<br />

teatro que se alimenta não da experiência do mal, mas da<br />

experiência da dor, e de uma cena em que o sofrimento se<br />

afirma na sua versão <strong>no</strong>bre. E, nesse sentido, ela salvaguarda<br />

uma confiança <strong>no</strong> ser, enquanto a cena alemã, conforme já<br />

afirmei, está apostada em dizer a sua miséria extrema. As


lágrimas, a redenção do ser que sofre. Rastos de Cristo feito<br />

homem. Não há nada de místico nessa atitude, apenas uma<br />

intensidade que convoca a experiência crística como modelo<br />

do homem sublimado pela dor.<br />

Warlikowski não se demarca do amor. O amor transgressivo<br />

dos homens que ousam afirmar as suas paixões, assumir as<br />

suas perdições, homens entre homens, para quem as lágrimas<br />

não são proibidas. Há neste teatro poético um canto de amor<br />

que o atravessa sobre um fundo de eterna insaciedade. Mas<br />

Warlikowski não é Fassbinder… Não procura a provocação. O<br />

amor homossexual é uma expressão da sensibilidade dos seres<br />

para quem a única condição de sobrevivência são, justamente,<br />

os afectos. Warlikowski situa ‑se mais do lado de Oscar Wilde e de<br />

Mishima, cuja ambígua Madame de Sade levou brilhantemente<br />

à cena. Aqui, o amor vem sempre escoltado por uma incansável<br />

melancolia porque é vivido como procura do seu duplo perfeito.<br />

Há nele um narcisismo próprio de cada eu que julga salvar ‑se<br />

graças ao encontro embriagante consigo próprio. O que explica<br />

porventura a frequência dos espelhos neste teatro em que o<br />

sujeito se lança na busca da sua própria imagem reflectida.<br />

E isso leva a um enclausuramento, protector mas também<br />

destruidor. O amor, em Warlikowski, é uma experiência do<br />

sofrimento amoroso vivido como sofrimento devorador.<br />

— — — — — — — — — — —<br />

Krzysztof Warlikowski<br />

Nasce em 1962, em Szczecin (Polónia). Depois de<br />

estudar História e Filosofia na Universidade de<br />

Jagiellonia, em Cracóvia, muda ‑se para Paris, onde<br />

estuda durante um a<strong>no</strong> História do <strong>Teatro</strong>, na École<br />

Pratique des Hautes Études da Sorbonne. Regressa<br />

à Polónia em 1989, para estudar Encenação na<br />

Academia de <strong>Teatro</strong> de Cracóvia, encenando aí,<br />

em 1992, os seus primeiros espectáculos: Noites<br />

Brancas, de Dostoievski, e Auto ‑de ‑fé, de Elias<br />

Canetti. Trabalha depois com grandes <strong>no</strong>mes<br />

da cena europeia: em 1992 ‑93, foi assistente de<br />

encenação de Peter Brook em Impressions de Pelléas,<br />

espectáculo apresentado <strong>no</strong> Théâtre des Bouffes<br />

du Nord (Paris) e <strong>no</strong> contexto de um workshop<br />

organizado pelo Wiener Festwochen (Viena); ainda<br />

em 1992, assistiu Krystian Lupa na sua encenação<br />

de As A<strong>no</strong>tações de Malte Laurids Brigge, de Rainer<br />

Maria Rilke, <strong>no</strong> Stary Teatr de Cracóvia; em 1994,<br />

Giorgio Strehler supervisio<strong>no</strong>u o seu trabalho de<br />

adaptação e encenação de Em Busca do Tempo<br />

Perdido, de Marcel Proust, <strong>no</strong> Piccolo <strong>Teatro</strong> de<br />

Milão. Ence<strong>no</strong>u várias obras de William Shakespeare,<br />

como O Mercador de Veneza (1994), O Conto de<br />

Inver<strong>no</strong> (1997), Hamlet (1997 e 1999), O Amansar<br />

da Fera (1998), Noite de Reis (1999), A Tempestade<br />

(2003) e Macbeth (2004). Trabalhou ainda textos de<br />

outros dramaturgos clássicos como Sófocles (Electra,<br />

1996) e Eurípedes (As Fenícias, 1998; As Bacantes,<br />

2001), bem como de autores contemporâneos:<br />

Franz Kafka (O Processo, 1995), Bernard ‑Marie<br />

Koltès (Roberto Zucco, 1995; Cais Oeste, 1998), Matéi<br />

Nada lhe é mais estranho do que o sentimentalismo.<br />

Nunca encalha numa postura desse género. Os seus<br />

espaços são vastos, os seus ladrilhos frios, os seus espelhos<br />

indiferentes… Ele constrói laboratórios para uma anatomia do<br />

ser. A postura é cirúrgica: a cena não se furta às lágrimas e ao<br />

sangue, mas não alimenta nenhuma relação de complacência,<br />

de misericórdia para com estas personagens à deriva. Não é<br />

de indiferença que se trata, mas da apresentação clínica do<br />

mal d’être. Os lugares não surgem para apaziguar ou entrar em<br />

diálogo com esse mal que é forçoso fardo da solidão mas, ainda<br />

assim, ininterruptamente deseja transcender ‑se, comunicar,<br />

chamar por socorro. É próprio dos esfolados vivos não temerem<br />

a expressão da dor mais extrema. E é por isso que Warlikowski<br />

será o melhor encenador dessa outra romântica que foi<br />

Sarah Kane. Porque restitui o sofrimento da dramaturga<br />

mantendo ‑se glacial. Lágrimas geladas… Eis o oximoro que<br />

sustenta o teatro de Warlikowski. •<br />

* Excerto de “Postface: Le théâtre écorché de Warlikowski”. In Théâtre<br />

écorché. Ouvrage conçu et réalisé par Piotr Gruszczyński. Arles: Actes<br />

Sud; [Bruxelles]: La Monnaie, impr. 2007. p. 188 ‑190.<br />

Trad. Regina Guimarães.<br />

Visniec (Zatrudnimy starego clowna, 1996), Witold<br />

Gombrowicz (Tancerz mecenasa Kraykowskiego,<br />

1997), Sarah Kane (Purificados, 2001) ou Andrew<br />

Bovell (Droomsporen, 2003). Estreia ‑se na<br />

encenação de óperas <strong>no</strong> a<strong>no</strong> de 2000, com The<br />

Music Programme, de Roxanna Panufnik, a que<br />

se seguiram Don Carlo, de Verdi (2000), Tattooed<br />

Tongues, de Martjin Padding (2001), Ubu Rex, de<br />

Krzysztof Penderecki (2003), Wozzeck, de Alban<br />

Berg (2006), Ifigénia em Táurida, de Gluck (2006),<br />

O Caso Makropulos, de Leoš Janácek (2007), Eugene<br />

Onegin, de Tchaikovski (2007), Parsifal, de Wagner<br />

(2008), e Medeia, de Cherubini (2008). Dos seus<br />

trabalhos teatrais mais recentes, destaque para<br />

Dybuk, a partir de textos de Sholem An ‑Ski e Hanna<br />

Krall (2003), Madame de Sade, de Yukio Mishima<br />

(2006), e Anjos na América, de Tony Kushner (2007).<br />

O Sindicato Francês da Crítica Teatral distinguiu<br />

Purificados, em 2002, como Melhor Peça Estrangeira.<br />

Recebeu recentemente, na cidade grega de Salónica,<br />

o prestigiado Prémio Europa, na categoria Novas<br />

Realidades Teatrais 2008. •<br />

Wrocławski Teatr Współczesny<br />

(Wrocław, Polónia)<br />

A actividade artística do Wrocławski Teatr<br />

Współczesny (WTW) [<strong>Teatro</strong> Contemporâneo<br />

de Wrocław] desenvolve ‑se – desde Janeiro de<br />

1999, altura em que Krystyna Meissner assumiu a<br />

Direcção Geral e Artística – em tor<strong>no</strong> de dois eixos<br />

programáticos: a produção e acolhimento, nas<br />

suas duas salas, de obras do repertório clássico<br />

e contemporâneo, e a organização do festival<br />

internacional de teatro DIALOG ‑WROCŁAW, de<br />

periodicidade bienal.<br />

A “contemporaneidade” inscrita <strong>no</strong> seu <strong>no</strong>me<br />

significa, antes de mais, uma vontade de pensar<br />

a arte como um meio de estimular a formação de<br />

um juízo crítico sobre a realidade circundante. É<br />

com esta postura que o WTW tem vindo a marcar<br />

uma presença, forte e distinta, na vida cultural da<br />

Baixa Silésia, bem como na cena polaca e europeia.<br />

A criação de espectáculos que combinam teatro<br />

e música, a montagem de peças especialmente<br />

pensadas para um público jovem, as releituras<br />

contemporâneas de clássicos e as corajosas<br />

apresentações de estreias polacas e mundiais são<br />

alguns dos traços que definem a sua “especificidade<br />

teatral”. O WTW trabalha com encenadores de<br />

diferentes gerações e nacionalidades, e estimula<br />

muitas co ‑produções com instituições nacionais e<br />

internacionais.<br />

Foi <strong>no</strong> WTW que Krzysztof Warlikowski dirigiu<br />

dois dos seus mais emblemáticos espectáculos<br />

(Purificados, 2001; Dybuk, 2003). Foi também<br />

aqui que Paweł Szkotak fez a sua estreia <strong>no</strong> teatro<br />

institucional, com Pod drzwiami, de Wolfgang<br />

Borchert (2000), e que Piotr Cieplak prosseguiu<br />

o seu diálogo com a herança bíblica (Historia<br />

Jakuba/A História de Jacob, 2001; Ksiega Hioba/<br />

O Livro de Job, 2004), dando assim continuidade<br />

à grande tradição do WTW, herdeira do trabalho<br />

desenvolvido por <strong>no</strong>mes como Jerzy Jarocki, Helmut<br />

Kajzar e Tadeusz Rózewicz. •

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