Dossier | Atelier 200 - Teatro Nacional São João no Porto
Dossier | Atelier 200 - Teatro Nacional São João no Porto
Dossier | Atelier 200 - Teatro Nacional São João no Porto
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<strong>Teatro</strong> <strong>Nacional</strong> <strong>São</strong> <strong>João</strong><br />
Praça da Batalha<br />
4000-102 <strong>Porto</strong><br />
T 22 340 19 00<br />
www.tnsj.pt<br />
geral@tnsj.pt<br />
<strong>Atelier</strong><br />
<strong>200</strong><br />
Oficina/Leitura encenada<br />
direção Cristina Carvalhal, Nu<strong>no</strong> Cardoso,<br />
Nu<strong>no</strong> M Cardoso, Victor Hugo Pontes<br />
realização vídeo <strong>João</strong> Tuna<br />
produção TNSJ para a União dos <strong>Teatro</strong>s da Europa<br />
sáb 9:30 ‑13:00 – 14:30 ‑19:00<br />
dom 13:30 ‑20:00<br />
1<br />
<strong>Teatro</strong><br />
<strong>Nacional</strong><br />
<strong>São</strong> <strong>João</strong><br />
27+28<br />
Out<br />
2012
Em As Troianas (415 a.C.), começamos por avistar as ruínas<br />
fumegantes da cidade de Tróia, mas avistamos também o conhecido<br />
aforismo de Platão, que lhe poderia servir ainda hoje de epígrafe:<br />
“Só os mortos conhecem o fim da guerra”. Em <strong>Atelier</strong> <strong>200</strong>, projeto<br />
de envolvimento da comunidade com o universo teatral, um grupo<br />
de cidadãos reúne ‑se para uma leitura encenada de excertos desta<br />
tragédia de Eurípides e da versão que Jean‑Paul Sartre assi<strong>no</strong>u em<br />
1965, formando um coro expandido, sem protagonistas. Duzentas<br />
vozes orquestradas por quatro encenadores – Cristina Carvalhal,<br />
Nu<strong>no</strong> Cardoso, Nu<strong>no</strong> M Cardoso e Victor Hugo Pontes –, a que se<br />
junta o videasta <strong>João</strong> Tuna, que registará o evento. Concebido em<br />
2010 pelo MC93 Bobigny (França), <strong>Atelier</strong> <strong>200</strong> chega este a<strong>no</strong>, com o<br />
patrocínio da UTE, a cinco outros teatros europeus: Schauspielhaus<br />
Graz (Áustria), <strong>Teatro</strong> di Roma (Itália), <strong>Teatro</strong> ‑Laboratório Sfumato<br />
(Bulgária), Maxim Gorki Theater (Alemanha) e TNSJ (Portugal).<br />
O resultado destas oficinas, todas elas a trabalhar a partir de textos<br />
diferentes, será apresentado publicamente <strong>no</strong> final do a<strong>no</strong> sob a<br />
forma de uma instalação vídeo, de onde emergirá um coro de 1<strong>200</strong><br />
pessoas. Uma comunidade cívica capaz de interpelar a Europa a<br />
uma só voz. O teatro também serve para isto.
9:30<br />
10:00<br />
11:00<br />
13:00<br />
14:30<br />
16:00<br />
16:30<br />
19:00<br />
13:30<br />
14:00<br />
16:30<br />
17:00<br />
19:30<br />
20:00<br />
PLANO DE TRABALHO<br />
27 Out 2012<br />
sáb 9:30 ‑13:00 – 14:30 ‑19:00<br />
Acolhimento, distribuição de documentação<br />
e preparação dos participantes<br />
Apresentação, por Nu<strong>no</strong> Carinhas, do programa,<br />
dos encenadores e da peça As Troianas de Eurípides<br />
Início do trabalho com o encenador Victor Hugo Pontes<br />
Pausa para almoço<br />
Continuação do trabalho com o encenador<br />
Victor Hugo Pontes<br />
Pausa<br />
Início do trabalho com o encenador Nu<strong>no</strong> Cardoso<br />
Final do primeiro dia de trabalho<br />
28 Out 2012<br />
dom 13:30 ‑20:00<br />
Receção<br />
Início do trabalho com a encenadora Cristina Carvalhal<br />
Pausa<br />
Início do trabalho com o encenador Nu<strong>no</strong> M Cardoso<br />
Conclusão<br />
Despedida<br />
3
As Troianas de Eurípides/Jean ‑Paul Sartre<br />
Excertos selecionados por victor hugo pontes*<br />
Cena III<br />
hécuba, depois as troianas.<br />
hécuba<br />
(Tentando levantar-se.)<br />
De pé,<br />
pobre velha!<br />
Endireita a cabeça.<br />
A sorte desandou: aprende a ter paciência.<br />
De que valem lamentações?<br />
Para quê remar contra a maré?<br />
À deriva! À deriva!<br />
Se o desti<strong>no</strong> te leva: deixa‑te levar.<br />
(Falta-lhe a coragem. Deixa de procurar convencer-se.)<br />
Não posso resignar‑me.<br />
Dor, ó minha dor,<br />
não há uma dor <strong>no</strong> mundo que não seja minha!<br />
Rainha, fui esposa dum Rei.<br />
Dei‑lhe os mais belos filhos:<br />
a lança grega os matou, um a um.<br />
E Príamo, meu marido, meu Rei,<br />
eu estava lá quando o degolaram<br />
sobre os degraus do altar;<br />
vi a sua garganta aberta<br />
e o sangue que dela brotava.<br />
As minhas filhas, criei‑as eu<br />
para os maiores Reis da Ásia:<br />
irão servir na Europa<br />
pérfidos senhores.<br />
Ó minha raça,<br />
vela, enfunada de glória, estalando ao Sol,<br />
o vento cessa e tu desabas.<br />
Eras apenas vento.<br />
(Pausa.)<br />
Falo demasiado, mas não posso calar‑me<br />
e o silêncio não vale mais do que as palavras.<br />
Chorar? Já não tenho lágrimas.<br />
Pudesse deitar o meu corpo sobre a terra<br />
e cumprir o meu luto sem rumor,<br />
rolando dum lado para o outro,<br />
como um barco na tempestade.<br />
4
(Vai a deixar-se cair <strong>no</strong> chão mas sustém-se e levanta-se.)<br />
Não.<br />
Os desgraçados estão sós <strong>no</strong> mundo,<br />
mas resta‑lhes uma voz para cantar.<br />
Cantarei.<br />
Navios, belos navios,<br />
há dez a<strong>no</strong>s<br />
qual era o vosso rumo?<br />
Os remadores esforçavam‑se,<br />
as proas fendiam o mar violeta,<br />
de porto em porto,<br />
qual era o vosso rumo?<br />
Buscar a Grega infiel,<br />
Helena, esposa de Menelau,<br />
e trazer a morte aos Troia<strong>no</strong>s.<br />
Navios, belos navios,<br />
chegados aos <strong>no</strong>ssos portos,<br />
homens de ferro saltaram de vossas pontes.<br />
Há dez a<strong>no</strong>s. Há dez a<strong>no</strong>s.<br />
Hoje, ides de <strong>no</strong>vo partir<br />
e convosco me levais, a mim, a Avó,<br />
com o rosto devastado, a cabeça rapada,<br />
servirei outro senhor.<br />
Seria necessário massacrar o meu povo,<br />
mergulhar as mulheres <strong>no</strong> pesado luto,<br />
precipitar‑me a mim na abjecção<br />
pela glória de levardes aos Gregos<br />
a vergonha da Grécia?<br />
(Bate as mãos.)<br />
De pé!<br />
Viúvas troianas, virgens de Tróia,<br />
<strong>no</strong>ivas dos mortos,<br />
olhai estas pedras que fumegam e enegrecem,<br />
olhai‑as pela última vez<br />
e lamentemos a <strong>no</strong>ssa sorte.<br />
(O primeiro coro sai das tendas.)<br />
o corifeu<br />
Os teus gritos trespassaram a tela<br />
das <strong>no</strong>ssas tendas,<br />
e o medo, rasgando o <strong>no</strong>sso peito,<br />
chegou aos <strong>no</strong>ssos corações.<br />
Que <strong>no</strong>s queres dizer, Hécuba?<br />
5
hécuba<br />
Olhai os barcos na baía.<br />
uma mulher<br />
Os Gregos içaram as velas.<br />
uma outra<br />
Vejo homens que levam remos.<br />
todas<br />
Vão partir.<br />
o corifeu<br />
(Voltando-se para as tendas.)<br />
Vinde conhecer a vossa sorte.<br />
Os Gregos preparam o regresso.<br />
Deixai as tendas, desgraçadas, vinde todas!<br />
hécuba<br />
Não! Todas não.<br />
Todas, excepto Cassandra!<br />
Impedi‑a de sair: está louca.<br />
Poupai‑me, pelo me<strong>no</strong>s, a maior das dores:<br />
corar diante dos Gregos.<br />
uma mulher<br />
Que vão eles fazer‑<strong>no</strong>s?<br />
Matar‑<strong>no</strong>s aqui mesmo?<br />
outra mulher<br />
Arrancar‑vos à <strong>no</strong>ssa terra,<br />
levar‑<strong>no</strong>s sobre as águas?<br />
hécuba<br />
Apenas sei uma coisa:<br />
o pior será certo.<br />
(Fala consigo.)<br />
Escrava.<br />
De quem? Onde?<br />
Em Argos? Em Ftia?<br />
Numa ilha do mar?<br />
Velha miserável<br />
mais morta do que viva,<br />
inútil abelha num enxame alheio,<br />
para que posso eu servir?<br />
Ficarei dia e <strong>no</strong>ite diante duma porta,<br />
6
ou então guardarei crianças,<br />
ou farei, talvez, o pão.<br />
Farrapo, ó meu triste corpo,<br />
te cobrirão de farrapos,<br />
dormirás na terra nua.<br />
(Pausa.)<br />
E eu era a Rainha de Tróia!<br />
uma mulher<br />
Se voltar a fazer correr a minha lançadeira<br />
não será nunca mais <strong>no</strong>s teares de Ida.<br />
outra mulher<br />
Já não tenho família, a minha casa ardeu.<br />
Vejo as paredes queimadas pelo fogo<br />
e sei que pela última vez as vejo.<br />
Ai, ai, ai, ai!<br />
o corifeu<br />
Cala‑te!<br />
Não gastes a paciência.<br />
Piores sofrimentos estão ainda para vir.<br />
uma mulher<br />
Há sofrimentos maiores?<br />
outra mulher<br />
Sim. Talvez um Grego uma <strong>no</strong>ite<br />
te meta à força na cama.<br />
a primeira<br />
Essa <strong>no</strong>ite maldigo‑a já<br />
pelo horror que nas suas trevas oculta.<br />
uma mulher<br />
Desenraizada.<br />
Arrancada à Ásia,<br />
terei de viver e morrer na Europa.<br />
Isto é: <strong>no</strong> Infer<strong>no</strong>.<br />
outra mulher<br />
Talvez venha a ser aguadeira.<br />
outra mulher<br />
Se me coubesse em sorte<br />
ser escrava na Ática,<br />
7
ou na terra fecunda do Peneu<br />
aos pés do Olimpo!<br />
Dizem que é bom viver ali,<br />
mesmo como escrava.<br />
uma mulher<br />
Tudo, me<strong>no</strong>s as margens detestadas do Eurotas.<br />
Aí, verei Helena triunfante<br />
e terei de obedecer a Menelau,<br />
o carrasco de Tróia.<br />
o corifeu<br />
Atenção! Vem alguém!<br />
os outros<br />
Quem?<br />
o corifeu<br />
Um Grego. Como ele corre!<br />
Vem anunciar‑<strong>no</strong>s o <strong>no</strong>sso desti<strong>no</strong>.<br />
Pronto. Tudo está decidido.<br />
Ainda não deixámos a <strong>no</strong>ssa terra<br />
e já lá longe,<br />
sobre a terra dória,<br />
somos escravos.<br />
Cena VI<br />
hécuba, o coro.<br />
o corifeu<br />
Hécuba!<br />
Caiu sem um grito. Como podeis abandoná‑la?<br />
É ainda a Rainha<br />
Levantai‑a!<br />
(As mulheres levantam-na.)<br />
hécuba<br />
Não desejava a vossa ajuda<br />
e não a agradeço.<br />
Queria abraçar estreitamente a terra<br />
e confundir‑me com o inconsciente inerte.<br />
Porque nós estamos inertes, entendeis?<br />
Nada mais podemos fazer a não ser<br />
esperar e sofrer.<br />
Inertes, mas conscientes, infelizmente!<br />
8
coro<br />
Rainha, imploremos aos deuses!<br />
hécuba<br />
(Irritada.)<br />
Não!<br />
<strong>São</strong> aliados suspeitos.<br />
Calemo‑<strong>no</strong>s.<br />
coro<br />
O silêncio apavora.<br />
hécuba<br />
Então, deixemos as lamentações<br />
e lembremos o <strong>no</strong>sso último dia de felicidade.<br />
coro<br />
(Vozes alternadas.)<br />
Era ontem.<br />
O <strong>no</strong>sso último dia de ventura<br />
foi para Tróia o começo da morte.<br />
Do alto das muralhas, nessa manhã,<br />
vi a praia e o mar<br />
desertos a perder de vista:<br />
Os Gregos tinham queimado as tendas,<br />
a frota tinha desaparecido.<br />
Só, <strong>no</strong> meio da planície,<br />
havia um grande cavalo com quatro rodas,<br />
um cavalo de madeira<br />
com arreios de ouro cintilante.<br />
Todo o povo troia<strong>no</strong>,<br />
em pé, sobre a rocha da cidadela,<br />
gritava: “A guerra acabou, foram‑se embora;<br />
– os Gregos levantaram o cerco<br />
– acabaram os <strong>no</strong>ssos sofrimentos:<br />
colocai o ídolo de madeira na <strong>no</strong>ssa Acrópole!<br />
Consagrá‑lo‑emos a Palas Atena,<br />
a <strong>no</strong>bre filha de Zeus<br />
que <strong>no</strong>s perdoou”.<br />
Toda a gente gritava e cantava<br />
e se beijava nas ruas.<br />
Os velhos e as virgens,<br />
nas ombreiras das portas,<br />
perguntavam: “Que aconteceu?”<br />
e nós respondíamos: “É a paz”.<br />
Ataram‑se cordas ao ídolo<br />
para o içar até ao templo de Atena.<br />
Eu ajudei, como todos.<br />
9
Empurrei, puxei, esforcei‑me.<br />
O trabalho acabou ao fim do dia,<br />
e toda a <strong>no</strong>ite cantámos vitória<br />
ao som de flautas lídias,<br />
e depois, uma a uma, se apagaram,<br />
nas casas, as candeias brilhantes,<br />
e as tochas fumegantes nas ruas.<br />
Nós, esgotados pela alegria,<br />
cantávamos ainda <strong>no</strong> escuro,<br />
em voz baixa: a paz! a paz!<br />
Assim acabou o último dia de Tróia,<br />
o <strong>no</strong>sso último dia de ventura!<br />
o corifeu<br />
Não há pior mentira do que a felicidade.<br />
Fascina na aparência<br />
e não deixa ver a besta imunda que oculta.<br />
Era meia‑<strong>no</strong>ite, as casas ainda repercutiam<br />
os <strong>no</strong>ssos cantos,<br />
quando,<br />
do alto da cidade,<br />
até ao último casebre da cidade baixa<br />
o grito de morte<br />
irrompeu.<br />
Era a guerra<br />
e Palas não tinha perdoado.<br />
Os Gregos, saídos do seu esconderijo,<br />
degolavam os homens e as crianças<br />
do sexo masculi<strong>no</strong>.<br />
Acabara‑se o último dia de ventura.<br />
Começava o primeiro dia do <strong>no</strong>sso fim.<br />
hécuba<br />
Tróia não foi conquistada.<br />
Os Troia<strong>no</strong>s não foram vencidos.<br />
Uma deusa,<br />
pérfida e rancorosa como uma mulher,<br />
os entregou.<br />
o corifeu<br />
Rainha, olha. Um carro!<br />
(hécuba fica imóvel.)<br />
10
As Troianas de Eurípides<br />
Excertos selecionados por nu<strong>no</strong> cardoso**<br />
I<br />
hécuba<br />
Deixai‑me ficar aqui tombada. Sofro, sofri e sofrerei ainda<br />
dores merecedoras de tais quedas. Da régia família que era,<br />
numa casa real me casei. E dessa união gerei filhos. Nenhuma<br />
mulher troiana, helena ou bárbara poderia gabar‑se de ter<br />
criado outros assim. E a esses, vi‑os cair sob a lança dos<br />
Gregos, e este meu cabelo cortei‑o ante a sepultura desses<br />
mortos. Ao criador desta raça, a Príamo, chorei‑o, porque o vi<br />
degolado <strong>no</strong> altar doméstico; e vi a cidade destruída. As jovens<br />
que criei para as honras do himeneu com homens valorosos,<br />
criei‑as para outros, que das mãos me arrancaram. Já não resta<br />
esperança de ser por elas vista, nem eu jamais poderei tornar<br />
a vê‑las. Já velha, parto para a Grécia, como escrava. Ah!<br />
Desgraçada de mim! Por causa das núpcias de uma só mulher,<br />
quantas desgraças sofri, e quantas sofrerei!<br />
11
As Troianas de Eurípides/Jean ‑Paul Sartre<br />
Excertos selecionados por nu<strong>no</strong> cardoso*<br />
ii<br />
Cena VII<br />
hécuba, o coro, andrómaca, uma mulher.<br />
uma mulher<br />
Olha, repara. É Andrómaca, a tua <strong>no</strong>ra,<br />
a mulher de teu filho Heitor.<br />
Traz Astianax <strong>no</strong>s braços.<br />
hécuba<br />
Desgraça! Ó desgraça!<br />
andrómaca<br />
Porque te lamentas?<br />
A desgraça é MINHA.<br />
hécuba<br />
É <strong>no</strong>ssa.<br />
andrómaca<br />
Não.<br />
hécuba<br />
Não sois meus filhos?<br />
andrómaca<br />
Éramos.<br />
hécuba<br />
Eu trago o luto de todos os meus filhos.<br />
andrómaca<br />
Eu apenas trago o luto de Heitor.<br />
hécuba<br />
Eu choro a <strong>no</strong>ssa cidade em chamas.<br />
andrómaca<br />
Eu choro a cidade de Heitor.<br />
hécuba<br />
Choro a <strong>no</strong>ssa casa real.<br />
andrómaca<br />
E eu a casa onde me tornei mulher<br />
12
e onde nasceu Astianax.<br />
hécuba<br />
Ela arde, ela arde, ela se desmorona.<br />
Tudo vai desaparecer.<br />
andrómaca<br />
Por tua causa.<br />
Deste a vida a Páris, o aventureiro.<br />
Os deuses sabiam que era um monstro.<br />
Ordenaram‑te que o matasses.<br />
Tu não o fizeste. És castigada.<br />
E nós, i<strong>no</strong>centes,<br />
sem partilhar do teu erro,<br />
partilhamos do teu castigo.<br />
Podes orgulhar‑te: por amor duma mulher<br />
teu filho fez cair Tróia.<br />
Palas ri de alegria:<br />
aos pés de sua estátua<br />
jazem os cadáveres dos <strong>no</strong>ssos;<br />
sobre a Acrópole<br />
volteiam os abutres,<br />
e nós somos escravas!<br />
hécuba<br />
(Aterrada, esconde o rosto nas mãos.)<br />
Príamo, meu esposo, meu Senhor,<br />
sai do Hades,<br />
diz‑lhe que mente! Vem proteger‑me.<br />
andrómaca<br />
Heitor, meu homem de braços fortes<br />
que te sacrificaste por nada,<br />
<strong>no</strong>bre vítima dos crimes de teu irmão,<br />
vem salvar‑me,<br />
ou vingar‑me.<br />
(Contém-se. Mais docemente, mas sem ternura.)<br />
Polixena morreu.<br />
hécuba<br />
Morta!<br />
Morta! Como?<br />
andrómaca<br />
Degolada sobre o túmulo de Aquiles.<br />
13
(Pausa.)<br />
Vi seu corpo, saí do carro<br />
para o cobrir com o meu véu negro.<br />
hécuba<br />
Degolada sobre um túmulo,<br />
como uma cabra,<br />
como um boi.<br />
Morte infame!<br />
andrómaca<br />
Infame, não.<br />
Morreu, é tudo.<br />
Eu sou mais infeliz porque estou viva.<br />
hécuba<br />
Que dizes, minha filha?<br />
A morte é o vazio – tu bem o sabes.<br />
Na vida mais miserável<br />
há pelo me<strong>no</strong>s a esperança.<br />
andrómaca<br />
Que raiva de viver!<br />
E sabes que perdeste tudo:<br />
os teus filhos morreram<br />
e o teu ventre é demasiado velho<br />
para gerar outros.<br />
Não. Não há mais esperança. Melhor assim.<br />
Não te agarres às tábuas podres.<br />
Abandona‑te; sofrerás me<strong>no</strong>s.<br />
A morte é o vazio, é verdade.<br />
E o vazio: a calma eterna.<br />
Eu sofro e sei.<br />
Vivia apenas para bem desempenhar<br />
o meu papel de mulher e de mãe.<br />
Eu sabia oferecer ao meu Heitor<br />
uns olhos calmos<br />
e uma presença silenciosa.<br />
Apenas desejava<br />
para ele a felicidade<br />
e, para mim, o <strong>no</strong>me de esposa perfeita.<br />
Foi a minha glória que me perdeu!<br />
A fama da minha virtude chegou aos Gregos;<br />
o assassi<strong>no</strong> de Heitor tem um filho, Neoptólemo,<br />
que me exige para o seu leito.<br />
Não quero. Não suporto<br />
que a face amada se apague da minha memória.<br />
14
Sinto <strong>no</strong>jo<br />
por aquele que macular<br />
as primeiras lembranças da sua carne.<br />
Heitor, eu amava‑te, amo‑te;<br />
nunca conheci outro homem.<br />
Amava a tua força, a tua coragem,<br />
a tua sabedoria,<br />
amava as tuas mãos <strong>no</strong> meu corpo.<br />
Impede‑me de gemer <strong>no</strong>utras mãos.<br />
Ah! feliz Polixena,<br />
assassinada<br />
mas virgem;<br />
leva‑me, esconde‑me,<br />
o meu corpo causa‑me horror e piedade!<br />
(A hécuba.)<br />
Mentes! A vida é esperança, dizes tu?<br />
Eu vivo<br />
e a esperança morreu<br />
porque sei o que me espera.<br />
hécuba<br />
Heitor morreu, minha filha,<br />
as tuas lágrimas não lhe darão vida.<br />
Esquece‑o.<br />
Com as mesmas virtudes que ele amava,<br />
e de que te orgulhas,<br />
tenta agradar ao teu <strong>no</strong>vo marido.<br />
andrómaca<br />
És tu, a velha,<br />
tu, a mãe de Heitor,<br />
que me dás conselhos de alcoviteira?<br />
hécuba<br />
Faz o que te aconselho pelo teu filho,<br />
por Astianax, filho do meu filho,<br />
príncipe de Tróia e último da sua raça,<br />
para que um dia, para ele ou para os seus filhos,<br />
esta cidade morta renasça e <strong>no</strong>s vingue.<br />
O desti<strong>no</strong> da <strong>no</strong>ssa família está nas tuas mãos.<br />
(Entra taltíbio.)<br />
15
Cena VIII<br />
Os mesmos, taltíbio.<br />
taltíbio<br />
(Vai junto de andrómaca.)<br />
Não me odeies.<br />
andrómaca<br />
Porquê?<br />
taltíbio<br />
Sou apenas um mensageiro.<br />
Comunico‑te, contrariado,<br />
a <strong>no</strong>va decisão dos meus senhores.<br />
andrómaca<br />
Sê claro.<br />
Parece que tens medo de falar.<br />
taltíbio<br />
O teu filho…<br />
andrómaca<br />
Separam‑<strong>no</strong>s?<br />
taltíbio<br />
Sim, de certa maneira…<br />
andrómaca<br />
Não teremos o mesmo senhor?<br />
taltíbio<br />
Ele não terá senhor.<br />
andrómaca<br />
Abandoná‑lo‑eis aqui?<br />
taltíbio<br />
Queria preparar‑te.<br />
andrómaca<br />
Não quero saber dos teus escrúpulos.<br />
Vamos, servo, despacha‑te!<br />
taltíbio<br />
Vão matá‑lo.<br />
16
(Silêncio. andrómaca aperta o filho contra ela e olha-o.<br />
taltíbio continua precipitadamente.)<br />
Foi Ulisses.<br />
(Pausa.)<br />
andrómaca<br />
Meu pequeni<strong>no</strong>,<br />
vais deixar‑me.<br />
Vais morrer. Sabes porquê?<br />
O teu pai foi demasiado grande,<br />
as suas virtudes serão a causa da tua morte.<br />
(Bruscamente.)<br />
Sai da terra, Heitor, retoma a tua lança.<br />
Massacra‑os. Salva o teu filho!<br />
(Pausa.)<br />
Ele não virá,<br />
está morto.<br />
Estamos sozinhos<br />
os dois, meu tesouro;<br />
não sou suficientemente forte<br />
e não poderei resistir‑lhes muito tempo.<br />
Vão pegar em ti,<br />
vão lançar‑te do alto das muralhas,<br />
de cabeça para baixo. (Um grito.) Ah!<br />
(Pausa.)<br />
Corpo, corpo querido,<br />
tu ainda vives<br />
e cheiras tão bem!<br />
(Beija-o.)<br />
Tinha orgulho ao dar‑te o meu leite.<br />
Se eu soubesse, ter‑te‑ia sufocado<br />
com as minhas mãos<br />
enquanto te beijava.<br />
Beija‑me,<br />
aperta‑me muito,<br />
cola a tua boca à minha.<br />
(Levanta-se.)<br />
17
Homens da Europa,<br />
vós desprezais a África e a Ásia<br />
e chamais‑<strong>no</strong>s bárbaros, creio.<br />
Mas quando a gloríola e a cupidez<br />
vos lançam contra nós,<br />
pilhais, torturais e massacrais.<br />
Quem são os bárbaros?<br />
E vós, Gregos, tão orgulhosos<br />
da vossa humanidade,<br />
onde estais?<br />
Eu vos digo: nem um só de nós<br />
ousaria fazer a uma mãe<br />
o que me fazeis a mim<br />
com a calma da boa consciência.<br />
(Violentamente.)<br />
Bárbaros! Bárbaros!<br />
Matais o meu filho por causa duma prostituta.<br />
(Os soldados arrancam-lhe o filho.)<br />
Que vergonha para mim: não ter forças para<br />
proteger um filho.<br />
Malditos sejam os filhos de Ulisses.<br />
(Levam andrómaca.)<br />
Cena IX<br />
hécuba, o coro.<br />
(Ao amanhecer.)<br />
coro<br />
(Depois duma pausa.)<br />
A Aurora!<br />
Pela segunda vez ela ilumina<br />
a <strong>no</strong>ssa cidade em chamas.<br />
Pela segunda vez<br />
ela ilumina, nas <strong>no</strong>ssas margens,<br />
os invasores vindos da Grécia<br />
para devastar o <strong>no</strong>sso país.<br />
Há muito <strong>no</strong>s invejavam<br />
as gentes da Europa.<br />
Odiavam há muito a <strong>no</strong>ssa raça<br />
e chamavam‑<strong>no</strong>s selvagens,<br />
eles, que não têm piedade.<br />
Já uma vez a sua frota ancorara<br />
nas <strong>no</strong>ssas baías.<br />
18
Já uma vez as <strong>no</strong>ssas muralhas haviam<br />
sido queimadas<br />
e o rei de Tróia caíra sob os seus golpes.<br />
Mas, apesar disso, partiram<br />
sem conquistar as <strong>no</strong>ssas províncias.<br />
Nesse tempo,<br />
éramos queridos dos deuses.<br />
As muralhas se reconstruiram<br />
e a prosperidade depressa voltou<br />
porque os deuses <strong>no</strong>s abençoaram.<br />
Aurora, doce Aurora.<br />
Eis‑te, como ontem e como amanhã,<br />
leve e alegre.<br />
Os Gregos voltaram,<br />
as <strong>no</strong>ssas casas ardem.<br />
Os <strong>no</strong>ssos homens morreram.<br />
À roda das covas, onde<br />
amontoaram os seus cadáveres,<br />
volteamos<br />
como grandes aves de luto.<br />
Mas a tua bela luz suave,<br />
gentilmente acaricia<br />
as ruínas e os charcos de sangue.<br />
(Pausa.)<br />
Chegou o fim.<br />
A Aurora está horrivelmente bela<br />
e os deuses abandonaram‑<strong>no</strong>s.<br />
19
As Troianas de Eurípides<br />
Excertos selecionados por cristina carvalhal **<br />
poséidon<br />
Sou eu, Poséidon, que aqui venho, deixadas as profundezas<br />
salgadas do Mar Egeu, onde os coros das Nereides rodopiam<br />
em suas formosas danças. Desde o tempo em que em volta<br />
desta terra troiana Febo e eu dispusemos, com medida certa,<br />
as suas pétreas muralhas, não mais saiu do meu espírito o<br />
bem‑querer à cidade dos Frígios. Mas ei‑la agora fumegante:<br />
destruiu‑a a argiva lança, que foi a sua perdição.<br />
Desertos, os bosques sagrados e os templos dos deuses escorrem<br />
sangue; perto dos degraus da base do altar de Zeus, protector<br />
do lar, Príamo tombou morto. Ouro em abundância e despojos<br />
frígios são carregados para as naus dos aqueus. Só aguardam<br />
o vento de popa para, enfim passado o tempo de dez colheitas,<br />
reverem mulheres e filhos com alegria – eles, os Hele<strong>no</strong>s, os que<br />
marcharam contra a cidade de Tróia aqui presente.<br />
Quanto a mim, já que sou vencido pela deusa de Argos, Hera,<br />
e por Atena, que, em conjunto, ajudaram a derrotar os Frígios,<br />
vou abandonar a ilustre Ílion e os altares que me pertencem,<br />
pois, quando a desgraça da devastação se apodera de uma<br />
cidade, o culto dos deuses é afectado, e não quer aceitar<br />
honrarias.<br />
Louco entre os mortais é aquele que arrasar cidades, templos<br />
e túmulos, lugares consagrados dos que já partiram. Quem os<br />
devastar, mais tarde há‑de perecer por sua vez.<br />
coro a<br />
Ai! Ai! Ai! Ai!<br />
hécuba<br />
Levanta‑te, desventurada! Ergue do solo<br />
a cabeça e o colo! O que aqui está<br />
já não é Tróia, nem eu sou de Tróia a rainha.<br />
Aguenta a mudança da fortuna!<br />
coro b<br />
Ruma por onde puderes passar, ruma de acordo com a sorte,<br />
não voltes a proa do barco da vida<br />
contra as vagas, quando navegas ao sopro do desti<strong>no</strong>.<br />
mulher 1<br />
Pois porque não há‑de gemer esta infeliz,<br />
A quem foge a pátria, os filhos, o esposo?<br />
20
hécuba<br />
Que hei‑de eu calar? Que hei‑de não calar?<br />
Que hei‑de chorar?<br />
Dói‑me o corpo de jazer nesta desgraça.<br />
coro a<br />
Ai! Minha cabeça! Ai! Minhas fontes<br />
e meus flancos!<br />
hécuba<br />
Levam como escrava esta anciã<br />
para fora de casa, os cabelos devastados,<br />
em sinal de luto, de causar dó.<br />
Mas vós, esposas desditosas<br />
dos Troia<strong>no</strong>s de brônzeas lanças,<br />
e vós, donzelas que não tereis desposórios,<br />
Ílion está a fumegar! Clamemos!<br />
mulher 1<br />
Hécuba, que dizes?<br />
mulher 2<br />
Porque gritas assim?<br />
mulher 3<br />
A que se refere a tua fala? No meu reduto ouvi os gemidos que<br />
soltaste.<br />
coro masculi<strong>no</strong><br />
Dardeja o medo <strong>no</strong> peito das Troianas<br />
que, dentro destas tendas,<br />
choram a sua escravidão.<br />
hécuba<br />
Filhas, encaminham‑se já para as naus<br />
Os remadores dos Gregos.<br />
coro a<br />
Ai! Que querem fazer? Irão já<br />
levar‑me por mar, para longe da pátria terra?<br />
hécuba<br />
Não sei. Mas parece‑me ser essa a <strong>no</strong>ssa ruína.<br />
vozes<br />
Ai de mim! Ai de mim!<br />
21
coro masculi<strong>no</strong><br />
Desgraçadas, que ides ouvir, ó Troianas,<br />
de vossas tendas arrancadas, as penas futuras.<br />
Os Argivos preparam o regresso.<br />
hécuba<br />
Ai! Ai!<br />
Tróia, miserável Tróia derrubada,<br />
miseráveis são os que te deixam,<br />
vivos ou já prostrados.<br />
coro b<br />
Ai de mim! A tremer, deixei<br />
de Agamém<strong>no</strong>n as tendas, para te escutar,<br />
ó Rainha! É intento dos Argivos<br />
matar esta desgraçada?<br />
Ou será que os nautas em seus barcos<br />
se aprestam a mover os remos?<br />
mulher 1<br />
Veio já algum arauto dos Dânaos?<br />
coro a<br />
De quem serei, desventurada, a escrava?<br />
hécuba<br />
Perto estás da tiragem à sorte.<br />
coro b<br />
Ai! Ai!<br />
Quem, dentre os Argivos, levará<br />
esta desgraçada para a terra de Ftia<br />
ou para as ilhas, longe de Tróia?<br />
coro a<br />
Ai! Ai! Ai! Ai!<br />
Não mais farei passar de um lado a outro<br />
a lançadeira em teares troia<strong>no</strong>s.<br />
coro b<br />
Pela última vez, pela última, contemplo<br />
a mansão paterna.<br />
coro a<br />
Penas mais fortes sofrerei,<br />
ou porque me aproxime do leito de um Hele<strong>no</strong><br />
(maldita essa <strong>no</strong>ite e esse desti<strong>no</strong>!),<br />
ou porque vá buscar de Pirene as águas sagradas,<br />
22
como escrava miserável.<br />
coro b<br />
Quem dera que fôssemos para a ilustre,<br />
bem‑aventurada terra de Teseu!<br />
hécuba<br />
E nunca para os redemoinhos do Eurotas,<br />
morada mais que todas odiosa de Helena,<br />
onde, como escrava, encontraria Menelau,<br />
o destruidor de Tróia aqui presente.<br />
coro a<br />
Mas vejam! Aí vem o arauto do exército<br />
dos Dânaos, senhor de <strong>no</strong>vos discursos,<br />
pondo termo aos seus passos velozes.<br />
coro a e b<br />
Que traz ele? Que diz? É que do país dos Dórios<br />
somos escravas desde já.<br />
23
As Troianas de Eurípides/Jean ‑Paul Sartre<br />
Excerto selecionado por nu<strong>no</strong> m cardoso *<br />
Cena V<br />
Os mesmos (hécuba, as troianas, taltíbio). cassandra.<br />
cassandra<br />
Chama,<br />
chama leve,<br />
levanta‑te,<br />
dança<br />
viva e sagrada,<br />
ergue‑te orgulhosa sob o céu negro,<br />
dança em volta da minha tocha,<br />
sobe<br />
direita e ágil <strong>no</strong>s ares!<br />
Himen, Himeneu!<br />
Bendito seja o esposo.<br />
E a mim, virgem do Sol,<br />
futura esposa dum grande Rei,<br />
ó deuses<br />
abençoai‑me!<br />
(A hécuba.)<br />
Toma o facho, Mãe,<br />
conduz o cortejo.<br />
Mas que aconteceu? Quem choras?<br />
Ah! é verdade: meu pai e meus irmãos…<br />
Demasiado tarde: vou casar‑me.<br />
Alegria! Alegria! Lágrimas de alegria!<br />
Toma!<br />
(Estende a tocha a hécuba.)<br />
Não queres? Pois bem.<br />
Serei eu a levar o fogo.<br />
Himen, Himeneu!<br />
Um grego vai desposar‑me!<br />
Rainha da <strong>no</strong>ite,<br />
acende as tuas estrelas.<br />
Tantas tochas: tudo arde!<br />
Sinto‑me fascinada!<br />
Serão precisos mil sóis para me iluminar<br />
quando eu entrar, Virgem sagrada,<br />
<strong>no</strong> leito dum inimigo.<br />
Ergue‑te, chama minha,<br />
mais alto, mais alto,<br />
24
até ao céu.<br />
Evã, evoé.<br />
Este dia é mais belo<br />
que os mais belos dias do tempo de meu pai.<br />
Foibos, meu deus, conduz o coro.<br />
E tu, mãe, dança também.<br />
Vamos! A compasso!<br />
Dança para me agradares.<br />
Troianas,<br />
onde estão os vossos trajes de festa?<br />
É preciso gritar de alegria!<br />
Iu! Iu!<br />
Cantai comigo!<br />
Iu! Iu!<br />
o corifeu<br />
Segura, Rainha, segura a tua filha<br />
senão vai num salto<br />
direita à cama dum Grego.<br />
hécuba<br />
Dá‑me esse facho, Cassandra,<br />
não o levas direito.<br />
coro<br />
Delira;<br />
a desgraça não lhe fez voltar a razão.<br />
cassandra<br />
Julgam‑me doida!<br />
Ouve, Mãe:<br />
tens de te alegrar com as minhas bodas reais,<br />
e, se de repente a coragem me faltar,<br />
empurra‑me para os braços de Agamém<strong>no</strong>n;<br />
que ele me leve para Argos.<br />
Ali, o <strong>no</strong>sso grande leito nupcial<br />
será o seu leito de morte.<br />
Por Helena morreram milhares de Gregos<br />
diante das <strong>no</strong>ssas muralhas.<br />
Eu farei ainda pior.<br />
Cassandra será o seu flagelo.<br />
Vai morrer, o grande Rei, o bom Rei,<br />
por minha causa!<br />
Por minha causa, a sua casa ruirá.<br />
Destruirei a sua raça<br />
como ele destruiu a <strong>no</strong>ssa.<br />
Pára de chorar: chegou o tempo de rir!<br />
De rir às gargalhadas!<br />
25
Anuncio‑te que meu pai e meus irmãos<br />
serão vingados!<br />
hécuba<br />
Por ti?<br />
cassandra<br />
Por mim.<br />
hécuba<br />
Minha filha, pobre escrava sem forças,<br />
como poderás tu…<br />
cassandra<br />
O machado!<br />
Ali! Mesmo <strong>no</strong> meio da cabeça!<br />
Não serei eu a segurá‑lo,<br />
mas garanto‑te que ele morrerá,<br />
o Rei dos Reis!<br />
Oh! Como ele vai sangrar!<br />
(Com alegria.)<br />
A mim, cortam‑me o pescoço.<br />
Himen! Himeneu!<br />
(Pausa.)<br />
Muito tempo depois o filho matará<br />
sua mãe e fugirá<br />
corrido pelas cadelas.<br />
Ponto final <strong>no</strong>s Átridas! Nunca mais<br />
se falará deles.<br />
coro<br />
Cala‑te, Cassandra!<br />
Enches‑<strong>no</strong>s de vergonha,<br />
a tua mãe tem vergonha de ti.<br />
Diante dos Gregos, não, Cassandra!<br />
Diante dos vencedores, não!<br />
cassandra<br />
Para quê calar‑me?<br />
Repito o que me disse o Sol.<br />
Eu poderia…<br />
Não! É demasiado sujo.<br />
Tendes razão: calar‑me‑ei.<br />
26
(A hécuba.)<br />
Não chores.<br />
Os Gregos venceram; e depois?<br />
Vencida, incendiada, humilhada,<br />
a Tróia cabe a melhor parte.<br />
Nesta planície os <strong>no</strong>ssos inimigos caíram<br />
aos milhares.<br />
Era para defender as fronteiras<br />
ou as muralhas da sua cidade?<br />
Não. Morreram por nada, <strong>no</strong> estrangeiro,<br />
não mais viram os filhos, nem os pais,<br />
velhos cobardes que não souberam<br />
impedi‑los de partir.<br />
Para os Gregos nem sepultura<br />
nem libações funerárias!<br />
A terra troiana devorou‑os indistintamente<br />
e as mulheres jamais encontrarão os seus ossos.<br />
Outros – que talvez eles odiassem –<br />
lhes educarão os filhos.<br />
Miseráveis! Engolidos mas não sepultados,<br />
nem sequer fantasmas sois.<br />
Aqui, comidos pelos vermes;<br />
na Pátria, pelo esquecimento.<br />
Esquecidos. Aniquilados.<br />
Quanto aos vivos, Apolo contou‑me<br />
o que fazem as esposas<br />
e como Clitemnestra espera Agamém<strong>no</strong>n.<br />
Mas não o repetirei.<br />
Linda expedição!<br />
Para caçar uma infiel,<br />
deixaram as mulheres durante dez a<strong>no</strong>s<br />
e o adultério instalou‑se, tranquilo,<br />
em todas as casas da Grécia.<br />
(A taltíbio.)<br />
É a isto que chamais ganhar a guerra?<br />
Nós, nós perdemo‑la, é certo,<br />
mas não me envergonho.<br />
Nem um só morto<br />
caiu em terra estranha.<br />
Todos morreram defendendo a <strong>no</strong>ssa cidade.<br />
Enquanto vivos, todas as <strong>no</strong>ites,<br />
depois dos duros combates do dia,<br />
voltavam para junto de nós.<br />
Quando <strong>no</strong> campo de batalha<br />
as vossas lanças os trespassavam,<br />
27
mãos piedosas recolhiam os seus corpos.<br />
Aqui mesmo foram sepultados,<br />
com todas as honras, na terra dos antepassados.<br />
As suas mulheres puseram luto<br />
e Tróia inteira os chora.<br />
(A hécuba.)<br />
Agradece aos Gregos!<br />
Heitor era modesto e brando,<br />
foram eles que o obrigaram a ser Herói:<br />
com as suas próprias mãos matou tantos Gregos<br />
que os séculos futuros repetirão o seu <strong>no</strong>me.<br />
Glória aos defensores da Pátria!<br />
Mas os outros, os conquistadores,<br />
os que fazem uma guerra injusta e nela morrem,<br />
a morte é neles mais estúpida<br />
ainda do que a vida.<br />
(Para as troianas.)<br />
Levantai a cabeça e orgulhai‑vos,<br />
deixai comigo o cuidado de vingar<br />
os vossos homens;<br />
as minhas núpcias serão as perdas<br />
dos seus carrascos.<br />
uma mulher<br />
Gostaria de acreditar em ti,<br />
Cassandra!<br />
Invejo‑te esse riso de louca,<br />
esse ar de desafio.<br />
Mas olha para nós,<br />
olha para ti!<br />
Tu cantas, tu gritas,<br />
e de que vale isso?<br />
<strong>São</strong> apenas palavras.<br />
taltíbio<br />
Palavras que lhe custariam caro<br />
se ela não tivesse perdido a razão.<br />
(Para consigo.)<br />
É estranho! Veneramos os grandes,<br />
julgamo‑los sábios,<br />
e afinal não valem mais do que nós.<br />
O Rei poderosíssimo de Argos<br />
28
meteu‑se‑lhe na cabeça amar esta louca<br />
que eu, pobre diabo,<br />
nem por todo o ouro deste mundo quereria.<br />
Vamos, bela <strong>no</strong>iva, anda, segue‑me.<br />
Ri, chora ou resmunga:<br />
ouviste o que disseram as tuas companheiras!<br />
Palavras! Só palavras.<br />
(A hécuba.)<br />
Prepara‑te, virei buscar‑te<br />
logo que Ulisses me ordene.<br />
Terás um bom lugar, na <strong>no</strong>ssa terra,<br />
serás serva de Penélope,<br />
senhora muito honesta, segundo dizem.<br />
cassandra<br />
Serva?<br />
Não vejo aqui nenhum servo senão tu.<br />
Tu, lacaio de corte, impudente e servil!<br />
Sabes ao me<strong>no</strong>s o que estás a dizer?<br />
Minha mãe não irá para Ítaca.<br />
Apolo disse‑me que ela morrerá aqui.<br />
taltíbio<br />
O quê? Gostava de ver isso!<br />
Um suicídio punha‑me…<br />
cassandra<br />
Quem falou em suicídio?<br />
taltíbio<br />
E como queres tu…?<br />
cassandra<br />
Como? Como?<br />
Eu sei, mas não to direi.<br />
Quanto ao sábio Ulisses<br />
das falas subtis,<br />
pobre homem, nem imagina o que o espera.<br />
Dez a<strong>no</strong>s!<br />
Dez a<strong>no</strong>s semelhantes aos que<br />
acabamos de viver,<br />
cheios de lama, cheios de sangue,<br />
antes que volte a encontrar Ítaca.<br />
Tudo está preparado. Esperam‑<strong>no</strong> <strong>no</strong> Mar.<br />
Primeiro Ciclope, gigante canibal,<br />
que, do alto do rochedo, espreita a carne fresca.<br />
29
Circe, que muda os homens em porcos,<br />
os comedores de lótus,<br />
e Caribidis e Cila, rochedos mortais.<br />
Que belas coisas ele vai conhecer!<br />
Oh! o gosto dos naufrágios,<br />
como ele o vai saborear!<br />
Escapará, por milagre, à morte,<br />
descerá finalmente aos Infer<strong>no</strong>s,<br />
onde os <strong>no</strong>ssos – podeis ter<br />
a certeza – o esperam.<br />
Como ele vai sofrer!<br />
Por mais de uma vez juro‑vos, Troianas,<br />
há‑de invejar as vossas desgraças.<br />
(Como se estivesse a ver.)<br />
Finalmente, volta do Hades<br />
e quando põe o pé na sua ilha,<br />
o seu lugar está ocupado.<br />
(A sua exaltação profética esvai-se.)<br />
Porquê falar de Ulisses,<br />
que tenho eu a ver com ele?<br />
(A taltíbio.)<br />
Por que esperas?<br />
Tenho pressa em unir‑me ao meu <strong>no</strong>ivo<br />
para o melhor e para o pior.<br />
Não: sempre para o pior.<br />
Himen, Himeneu!<br />
O <strong>no</strong>sso casamento será o infer<strong>no</strong>.<br />
Rei dos reis,<br />
generalíssimo,<br />
não esperes um enterro à luz do dia.<br />
A <strong>no</strong>ite te engolirá; nem visto, nem achado.<br />
Lançarão teu corpo numa ravina,<br />
Himen, Himeneu,<br />
junto ao meu cadáver nu,<br />
e os abutres <strong>no</strong>s comerão aos dois:<br />
a ti, Rei,<br />
a mim, sacerdotisa de Apolo,<br />
unidos na morte<br />
pelas bicadas das mesmas aves.<br />
Adeus véus,<br />
adeus fitas e túnicas,<br />
vestes dos meus êxtases;<br />
30
arranco‑vos deste corpo<br />
enquanto está puro.<br />
Leva‑os, brisa veloz,<br />
ao meu Deus de amor,<br />
ao Sol.<br />
Onde devo embarcar?<br />
Eu sou a morte,<br />
ponham a bandeira negra<br />
<strong>no</strong> mastro do navio que me levar.<br />
Adeus, Mãe,<br />
fica tranquila: não tardarás a morrer.<br />
E vós, irmãos que jazeis debaixo da terra,<br />
Pai que me deste a luz,<br />
eu vou já,<br />
não me farei esperar muito.<br />
Chegarei junto de vós<br />
vitoriosa,<br />
à cabeça do cortejo danado<br />
dos Átridas que vos mataram<br />
e que vão assassinar‑se uns aos outros,<br />
Himen, Himeneu!<br />
(Levam-na.)<br />
Iu! Iu!<br />
Himen, Himeneu!<br />
(Vai-se. hécuba desmaia.)<br />
* A partir de Eurípides – As Troianas. Adapt. Jean‑Paul Sartre; trad. Helena Cidade Moura. Lisboa:<br />
Pláta<strong>no</strong> Editora, 1973.<br />
** A partir de Eurípides – As Troianas. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Edições 70, 1996.<br />
31
As Troianas<br />
Si<strong>no</strong>pse*<br />
Tragédia do poeta trágico grego Eurípides (484 ‑406 a.C.), escrita em 415.<br />
Originalmente, esta era a terceira parte de uma trilogia que compreendia<br />
Alexandre e Palamedes e que devia terminar com um drama satírico<br />
intitulado Sísifo. As três tragédias (das duas primeiras não restam senão<br />
fragmentos) tinham por argumento três momentos de uma mesma lenda<br />
épica: a Guerra de Tróia. Foi a única vez que Eurípides procedeu desta forma,<br />
aproximando ‑se intencionalmente das trilogias de Ésquilo.<br />
As Troianas retratam o instante crucial do imenso drama. A cidade foi<br />
tomada e destruída pelos Gregos: todos os homens morreram. As mulheres<br />
dos vencidos (representadas pelo Coro das Prisioneiras Troianas) aguardam<br />
a sua sorte <strong>no</strong> campo dos vencedores; a pouca distância, fumegam as ruínas<br />
da sua pátria. A ação inicia ‑se com um prólogo <strong>no</strong> qual Poséidon, o deus<br />
que construíra as muralhas de Tróia e não tinha cessado nunca de defender<br />
a cidade, chora o desastre. Atena, que até esse momento tinha tomado<br />
o partido dos Gregos, sobrevém: sente ‑se ofendida pelo ultraje feito a<br />
Cassandra, que foi levada do seu templo pela força, e jura que os vencedores<br />
pagarão por este sacrilégio <strong>no</strong> seio das tempestades que assolarão o seu<br />
caminho de regresso. A velha Hécuba, prostrada diante da sua tenda, chora<br />
pelo seu desti<strong>no</strong>, ainda que tentando em vão resignar ‑se; amaldiçoa Helena,<br />
a odiosa esposa de Menelau, responsável pela guerra.<br />
O Coro das Prisioneiras Troianas (divididas em dois grupos) entra em<br />
cena. As mulheres interrogam ‑se <strong>no</strong> meio de lamentações sobre qual<br />
será a sua sorte e para que cidades da Grécia serão conduzidas como<br />
escravas. O arauto Taltíbio comunica ‑lhes finalmente a decisão dos chefes<br />
hele<strong>no</strong>s: Cassandra, a profetisa virgem, tornar ‑se ‑á escrava e concubina de<br />
Agamém<strong>no</strong>n; Policena será “consagrada” ao túmulo de Aquiles (perífrase<br />
que Hécuba não compreende ainda e que significa que a princesa será<br />
sacrificada às mãos do herói); Andrómaca, esposa de Heitor, servirá<br />
Pirro, filho de Aquiles; quanto à velha Hécuba, irá ser escrava de Ulisses.<br />
Subitamente, o clarão de um incêndio sai da tenda de Cassandra, que logo<br />
aparece brandindo uma tocha. Delirante, a profetisa rodopia numa dança<br />
desenfreada: canta, com um desespero que se aproxima de uma alegria<br />
frenética, as bodas que a vão unir ao ímpio Agamém<strong>no</strong>n, ela, a sacerdotisa<br />
consagrada aos deuses. Apaziguada, vaticina o infortúnio que o seu enlace<br />
causará e convida a sua mãe a regozijar ‑se pela ruína dos destruidores<br />
de Tróia, que sobrevirá graças a si: sim, a cidade aniquilada terá me<strong>no</strong>s a<br />
lamentar que os seus vencedores.<br />
Enquanto o arauto leva Cassandra, Hécuba reincide na evocação do seu<br />
passado funesto e chora o seu desti<strong>no</strong> de escrava. Esta parte, dominada pela<br />
comovente figura de Cassandra, termina num lamento do Coro, que evoca<br />
os derradeiros momentos de Tróia, o fatal ardil do cavalo de pau e o saque da<br />
cidade. Os quadros seguintes são consagrados ao infortúnio de Andrómaca,<br />
que aparece em cena acompanhada do jovem Astianacte, seu filho, para<br />
anunciar uma triste <strong>no</strong>va a Hécuba: Policena, a filha da velha rainha, acaba de<br />
ser imolada <strong>no</strong> túmulo de Aquiles. Enquanto Andrómaca tenta acalmar a dor<br />
da sua sogra, Taltíbio regressa. A sua missão repugna ‑lhe: tem de comunicar<br />
às duas mulheres a monstruosa decisão que os Gregos tomaram; aconselhados<br />
por Ulisses, decidiram desfazer ‑se do jovem Astianacte, arremessando ‑o<br />
do alto das muralhas. Extenuada, Andrómaca não resiste; separa ‑se do filho<br />
chorando e lança a sua maldição sobre os vencedores, enquanto o Coro canta a<br />
dolorosa história de Tróia, duas vezes destruída.<br />
O terceiro episódio da tragédia coloca em cena Helena e Menelau. O rei de<br />
Esparta vem à procura da sua esposa, a fim de a levar de volta à Grécia e punir<br />
a sua traição com a morte. Hécuba aprova a sua decisão e aconselha ‑o a não<br />
prolongar por demasiado tempo a sua relação com a infiel, com receio de que<br />
venha de <strong>no</strong>vo a ficar fascinado pelo seu encanto. Helena aparece e suplica a<br />
32
Menelau que lhe dê uma oportunidade de se defender antes de morrer; Menelau<br />
consente. Hécuba será ouvida em seguida na qualidade de testemunha da<br />
acusação. Seguem ‑se os monólogos das duas mulheres, uma atribuindo os seus<br />
erros a Afrodite, deusa do amor, a outra negando a intervenção divina e tentando<br />
expor claramente a alma vã, vil e insensível de Helena. Menelau parece<br />
convencido pelos argumentos da velha rainha, mas pressente ‑se que a sua<br />
atitude severa é falsa e que ele acabará por perdoar a culpada. No interlúdio que<br />
se segue, o Coro invoca Zeus, suplicando ‑lhe que se debruce sobre as desgraças<br />
de Tróia, e que lance o seu raio sobre a nau de Helena e de Menelau.<br />
Na parte final da tragédia, vemos Taltíbio a entregar a Hécuba o corpo de<br />
Astianacte. Andrómaca já foi levada para a nau de Pirro e cabe à avó realizar<br />
as derradeiras cerimónias fúnebres devidas ao filho de Heitor. Hécuba chora<br />
a criança morta, evocando a sua beleza, as suas expressões ingénuas, e a<br />
esperança que nele havia deposto. Em seguida, manda buscar o escudo de<br />
Heitor e aí depõe os restos mortais que assim serão sepultados. Enquanto <strong>no</strong><br />
céu se eleva um canto fúnebre, Taltíbio regressa para ordenar aos soldados<br />
gregos que deitem fogo ao que possa ter restado de Tróia. Hécuba, por seu<br />
lado, deve preparar ‑se para embarcar na nau de Ulisses; juntando ‑se ao<br />
Coro, entoa pela última vez um hi<strong>no</strong> fúnebre em honra da sua pátria perdida<br />
para sempre. E enquanto o triste cortejo das cativas se vai afastando em<br />
direção ao seu desti<strong>no</strong>, ao longe os templos da cidade ardem, o fogo incendeia<br />
as edificações sagradas de Pérgamo, que se desmoronam com estrondo.<br />
Esta tragédia, que coloca indefesas mulheres nas garras de uma<br />
Fatalidade inelutável, não tem, nem poderia ter, uma estrutura dramática<br />
propriamente dita: as censuras que os críticos antigos não deixaram de<br />
formular são portanto injustificadas. Estamos na presença de diversos<br />
episódios que refletem todos eles uma mesma catástrofe, cuja personagem<br />
central é sempre a mesma: Hécuba. Esta permanece sempre em cena<br />
e parece encarnar a Dor. A estrutura desta tragédia não podia ser a um<br />
tempo mais simples e genial; algumas cenas (<strong>no</strong>meadamente o delírio de<br />
Cassandra) têm um estranho poder <strong>no</strong> seu i<strong>no</strong>vador modo de expressão.<br />
Existe ao longo de toda a obra uma certeza profunda que o espectador não<br />
deixa nunca de pressentir e que confere unidade ao drama – o heroísmo<br />
dos vencidos e a sua imensa infelicidade ultrapassam em beleza a vitória<br />
aparente dos vencedores.<br />
* “Les Troyennes”. In Laffont ‑Bompiani – Le Nouveau Dictionnaire des Oeuvres.<br />
[Paris]: Robert Laffont, 1994. p. 7328 ‑7329.<br />
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O Coro<br />
Patrice Pavis*<br />
1. Evolução do Coro<br />
A origem do teatro grego – e, com ele, da tradição do teatro ocidental –<br />
confunde ‑se com as celebrações ritualísticas de um grupo <strong>no</strong> qual dançari<strong>no</strong>s<br />
e cantores formam, ao mesmo tempo, público e cerimónia. A forma dramática<br />
mais antiga seria a recitação do corista principal (corifeu) interrompida pelo<br />
coro. A partir do momento em que as respostas ao coro passam a ser dadas por<br />
um, depois por vários protagonistas, a forma dramática (diálogo) passa a ser a<br />
<strong>no</strong>rma, e o coro não é mais senão uma instância que comenta (advertências,<br />
conselhos, súplica).<br />
Na comédia aristofânica, o coro se integra amplamente à ação, intervindo<br />
nas parábases. Depois, tende a desaparecer ou a restringir ‑se apenas à função<br />
de entreato lírico (como na comédia romana).<br />
Na Idade Média, assume formas mais pessoais e didáticas e atua como<br />
coordenador épico dos episódios apresentados, e se subdivide, <strong>no</strong> interior da<br />
ação, em subcoros que participam da fábula.<br />
No século XVI, em particular <strong>no</strong> drama humanista, o coro separa os<br />
atos (ex.: o Fausto, de Marlowe), torna ‑se entreato musical. Shakespeare o<br />
personaliza e o encarna num ator encarregado do prólogo e do epílogo.<br />
O clown e o bobo, que prenunciam o confidente do teatro clássico francês,<br />
são sua forma paródica.<br />
O classicismo francês, em ampla escala, renuncia ao coro, preferindo a<br />
iluminação intimista do confidente e do solilóquio (exceções marcantes: Ester<br />
e Athalie de Racine). Foi usado pela última vez na forma clássica por Goethe e<br />
Schiller. Para este último, o coro deve provocar a catarse e “despsicologizar” o<br />
conflito dramático, elevando ‑o de seu ambiente banal a uma esfera altamente<br />
trágica da “força cega das paixões”, e “desdenhar a produção de ilusão”.<br />
No século XIX realista e naturalista, o emprego do coro entra nitidamente<br />
em declínio para não chocar a verosimilhança; ou, então, se encarna<br />
em personagens coletivas: o povo (Büchner, Hugo, Musset). Uma vez<br />
ultrapassada a dramaturgia ilusionista, o coro faz, hoje, sua reaparição como<br />
fator de distanciamento (Brecht, A<strong>no</strong>uilh e sua Antígona), como desesperadas<br />
tentativas de encontrar uma força comum a todos (T.S. Eliot, Giraudoux,<br />
Toller) ou na comédia musical (função mistificadora e unanimista do grupo<br />
soldado pela expressão artística: dança, canto, texto).<br />
2. Poderes do Coro<br />
A) Função estética desrealizante<br />
Apesar de sua importância fundante na tragédia grega, o coro logo parece<br />
elemento artificial e estranho à discussão dramática entre as personagens.<br />
Torna ‑se uma técnica épica, muitas vezes distanciadora, pois concretiza<br />
diante do espectador um outro espectador ‑juiz da ação, habilitado a<br />
comentá ‑la, um “espectador idealizado” (Schlegel). Fundamentalmente, este<br />
comentário épico equivale a encarnar em cena o público e seu olhar. Schiller<br />
fala, sobre o coro, exatamente o que mais tarde dirá Brecht a respeito do<br />
narrador épico e do distanciamento: “Separando as partes umas das outras<br />
e interferindo em meio às paixões com seu ponto de vista pacificador, o coro<br />
devolve a <strong>no</strong>ssa liberdade, que de outra forma desapareceria <strong>no</strong> furacão das<br />
paixões” (“Do Emprego do Coro na Tragédia”).<br />
B) Idealização e generalização<br />
Elevando ‑se acima da ação “terra a terra” das personagens, o coro substitui<br />
o discurso “profundo” do autor; garante a passagem do particular para o<br />
geral. Seu estilo lírico eleva o discurso realista das personagens a um nível<br />
inexcedível, o poder de generalização e de descoberta da arte nele se encontra<br />
multiplicado por dez. “O coro deixa o estreito círculo da ação para estender ‑se<br />
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ao passado e ao futuro, aos tempos antigos e aos povos, ao huma<strong>no</strong> em<br />
geral, para extrair as grandes lições de vida e exprimir os ensinamentos de<br />
sabedoria” (Schiller).<br />
C) Expressão de uma comunidade<br />
Para que o espectador real se reconheça <strong>no</strong> “espectador idealizado” que<br />
constitui o coro, é preciso necessariamente que os valores transmitidos por<br />
esse último sejam os mesmos que os seus e que com eles possa se identificar<br />
completamente. O coro, portanto, só tem probabilidade de ser aceite pelo<br />
público se este se constituir em uma massa solidificada por um culto, uma<br />
crença ou uma ideologia. Deve ser aceite espontaneamente como um jogo, ou<br />
seja, como um universo independente das regras conhecidas de todos nós, às<br />
quais não questionamos, uma vez que aceitamos a elas <strong>no</strong>s submeter. O coro<br />
é – ou deveria ser – segundo Schiller “uma parede viva com a qual a tragédia<br />
se cerca a fim de se isolar do mundo real e para preservar seu solo ideal e sua<br />
liberdade poética”. A partir do momento em que a comunidade franqueia os<br />
limites dessa fortaleza ou revela as contradições que a atravessam, o coro passa<br />
a ser criticado como irrealista ou mistificador e está fadado ao desaparecimento.<br />
Pelo fato de nem todas as épocas possuírem o dom de “figurar o caráter público<br />
da vida” (Lukács), o coro por vezes cai em desuso, particularmente a partir do<br />
momento em que o indivíduo sai da massa (<strong>no</strong>s séculos XVII e XVIII) ou toma<br />
consciência de sua força social e de sua posição de classe.<br />
D) Força de contestação<br />
O caráter fundamentalmente ambíguo do coro – sua força catártica e de<br />
culto, de um lado, e seu poder distanciador, de outro – explica que ele se<br />
tenha mantido <strong>no</strong>s momentos históricos em que não mais se crê <strong>no</strong> grande<br />
indivíduo sem conhecer (ainda?) o indivíduo livre de uma sociedade sem<br />
contradições. Assim, em Brecht ou Dürrenmatt (cf. A Visita da Velha Senhora),<br />
ele intervém para denunciar o que ele teoricamente deveria representar: um<br />
poder unificado, sem discussões internas, presidindo os desti<strong>no</strong>s huma<strong>no</strong>s.<br />
Nas formas “neo ‑arcaicas” de comunidade teatral, ele não representa este<br />
papel crítico; ele encobre o costume do grupo solidificado, e que celebra um<br />
culto. É o caso dos happenings, das performances que apelam à atividade física<br />
do público ou das comunidades teatrais (o Living Theatre é o exemplo típico<br />
de uso contínuo, embora invisível, de coro <strong>no</strong> espaço cénico e social).<br />
* Excerto de “Coro”. In Dicionário de <strong>Teatro</strong>. <strong>São</strong> Paulo: Perspectiva, 1999. p. 73 ‑75.<br />
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Cristina Carvalhal<br />
A ideia de ver <strong>200</strong> pessoas atuar num palco como o do TNSJ é, utilizando a<br />
expressão favorita de Hilde Wangel, a menina ‑mulher criada por Ibsen para<br />
fazer renascer a capacidade de sonhar do construtor Solness, “terrivelmente<br />
excitante”.<br />
Licenciada em <strong>Teatro</strong> ‑Educação pela Escola Superior de <strong>Teatro</strong> e Cinema,<br />
iniciou a sua atividade como atriz em 1987, <strong>no</strong> teatro, experimentando<br />
posteriormente o cinema e a televisão. Mais recentemente, criou a sua<br />
própria estrutura de produção teatral, Causas Comuns (www.causascomuns.<br />
net), e tem dirigido inúmeros espetáculos, entre os quais destaca Exactamente<br />
Antunes (2011), em parceria com Nu<strong>no</strong> Carinhas, <strong>no</strong> TNSJ.<br />
Nu<strong>no</strong> Cardoso<br />
Duzentas vozes conseguem ser uma multidão e uma só voz. Conseguem ser<br />
um lamento e um grito. Duzentas vozes são duzentas almas por palavra.<br />
Pode ser interessante!<br />
Iniciou o seu percurso teatral <strong>no</strong> CITAC – Círculo de Iniciação Teatral<br />
da Academia de Coimbra. Como ator, integrou o elenco de espetáculos<br />
encenados por, entre outros, Paulo Lisboa, Nu<strong>no</strong> M Cardoso, <strong>João</strong> Garcia<br />
Miguel e <strong>João</strong> Paulo Seara Cardoso. Foi um dos fundadores do coletivo Visões<br />
Úteis. De 1998 a <strong>200</strong>3, foi Diretor Artístico do Auditório <strong>Nacional</strong> Carlos<br />
Alberto. No <strong>Teatro</strong> <strong>Nacional</strong> <strong>São</strong> <strong>João</strong>, assumiu a Direção Artística do <strong>Teatro</strong><br />
Carlos Alberto entre <strong>200</strong>3 e <strong>200</strong>7. Como criador residente <strong>no</strong> TNSJ, ence<strong>no</strong>u,<br />
entre outros, O Despertar da Primavera, de Frank Wedekind (<strong>200</strong>4), e<br />
Woyzeck, de Georg Büchner (<strong>200</strong>5). Das suas últimas encenações, realizadas<br />
para o Ao Cabo <strong>Teatro</strong>, destaque para A Gaivota, de Tchékhov (2010); As Três<br />
Irmãs, de Tchékhov (2011); Desejo Sob os Ulmeiros, de Eugene O’Neill (2011);<br />
Medida por Medida, de Shakespeare (2012); e <strong>Porto</strong> S. Bento (2012).<br />
Nu<strong>no</strong> M Cardoso<br />
A Guerra de Tróia é uma das histórias (acontecimentos?) mais marcantes da<br />
civilização e cultura ocidentais. E é <strong>no</strong> final dessa guerra, junto às troianas<br />
perdedoras, que serão feitas escravas, que é profetizada a vingança. <strong>200</strong> vozes<br />
a materializarem um discurso histórico e profético do fim de uma guerra,<br />
do fim de uma civilização e do início de uma <strong>no</strong>va era.<br />
Encenador, professor e ator. Em teatro, dirigiu obras de Albert Camus,<br />
Samuel Beckett, Boris Vian, Stig Dagerman, Peter Handke, Bernard ‑Marie<br />
Koltès, Falk Richter, Alberto Miralles, John Milton, J.W. Goethe, F. Schiller,<br />
G.E. Lessing, Jean ‑Paul Sartre, B. Brecht, Neil Gaiman, James Jones, Ingmar<br />
Bergman, William Shakespeare, Heiner Müller, Sheila Callaghan, Al Berto,<br />
Fernando Pessoa, Miguel Torga, Luís de Sttau Monteiro, Pedro Eiras, Mickael<br />
de Oliveira, José Maria Vieira Mendes, Tiago Rodrigues, António Pedro, Hugo<br />
Curado. Trabalhou com os encenadores Ricardo Pais, Manuel Sardinha, Nu<strong>no</strong><br />
Cardoso, Giorgio Barberio Corsetti, Claudio Lucchesi, Jean ‑Louis Martinelli,<br />
Marcos Barbosa, José Carretas, Paulo Castro, Rogério de Carvalho, António<br />
Lago, e com os realizadores Ma<strong>no</strong>el de Oliveira e Saguenail Abramovici.<br />
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Victor Hugo Pontes<br />
“À deriva! À deriva! Se o desti<strong>no</strong> te leva: deixa ‑te levar.”<br />
Replicar as palavras de Hécuba <strong>no</strong> <strong>Atelier</strong> <strong>200</strong> será um exercício para<br />
encontrar o fio condutor de As Troianas: de Eurípides a Sartre até ao Portugal‑<br />
‑na ‑Europa ‑e ‑<strong>no</strong> ‑mundo do século XXI. Que corpo será este formado a partir<br />
de tantos? Que voz será esta, a que se ergue da multidão?<br />
Nasceu em Guimarães, em 1978. Licenciado em Artes Plásticas/Pintura pela<br />
Faculdade de Belas Artes do <strong>Porto</strong>. Frequentou a Norwich School of Art &<br />
Design e concluiu os cursos profissionais de <strong>Teatro</strong> do Balleteatro e do TUP,<br />
bem como os cursos de Pesquisa e Criação Coreográfica (Forum Dança) e<br />
Encenação de <strong>Teatro</strong> (Fundação Calouste Gulbenkian). Em <strong>200</strong>6, frequentou<br />
o curso do Projet Thierry Salmon – La Nouvelle École des Maîtres, dirigido<br />
por Pippo Delbo<strong>no</strong>, na Bélgica e em Itália. Como intérprete, trabalhou com os<br />
encenadores e coreógrafos Nu<strong>no</strong> Carinhas, Isabel Barros, Clara Andermatt,<br />
Charlie Degotte, David Lescot, Joana Craveiro, entre outros. Como<br />
coreógrafo/encenador, as suas criações já foram apresentadas em França,<br />
Alemanha, Itália, Espanha, Áustria, Brasil e Rússia, tendo obtido alguns<br />
prémios.<br />
<strong>João</strong> Tuna<br />
Fotógrafo e realizador, nasceu em 1967. Estudou fotografia e cinema na<br />
Escola António Arroio e na Escola Superior de <strong>Teatro</strong> e Cinema de Lisboa,<br />
e dramaturgia na Faculdade de Letras da Universidade do <strong>Porto</strong>. Iniciou<br />
em 1990 o seu percurso na área da fotografia, dedicando ‑se em exclusivo<br />
ao retrato e à fotografia de cena para teatro ou cinema. Realizou curtas‑<br />
‑metragens, versões vídeo de espetáculos e vídeos institucionais.<br />
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