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o espetáculo da copa do mundo de 2002 em dois contos de mia ...

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O ESPETÁCULO DA COPA DO MUNDO DE <strong>2002</strong> EM DOIS CONTOS DE MIA<br />

COUTO.<br />

Elizabeth <strong>da</strong> Silva MENDONÇA<br />

PG-UNESP/Câmpus <strong>de</strong> São José <strong>do</strong> Rio Preto<br />

bethmenca@hotmail.com<br />

Resumo: São conheci<strong>da</strong>s as relações brasileiras com os países africanos <strong>de</strong> língua portuguesa,<br />

mesmo quan<strong>do</strong> colônias <strong>de</strong> Portugal. O Brasil s<strong>em</strong>pre representou para esses países, na sen<strong>da</strong><br />

<strong>do</strong> nacionalismo pré-in<strong>de</strong>pendência, que não queria mais espelhar-se <strong>em</strong> Portugal, um mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong> nação a ser segui<strong>do</strong>. Tanto que a literatura brasileira conseguiu uma gran<strong>de</strong> parcela <strong>de</strong><br />

leitores entre os poucos alfabetiza<strong>do</strong>s, no caso, os intelectuais, nesses lugares. Já para a<br />

maioria <strong>da</strong> população, que não tinha escolarização, o futebol e a música brasileira<br />

representaram uma fonte <strong>de</strong> encantamento. Joga<strong>do</strong>res <strong>de</strong> futebol brasileiros como: Didi,<br />

Leôni<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Silva e Brandão, aludi<strong>do</strong>s pelo poeta moçambicano, José Craveirinha (1988), <strong>em</strong><br />

entrevista a Rita Chaves, passaram a integrar o cotidiano <strong>da</strong>s pessoas <strong>do</strong>s bairros pobres <strong>de</strong><br />

Moçambique. Na obra <strong>de</strong> Mia Couto, escritor moçambicano, cujo projeto literário tenta<br />

escrever a moçambicani<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou seja, uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> para seu povo, o futebol, e, <strong>em</strong> especial,<br />

o <strong>espetáculo</strong> <strong>da</strong> Copa <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>2002</strong>, faz-se presente <strong>em</strong> <strong>do</strong>is <strong>contos</strong> <strong>do</strong> seu livro O fio<br />

<strong>da</strong>s missangas: “O mendigo Sexta-Feira jogan<strong>do</strong> no Mundial” e “A carta <strong>de</strong> Ronaldinho”.<br />

Ambos vão misturar o universo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> dura <strong>de</strong> um país assola<strong>do</strong> por probl<strong>em</strong>as sociais<br />

oriun<strong>do</strong>s <strong>da</strong> <strong>de</strong>silusão, ou mesmo <strong>da</strong> traição, o universo <strong>do</strong>s i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>s no projeto <strong>de</strong><br />

in<strong>de</strong>pendência, com a fantasia e o sonho proporciona<strong>do</strong>s pela transmissão <strong>de</strong> jogos <strong>de</strong> futebol<br />

pela televisão. Esse artigo preten<strong>de</strong> apresentar uma leitura <strong>de</strong>sses <strong>do</strong>is <strong>contos</strong> <strong>em</strong> que Mia<br />

Couto, falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> futebol, ora <strong>de</strong> forma irônica, ora humanizan<strong>do</strong> mendigos, ora <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />

oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sonhar a um velho <strong>de</strong> nome “Filipão Timóteo” com a função <strong>de</strong> técnico, vai<br />

pon<strong>do</strong> <strong>em</strong> questão to<strong>da</strong> uma tessitura humano-social que vê, na ilusão <strong>da</strong>s imagens<br />

televisivas, uma saí<strong>da</strong> onírica para uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> que quase tu<strong>do</strong> é priva<strong>do</strong> aos<br />

personagens <strong>do</strong> conto, menos o direito <strong>de</strong> se imaginar<strong>em</strong> nos grama<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Mundial <strong>de</strong> <strong>2002</strong>.<br />

A perspicácia <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, que faz uso <strong>de</strong> uma linguag<strong>em</strong> povoa<strong>da</strong> <strong>de</strong> jargões futebolísticos,<br />

<strong>de</strong>ixa entrever, por meio <strong>da</strong> t<strong>em</strong>ática <strong>do</strong> futebol, uma feroz crítica social nesses <strong>do</strong>is <strong>contos</strong>.<br />

Palavras-chave: Mia Couto; <strong>contos</strong>; paródia; futebol.<br />

INTRODUÇÃO<br />

Anais <strong>do</strong> SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.<br />

São conheci<strong>da</strong>s as relações brasileiras com os países africanos <strong>de</strong> língua portuguesa,<br />

mesmo quan<strong>do</strong> colônias <strong>de</strong> Portugal. O Brasil s<strong>em</strong>pre representou, para esses países, na sen<strong>da</strong><br />

<strong>do</strong> nacionalismo pré-in<strong>de</strong>pendência, que não queria mais espelhar-se <strong>em</strong> Portugal, um mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong> nação a ser segui<strong>do</strong>. Tanto que a literatura brasileira conseguiu uma gran<strong>de</strong> parcela <strong>de</strong><br />

leitores, entre os poucos alfabetiza<strong>do</strong>s, no caso, os intelectuais, nesses lugares. Já para a<br />

maioria <strong>da</strong> população, que não tinha escolarização, o futebol e a música brasileira<br />

representaram uma fonte <strong>de</strong> encantamento.<br />

A esse respeito Rita Chaves (2000, p. 1) coloca:


Anais <strong>do</strong> SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.<br />

Como <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong> circulação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e informação ou apoia<strong>do</strong>s<br />

simplesmente no plano <strong>da</strong>s sugestões dita<strong>da</strong>s pela afetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, setores<br />

intelectualiza<strong>do</strong>s ou segmentos populares buscavam no Brasil traços <strong>de</strong><br />

inspiração e/ou el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> compensação para as insuficiências <strong>do</strong><br />

cotidiano.<br />

O Brasil passa a ser a colônia b<strong>em</strong> sucedi<strong>da</strong>, cuja in<strong>de</strong>pendência, ocorri<strong>da</strong> no século<br />

XIX, conseguiu sucesso. A colonização lusófona e os traços étnico-culturais africanos<br />

tornaram o país um “quase” mo<strong>de</strong>lo a ser, primeiramente, ufaniza<strong>do</strong>, <strong>de</strong>pois segui<strong>do</strong>. As<br />

colônias portuguesas africanas viam, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Atlântico, “uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

romper com os valores <strong>da</strong> metrópole e acabam por exprimir a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um outro<br />

espelho on<strong>de</strong> mirar o próprio rosto” (CHAVES, 2000, p. 3).<br />

O nosso país chegava através <strong>de</strong> várias manifestações culturais a Moçambique,<br />

conforme po<strong>de</strong>mos constatar na colocação <strong>do</strong> poeta José Craveirinha:<br />

Eu <strong>de</strong>via ter nasci<strong>do</strong> no Brasil. Porque o Brasil teve uma influência muito<br />

gran<strong>de</strong> na população suburbana <strong>da</strong>qui (…) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o futebol. Eu joguei a bola<br />

com joga<strong>do</strong>res brasileiros, como, por ex<strong>em</strong>plo, o Fausto, o Leôni<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

Silva, inventor <strong>da</strong> bicicleta (CRAVEIRINHA apud CHAVES, 2000, p. 4).<br />

Como produto <strong>de</strong> exportação <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> brasileira, o futebol penetrou <strong>em</strong> terras<br />

moçambicanas, soman<strong>do</strong> ao seu significa<strong>do</strong>, nossa i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> mestiça. Não po<strong>de</strong>mos per<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> vista o fato <strong>de</strong> que Moçambique, na época, ain<strong>da</strong> não tinha consegui<strong>do</strong> a sua<br />

in<strong>de</strong>pendência. Diante disso, é pertinente observarmos o que expõe o escritor moçambicano<br />

Calane <strong>da</strong> Silva:<br />

O Brasil funcionou <strong>de</strong> uma maneira muito interessante. Havia, <strong>da</strong><br />

parte <strong>do</strong> próprio governo português, uma maneira <strong>de</strong> amolecer um<br />

pouco os nossos corações: pon<strong>do</strong> música brasileira. Eu, uma vez,<br />

<strong>de</strong>i uma explicação interessante: nós, negros e mestiços,<br />

rejeitávamos a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> cultura portuguesa – no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que<br />

ela queria impor o fa<strong>do</strong> na cabeça (…). Por outro la<strong>do</strong>, não nos<br />

<strong>de</strong>ixavam esgrimir publicamente as culturas <strong>de</strong> que nós éramos<br />

originários, sejam elas macuas ou rongas (…). E então parece-me<br />

que a cultura e a música entravam aqui perfeitamente. Portanto,<br />

<strong>da</strong>vam uma no cravo e outra na ferradura, encaixavam-se<br />

perfeitamente a esta miscigenação. Ia alivian<strong>do</strong> as tensões (LABAN apud<br />

CHAVES, 2000, p. 4).<br />

Seria um truísmo nos referirmos aqui à campanha publicitária <strong>do</strong> governo militar brasileiro, nos anos<br />

70 <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, que usou a conquista <strong>da</strong> Seleção Brasileira no Mundial <strong>do</strong> México como válvula <strong>de</strong><br />

escape contra a pressão <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Da mesma forma, o governo português ditatorial <strong>de</strong> Salazar usava<br />

el<strong>em</strong>entos <strong>da</strong> cultura brasileira <strong>de</strong> forma consciente, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> penetrar, nos territórios ocupa<strong>do</strong>s, aquilo que era<br />

<strong>de</strong> seu interesse. Os moçambicanos, fazen<strong>do</strong> o contraponto que o coloniza<strong>do</strong> vê-se obriga<strong>do</strong> a realizar,<br />

conseguiram minar essa política portuguesa por intermédio não só <strong>da</strong> literatura, importa<strong>da</strong> clan<strong>de</strong>stinamente <strong>do</strong><br />

Brasil, como também <strong>do</strong> espelhamento na ex-colônia. É fato notório que muitos escritores moçambicanos,<br />

ativos combatentes <strong>da</strong> Frelimo (Frente <strong>de</strong> Libertação <strong>de</strong> Moçambique), tinham, <strong>em</strong> autores brasileiros como<br />

Graciliano Ramos e Jorge Ama<strong>do</strong>, uma fonte <strong>de</strong> leitura.<br />

Atualmente, o Brasil chega a Moçambique <strong>de</strong> forma maciça pela televisão. Mia Couto, escritor<br />

moçambicano, disse <strong>em</strong> entrevista recente ao Portal Vermelho:


Há proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que se manifestam <strong>em</strong> áreas que não correspon<strong>de</strong>m ao que<br />

o Brasil realmente é. Por ex<strong>em</strong>plo, na área <strong>da</strong> novela, o Brasil está presente<br />

como nunca esteve. É pela via <strong>da</strong>s novelas que os moçambicanos conhec<strong>em</strong><br />

o Brasil. Mas é apenas uma i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> Brasil. Na literatura houve um<br />

<strong>em</strong>pobrecimento, os africanos não sab<strong>em</strong> o que está acontecen<strong>do</strong> no Brasil,<br />

sobretu<strong>do</strong> <strong>em</strong> relação aos novos autores. (2011)<br />

Ressaltan<strong>do</strong> essa invasão brasileira <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>da</strong> telenovela, o produto atual com<br />

sucesso <strong>de</strong> exportação, chegamos, então, a outro produto <strong>de</strong> consumo: o jogo <strong>de</strong> futebol<br />

televisiona<strong>do</strong>. Nesse artigo, dividi<strong>do</strong> <strong>em</strong> duas partes, além <strong>da</strong> introdução e <strong>da</strong>s consi<strong>de</strong>rações<br />

finais, far<strong>em</strong>os uma leitura <strong>do</strong>s <strong>contos</strong>: “O mendigo Sexta-Feira jogan<strong>do</strong> no Mundial” e “A<br />

carta <strong>de</strong> Ronaldinho”, pertencentes ao livro O fio <strong>da</strong>s missangas, publica<strong>do</strong> <strong>em</strong> 2004, por Mia<br />

Couto.<br />

I- A ILUSÃO DA COMUNIDADE<br />

Anais <strong>do</strong> SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.<br />

O conto “O mendigo Sexta-Feira jogan<strong>do</strong> no Mundial”, narra<strong>do</strong> <strong>em</strong> primeira pessoa,<br />

t<strong>em</strong> como personag<strong>em</strong> um mora<strong>do</strong>r <strong>de</strong> rua que vai a um hospital, por ocasião <strong>de</strong> agressões<br />

sofri<strong>da</strong>s por policiais que o haviam expulsa<strong>do</strong> <strong>da</strong> frente <strong>de</strong> uma loja <strong>de</strong> televisores num<br />

shopping. Ele diz ao médico estar ali, não por causa <strong>do</strong>s machuca<strong>do</strong>s, mas para pedir-lhe que<br />

intervenha junto ao <strong>do</strong>no <strong>da</strong> loja <strong>de</strong> tevês para que ele e os outros mendigos possam assistir ao<br />

Mundial <strong>de</strong> Futebol <strong>de</strong> <strong>2002</strong> naquele local. Pensan<strong>do</strong> que o médico aten<strong>de</strong>ra o seu pedi<strong>do</strong>,<br />

Sexta-Feira se junta aos amigos para ver<strong>em</strong> o jogo. Durante a parti<strong>da</strong> televisiona<strong>da</strong>, acaba<br />

imaginan<strong>do</strong>-se como joga<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Mundial, mas é <strong>de</strong>sperta<strong>do</strong> pela agressão <strong>do</strong>s policiais que<br />

novamente expulsam-no.<br />

É significativo o local <strong>em</strong> que se encontra o personag<strong>em</strong> para assistir aos jogos: uma<br />

loja <strong>de</strong> tevês, num shopping, conforme verificamos nesse trecho: “Des<strong>de</strong> há um t<strong>em</strong>po, an<strong>do</strong> a<br />

espreitar na montra <strong>do</strong> Dubai Shoping, ali na esquina <strong>da</strong> Aveni<strong>da</strong> Direita. É uma loja <strong>de</strong> tevês,<br />

<strong>de</strong>ixam aquilo liga<strong>do</strong> na montra para os pagantes contraír<strong>em</strong> ganas <strong>de</strong> comprar” (COUTO,<br />

2011, p. 81). O mendigo encontra-se <strong>em</strong> frente a <strong>do</strong>is t<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> ilusão, um está localiza<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> outro: a televisão <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> shopping.<br />

Nesse espaço <strong>de</strong> fabricação <strong>de</strong> sonhos, o personag<strong>em</strong> mergulha na ilusão para escapar<br />

<strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> cruel <strong>de</strong> aban<strong>do</strong>no e espoliação. Também é nesse local, que ele se sente<br />

irmana<strong>do</strong>, <strong>em</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> com os outros mendigos, como ilustra a passag<strong>em</strong>: “ali alcanço<br />

ilusão <strong>de</strong> ter familiares. [...] To<strong>do</strong>s nós, os indigentes ali alinha<strong>do</strong>s, ganhamos um tecto nesse<br />

momento. Um tecto que nos cobre neste e noutros continentes” (COUTO, 2011, p. 82).<br />

Através <strong>de</strong>sse ambiente ilusório, Sexta-Feira consegue filiar-se à vi<strong>da</strong>, escalar-se no<br />

time <strong>do</strong>s seres humanos, pois a pertença à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> era importante para que ele driblasse a<br />

morte, tanto física quanto espiritual.<br />

Sobre esse espírito coletivo oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s torce<strong>do</strong>res <strong>de</strong> futebol, Sevecenko (apud<br />

MARQUES, <strong>2002</strong>, p. 10), numa análise sobre a organização <strong>do</strong> novo espaço urbano brasileiro<br />

e <strong>da</strong> nova or<strong>de</strong>m social advin<strong>da</strong> <strong>de</strong>ssa organização, afirma:<br />

Na sua busca <strong>de</strong> novos traços <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> coletiva, <strong>de</strong><br />

novas bases <strong>em</strong>ocionais <strong>de</strong> coesão que substituíss<strong>em</strong> as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e os<br />

laços <strong>de</strong> parentesco que ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>ixou ao <strong>em</strong>igrar, essas pessoas se ve<strong>em</strong><br />

atraí<strong>da</strong>s, draga<strong>da</strong>s para a paixão futebolística que irmana estranhos, os faz


Anais <strong>do</strong> SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.<br />

comungar<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ais, objetivos e sonhos, consoli<strong>da</strong> gigantescas famílias<br />

vestin<strong>do</strong> as mesmas cores.<br />

Po<strong>de</strong>mos interpretar o surgimento <strong>da</strong>s torci<strong>da</strong>s por intermédio <strong>de</strong>sse sentimento <strong>de</strong><br />

pertença a uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>mos ler esse fato também como a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> medieval<br />

existente entre as pessoas, antes <strong>de</strong> o capitalismo fomentar a individualização humana. Sexta-<br />

Feira necessita <strong>de</strong>sse anseio <strong>de</strong> “pertencimento” para se sentir vivo.<br />

Sua luta pela existência, para ser visto pelo outro, po<strong>de</strong> ser percebi<strong>da</strong> nessa passag<strong>em</strong><br />

<strong>da</strong> narrativa: “Estar <strong>do</strong>ente é minha única maneira <strong>de</strong> provar que estou vivo. É por isso que<br />

frequento o hospital, vezes e vezes, a exibir minhas maleitas” (COUTO, 2011, p. 81). Na<br />

ilusão <strong>do</strong> futebol está a saí<strong>da</strong> onírica por meio <strong>da</strong> qual o personag<strong>em</strong> escapa <strong>do</strong> cotidiano <strong>de</strong><br />

cruel<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais.<br />

O procedimento literário <strong>da</strong> narração <strong>em</strong> primeira pessoa torna-se fun<strong>da</strong>mental na<br />

“confecção <strong>da</strong>s missangas narrativas <strong>do</strong> conto”. O tom confessional, por vezes, dramático <strong>do</strong><br />

mendigo po<strong>de</strong> apresentar duas visões diferencia<strong>do</strong>ras: o espírito <strong>de</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

proporciona<strong>do</strong> pelo jogo <strong>de</strong> futebol, e a ilusão provoca<strong>da</strong> pela transmissão <strong>de</strong>sse esporte pela<br />

televisão.<br />

Em “Futebol e colonialismo, <strong>do</strong>minação e apropriação: sobre o caso moçambicano”, o<br />

cientista social português, Nuno Domingues, coloca: “Os jogos foram instrumentos<br />

socializa<strong>do</strong>res, incutin<strong>do</strong> disciplina, espírito <strong>de</strong> grupo, respeito pela hierarquia e pelo ritual,<br />

momentos <strong>de</strong> reprodução <strong>de</strong> uma condição social inerente a um estatuto <strong>de</strong> civilização<br />

nacional” (2006, p. 400). O jogo <strong>de</strong> futebol trazi<strong>do</strong> pelo coloniza<strong>do</strong>r europeu para<br />

Moçambique como uma condição civilizatória po<strong>de</strong> ser li<strong>do</strong>, no conto, como uma forma <strong>de</strong> o<br />

mendigo tentar integrar-se na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> “civiliza<strong>da</strong>”, para a qual ele não existe.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, a ilusão frente aos televisores <strong>da</strong> loja <strong>do</strong> shopping caracteriza/mostra a<br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa pertença, que passa a ocorrer no <strong>de</strong>vaneio. Então, retoman<strong>do</strong> o que<br />

colocamos, anteriormente, sobre a importância <strong>da</strong> narrativa <strong>em</strong> primeira pessoa, o<br />

personag<strong>em</strong> traz a agu<strong>da</strong> consciência <strong>de</strong> sua condição, conforme verificamos nesse trecho <strong>do</strong><br />

conto:<br />

Só há ali um no entanto, <strong>do</strong>utor. É que sou ataca<strong>do</strong> <strong>de</strong> um sentimento muito<br />

ulceroso enquanto os meus olhos apanham boleia para a Coreia <strong>do</strong> Sul. O<br />

que me inveja não são esses jovens fintabolistas, to<strong>do</strong>s cheios <strong>de</strong> vigor. O<br />

que eu invejo, <strong>do</strong>utor, é quan<strong>do</strong> o joga<strong>do</strong>r cai no chão e se enrola e rebola a<br />

exibir b<strong>em</strong> alto suas queixas. A <strong>do</strong>r <strong>de</strong>le faz parar o mun<strong>do</strong>. Um mun<strong>do</strong><br />

cheio <strong>de</strong> <strong>do</strong>res ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras pára perante a <strong>do</strong>r falsa <strong>de</strong> um futebolista. As<br />

minhas mágoas que são tantas e tão ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras e nenhum árbitro man<strong>da</strong><br />

parar a vi<strong>da</strong> para me aten<strong>de</strong>r, reboladinho que estou por <strong>de</strong>ntro, rasteira<strong>do</strong><br />

que fui pelos outros. Se a vi<strong>da</strong> fosse um relva<strong>do</strong>, quantos pênaltis eu já tinha<br />

marca<strong>do</strong> contra o <strong>de</strong>stino? (COUTO, 2011, p. 82).<br />

O mun<strong>do</strong>, fabrica<strong>do</strong> pela televisão, que provoca a ilusão <strong>do</strong> esquecimento <strong>da</strong> própria<br />

<strong>do</strong>r, <strong>em</strong> prol <strong>do</strong> encantamento <strong>da</strong> falsa <strong>do</strong>r alheia, é <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong> pela voz <strong>do</strong> mendigo. Ele,<br />

esqueci<strong>do</strong> no seu constante jogo pela sobrevivência, na sua luta diária pela vi<strong>da</strong>, marca<br />

pênaltis contra o <strong>de</strong>stino, seu adversário.<br />

Essa consciência <strong>de</strong> Sexta-Feira é novamente retoma<strong>da</strong>, já no final <strong>do</strong> conto, quan<strong>do</strong><br />

ele pergunta: “Qu<strong>em</strong> disse que a televisão não fabrica as actuais magias?” (COUTO, 2011, p.<br />

84). O jogo televisiona<strong>do</strong> po<strong>de</strong> ser interpreta<strong>do</strong> como um el<strong>em</strong>ento entorpece<strong>do</strong>r e <strong>de</strong>sviante


Anais <strong>do</strong> SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.<br />

<strong>do</strong> indivíduo <strong>da</strong> sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> cotidiana, aqui <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong> pela voz <strong>do</strong> mendigo que <strong>em</strong>barca<br />

nesse universo <strong>de</strong> sonhos virtuais.<br />

Já no final <strong>do</strong> conto, a linguag<strong>em</strong> tenta incorporar a narrativa <strong>do</strong> jogo televisiona<strong>do</strong>.<br />

As expressões esportivas e a veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ação imprim<strong>em</strong>, ao sonho <strong>de</strong> Sexta-Feira, o tom<br />

paródico <strong>da</strong> narração esportiva, conforme ilustra esse trecho:<br />

eu e os mendigos <strong>de</strong> sexta-feira estamos no mundial, formamos equipa com<br />

far<strong>da</strong>mento brilhoso. E o <strong>do</strong>utor é o treina<strong>do</strong>r. E jogamos, neste momento<br />

preciso. Eu sou o extr<strong>em</strong>o esquer<strong>do</strong> e vou <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> o esférico, que é um<br />

mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>do</strong>minar o mun<strong>do</strong>. Por trás, os aplausos <strong>da</strong> multidão. De repente,<br />

sofro carga <strong>do</strong> <strong>de</strong>fesa contrário. Jogo perigoso, reclamam as vozes aos<br />

milhares. Sim, um cartão amarelo, bra<strong>da</strong> o <strong>do</strong>utor. Porém, o <strong>de</strong>fesa continua<br />

a agressão, cresce o protesto <strong>da</strong> multidão. Isso, senhor árbitro, cartão<br />

vermelho! Boa <strong>de</strong>cisão! Haja no jogo a justiça que nos falta na Vi<strong>da</strong><br />

(COUTO, 2011, p. 84).<br />

O procedimento paródico <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>, nessa parte <strong>do</strong> conto, é marca<strong>do</strong> pela ironia<br />

que “parece ser o principal mecanismo retórico para <strong>de</strong>spertar a consciência <strong>do</strong> leitor [...] A<br />

ironia participa <strong>do</strong> discurso paródico como uma estratégia que permite ao <strong>de</strong>codifica<strong>do</strong>r<br />

interpretar e avaliar” (HUTCHEON, 1989, p. 47). O mendigo, portanto, passava a ter a<br />

atenção <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s. Os olhos <strong>do</strong>s torce<strong>do</strong>res imaginários começavam a acompanhá-lo <strong>em</strong> sua<br />

posição <strong>de</strong> joga<strong>do</strong>r. O mun<strong>do</strong> <strong>da</strong>s injustiças era repara<strong>do</strong> pelo árbitro que punia esse universo<br />

<strong>da</strong> agressão, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> um cartão vermelho à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que lhe voltava as costas to<strong>do</strong>s os dias.<br />

Essa falta que o personag<strong>em</strong> sofrera no campo po<strong>de</strong> ser interpreta<strong>da</strong> como a falta <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> que<br />

ocasiona a miséria <strong>de</strong> um não-existir.<br />

Po<strong>de</strong>mos perceber, ain<strong>da</strong> nessa passag<strong>em</strong> <strong>do</strong> conto, que “ao imprimir na sua própria<br />

forma, a <strong>do</strong> texto que parodia, uma paródia po<strong>de</strong> facilitar a tarefa interpretativa”<br />

(HUTCHEON, 1989, p. 56) e, com isso, a crítica explícita às injustiças sociais a que estão<br />

expostos tantos seres humanos, representa<strong>do</strong>s na figura <strong>do</strong> mendigo Sexta-Feira. Assim, a<br />

reparação configura-se na linguag<strong>em</strong> literária <strong>da</strong> narrativa, ou seja, a paródia cumpre sua<br />

função social interpreta<strong>do</strong>ra e avaliativa.<br />

Nesse palco <strong>da</strong> representação literária que é o conto <strong>de</strong> Mia Couto, Sexta-Feira<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha seu próprio papel. O dramaturgo Dias Gomes, falan<strong>do</strong> sobre a mítica Seleção<br />

Brasileira <strong>de</strong> futebol <strong>da</strong> Copa <strong>de</strong> 1982, expõe: “Como dramaturgo, vejo no futebol não apenas<br />

uma disputa esportiva, mas, sobretu<strong>do</strong> um <strong>espetáculo</strong> teatral. Para mim, o campo é um palco e<br />

os joga<strong>do</strong>res 22 atores que vão interpretar uma peça cujos papéis foram apenas <strong>de</strong>linea<strong>do</strong>s,<br />

mas não escritos” (MARQUES, <strong>2002</strong>, p. 16). Na encenação futebolística imaginária <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong><br />

conto, o personag<strong>em</strong> po<strong>de</strong>ria ser li<strong>do</strong> como o ator que capta to<strong>do</strong>s os aplausos, por estar sob a<br />

visibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s luzes, as mesmas que o mendigo almeja conseguir.<br />

A saí<strong>da</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ilusório dá-se pela violência que passa a ser o elo que cria as<br />

condições para a fuga <strong>do</strong> sonho, assim como a ligação que retira o personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> seu<br />

<strong>de</strong>vaneio, conforme po<strong>de</strong>mos verificar nessa parte <strong>do</strong> conto:<br />

Suspen<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> o jogo, expulsass<strong>em</strong> o agressor <strong>da</strong>s quatro linhas. Surpresa<br />

minha - o próprio árbitro é qu<strong>em</strong> me passa a agredir. Nesse momento, me<br />

assalta a sensação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>spertar como se eu saísse <strong>da</strong> televisão para o<br />

passeio. Ain<strong>da</strong> vejo a matraca <strong>do</strong> polícia <strong>de</strong>scen<strong>do</strong> sobre a minha cabeça.<br />

Então, as luzes <strong>do</strong> estádio se apagam (COUTO, 2011, p. 84).


A figura <strong>do</strong> juiz como aquele que representa a lei, o cumprimento <strong>do</strong> contrato social,<br />

po<strong>de</strong>ria representar a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que agri<strong>de</strong>, como cães <strong>de</strong> rua famintos, os mendigos que<br />

espiam a loja <strong>de</strong> tevês.<br />

O conto <strong>de</strong>ixa, <strong>em</strong> seu <strong>de</strong>sfecho, conforme exposto no trecho anteriormente cita<strong>do</strong>, a<br />

interrogação sobre a possível morte <strong>do</strong> mendigo pela ação violenta <strong>da</strong> polícia. Tal morte<br />

po<strong>de</strong>ria significar o fim <strong>do</strong> sonho ou <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong> física.<br />

II- A DUPLA FICÇÃO DE FILIPÃO TIMÓTEO<br />

Anais <strong>do</strong> SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.<br />

Em “Carta a Ronaldinho”, t<strong>em</strong>-se a estória <strong>de</strong> um velho, chama<strong>do</strong> Filipão Timóteo,<br />

cuja única ocupação é assistir, to<strong>do</strong>s os dias, às parti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> futebol <strong>do</strong> Mundial <strong>de</strong> <strong>2002</strong>, numa<br />

televisão que ele mesmo <strong>de</strong>senhou com carvão nas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um bar <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte. Nesse local,<br />

durante os jogos, imaginava ser o técnico <strong>de</strong> futebol no Mundial que nunca acabava. Os<br />

filhos, preocupa<strong>do</strong>s com a sani<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> pai e com o fato <strong>de</strong>le ter vira<strong>do</strong> motivo <strong>de</strong> pia<strong>da</strong> local,<br />

vêm <strong>da</strong> capital com o intuito <strong>de</strong> levá-lo <strong>em</strong>bora. Não conseguin<strong>do</strong> alcançar esse objetivo, um<br />

<strong>do</strong>s filhos, numa tentativa <strong>de</strong> convencer o velho, traz uma falsa carta <strong>da</strong> Fe<strong>de</strong>ração Nacional<br />

<strong>de</strong> Futebol, convocan<strong>do</strong>-o para ir à capital, on<strong>de</strong> seria homenagea<strong>do</strong>, e, por fim, <strong>de</strong>scansaria<br />

junto a sua família. Mas o velho não acredita na veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> carta e, <strong>em</strong> contraparti<strong>da</strong>,<br />

apresenta outra, proveniente <strong>do</strong> Brasil, en<strong>de</strong>reça<strong>da</strong> a ele e assina<strong>da</strong> por Ronaldinho Gaúcho. O<br />

filho vai <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> voz e o personag<strong>em</strong> solicita a ele que lhe traga <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong><br />

giz para que possa <strong>de</strong>senhar uma televisão nova.<br />

Nesse conto, como no anterior, ambas as personagens viv<strong>em</strong> virtualmente o mun<strong>do</strong><br />

futebolístico, tanto pela presença material <strong>do</strong> aparelho televisivo, como pela fantasia <strong>da</strong><br />

existência <strong>de</strong> tal objeto. Eles acabam se tornan<strong>do</strong> participantes ativos <strong>de</strong>sse mun<strong>do</strong> onírico,<br />

para o qual escapam, fugin<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> solidão e miséria.<br />

Logo no início <strong>do</strong> conto, a voz <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r traz a síntese proverbial, como po<strong>de</strong>mos<br />

observar nessa parte: “Conforme o chão <strong>de</strong> um é feito para o futuro e <strong>do</strong> <strong>de</strong> outro é rabisca<strong>do</strong><br />

para a sobrevivência” (COUTO, 2011, p. 99). O contraste entre as promissoras carreiras <strong>do</strong>s<br />

joga<strong>do</strong>res <strong>de</strong> futebol e a luta diária <strong>de</strong> um velho aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, cuja única alegria é inventar um<br />

mun<strong>do</strong> particular, acaba sen<strong>do</strong> ressalta<strong>da</strong> pela voz <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. Segue-se a esse provérbio uma<br />

pergunta dirigi<strong>da</strong> ao leitor, como po<strong>de</strong>mos verificar nesse trecho: “Filipão Timóteo pisava ou<br />

era pisa<strong>do</strong> pelo chão?” (COUTO, 2011, p. 99). Com alguns ex<strong>em</strong>plos que figuram entre o riso<br />

cômico proposital e a mor<strong>da</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> crítica social, o narra<strong>do</strong>r vai respon<strong>de</strong>r a tal pergunta,<br />

como po<strong>de</strong>mos verificar no trecho:<br />

E o <strong>de</strong>nte avulso, já <strong>de</strong> tão solto, abanava com riso. No bar <strong>da</strong> Munhava, o<br />

velho reforma<strong>do</strong> retorcia a volta ao <strong>de</strong>stino. No meio <strong>do</strong> cervejeiral, Filipão<br />

se vingava. Prova era o salto fantástico e o grito que, <strong>de</strong> quan<strong>do</strong> <strong>em</strong> quan<strong>do</strong>,<br />

se escutava na rua:- Gooolooo! [...] Quan<strong>do</strong> saltava, caía-lhe o aparelho <strong>da</strong><br />

sur<strong>de</strong>z e ele passava o resto <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> gatas, procuran<strong>do</strong> o salva<strong>do</strong>r<br />

instrumento entre as imundícies <strong>do</strong> chão. Para tão pouco voo, tanto<br />

quadrupe<strong>da</strong>r-se pelo chão! (COUTO, 2011, p. 99-100).<br />

A solidão <strong>do</strong> velho e a fuga <strong>do</strong> <strong>de</strong>stino, que po<strong>de</strong>ria ser compreendi<strong>da</strong> como um<br />

subterfúgio para enganar a morte pelo mergulho no mun<strong>do</strong> duplamente fictício <strong>do</strong> futebol,<br />

orientam a construção narrativa. A celebração, a alegria <strong>do</strong> grito e o pulo po<strong>de</strong>m ser vistos<br />

como o drible <strong>da</strong> miséria e <strong>da</strong> morte que o espreitam a to<strong>do</strong> o momento. O personag<strong>em</strong><br />

inventa as suas alegrias, não aceita a sua existência <strong>de</strong> aban<strong>do</strong>no e privações. No seu cair e


Anais <strong>do</strong> SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.<br />

levantar, observamos a ironia <strong>do</strong> autor, <strong>em</strong> alusão às cenas mesmas <strong>do</strong> jogo <strong>de</strong> futebol, <strong>em</strong><br />

que os esportistas ca<strong>em</strong> e levantam-se. O personag<strong>em</strong> Sexta-Feira, <strong>do</strong> conto anteriormente<br />

apresenta<strong>do</strong>, aludia à representação existente nessas que<strong>da</strong>s e <strong>do</strong>res falsas. Mas o tom crítico<br />

<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r faz-se notar pela presença <strong>do</strong> verbo “quadrupe<strong>da</strong>r”, <strong>em</strong> oposição ao ato <strong>de</strong> voar,<br />

indican<strong>do</strong> que Filipão vivia mesmo no jogo <strong>de</strong> sobrevivência, entre o mun<strong>do</strong> real, no chão, na<br />

miséria, e aquele que criou para si, o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> voo, nas alturas, no sonho.<br />

Somos leva<strong>do</strong>s a questionar se o nome <strong>do</strong> personag<strong>em</strong>, Filipão Timóteo tratava-se <strong>de</strong><br />

seu nome oficial, ou se o primeiro nome seria apenas um apeli<strong>do</strong> <strong>em</strong>presta<strong>do</strong> <strong>do</strong> nome <strong>do</strong><br />

técnico <strong>da</strong> seleção brasileira no Mundial <strong>de</strong> <strong>2002</strong>, Luís Felipe, chama<strong>do</strong> pela mídia <strong>de</strong> Filipão.<br />

O velho exercia, <strong>em</strong> seu mun<strong>do</strong> imaginário, a função <strong>de</strong> técnico, conforme po<strong>de</strong>mos verificar<br />

na seguinte passag<strong>em</strong>: “rabiscava num velho e seboso papel uns <strong>de</strong>senhos: as tácticas <strong>do</strong> jogo.<br />

Filipão organizava os esqu<strong>em</strong>as tácticos, arquitectava a força anímica. Que se estava <strong>em</strong> pleno<br />

Mundial, a distracção é a morte <strong>do</strong> guar<strong>da</strong>-re<strong>de</strong>s” (COUTO, 2011, p. 100). Assim sen<strong>do</strong>, o<br />

nome <strong>do</strong> personag<strong>em</strong> figura como um recurso paródico intencional <strong>do</strong> autor. Sobre a<br />

construção explícita <strong>da</strong> paródia, Hutcheon (1989, p. 54) coloca que “as imposições são<br />

<strong>de</strong>libera<strong>da</strong>s e até necessárias para a sua compreensão”. Nessa linha <strong>de</strong> raciocínio, a<br />

recorrência alusiva ao nome <strong>do</strong> técnico <strong>da</strong> seleção brasileira, na época, torna-se uma estratégia<br />

narrativa para a crítica ao mun<strong>do</strong> irreal <strong>do</strong> futebol que penetrava nos espaços moçambicanos<br />

como uma forma <strong>de</strong> mascarar reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e tensões ocasiona<strong>da</strong>s pela miséria.<br />

Mia Couto s<strong>em</strong>pre foi um arguto observa<strong>do</strong>r <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu país, s<strong>em</strong>pre<br />

transfigura<strong>da</strong> <strong>em</strong> seus inúmeros livros <strong>de</strong> <strong>contos</strong>, conforme expõe Benito (2007, p. 92):<br />

En una entrevista, ya <strong>de</strong> hace algunos años, a Mia Couto <strong>em</strong> el Jornal <strong>de</strong><br />

Letras, Agosto <strong>de</strong> 1991, el escritor <strong>da</strong>b acuenta <strong>de</strong> los <strong>da</strong>tos obteni<strong>do</strong>s en una<br />

encuesta realiza<strong>da</strong> en barrios suburbanos <strong>de</strong> Maputo y <strong>de</strong>cía que muchos <strong>de</strong><br />

los entrevista<strong>do</strong>s estaban convenci<strong>do</strong>s <strong>de</strong> que los locutores <strong>de</strong> televisión<br />

podían ver a los telespecta<strong>do</strong>res a través <strong>de</strong> la pantalla. Esto <strong>de</strong>muestra que<br />

um aparato <strong>de</strong> televisión no es solamente una intrusión técnica, sino que se<br />

entien<strong>de</strong> como una visita personal. 1<br />

Em outro conto <strong>do</strong> mesmo livro, chama<strong>do</strong> “Enterro televisivo”, existe uma mistura <strong>do</strong><br />

universo fictício <strong>da</strong>s novelas mexicanas com o <strong>da</strong>s novelas brasileiras, consumi<strong>da</strong>s por um<br />

casal <strong>de</strong> velhos, para qu<strong>em</strong> os personagens são reais.<br />

O mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> futebol televisiona<strong>do</strong>, para o mendigo Sexta-Feira, representa a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> estar <strong>em</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> com outros indivíduos, ou seja, sentir-se integra<strong>do</strong>. Já<br />

Filipão Timóteo <strong>de</strong>seja, mesmo sozinho, com<strong>em</strong>orar a vi<strong>da</strong> através <strong>da</strong> dupla ficção<br />

proporciona<strong>da</strong> pelo jogo <strong>de</strong> futebol. A esse respeito Benito afirma: “Si en los casos anteriores<br />

había una <strong>de</strong>nuncia <strong>de</strong> sole<strong>da</strong>d, <strong>em</strong> este en concreto asistimos a una búsque<strong>da</strong> <strong>de</strong> la felici<strong>da</strong>d<br />

que, através <strong>de</strong> es a pantalla fingi<strong>da</strong>, llena el vacío <strong>de</strong> una vi<strong>da</strong> miserable con una alegría real”<br />

(2007, p. 94). 2<br />

O tom <strong>de</strong> crítica social <strong>do</strong> conto vai se alargan<strong>do</strong>, mas não representa uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong> na<br />

literatura <strong>do</strong> escritor moçambicano. Em suas inúmeras entrevistas, Mia Couto – ativo<br />

combatente <strong>da</strong> Frelimo (Frente <strong>de</strong> Libertação <strong>de</strong> Moçambique), mais tar<strong>de</strong> afasta<strong>do</strong> <strong>de</strong>la,<br />

1 Em uma entrevista, já há alguns anos ao Jornal <strong>de</strong> Letras (agosto <strong>de</strong> 1991), Mia Couto referiu-se a uma<br />

pesquisa feita <strong>em</strong> bairros suburbanos <strong>de</strong> Maputo e argumentou que muitos <strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>s estavam<br />

convenci<strong>do</strong>s <strong>de</strong> que os locutores <strong>de</strong> televisão po<strong>de</strong>m ver os telespecta<strong>do</strong>res pela tela. Isto mostra que um<br />

aparelho <strong>de</strong> televisão não é apenas uma intrusão técnica, mas é concebi<strong>do</strong> como uma visita pessoal.<br />

2 Se nos casos anteriores, havia uma <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong> solidão, neste concretamente assistimos a uma busca <strong>da</strong><br />

felici<strong>da</strong><strong>de</strong> que, através <strong>de</strong> uma tela falsa, preenche o vazio <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> miserável com uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira alegria.


Anais <strong>do</strong> SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.<br />

tornan<strong>do</strong>-se um crítico <strong>do</strong> regime <strong>de</strong> governo que, segun<strong>do</strong> ele, esquecera os l<strong>em</strong>as <strong>da</strong> luta<br />

pela in<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> país - observa que “no existe globalización, sino uma simple<br />

exportación, imposición <strong>de</strong> algunas señales, ni siquiera <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los, porque el mo<strong>de</strong>lo, según<br />

él, permanece si<strong>em</strong>pre junto al produtor” (COUTO apud BENITO, 2007, p. 95). 3<br />

É mor<strong>da</strong>z a observação <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r sobre a fábrica <strong>de</strong> ilusões alicerça<strong>da</strong> pelas mídias,<br />

como po<strong>de</strong>mos observar nessa in<strong>da</strong>gação inseri<strong>da</strong> diretamente no conto: “A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> não é<br />

um sonho fabrica<strong>do</strong> pelos mais ricos?” (COUTO, 2011, p. 101). A alegria e a felici<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

construí<strong>da</strong>s pela imaginação <strong>do</strong> velho, não estão mais no jogo junto à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou seja, no<br />

estar presente nas parti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> futebol, mas, sim, no jogo aprisiona<strong>do</strong> no aparelho irreal <strong>de</strong><br />

televisão. Nesse momento, observamos a instalação <strong>do</strong> “duplo ilusório” no conto: a televisão<br />

rabisca<strong>da</strong> na pare<strong>de</strong> com carvão e a ilusão proporciona<strong>da</strong> por esse aparelho. O mun<strong>do</strong> irreal,<br />

fabrica<strong>do</strong> pela televisão, não necessita <strong>da</strong> existência <strong>do</strong> aparato tecnológico que projeta as<br />

imagens. Benito (2007, p. 95), falan<strong>do</strong> sobre a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> tecnológica <strong>em</strong><br />

Moçambique, coloca:<br />

Cuan<strong>do</strong> un país como Mozambique irrumpe en la mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong>d, el encuentro<br />

<strong>de</strong> culturas va a ser necessariamente traumático, porque no se trata <strong>de</strong> um<br />

encuentro sino <strong>de</strong> uma incursión abusiva. La mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong>d que llega a las<br />

culturas africanas no es la cultura europea, occi<strong>de</strong>ntal. Se trata <strong>de</strong><br />

<strong>em</strong>anaciones, representaciones simbólicas <strong>de</strong> esa cultura por medio <strong>de</strong> la<br />

tecnología. Se está volvien<strong>do</strong> a repetir, más o menos, el mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> relación<br />

<strong>de</strong> aquellos encuentro siniciales entre los africanos y los primeiros<br />

<strong>de</strong>scobri<strong>do</strong>res europeos que le sofrecían baratijas; lo que ocurre es que ahora<br />

essas cuentas <strong>de</strong> collar <strong>de</strong> colores brillantesson diferentes manifestaciones <strong>de</strong><br />

la tecnologia <strong>de</strong>l primer mun<strong>do</strong>. 4<br />

Não per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> vista a representação <strong>do</strong> universo moçambicano, que se irrompe na<br />

literatura <strong>de</strong> Mia Couto, a criação <strong>da</strong>s estratégias narrativas, basea<strong>da</strong>s nas figuras <strong>de</strong> <strong>do</strong>is<br />

velhos aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong>s até <strong>da</strong> digni<strong>da</strong><strong>de</strong> humana, faz com que os <strong>contos</strong>, ao<br />

dialogar<strong>em</strong> com o fantasioso universo futebolístico televisiona<strong>do</strong>, apresent<strong>em</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

olhar para o mun<strong>do</strong> moçambicano, frente aos rastros violentos <strong>do</strong> choque <strong>de</strong> culturas, mesmo<br />

<strong>em</strong> se tratan<strong>do</strong> <strong>da</strong> cultura brasileira, tão próxima <strong>da</strong> <strong>de</strong> Moçambique.<br />

Para entrar nesse universo ilusório particular, o personag<strong>em</strong> <strong>do</strong> conto faz uma espécie<br />

<strong>de</strong> ritual, como po<strong>de</strong>mos observar na passag<strong>em</strong> que segue:<br />

Filipão chegava manhã ce<strong>do</strong>, carregava no falso botão <strong>do</strong> inexistente<br />

aparelho e se sentava na habitual mesa, ao fun<strong>do</strong> <strong>da</strong> sala. Pedia a sagra<strong>da</strong><br />

cerveja e sorvia o líqui<strong>do</strong> como se bebesse pelos olhos lentos. Bebia to<strong>do</strong><br />

3 não existe globalização, mas apenas uma simples exportação, imposição <strong>de</strong> alguns sinais, n<strong>em</strong> sequer <strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>los, porque o mo<strong>de</strong>lo, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com ele, permanece s<strong>em</strong>pre junto <strong>do</strong> produtor.<br />

4 Quan<strong>do</strong> um país como Moçambique irrompe na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>, o encontro <strong>de</strong> culturas será necessariamente<br />

traumático, porque não se trata <strong>de</strong> um encontro, mas sim, uma incursão abusiva. A mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> que chega para<br />

as culturas africanas não é cultura europeia, oci<strong>de</strong>ntal. Trata-se <strong>de</strong> <strong>em</strong>anações, representações simbólicas <strong>de</strong>ssa<br />

cultura por meio <strong>da</strong> tecnologia. Está se tornan<strong>do</strong> mais ou menos a repetir, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> relação <strong>da</strong>queles<br />

encontros iniciais entre os africanos e os primeiros <strong>de</strong>scobri<strong>do</strong>res europeus que lhes ofereciam penduricalhos,<br />

enfeites s<strong>em</strong> valor; o que acontece agora é que estas contas <strong>de</strong> colar <strong>de</strong> cores brilhantes são manifestações<br />

diferentes <strong>da</strong> tecnologia <strong>do</strong> primeiro mun<strong>do</strong>.


ele, a sua alma era uma boca. Estalava a língua, rui<strong>do</strong>samente (COUTO,<br />

2011, p.100).<br />

Po<strong>de</strong>mos estabelecer uma comparação entre essa televisão improvisa<strong>da</strong>, chave <strong>de</strong> fuga<br />

<strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> privações para outro <strong>de</strong> alegria, <strong>em</strong> que Filipão se investe <strong>do</strong> papel <strong>de</strong><br />

coman<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> mitológica Seleção Brasileira, com a improvisação <strong>do</strong>s campos <strong>de</strong> futebol <strong>em</strong><br />

to<strong>do</strong>s os lugares <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real. Nesses espaços improvisa<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s, especialmente, crianças<br />

se divert<strong>em</strong>, conseguin<strong>do</strong>, por alguns momentos, afastar a tristeza provoca<strong>da</strong> pela miséria <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> cotidiana.<br />

Segun<strong>do</strong> Domingos (2006, p. 406), essa improvisação <strong>do</strong> espaço para o jogo <strong>de</strong><br />

futebol também ocorreu <strong>em</strong> Moçambique:<br />

A sua expansão pelo território terá si<strong>do</strong> rápi<strong>da</strong>, como comprova uma crónica<br />

que O Bra<strong>do</strong> Africano publicou <strong>em</strong> 1939 (21/1, p. 5) sobre a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>sportiva<br />

no distrito <strong>de</strong> Inhambane: “O futebol, aqui, como <strong>de</strong> resto <strong>em</strong> to<strong>da</strong> a parte, é<br />

o <strong>de</strong>sporto – rei por excelência. É o <strong>de</strong>sporto que se pratica <strong>em</strong> maior escala,<br />

e é ver por essas estra<strong>da</strong>s que atravessam o Distrito vários campos <strong>de</strong> futebol<br />

(?) com árvores no meio e <strong>do</strong>is bambus espeta<strong>do</strong>s no solo e atravessa<strong>do</strong>s por<br />

um terceiro a servir<strong>em</strong> <strong>de</strong> balizas!”<br />

O final <strong>do</strong> conto r<strong>em</strong>ete-se ao provérbio usa<strong>do</strong> como epígrafe <strong>em</strong> sua abertura, assim<br />

posto: “O probl<strong>em</strong>a não é ser mentira. É ser mentira <strong>de</strong>squalifica<strong>da</strong> (Provérbio <strong>da</strong> Munhava)”<br />

(COUTO, 2011, p. 99). O nome <strong>do</strong> bar, “Bar <strong>da</strong> Munhava”, indicia tratar-se <strong>de</strong> um bairro<br />

pobre <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> maior ci<strong>da</strong><strong>de</strong> moçambicana, Beira, <strong>em</strong> que nasceu Mia Couto. Supomos que<br />

escritor possa ter liga<strong>do</strong> o provérbio com o local <strong>da</strong> narrativa e, a partir <strong>de</strong>ssa ligação,<br />

orienta<strong>do</strong> a construção narrativa. Para tanto, <strong>de</strong>stacamos que a tentativa <strong>do</strong>s filhos <strong>de</strong> acabar<br />

com a alegria <strong>do</strong> pai, Filipão, torna-se um fracasso total. Preocupa<strong>do</strong>s com o olhar <strong>do</strong>s outros,<br />

conforme explicita o diálogo extraí<strong>do</strong> <strong>do</strong> conto: “- Já to<strong>do</strong>s se ri<strong>em</strong>, pai – confirmava o mais<br />

novo” (COUTO, 2011, p. 100), os filhos não se atêm para o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> que o velho<br />

fabricara para si. A mentira que inventam acaba sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>squalifica<strong>da</strong>. Dessa forma, o<br />

provérbio é retoma<strong>do</strong>: a seleção <strong>de</strong> futebol <strong>de</strong> Moçambique sequer participara <strong>do</strong> referi<strong>do</strong><br />

mundial. Mesmo imprimin<strong>do</strong> à carta o caráter <strong>de</strong> oficiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> escrita, como mostra o<br />

trecho: “Era um papel sério, com carimbo e redigi<strong>do</strong> <strong>em</strong> máquina” (COUTO, 2011, p. 101),<br />

não consegu<strong>em</strong> penetrar no mun<strong>do</strong> imaginário <strong>do</strong> pai. O <strong>do</strong>cumento irrefutável, sério, feito<br />

por aqueles que estão no po<strong>de</strong>r, a Fe<strong>de</strong>ração Nacional <strong>de</strong> Futebol, é rechaça<strong>do</strong> pelo velho.<br />

Essa recusa <strong>em</strong> acreditar naqueles que queriam retirar-lhe a alegria é feita através <strong>do</strong> mesmo<br />

engenho <strong>de</strong> que se val<strong>em</strong> os filhos: “E o pai esten<strong>de</strong>u um envelope ao filho. Tinha selo <strong>do</strong><br />

Brasil e estava assim en<strong>de</strong>reça<strong>da</strong>: Senhor Filipão Timóteo, Bar <strong>da</strong> Munhava. Assim, s<strong>em</strong><br />

<strong>em</strong>en<strong>da</strong> n<strong>em</strong> gatafunho. Em baixo, a assinatura b<strong>em</strong> <strong>de</strong>senha<strong>da</strong>: Ronaldinho Gaúcho”<br />

(COUTO, 2011, p. 101). Po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r que a carta fora <strong>da</strong><strong>da</strong> ao velho por alguém<br />

que <strong>de</strong>sejava troçar <strong>de</strong> sua insani<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas ele, <strong>de</strong> maneira astuta, consegue usá-la para<br />

continuar na sua vi<strong>da</strong> imaginária, <strong>da</strong><strong>do</strong> que sua i<strong>da</strong> com os filhos para a capital representaria,<br />

talvez, a sua internação <strong>em</strong> um hospício e, até mesmo, a morte provoca<strong>da</strong> pela solidão.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Anais <strong>do</strong> SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.<br />

Esses <strong>contos</strong> <strong>de</strong> Mia Couto misturam o universo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> dura <strong>de</strong> um país,<br />

assola<strong>do</strong> por probl<strong>em</strong>as sociais oriun<strong>do</strong>s <strong>da</strong> <strong>de</strong>silusão ou, mesmo, <strong>da</strong> traição, representa<strong>da</strong>


pelos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>s no projeto <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência, com a fantasia e o sonho proporciona<strong>do</strong>s<br />

pela transmissão televisiva <strong>do</strong>s jogos <strong>de</strong> futebol.<br />

Falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> futebol, ora <strong>de</strong> forma irônica, ora humanizan<strong>do</strong> mendigos, ora <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />

oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sonhar a um velho <strong>de</strong> nome “Filipão Timóteo”, com a função <strong>de</strong> técnico, o<br />

escritor moçambicano põe <strong>em</strong> questão to<strong>da</strong> uma tessitura humano-social que vê, na ilusão <strong>da</strong>s<br />

imagens televisivas, uma saí<strong>da</strong> onírica <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong> que quase tu<strong>do</strong> é priva<strong>do</strong> aos<br />

personagens <strong>do</strong> conto, menos o direito <strong>de</strong> se imaginar<strong>em</strong> nos grama<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Mundial <strong>de</strong> <strong>2002</strong>.<br />

Em ambos os <strong>contos</strong>, a perspicácia <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, que faz uso <strong>de</strong> uma linguag<strong>em</strong><br />

povoa<strong>da</strong> <strong>de</strong> jargões futebolísticos, <strong>de</strong>ixa entrever, nessa a t<strong>em</strong>ática, uma feroz crítica social.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Anais <strong>do</strong> SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.<br />

BENITO, Ana Belén García. El comunica<strong>do</strong>r Mia Couto. Limite, vol. 1, pp. 91-102, 2007.<br />

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DOMINGOS, Nuno. Futebol e colonialismo, <strong>do</strong>minação e apropriação: sobre o caso<br />

moçambicano. Análise Social, Lisboa, vol.179, p. 397-416, 2006.<br />

HUTCHEON, Lin<strong>da</strong>. Uma teoria <strong>da</strong> paródia. Trad. Teresa Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989.<br />

MARQUES, José Carlos. A falação esportiva: o discurso <strong>da</strong> imprensa esportiva e o aspecto<br />

mítico <strong>do</strong> futebol. In: XXV CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA<br />

COMUNICAÇÃO, <strong>2002</strong>, Salva<strong>do</strong>r. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong> 10 set. 2011.

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