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Baixe o Livro - poeminflamado

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Projeto Poeminflamado:<br />

A Voz Tridimensional do Poeta França<br />

Coordenação do projeto / Produção executiva / Pesquisa<br />

:: Laine Amaral<br />

Coordenação e orientação de pesquisa<br />

:: André Telles do Rosário<br />

Pesquisa / Catalogação e digitalização do acervo<br />

:: Rafaela Valença Gomes<br />

Produção / Pesquisa<br />

:: Juan Ramón Martínez<br />

Digitalização, tratamento e edição fotográfica<br />

:: Mateus Sá<br />

Digitalização, tratamento e edição audiovisual<br />

:: Mariano Pikman<br />

Criação do site www.poetafranca.com<br />

:: Jailton Ferreira<br />

Poeminflamado<br />

Edição<br />

:: Rafaela Valença Gomes e André Telles do Rosário<br />

Textos<br />

:: Miró da Muribeca, Rafaela Valença Gomes, André Telles do Rosário,<br />

Carolina França, Juan Ramón Martínez, Laine Amaral e Silvana Beraldo<br />

Revisão<br />

:: Rafaela Valença Gomes, André Telles do Rosário e Gabriela Monteiro<br />

Projeto Gráfico<br />

:: João Lin<br />

Designer Assistente<br />

:: Kleber Monteiro<br />

Capa<br />

:: Sil Beraldo, Pedra França e João Lin<br />

Ilustrações<br />

:: Mascaro e Sil Beraldo


SUMÁRIO<br />

Prefácio 7<br />

Apresentação 9<br />

Cor da Exclusão 16<br />

Cafuné 42<br />

Cartões 68<br />

Agendas da Vida 76<br />

Quarto de Ofício 116<br />

Luz do Litoral 122<br />

Poemas para voz 132<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos 138<br />

Posfácio 176<br />

Depoimentos 178<br />

A Herança do Poeta França 178<br />

Memória do Teatro dos Amadores de Olinda – TAO 180<br />

Memória Mão-de-Veludo 182<br />

Notas dos poemas 188<br />

Lista de obras publicadas 207<br />

Índice remissivo de poemas 208


PRÉ FRANÇA<br />

Falar de França não é fácil,<br />

inda mais prefácio, por isso serei conciso.<br />

Andavam juntos, elegância e poesia,<br />

lado a lado.<br />

Eu quase sempre ali do lado.<br />

Nos recitais da vida<br />

vividas tantas coisas...<br />

A porta aberta na madrugada das Olindas<br />

para os irmãos de coração.<br />

Por ele ninguém dormiria nas ruas.<br />

Às vezes me confundia:<br />

Ele é a poesia ou a poesia é ele?<br />

Eu bem que podia perguntar se ele era a poesia<br />

mas era é passado<br />

e França não passou.<br />

Poeta não morre,<br />

vira páginas.<br />

Agora cabe ao caro leitor<br />

ir folha a folha semeando o que o negão plantou.<br />

Plantou não.<br />

Planta.<br />

Aqui a palavra “era” já era.<br />

(Aqui agora é quinta-feira queiram ou não queiram os juízes)<br />

Faltam alguns minutos para meia-noite<br />

França tá chegando...<br />

“Vaitimbora, Isadora, tu é mulher de Xangô”<br />

Chega.<br />

Senão fico triste.<br />

Dona Maria,<br />

Dona Maria,<br />

Olha o carro da economia!<br />

Um poema apenas por um real!<br />

Risos sérios ao poeta errante...<br />

Avante leitores...<br />

Miró da Muribeca.<br />

Poeta, parceiro de recitais e amigo de França.


APRESENTANDO A AÇÃO<br />

O incêndio<br />

“(...) Pois eu tenho o dever de<br />

Registrar a minha história”<br />

França<br />

Valdemilton Alfredo de França nasceu no Engenho Pirapama, área<br />

rural da cidade do Cabo de Santo Agostinho (PE), e lá foi criança. Filho<br />

primogênito de Dona Jandira e Seu Manoel, foi o primeiro rebento de<br />

uma humilde família negra; abriu caminho para muitos irmãos. Foi menino<br />

em trânsito, iniciou aos oito anos sua itinerância entre cidades e<br />

ninhos: entre o Cabo e Olinda, entre a casa da mãe e o aconchego da<br />

avó Carolina.<br />

Em tempos de tenra mocidade, já se apresentava articulado nos palcos<br />

da vida: aluno estudioso na escola, pastor mirim na igreja, trabalhador<br />

de destaque da fábrica. Mas na fábrica, na igreja e na escolinha,<br />

Milton já não cabia. Da luta pela sobrevivência e da vocação precoce em<br />

trilhar novos caminhos surgiu a sua sabedoria: aprendeu a se resguardar<br />

do emaranhado de determinações sociais e valores preestabelecidos e<br />

se permitiu saborear o mundo. Sabê-lo intensamente. De dentro. E ele,<br />

o mundo, foi o seu mestre.<br />

Foi França, assim, entrar no jogo dos homens: dominá-lo (o jogo)<br />

para subvertê-lo. Então ele – o único da família – passou pela Academia<br />

(Psicologia, Economia, até a posterior conclusão em Artes Cênicas) e por<br />

cargos de chefia no serviço público. Provou a si mesmo e à sociedade<br />

que, a despeito de toda opressão e de todo o preconceito, era um sujeito<br />

capaz. Mas logo se deparou com a necessidade de um projeto de vida<br />

mais arrojado, de um mergulho mais profundo, de uma religação com<br />

seu passado, com a memória de seu povo, com o essencial. E “perder o<br />

medo de alcançar o SONHO”...<br />

Nessa encruzilhada, iniciou uma busca solitária – por muitos incompreendida<br />

– e encontrou a sua saída: superar as aparências e as superfícies<br />

e acentuar os conflitos, as ambivalências e os dinamismos da<br />

condição humana, da relação intersubjetiva e da nossa realidade social.<br />

As ferramentas por ele escolhidas foram a arte-educação e a poesia. A<br />

partir daí, ganhou espaço imensurável na sua biografia a celebração: da<br />

vida, do corpo, do pensamento crítico, da voz, da liberdade, do encontro,<br />

do diálogo, da poesia.<br />

8<br />

Poeminflamado<br />

Apresentação<br />

9


O corpo e a voz:<br />

elementos ATIVOS<br />

“A palavra mata.<br />

A palavra mesmo morta mata.”<br />

França<br />

Empoderado de sua voz, de seu livre pensar e de uma crítica e aguda<br />

consciência da(s) verdadeira(s) realidade(s) de seu povo, o Arte-educador,<br />

Poeta, Encenador, Ator e Capoeirista França desvelou ao seu aluno/leitor/espectador/interlocutor<br />

essa tal estrutura de desigualdade<br />

da nossa civilização. Alguém no sofá ou na plateia poderia lhe perguntar:<br />

– Mas, se ninguém te ouve, como podes falar? Bom, na contramão<br />

dos processos da atual sociedade do espetáculo, em que o cidadão é<br />

paralisado e manipulado pelo medo, França agiu ativa e politicamente<br />

em nome da restituição do poder do livre pensar-sentir-agir-falar do ser<br />

humano. O caminho? O “do meio” – a arte, a imaginação, a educação, a<br />

criatividade, a poesia. A arma? Seu corpo, sua palavra e sua voz.<br />

O artista teceu sua filosofia de vida e sua arte na organicidade da<br />

conexão entre voz, corpo e território, sempre partindo de um fértil<br />

processo de construção de suas localizações identitárias no plano do<br />

gesto e do corpo. Foi buscar na cultura de seus ancestrais africanos<br />

a articulação simbólica da corporalidade com a territorialidade. Adotou<br />

como intercessores diretos Solano Trindade e Zumbi dos Palmares.<br />

E foi viver a experiência corporal como uma forma de conhecimento<br />

intuitivo, direto sobre o mundo. Entender seu corpo como um microcosmo<br />

do mundo e como parte integrante da natureza, não como seu<br />

contraponto. Experimentou em seu próprio corpo a sua cultura, sua<br />

memória, as relações com o divino, a sua luta e a resistência: no cabelo<br />

e na filosofia Rasta, nos movimentos de capoeira, na poesia falada.<br />

Para o artista, a questão não era sobreviver ou viver da arte: a vida-<br />

-morte-vida requer um despertar cotidiano da mente e do corpo, exige<br />

movimento, interação. E tal qual um Exu literário, França movimentou<br />

a cena local, propiciou o contato e a troca entre os poetas e o público,<br />

transportou a sua e muitas outras falas. Abriu caminhos.<br />

Nesse diapasão, França espalhou muitas sementes: desde o fim da<br />

década de 1990, com os primeiros encontros poéticos promovidos em<br />

seu bar Sociedade dos Poetas Vivos até a apoteose da comunhão poética<br />

nas madrugadas de Olinda, no seu semanal recital poético Eu, Poeta<br />

Errante (2000-2007). Isso sem falar em Felipe, Carolina, Danilo e Pedra,<br />

seus descendentes diretos; sem falar também nas incontáveis crianças<br />

que participaram de suas aulas; nos não-atores e até mesmo atores que<br />

com ele fundaram o coletivo Teatro dos Amadores de Olinda; nos admiradores<br />

da lógica antimercadológica da Mão-de-Veludo Edições Artesanais,<br />

tocada por ele e pela artista gráfica Sil. Falar de França é olhar<br />

para além de sua obra. É falar, sobretudo, de seu público, que com ele<br />

aprendeu a participar ativamente da experiência artística.<br />

Assim, o compassivo e pacífico lutador, o terno guerreiro da arte-<br />

-educação, da militância literária, do anticonformismo, da contracultura<br />

e do exercício responsável da liberdade foi e continua sendo figura<br />

mítica da cidade de Olinda. Seu sorriso franco, seus ensinamentos e<br />

seus versos permanecem vivos nos becos e nas ladeiras da Cidade Alta,<br />

mas principalmente na memória dos com que ele compartilharam a<br />

experiência do altruísmo e da autotransformação através da poesia.<br />

A poesia viva, os caminhos abertos:<br />

sem interdições.<br />

“Grite o seu pensamento<br />

Esparrame sua dor<br />

Multiplique o alarido<br />

Pra que não descanse em paz<br />

o seu opressor”<br />

França<br />

O corpo, a voz, a cultura e a memória do negro interditados. Mas<br />

França não silenciou. Ele acreditava que o poeta negro tem a missão<br />

de expor as feridas da sociedade: não transformando essas feridas em<br />

obra de arte (forjando, talvez, uma estética do oprimido), mas sim assumindo<br />

o papel de porta-voz de seu povo, de personagem da História.<br />

A narrativa crônica e concreta do cotidiano, das ladeiras e dos becos –<br />

uma das faces de sua poesia – passa, assim, a revelar a rede de forças e<br />

práticas culturais que tecem as relações de poder da sociedade.<br />

Foi para falar sobre essas interdições, perdas, desagregações e diásporas<br />

– que até hoje ecoam nos caminhos e vidas dos afro-brasileiros – que o poeta<br />

construiu sua primeira obra, A Cor da Exclusão. Concebida como performance<br />

(1996), transformou-se em livro (1998) e, na década de 2000, foi também<br />

peça de teatro. Daí se auscultam as fronteiras fluidas, líquidas, da arte de França:<br />

teatro-literatura, performance-poesia, oralidade-escritura, arte-vida.<br />

10<br />

Poeminflamado<br />

Apresentação<br />

11


A performatividade latente nos impressos do poeta nos revela uma<br />

das diversas faces do hibridismo característico de sua obra: a função<br />

política e estética de oralização da escrita. Numa verdadeira reação à<br />

normatização da sociedade e da arte (operada por mecanismos hegemônicos<br />

de controle social, pela interdição à memória e à voz do “subjugado”<br />

e pelo primado da escrita) o autor faz questão de reiterar a<br />

legitimidade da milenar cultura de transmissão oral do conhecimento.<br />

Tanto na dinâmica dos seus recitais e performances, quanto na comunicabilidade<br />

diferenciada de sua palavra escrita.<br />

Vale salientar que a construção visual do poema se faz elemento<br />

dinâmico na poesia escrita de França, corroborando para uma relação<br />

integrativa entre forma e conteúdo, para uma possibilidade dinâmica,<br />

ativa da palavra. Tal diálogo gráfico encontrava correspondência na realização<br />

oral desses poemas, em ocasião dos recitais: através do ritual da<br />

voz em ação, da palavra indo e vindo, do corpo do poeta como suporte<br />

para a arte e para a celebração. Através da simbólica travessia de fronteiras:<br />

na integração do poeta com a plateia, no improviso, no fenômeno<br />

concreto do interlocutor como coautor daquela celebração, daquela<br />

performance, daquele acontecimento artístico, corporal, espiritual.<br />

Também a bem-estruturada e apurada escritura de França requer<br />

uma genuína disponibilização de todos os sentidos de quem com<br />

ela interage. Nela, há sempre uma ação: personagens e eu lírico que<br />

agem, atuam, transformam. Sua poética é tecida não por imagens,<br />

mas por cenas. Algumas delas recorrentes: espetáculo, luzes acesas,<br />

cortinas abertas; o subir e o descer as ladeiras da cidade; os sonhos, a<br />

ilusão, as máscaras, as armaduras; portas se abrindo. Grandes narrativas<br />

e poemínimos – estes mais presentes no Cafuné – assaltam-nos<br />

com o refinado senso de humor e o erotismo provocante do poeta. O<br />

imaginário da gênese e da morte e uma lírica amorosa lúcida chegam<br />

pisando forte nas linhas e entrelinhas da poesia de França. Sobretudo,<br />

dela se intui a questão da urgência da comunicabilidade: interpessoal,<br />

endereçada, mas também num plano maior, do social.<br />

Assim, num contexto em que muitas vezes o ato de produção artística<br />

por si só se faz empenho, engajamento, resistência cultural, o<br />

poeta assume para si a função de instrumentalizar o leitor para essa<br />

travessia: da passividade ao protagonismo, “da sala para a tela”. Mas<br />

não se trata aqui de uma arte panfletária, compromissada com outros<br />

discursos e dogmas. A arte de França é compromissada com o movimento,<br />

com o diálogo, com a sua própria circulação. Numa função de<br />

encaminhar o indivíduo, através do diálogo – neste caso artístico – à<br />

encruzilhada, para que ele possa, por si só, escolher seus caminhos,<br />

tomar suas decisões. Abrir as portas, instigar, provocar, atear fogo!<br />

Poeminflamado<br />

Voz-lume a clarear o esquecido, a conflagrar revelações, a queimar<br />

o silêncio outrora outorgado. Voz reconquistada, a narrar a história.<br />

Outra História... Palavras e ideias que latejam aos sentidos de quem as<br />

experimentam. Corpoesia, performance, diálogo, catarse. Chama que<br />

se alastra, que corre ligeira a expor feridas e a espalhar denúncias, novas<br />

perspectivas, ternura, versos, provocações – no contato, na intersubjetividade,<br />

no olho no olho, no ser-em-relação, na explosão... Arte-<br />

-combustível que encurta a solene distância entre o leitor e a poesia,<br />

entre a plateia e o artista, entre o ouvinte aprendiz e o griot.<br />

Amplificar a voz do poeta França e, em certa medida, estender ao<br />

novo leitor essa tal incendiária e irreproduzível experiência do contato<br />

pessoal com o autor e sua artevida são os objetivos fulcrais dos que<br />

colaboraram nesta publicação. Para lograr esta tarefa, reuniram-se alguns<br />

bons amigos do poeta. Guiados pelo aprendizado e pelo amor<br />

que França proporcionou-lhes em vida, realizaram uma pesquisa científica<br />

de mapeamento e catalogação de todo seu acervo escrito, manuscrito<br />

e audiovisual. Recebeu o nome Poeminflamado – A Voz Tridimensional<br />

do Poeta França e foi subsidiada pelo Fundo Pernambucano<br />

de Incentivo à Cultura (Funcultura/Fundarpe).<br />

Um dos resultados dessa empreitada chega, agora, às mãos do leitor:<br />

uma antologia da obra de França – entre publicados e inéditos, escritos e falados,<br />

papel e vídeo, letra e voz. O tutano da presente edição é dividido em<br />

capítulos: os dois primeiros remetem aos livros A Cor da Exclusão (1998) e<br />

Cafuné (2003). Em seguida, está a reunião de poemas que circularam sob a<br />

forma de Cartões (1998-2007), além dos demais poemas publicados nas famosas<br />

Agendas da Vida (2000-2009). Na sequência, dois projetos editoriais<br />

em que o poeta colaborou: Quarto de Ofício (livro-poema de Angelo Bueno,<br />

e com intervenções de França, Erickson Luna e Mauro) e Luz do Litoral<br />

(2005), livro de fotografias de Mateus Sá e pontuado por poemas de França.<br />

Em Poesia para voz apresentam-se poemas que circularam bastante na<br />

oralidade, mas que o poeta nunca dantes havia publicado por escrito. Finalmente,<br />

os inéditos em letra e em voz em O homem que marcha sobre si.<br />

12<br />

Poeminflamado<br />

Apresentação<br />

13


Contudo, a busca por uma adequada representação da tridimensionalidade<br />

da voz do poeta na presente edição nos ofereceu um delicioso<br />

desafio: como agregar ao material impresso ao menos uma<br />

centelha da performance, da fala, da teatralidade, da materialidade,<br />

do dialogismo e da plenitude de sua experiência poética – aquela que<br />

somente quem o viu em ação pôde experimentar? Paradoxalmente,<br />

apenas através de outro suporte, para além do papel e da tinta: a mídia<br />

audiovisual. Assim, no DVD anexo à presente publicação elencamos<br />

momentos capturados por diversos videastas e fotógrafos da cidade,<br />

numa seleção de performances, entrevistas, recitações e outros episódios<br />

da vida do autor. Através deste DVD e do site http://poetafranca.<br />

com – outro produto da pesquisa – o leitor poderá acessar de maneira<br />

prismática o universo tridimensional da voz de França.<br />

França vive. Divirtam-se com sua presença encantadora e libertária.<br />

E uma dica: esqueçam-se dos bombeiros...<br />

14 Apresentação<br />

Poeminflamado<br />

Rafaela Valença Gomes.<br />

Tradutora, editora e pesquisadora da obra de França.


A Cor da Exclusão I //16 a 40


Preconceito II<br />

É luz alta na cara<br />

A gente se sente<br />

Exposta<br />

Na dúvida<br />

Será que você vai ficar?<br />

Também pode ser<br />

quando você se<br />

esconde atrás<br />

dessa câmera<br />

seus olhos<br />

dizendo click<br />

e os meus,<br />

na TV<br />

sem remelas.<br />

No mundo dos sonhos<br />

A tua imagem veio<br />

e vinha até que em<br />

estátua de sal<br />

materializou-se<br />

na minha vida<br />

O outro ser<br />

que tecemos em teias<br />

às quais bezuntamos<br />

venenos e feitiçarias<br />

te clama do passado<br />

Caldeirão derramado em<br />

aparente acidente casual<br />

diz que a hora de partir<br />

não coincide com o horário<br />

do trem.<br />

18<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

19


Dois sorrisos<br />

tão abertos<br />

quase indecentes<br />

inconsequentes<br />

andam de mãos dadas<br />

nas ruas nas casas nas festas<br />

No riso o tiro mortal<br />

de quem diz e acerta em cheio<br />

que apesar de<br />

tanta exploração<br />

a felicidade<br />

também é um alvo<br />

a se<br />

conquistar<br />

A Linda e Mauro<br />

Não sei se há o que dizer<br />

já que estou na fase do sentir<br />

há outra dimensão na expressão<br />

do sentimento (a comunicação<br />

transcende a palavra e o pensamento)<br />

Nem sei se há o que esperar de nós<br />

se eu estou na loucura do querer<br />

há outra linguagem, outro signo, quando<br />

a voz do coração fala mais alto<br />

e abranda o tédio da silenciosa razão<br />

Na verdade não há, bem sei, o que saber<br />

somos todos tão leigos nesses assuntos<br />

Pobres de nós, desastrados alquimistas<br />

de desejos e frustrações acumulados<br />

na melhor de seis ou oito décadas<br />

mergulhados em aleatórias proporções<br />

de temperatura e pressão, e, presos<br />

à ampulheta de um tempo metafísico<br />

Onde trinta e poucos anos<br />

se revivem, plenamente, em alguns minutos!<br />

20<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

21


Posso vislumbrar meu futuro III<br />

num mundo de caricatos moribundos<br />

Sou o anterior e assim sendo<br />

mais belo, mais eu, mais puro<br />

Era apenas uma sombra<br />

hoje, sobra luz agonizante<br />

como pás de cal em cima do assunto<br />

Monólogo: monótono proparoxítona<br />

ou seja, me sentas na sílaba fraca<br />

A palavra mata.<br />

A palavra mesmo morta mata.<br />

Olho ao redor e pressinto<br />

labirintos em espirais coloridos<br />

longe do arco-íris; perto de ti<br />

tão perto que te confunde<br />

A roda emperra na areia da frase solta<br />

e eu guardo meu riso de escárnio<br />

para usá-lo na presença<br />

de apenas uma testemunha:<br />

O meu retrovisor.<br />

No princípio IV<br />

ROBOCOP invadia<br />

a favela<br />

apenas através<br />

da tela<br />

Aberta a janela<br />

para o pontapé<br />

na porta abaixo<br />

Na ponta da língua<br />

a humilhação<br />

perante os nossos filhos<br />

Na ponta dos dedos<br />

a bolinação<br />

nas nossas mulheres<br />

molhadas de água e sabão<br />

E o estalido<br />

que estava escondido<br />

na palma da mão?<br />

E o estampido<br />

que explode, na cara da gente,<br />

a lei e o tubo<br />

da TV:<br />

Dez pedaços de cena real<br />

espalhados na sua frente...<br />

22<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

23


Vaitimbora V<br />

Isadora<br />

Vaitimbora<br />

Tu é mulé de Xangô<br />

- Mulé de Xangô<br />

Foi um dia um dia foi<br />

Ogum carregou<br />

Num carro de boi<br />

- Você me rejeita<br />

você não me quer<br />

Olhalá sou mulé<br />

De quem eu quiser<br />

Vai-te embora, Isadora<br />

Não foi assim, não senhora<br />

Isadora vai-te embora<br />

Vaitimbora Isadora<br />

Isadora vaitimbora<br />

Oxalá que te acompanhe<br />

Isadora vem timbora<br />

Oxalá que me perdoe<br />

Aliás, não devo nada<br />

Isadora vem timbora<br />

Ah, os meus sentidos VI<br />

tão sentidos, são gemidos<br />

tão perdidos, são erigidos<br />

quando não tenho ereção<br />

Ai, os meus miolos<br />

são tijolos, são abrolhos<br />

são atolos, são tão tolos<br />

quando não te digo não<br />

E os meus pecados?<br />

São calados, são falados<br />

escrachados, são safados<br />

quando não tenho perdão<br />

Ui, as minhas taras<br />

minha cara, são tão raras<br />

São Saara, são tão caras<br />

quando não te meto a mão<br />

E a minha doença<br />

é a desavença tão imensa<br />

de tua presença tão intensa<br />

Eu sou são. Eu sou são?<br />

24<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

25


Vamos continuar comendo porcarias VII<br />

fudendo às Marias, bebendo excreções<br />

fazendo mais Josés que nos puxarão os pés<br />

antes de aterrisarmos em poderosos tapetes<br />

VO<br />

A<br />

DO<br />

RES<br />

TNT-BUM, BHT-BUM, BNH-BUM, DDDT<br />

ML IML de antecadáveres UHS VHS nenhum sinal dela<br />

aqui entre minhas pernas<br />

SOS pedindo socorro em silêncio<br />

SE<br />

PUL<br />

CRAL<br />

Teatral. Teatro ateu, plateia plebeia<br />

Povo politicamente povo: cadela! cadela!<br />

Aleluia! Aleluia! PMDB-PEFELÊ-PTT, Pra quê ter?<br />

Enquanto o voto detona o país há quem pinte<br />

PON<br />

TES<br />

Tempo de chuva<br />

barro na casa<br />

xícara de chá<br />

mesa com pão<br />

maconha no pote<br />

o terceiro olho<br />

enxergando o óbvio<br />

que nunca sumiu<br />

A cama quente<br />

engana o só<br />

olho na rua<br />

coração grande<br />

abraça o mundo<br />

ensaia um aú<br />

enraba a sereia<br />

que nunca saiu<br />

Mês de agosto<br />

cheiro de sangue<br />

na encruzilhada<br />

um umbigo gera<br />

a Revolução<br />

Exu paquera<br />

a Pomba gira<br />

que nunca caiu<br />

26<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

27


Quando finalmente<br />

caiu a última máscara<br />

Senti-me realmente nu<br />

E os meus olhos se envergonharam<br />

da minha nudez mascarada<br />

Mais felizes Adões<br />

Comeram maçãs envenenadas<br />

pelo puro beijo da coragem<br />

Enquanto eu catolicamente<br />

Me atiro à penitência<br />

de abrir mão<br />

do doce<br />

abrigo<br />

Nem bem começou a grande crise VIII<br />

quando a classe média abarrotou<br />

os ônibus urbanos com sua boca<br />

cheirando a cream-cracker com café<br />

e deles, mudou-se o itinerário<br />

(agora RIO DOCE-CDU passa<br />

em pleno Espinheiro)<br />

para acomodar sua bunda<br />

inflada de ócio e de tédio<br />

e neles entrava madame: - Sobe, motô!<br />

e saía simples passageira: - Desce, porra!!<br />

e tomava de assalto (salto alto na mão)<br />

a enorme ladeira<br />

sentindo náuseas<br />

com o cheiro forte<br />

da Zona Norte:<br />

quem pode mais do que Deus?<br />

e entre rezas e benzeduras enfim a bênção<br />

da preta fala, da boca torta<br />

da língua morta, a lhe dizer<br />

cheia de vida:<br />

- Tu vais morrer, querida!!!<br />

28<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

29


Onze horas IX<br />

Onze anos de idade<br />

um botijão de gás<br />

asfixia a criança<br />

que sobe, ligeira, a ladeira<br />

e à força das gravidades<br />

não poderá mais crescer<br />

Sete horas<br />

Setecentas cabecinhas<br />

dentro do ônibus sagrado<br />

rezam sete ave-marias<br />

de sete em sete segundos<br />

e à força das gravidades<br />

não poderão mais subir<br />

Meia-noite<br />

O mundo do ano dois mil<br />

explode em artifícios<br />

camufla o novo holocausto<br />

sacrifica ao deus-bezerro<br />

e à força das gravidades<br />

muito sangue há de correr<br />

Sim, nós temos super-heróis<br />

Só não estão na TV<br />

nem nas áreas de lazer<br />

em qualquer dificuldade<br />

em caso de overdose<br />

e à força das gravidades<br />

CHAMEM O BATMAN!<br />

Vens tão mansa X<br />

tão bela<br />

que fechas as portas<br />

atrás de ti<br />

Vens... vem... vem...<br />

O gato brilha<br />

a porta geme<br />

a tua mão me descostura<br />

ao sabor do vento<br />

e agora te vejo<br />

precisamente:<br />

Vais?<br />

Vens ou vais?<br />

Vais... vai... vai...<br />

Vem e vai!<br />

Vai e vem!<br />

Ou sou eu que<br />

não sei se sou<br />

tobogã ou gangorra<br />

masmorra<br />

tronco<br />

calabouço<br />

porão do teu âmago<br />

te vejo tão dentro de mim!<br />

Que cacimba<br />

te mataria a sede?<br />

Se não fosse<br />

pelo teu sabor<br />

ácidoalcalino<br />

abacateabacaxi<br />

eu não saberia<br />

se tobogã ou gangorra<br />

te atrairia<br />

hoje!<br />

30<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

31


Agora percebo o sentido<br />

se me concentro explodo<br />

se explodir, estilhaçarei o mundo!<br />

Som de metal nem sempre<br />

é audível<br />

Porta fechada não é<br />

intransponível<br />

Meu medo é sintomático<br />

meu amor patológico<br />

Eu venho de uma ditadura<br />

que ditou a medida exata do meu orgulho<br />

Hoje ele é apenas o símbolo do que sonhou ser<br />

Pendula tiquetaqueando<br />

a minha vontade<br />

Se corro, perco o fôlego<br />

Se paro, perco espaço<br />

Por dizer “fim” três vezes,<br />

em linha reta<br />

tornei-me um homem reticente...<br />

O design<br />

do meu computador<br />

me mostrou<br />

que o meu know how<br />

saiu prum rolê<br />

e nunca mais voltou<br />

Aí pensei:<br />

Oh não!<br />

E now??<br />

Hoje é quase impossível<br />

ler-se em português<br />

integral<br />

Tem cada vez<br />

menos freguês<br />

na quitanda<br />

do Quintana<br />

E não se trata de uma simples<br />

consulta ao MICHAEL<br />

A ultramoderna Babel<br />

dessa vez é de papel<br />

E é garantida<br />

pelo Banco do Papai Noel<br />

Em todo caso<br />

hoje tem festa<br />

na cabana da Joana<br />

E lá talvez<br />

eu encontre<br />

alguma tangência<br />

sob o rótulo<br />

do whisky escocês!<br />

32<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

33


As grades engradam as praças<br />

engaiolam as pombas, as plantas<br />

as crianças, o playground<br />

As grades gradeiam a cidade<br />

As grades evocam lembranças<br />

– desagradáveis imagens –<br />

de campos de concentração<br />

Desengradem as universidades!<br />

As grades desagravam as prisões<br />

agravam o seminário e o<br />

centro de convenções<br />

Lúgubres grades que sugerem<br />

Sucesso de metralhamento<br />

perfeito confinamento<br />

completa segregação<br />

As grades são caras<br />

as caras dos caras<br />

As grades degradam a vontade<br />

As grades desgraçam a cidade<br />

As grades atraem desgraças!!<br />

Há um buraco no meio do Barco Brasil XI<br />

que já não navega à deriva<br />

Vai fundo pro fundo profundo<br />

Há outro buraco insistente<br />

(e eu nem quero falar no meu dente)<br />

bem no centro de todo humano<br />

Outros e outros e dentro de casa<br />

pomba sem asas que traz<br />

certa paz<br />

Há também cavidades vulcânicas<br />

no meu peito implodindo o meu ego<br />

Sou tão curvo e no entanto<br />

não rodo, não rolo e nem cedo tão cedo<br />

O que eu quero o que eu busco<br />

está dentro de uma enorme cratera...<br />

Ah, lembrei de quem meu pai dizia:<br />

Morreu Dr. Fulano. Agora só tem o buraco<br />

e a catinga.<br />

34<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

35


Lá estávamos nós dois<br />

e não havia luz<br />

eu sentia teu corpo<br />

tateava tua forma<br />

tua curva<br />

tua vulva<br />

tua mão<br />

eu ouvia o barulho<br />

de entrar e sair de você<br />

e de repente<br />

a explosão<br />

de sementes<br />

e flores<br />

e folhas<br />

e frutos<br />

tudo<br />

tudo morrendo<br />

num saquinho plástico<br />

em nome da vida!<br />

Aumenta aos poucos XII<br />

O grupo que está à porta<br />

As mãos antes vigorosas<br />

No trabalho ou na prece<br />

Agora se fecham em punhos<br />

Feito flor que recrudesce<br />

ao botão<br />

Murmurejam pragas<br />

Entre as Orações<br />

E assim retiram<br />

um a um<br />

Os tijolos do edifício.<br />

36<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

37


Agora a flor e o fruto se oferecem XIII<br />

frutose na flor – metamorfose por osmose<br />

Alimentam o espírito ávido do novo<br />

que embriagado faz as pazes com o corpo<br />

Agora o rei e a coroa resplandecem<br />

Guerras e batalhas por mares e atalhos<br />

Vencidas e vincendas fazem do ego<br />

descer certeiros golpes: Craft! Craft! Craft!<br />

Absalão, Absalão, amarra teus cabelos<br />

bem no meio da tua mão<br />

Parabólicos guarda-chuvas para-raios<br />

Somos mercadorias penduradas em carvalhos.<br />

Nenhum de nós dois XIV<br />

tem a ciência do laço<br />

nem no manejo do ato<br />

nem no desacato da forca<br />

mas para morrer de morte certa<br />

em caso de tentativa<br />

bastar-nos-ão os nós<br />

nas nossas próprias gargantas<br />

ou a explosão dos nãos<br />

mesmo sem haver perguntas<br />

e, em caso de aversão<br />

à solidão ou à ausência<br />

pode-se apodrecer a dois<br />

depois de lauto jantar<br />

a camarão decomposto<br />

e vinagre de vinho branco<br />

à luz da televisão<br />

PLIM, PLIM!!<br />

38<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

39


Arde ávida a acidez XV<br />

a agonia arranha, bale<br />

bole, berra, bate brutalmente<br />

Corre calado cúmplice cão<br />

cujos dentes dignos de devoção<br />

Decerto enfrentam espadas e esporas<br />

Enquanto, famintos, furiosos felinos<br />

grudam-lhe garras grossas<br />

Hoje hospedam Homeros, Horácios<br />

Imponentes igrejas imponentes<br />

Jejuns, jogos, juras, jantam juntos<br />

Lêem loucos livros lúcidos lamas<br />

Mas, mestres místicos, maconha<br />

metem medo. No ninho nascem<br />

novas noivas néscias. Outras<br />

ostras ocultam pérolas, porém.<br />

Pretos pedem pão. Povos põem<br />

panos quentes. Quem quer querelas?<br />

Rotulam rocks. Rejeitam reggaes.<br />

Súbito surgem sangrentas sarjetas<br />

transamazonicamente<br />

transcontinentalmente<br />

tão tristemente!!<br />

Unhas untam úberes<br />

Universalmente<br />

Universidades? Vomitamo-as!!<br />

Vêm vindo vozes!!<br />

Xiii....<br />

Xangô?<br />

Xenófobos?<br />

Zeza?<br />

Zumbi?<br />

Zarpemos. Zeeennnn.<br />

40<br />

Poeminflamado<br />

A Cor da Exclusão<br />

41


Cafuné XVI //42 a 67


44<br />

Poeminflamado<br />

Cafuné<br />

45<br />

UM<br />

NINHO<br />

SE FAZ<br />

EM<br />

PAZ


O<br />

Sol<br />

do<br />

Sertão<br />

Secará<br />

o Sangue<br />

do Senador<br />

Ave ama Seca<br />

cheia de leite<br />

Bendita sois vós<br />

entre as estéreis<br />

Vai pro Sertão<br />

Tu levas leite<br />

Eu levo pão<br />

Bendito é o fruto<br />

do vosso peito<br />

AMMOONN!<br />

Béé é é é é é...<br />

46<br />

Poeminflamado<br />

Cafuné<br />

47


Sempre que a beleza<br />

Se debruça sobre a DOR<br />

Assume ares de Santa<br />

Quando sagrada seria<br />

a dor que ninguém<br />

evoca<br />

História da Humanidade<br />

quanto mais sei<br />

mais sinto<br />

VERGONHA<br />

48<br />

Poeminflamado<br />

Cafuné<br />

49


À MORTE – por ser imortal, XVII<br />

ergo um brinde, dizendo:<br />

- À NOSSA VIDA!<br />

e ela responde ofendida:<br />

- NÃO ME ESCAPARÁS!<br />

o meu sangue<br />

VERMELHO<br />

se e s p a l h a<br />

e torna violeta<br />

o etéreo<br />

50<br />

Poeminflamado<br />

Cafuné<br />

51<br />

sangue<br />

AZUL


O novo quebrou<br />

a casca do ovo<br />

e emudeceu o antigo<br />

Quem deflagra uma guerra<br />

perde o poder de<br />

dar-lhe rumo<br />

O meio exato é a<br />

negação dos extremos<br />

Ah, ah, ah, quem de mim<br />

terá aplausos?<br />

PRECONCEITO<br />

é luz alta na cara<br />

A gente se sente exposta<br />

Na dúvida<br />

será que você vai ficar?<br />

dessa câmera<br />

seus olhos<br />

dizendo CLICK<br />

e os meus,<br />

na TV,<br />

sem remelas.<br />

Também pode ser<br />

quando você se<br />

esconde atrás<br />

52<br />

Poeminflamado<br />

Cafuné<br />

53


eu não sou um<br />

objeto fálico que<br />

se ate e se desatarrache<br />

à toa.<br />

LÍNGUA SERVE TAMBÉM<br />

PARA PESAR PODERES<br />

Doce balanço<br />

menina-consolo<br />

teus braços<br />

soltam<br />

meu corpo<br />

que cai<br />

cai<br />

cai<br />

em teus braços<br />

nova<br />

e<br />

suavemente<br />

54<br />

Poeminflamado<br />

Cafuné<br />

55


A boca do lixo<br />

É a boca do bicho<br />

Em movimento<br />

Mandíbula batendo<br />

nos ossos da face<br />

Rangendo, rangendo<br />

Sem lubrificantes<br />

Saia daí de baixo<br />

Pule da sala pra tela<br />

ou continue<br />

A vislumbrar a barata<br />

E à sombra dela<br />

Embriagar-se sob o cheiro<br />

Do inseticida inútil.<br />

Brasa nos olhos, amor?<br />

Água nela.<br />

E que lágrima!<br />

mas se for por bobagem<br />

neguinha, fui mimbora<br />

e esqueci de chamar<br />

OS BOMBEIROS!<br />

56<br />

Poeminflamado<br />

Cafuné<br />

57


<strong>poeminflamado</strong><br />

VOCÊ É O FOGO<br />

que queimou<br />

o FOGO que estava<br />

queimando<br />

o meu FOGO!<br />

o mar XVIII<br />

tem tanto<br />

SU<br />

RU<br />

RU<br />

e eu aqui<br />

a ver navios...<br />

58<br />

Poeminflamado<br />

Cafuné<br />

59


Por ser água barrenta<br />

Não me julgue profundo<br />

Não mergulhe em mim<br />

E é bom levar um tempo<br />

para me engolir<br />

Pode apenas banhar-se<br />

É esta a razão<br />

de ser eu<br />

á g u a<br />

tão turva.<br />

4<br />

Quatro. Esse é o número<br />

da besta que me governa.<br />

Quarta. Quarto. Quatro<br />

vezes de quatro<br />

Quarta-feira, cinzas<br />

Quarto Ato – epílogo!<br />

E também nunca<br />

pude esquecer<br />

das 4 vezes<br />

que me<br />

comeste<br />

60<br />

Poeminflamado<br />

Cafuné<br />

61


IV Ato<br />

Mamede mata Goreth<br />

Solano salva Trindade<br />

Alcabuz é destruída<br />

Nunganga é coroada<br />

Ogan toca pra subir<br />

Há licor de jenipapo<br />

(envenenado)<br />

Servir e apagar as luzes<br />

O devastador<br />

de florestas<br />

olhou pros meus cabelos<br />

e o cabo do machado<br />

do seu patrão estremeceu<br />

na sua mão<br />

62<br />

Poeminflamado<br />

Cafuné<br />

63


Aumenta aos poucos<br />

O grupo que está à porta<br />

As mãos antes vigorosas<br />

No trabalho ou na prece<br />

Agora se fecham em punho<br />

Feito flor que recrudesce<br />

Ao botão<br />

Murmurejam pragas<br />

Entre as orações<br />

E assim, retiram<br />

um a um<br />

Os tijolos do edifício.<br />

Nebulosa carta cujo signo<br />

A vidente não retém<br />

– Passeio ao ar livre –<br />

Campo: Cemitério ou picnic?<br />

Flores: Festa ou velório?<br />

Meu corpo sob outro:<br />

Faço amor ou faço guerra?<br />

Frio: mudança de estação ou<br />

de habitat?<br />

Ai, o amor deveria avisar:<br />

“Chego amanhã”.<br />

64<br />

Poeminflamado<br />

Cafuné<br />

65


Cafuné<br />

Poeminflamado<br />

66 67<br />

E eu pensando<br />

que podia moer<br />

essa máquina<br />

Sem tua lubricidade<br />

s<br />

o<br />

p<br />

r<br />

e<br />

a<br />

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T<br />

É<br />

M<br />

:<br />

E tu pensando<br />

que podias dançar<br />

essa vida sem<br />

minha poesia


Cartões XIX //68 a 74


Nada me inspira<br />

com sua ausência<br />

perco-me nas entrelinhas<br />

não me encontro<br />

Não demore tanto<br />

a voltar... te proponho.<br />

CORRO O RISCO DE ACORDAR DO MEU SONHO<br />

não demore tanto<br />

sem ligar<br />

Como pode ficar<br />

sem sentir o que sinto<br />

e persistir?<br />

não se afaste<br />

por muito tempo<br />

TEMO QUE ALGO ME ARRASTE DO SEU PENSAMENTO<br />

Vem negra com tua dança<br />

com teu mimo<br />

sorriso tão doce, olhar maternal<br />

Vem branca de todas as partes<br />

tão independente,<br />

tão liberada e intelectual<br />

Vem índia do rosto redondo<br />

pureza nos olhos<br />

tão presa e tão solta pés no lamaçal<br />

Vem amarela com tua sapiência<br />

tua paciência e submissão<br />

traz a tua Suam do Nepal<br />

Vem vermelha ucraniana<br />

tão socialista<br />

venha mestiça, venha pura<br />

Vem mulher de toda cor<br />

Toda língua ou religião<br />

Vem e me dá tua bênção!<br />

70<br />

Poeminflamado<br />

Cartões<br />

71


Quantas folhas deste papel<br />

Minhas mãos já amassaram<br />

Quantas palavras aqui não estão<br />

Porque do pensamento não passaram<br />

Quantas coisas mesmo<br />

Eu queria te dizer<br />

Mas como vou conseguir<br />

Se nem consigo escrever?<br />

Às vezes eu sonhava<br />

Que conversava contigo<br />

E nos sonhos eu dizia<br />

Tudo que aqui não digo<br />

Nos sonhos eu cantava<br />

Eu vibrava de alegria<br />

Gritava bem alto teu nome<br />

Pensando que me ouvias<br />

Se queres mesmo saber<br />

Tudo que aqui não falei<br />

Sonha comigo menina<br />

E no sonho juro que te direi<br />

destinoRdestino<br />

Menino da rua<br />

pergunta ao da roça:<br />

- Menino da roça?<br />

Cadê você?<br />

- Estou no lixão<br />

- Está na cidade<br />

fazendo o quê?<br />

- Plantando espigão<br />

- Como vai plantar<br />

se aí não tem chão?<br />

Como vai colher?<br />

- Colher de pedreiro<br />

Foi o que eu vim colher<br />

Menino de rua<br />

Pergunta ao da roça:<br />

- Que colhe você?<br />

- Mil balas no peito<br />

acabei de colher!<br />

- Pro mode plantar?<br />

- Não. Pro mode querer!<br />

dedicado aos sem-terra<br />

72<br />

Poeminflamado<br />

Cartões<br />

73


Nômade que sou não tenho<br />

morada certa. Os meus<br />

credores duvidam das<br />

minhas intenções<br />

E me esperam à minha<br />

mesa. Esta terá que<br />

estar vazia... Senão, por quê<br />

terá pão, ou frutas, ou mesmo água<br />

- Comprados a míseros cents<br />

- As frutas? São apenas sementes<br />

E a água foi um presente<br />

que me mandou algum parente<br />

(Dir-lhes-ei sobre a lareira quente?)<br />

Houve uma mulher na cama<br />

- Não, não a paguei...<br />

(E se me ama por que foi embora?)<br />

... Como o faria?<br />

Nem posso expulsá-los<br />

(Não tenho morada certa)<br />

- Mas de quando é mesmo a dívida?<br />

- Duvido!<br />

- Devido.<br />

- Quanto?<br />

(O que eu não posso mais)<br />

- De quanto é a dívida?<br />

74<br />

Poeminflamado<br />

Cartões<br />

75


Agendas da Vida XX //76 a 115


Uma deusa do fogo XXI<br />

Me lambe a mente<br />

Me queima a semente<br />

De uma nova ideia<br />

Uma deusa pagã, ateia.<br />

Outra, da água, submerge em mim<br />

E me desvenda os mistérios<br />

Sem no entanto mo revelá-los<br />

E agora me vejo mais incognoscível<br />

Exceto no que me admito desprezível<br />

Ei-la que me aparece alada<br />

Cheia de plumas, porém empalhada<br />

A dona dos ares tão subjugada<br />

Pela metade do meu desejo<br />

Que voa bem longe morrendo de medo<br />

Nem cria na ameaçadora esquina<br />

E menos na cumprição da promessa<br />

Saltita a morte peremptoriamente eterna<br />

E dá-me de presente ao seio da terra<br />

Que sem cerimônias me abraça e me encerra!<br />

No lago, ao entardecer<br />

Cantavam os pássaros<br />

À distâncias prudentes<br />

das serpentes que<br />

Moviam-se sobre as águas<br />

Como se puxadas pelos movimentos<br />

das suas línguas.<br />

Deixei-me cair, hesitante,<br />

E adiei o mergulho<br />

No que julguei<br />

Águas envenenadas.<br />

- Será que as serpentes deixam seu veneno<br />

na margem, antes do banho?<br />

O meu veneno está sempre ao meu alcance<br />

Pensei e pulei<br />

com estrondo<br />

na serenidade<br />

daquele<br />

crepúsculo.<br />

Assustado, mas<br />

afastando lagartos e<br />

cobras e libélulas e pássaros<br />

do meu medo<br />

Daquela horripilante sensação<br />

de dezenas de línguas<br />

Serpenteando-me<br />

Sem nem um só<br />

bote mortal!!<br />

78<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

79


Quero XXII<br />

parar<br />

essa gota<br />

de água<br />

salgada<br />

ardente<br />

fervente<br />

doente<br />

que entra<br />

e vai<br />

desaguar<br />

direito<br />

no leito<br />

do peito<br />

deus sabe<br />

não cabe<br />

na alma<br />

tão calma<br />

esse trauma<br />

não leve<br />

não neve<br />

não breve<br />

que rola<br />

vira bola<br />

mirabola<br />

amarga água<br />

amarga ida<br />

amarga vida<br />

a mais garrida<br />

Ai, MARGARIDA!<br />

Marca indelével na minha vida XXIII<br />

Marco inconfundível na minha trajetória<br />

Cisão entre o meu presente<br />

E o teu futuro<br />

Elo entre as minhas duas partes<br />

A de dentro e a de dentro.<br />

A partir de ti não precisarei<br />

De estrelas cadentes<br />

Astros reis desgovernantes<br />

Puxa-sacos del Rey tiempo<br />

Decadência não. De cadência<br />

Tenho o teu passo lúdico<br />

E o bambolear de tua bunda<br />

Quando vens ao meu encontro<br />

Dos tambores que me chamam<br />

Só as batidas do teu peito<br />

Dos odores aos quais aspiro<br />

Apenas o cheiro da tua carne<br />

Teu suor, tua saliva, teu gozo<br />

Minhas bebidas prediletas<br />

Meu éter: tua instabilidade<br />

Teu sonho, minha direção.<br />

80<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

81


Há mulheres surpreendentes XXIV<br />

que me olham prepotentes<br />

com ares de inteligentes<br />

como se eu fosse demente<br />

Eu lhes digo entrementes:<br />

Ao vê-las<br />

posso lê-las<br />

aprendê-las<br />

apreendê-las<br />

compreendê-las<br />

escolhê-las<br />

e comê-las<br />

Como?<br />

Como quando como estrelas.<br />

Degeneração<br />

Quando aqui cheguei<br />

entre quatro paredes me vi<br />

e vi também um par<br />

de rostos risonhos<br />

de bondade e de amor<br />

Logo me vesti<br />

tudo era lindo e irreal<br />

como nos sonhos<br />

Com o tempo<br />

outras paredes conheci<br />

e também outros<br />

rostos contentes<br />

mas entre estas paredes<br />

eu me perdi<br />

e não me senti gente<br />

entre essa gente<br />

Eles usavam armaduras<br />

douradas, belas, belas<br />

E nos seus rostos<br />

o que sorriam sempre<br />

eram umas máscaras<br />

cor da pele<br />

que usavam para<br />

dizerem-se contentes<br />

Vi em dois olhos<br />

o brilho esquisito<br />

da inveja, da revolta,<br />

da ambição<br />

vi e não pude conter<br />

um grito<br />

fora enganado<br />

e que doce ilusão!<br />

Ouvi palavras<br />

grotescas, duras<br />

vi gestos obscenos<br />

e imundos<br />

vi o que continham<br />

as belas armaduras<br />

carne a carne podre<br />

do mundo<br />

Minha alma<br />

rasgou as suas vestes<br />

meu coração<br />

turbou o seu semblante<br />

despido fiquei<br />

dentro de mim<br />

das coisas boas<br />

que existiam antes<br />

Então tomei uma<br />

das belas armaduras<br />

e pus também<br />

uma das máscaras<br />

sorridentes<br />

agora por dentro<br />

sou feito de amarguras<br />

mas por fora<br />

sou normal<br />

sou gente!<br />

82<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

83


Cadê o seu cartão? XXV<br />

Não tem cartão?<br />

Ponha um carimbo de LIVRE PASSE<br />

na sua identidade<br />

E passe e repasse sua trajetória<br />

É lícito. Não é usual<br />

Grite o seu pensamento<br />

Esparrame sua dor<br />

Multiplique o alarido<br />

Pra que não descanse em paz<br />

o seu opressor<br />

flor de cactus XXVI<br />

perdido no Sertão<br />

bebo a sua água<br />

como do seu pão<br />

te vejo como o fogo<br />

do cometa que caiu<br />

te sinto como broto de bambu<br />

que escapou da cobiça do Chinês<br />

te quero como uma figurinha<br />

que se coleciona dia a dia. TE AMO<br />

e não sei dizer como: se mãe,<br />

se filho, ou simplesmente<br />

pelo teu jeito de rir teu riso<br />

ainda não conheces a vida<br />

e ai de mim, aprendiz do teu<br />

jeito de rir. de só ser<br />

DE SÓ QUERER<br />

...<br />

84<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

85


Olá! Alô?<br />

Vamos dar uma bola?<br />

Me escrutinou um par<br />

de olhos tão redondos<br />

que mais pareciam<br />

duas bolas de gude<br />

E eu os vi se derreterem<br />

e se transformarem em<br />

duas lágrimas de sangue<br />

que se cristalizaram<br />

e nunca mais jurei aos pés do altar<br />

Três bolas depois eu<br />

a encontrei no abril<br />

imediatamente o sorvete<br />

derreteu no meio do mangue<br />

E hoje creio que o visgo<br />

da mangaba nos grudou<br />

um no outro<br />

na quarta e quinta-feira<br />

Balas! Foi aquele bang-bang<br />

Justo na hora da sexta-feira<br />

Bolas, muitas bolas depois<br />

Ela fez as malas<br />

fumando bem devagarinho<br />

Os olhos volteando o lugar<br />

jurou nunca mais voltar<br />

Mandei atrás dela a gangue<br />

E não é que<br />

aqui pra nós<br />

Ela, a danada,<br />

Nunca mais me voltou!?!<br />

Oláááá<br />

Alôôôô<br />

Vamos dar<br />

uma bola?<br />

Desarme-me dos meus olhos XXVII<br />

se não sustentarem seu olhar<br />

Da minha boca, se não o delatar<br />

Das minhas mãos, se o adularem<br />

E do meu sexo, “para não enrabar sua filha”.<br />

Mas, me devolva a Língua-mãe<br />

A minha cultura, o meu baseado<br />

a minha caneta e o meu papel<br />

Pois eu tenho o dever de<br />

Registrar a minha história<br />

86<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

87


É você que me aparece<br />

vestida não sei de quê<br />

em cada esquina avistada<br />

em cada saia encarnada<br />

é você quem me aparece<br />

no vulto que vem da rua<br />

no meio da ladainha<br />

no sax embalo do reggae<br />

é você quem me aparece<br />

na saudade de mulher<br />

em cada blusa rendada<br />

na roda do candomblé<br />

Agora entendo a pedra<br />

no caminho do poeta:<br />

se penso em gargalhadas<br />

você logo me aparece;<br />

se me vejo em precipício<br />

e até mesmo em um hospício<br />

se retomo o antigo vício<br />

se traio algum princípio<br />

se te abordo por propício<br />

se te dou algum indício<br />

de que ainda te cobiço<br />

Você me desaparece...<br />

Dia após dia, saudade crescendo<br />

e nós nos esquecendo de mantê-la<br />

Saudade morrendo e nós nos<br />

inclinando a matá-la.<br />

Lua nasce nova já duas vezes<br />

duas vidas cheias de fases cheias<br />

ânsia e desejo cuidam de nós<br />

Novamente um lampejo<br />

a porta só se abre se te sésamo<br />

Luzes acesas, cortinas abertas<br />

única é tua voz força do meu sorriso<br />

abrir-te será sereno e eterno<br />

Velho bater de asas. Novo rumo.<br />

Esgueiro-me por entre labirintos<br />

Jogos. Rainha, peão, torre.<br />

O sonho. O ardor. A vida em equilíbrio<br />

Te vejo na sacada. O relógio<br />

enregela-se sem tréguas<br />

Uivo nossa canção predileta<br />

Novo dia. Ânsia e desejo cuidam de mim<br />

O meu dia é tua noite. E assim<br />

me trazes, preto preso em rédeas curtas<br />

E o meu lado cachorro apenas te fareja.<br />

88<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

89


Na casa de espetáculos o palhaço chora<br />

E sua maquiagem desbota ao contato<br />

de lágrimas multicoloridas contorcendo<br />

seu rosto de dor e máscara grotesca<br />

Desce o pano sem aplausos nem vaias<br />

Apagam-se as luzes sem pontas de<br />

cigarros parecendo vaga-lumes acesos<br />

se vistos à distância.<br />

No picadeiro agora a bailarina<br />

gira sobre si mesma numa velocidade<br />

estonteante. Ela está louca.<br />

O vendedor de cigarros acende o seu<br />

último, e quer tomar um trago<br />

de aguardente de arroz.<br />

Acendem-se as luzes e já não há<br />

ninguém na plateia<br />

nem o palhaço, nem a bailarina<br />

Apenas o espetáculo no ar<br />

Sem risos, sem vozes. Sem luzes e sem som.<br />

Logo, logo descerá o pano<br />

Desse espetáculo lúgubre<br />

Denso. Louco. Tétrico.<br />

E eu prendo defensivamente<br />

A respiração e a palavra.<br />

No prenúncio do apocalipse<br />

Vejo as narinas da Besta;<br />

No trajeto de massificação do Espírito<br />

Vejo a carne desnudada,<br />

O corpo em pelo,<br />

O ego nu!<br />

Solto os estribos do meu animal<br />

E capoto numa curva<br />

Aberta sem prévio aviso.<br />

Dói-me dilaceradamente<br />

Coração e pênis<br />

E substitui o prazer<br />

A imensidão da dor<br />

De me ver só;<br />

Exposição involuntária<br />

De pescoço e jugular<br />

Aos dentes caninos<br />

Da solidão parasitária:<br />

Nem o eco das minhas<br />

Inevitáveis palavras<br />

Nem o som do meu<br />

Eloquente silêncio!<br />

90<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

91


Secreto! Top Secret! Top Secret! XXVIII<br />

Gnomolusco Lama-fusco<br />

Centro do fuso horário<br />

Portanto atemporal<br />

Fusão do ar com o mar<br />

e terra, e todos e tudo é o tudo<br />

Que fogo pode apagar<br />

Se não for pra aquietar<br />

Nem esquente<br />

Bomba H radioativa<br />

Puro orgônio Reichiano<br />

Antigo como o ato de nascer<br />

Eu não sou ave, Maria,<br />

mas posso voar<br />

Ser molusco é viver isso<br />

que herdamos de você,<br />

seu bosta!<br />

O nó na garganta sufoca<br />

a vontade de chorar<br />

dentro de mim aumenta o<br />

som do grunhido gutural<br />

lembranças leves fortes<br />

suam ao peso do acordar<br />

balanço agonizante, enjôo<br />

o cheiro me embriaga<br />

a luz me ofusca<br />

olho de lado. Olhos para baixo!<br />

Vislumbro uma mão<br />

Peso a distância. Meço a velocidade.<br />

Antes que grilhão me alcance<br />

corro, corro, danço e morro<br />

Brindo à tua silhueta<br />

bebo a teu mau humor<br />

trago as mãos calejadas<br />

de te esculpir<br />

em imagem e som<br />

mitsubishianos<br />

De olhos bem abertos<br />

dedilho uma canção agourenta<br />

Li tua sina na minha mão<br />

Vi teu destino no meu sonho<br />

Criei o Verbo. Criaste o Não<br />

– Advérbio de negação –<br />

Ora, ora, ora é hora de viver<br />

tua vida sem atrelá-la à minha<br />

Sem encontrar outra tu<br />

Revelar o que teu anseio esconde<br />

E por a minha fotografia<br />

na tua coleção<br />

92<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

93


Eita gosto seco, azedo<br />

no meio da língua<br />

travando o paladar<br />

Eita visão assombrosa, embaçada<br />

cortando os olhos, ferindo o olhar<br />

Eita mãozinha pesada, crespenta<br />

arranhando a pele, doendo ao tocar<br />

Eita que cheiro enjoado, nauseante<br />

que sangra narinas e dá ânsia de vômito,<br />

Eita palavra tão nua, tão crua<br />

tão dura de escutar: NÃO!<br />

Arrancando olhos, perfurando<br />

tímpanos. Entrando bem dentro,<br />

bem fundo. No coração do SIM.<br />

És feita do vento, dos risos da Tristeza<br />

Da chuva, do Sol, dos desencontros,<br />

Das lágrimas da Alegria<br />

És feita de derrotas e vitórias...<br />

Arde dentro de ti um fogo, que te bole<br />

Que te come, que te queima,<br />

Moram dentro de ti, a um tempo<br />

Anjo e Demônio, fada e bruxa<br />

Não os odeias, não os temes<br />

Antes, abraça-te ao mais próximo,<br />

Agarra-te ao mais forte, ao mais belo<br />

E assim, ora resplandeces nas trevas<br />

Povoada de anjos e fadas.<br />

Ora enegreces na luz arrastada<br />

Por demônios e bruxas.<br />

Vivam os duendes, os gasparzinhos<br />

Morra a morte tão real<br />

Quase palpável, quase visível;<br />

Morra a dor, tão profunda, tão marcante,<br />

Onipresente deusa da amargura<br />

Morram as desesperanças entre<br />

Os espinhos da cruel realidade<br />

Nasçam as flores do desejo e<br />

Desabrochem no prazer maior...<br />

Dê-se. Ame. Ame e goze<br />

Goze, goze, goze e<br />

Disperse com o seu gozo<br />

O aglomerado das coisas impossíveis.<br />

94<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

95


Me envolvo mansamente onde<br />

A razão e o sentimento<br />

Coabitam em harmonia<br />

O pesadelo é a realidade<br />

Na qual a gente se vê!<br />

Há o espinho, há a rosa<br />

A rosa, pra mim, é você!<br />

Guerreiro de onde vens<br />

De onde vens, pra onde vais<br />

Dizes teu nome, teus feitos.<br />

Enleva-me com cantigas de teus pais<br />

Solta a voz, estronda o peito<br />

Satisfaz os teus desejos<br />

Reina em nós teus ancestrais<br />

Guerreiro para que vens<br />

Dize-nos e conduzirás<br />

Nossos carros, nossas lendas.<br />

Aumentais nosso panteão<br />

És filho dos Orixás<br />

Bem-vindos filhos e netos<br />

Bisnetos, tataranetos<br />

Toda linhagem real<br />

Eu reino sobre mim mesmo<br />

Sobre ti não haverá ninguém na terra<br />

Sendo assim sucederás<br />

Os que por aqui passaram<br />

Seja na guerra ou na paz<br />

Guerreiro me conta logo<br />

De onde vens,<br />

Pra onde vais.<br />

96<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

97


Sapatos<br />

não me apertam os pés<br />

Gravatas<br />

não me enforcam mais<br />

Cuecas<br />

não me assam os escrotos<br />

Cintos não me afetam os rins<br />

Nem uso algum indigno índigo<br />

Somente Algodão e Blues<br />

debaixo de 40 graus<br />

Minha casa não tem<br />

cercas<br />

nem tem grades<br />

nem tem<br />

muros, nenhum<br />

corredor escuro<br />

não tem sótão<br />

nem porão<br />

Somente algumas janelas<br />

abertas janelas azuis<br />

debaixo de 40 graus<br />

Somente Algodão e Blues<br />

debaixo de 40 graus<br />

Abertas janelas azuis<br />

debaixo de 40 graus<br />

Agora procuro quem<br />

te pôs na minha vida<br />

É uma busca cósmica<br />

cíclica<br />

mas inteira,<br />

ANTROPOFÁGICA<br />

meus pelos pubianos<br />

escondem<br />

tua<br />

origem<br />

Ou eu, fruto de ti,<br />

na flor de minha<br />

semente?<br />

Agora procuro quem<br />

me pôs<br />

na tua<br />

VIDA<br />

98<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

99


Unir para a guerra XXIX<br />

Retomar as forças<br />

à força<br />

Guiar através das pedras<br />

Reatravessar o deserto<br />

Ferir o mar<br />

Tornar vermelho o chão<br />

Subir aos céus<br />

Desafiar os deuses<br />

dorminhocos<br />

sonolentos deuses<br />

de Seu Manoel<br />

Entrar pelo portal<br />

do Sol<br />

na noite esquecida<br />

pela Lua<br />

Pular o fosso<br />

o cerco<br />

perder o medo<br />

de alcançar<br />

o SONHO<br />

Plantar raízes<br />

Regar sementes<br />

Ações de quem não foi<br />

simbora<br />

Inflar pulmões<br />

Soprar clarins<br />

VITÓRIA!!<br />

Transávamos<br />

debaixo dos lençóis<br />

luz apagada<br />

língua colada<br />

no travesseiro<br />

No espasmo<br />

a sensação<br />

de ter partido pra luta<br />

Hoje se vê<br />

que a nação desenvolve<br />

a mesma política da<br />

era colonial<br />

e como dois amigos<br />

que fenecem juntos<br />

não nos importamos<br />

com a decadência<br />

um do outro<br />

100<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

101


Sou árvore<br />

Dou sombra<br />

Abrigo ninhos<br />

Suporto ventos<br />

viajo pro centro<br />

Da terra e do céu<br />

Ao mesmo tempo<br />

Direções de ir<br />

Resoluções de vir<br />

No mesmo asfalto<br />

Mão e contramão<br />

Também dou frutos<br />

Até broto brotos<br />

E os solto na relva<br />

Os meus sonhos<br />

Sou árvore<br />

airosa<br />

frondosa<br />

pomposa<br />

E cheia de clorofila<br />

Pra lhe deixar verde.<br />

Sou árvore<br />

portanto estática/extática<br />

mas antimetálica, mulher<br />

Ai, o fogo me mata<br />

(os Homens e os deuses)<br />

Sou toco, tição!<br />

E cheia de melanina<br />

pra lhe deixar<br />

PRETO<br />

Sou árvore<br />

retinta<br />

extinta<br />

bizarra<br />

patética<br />

Uma torre<br />

de papel<br />

Estou nas<br />

suas entranhas<br />

passeio na sua cozinha<br />

cheia de adrenalina<br />

pra lhe deixar<br />

LOUCO!!<br />

102<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

103


O poeta<br />

É como uma galinha<br />

Enquanto não caga<br />

uma Poesia<br />

Fica de lá pra cáááá<br />

De cá pra láááááá<br />

Até que o sal<br />

Ao léu se calcifique<br />

E mesmo que seja<br />

A vida toda um<br />

único ovo<br />

Faz-se mais uma vez<br />

Celular semente<br />

Que como um véu<br />

Se presentifica.<br />

COCORICOCÓ COCORICOCÓ<br />

Bastava ouvir berimbau<br />

Que eu ia jogar capoeira<br />

Pernas pro ar<br />

Parecendo bananeira<br />

Jogo justo, jogo inteiro<br />

A gente joga sorrindo<br />

O som dessa gargalhada<br />

A garganta vem abrindo<br />

Cabeça prum lado<br />

Rabo de arraia já foi<br />

Não deixe ninguém<br />

Carregar Camará velho<br />

Esse seu carro de boi<br />

Cabeça pra frente<br />

A neve já foi<br />

Não deixe ninguém<br />

Carregar camará veio<br />

Esse seu carro de boi<br />

104<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

105


Matadores perfilados<br />

Piscam olhos entre si<br />

Ante notícia matinal<br />

Sobre crianças e adolescentes<br />

Massacrados e assim<br />

Comemoram mais um ano<br />

De vida da corporação<br />

Assassinos encapuzados<br />

De crachás e contracheques<br />

Todos manchados de sangue<br />

Imitam sons de coruja<br />

E assinalam na favela<br />

O destino das próximas vítimas<br />

Dia a dia. Noite a noite<br />

Nenhum capuz esconde<br />

A alma dos carrascos<br />

O cheiro nauseabundo do sangue<br />

Das vítimas os acompanha<br />

Insepultos os seus corpos<br />

Servirão de alimento<br />

Para outros carniceiros.<br />

Não sou como queiram<br />

se não quiser saber<br />

de mim bata a porta<br />

procurem endereços<br />

a partir do meu<br />

Não tenho apetite<br />

no que me oferecem<br />

Meus dentes perfeitos<br />

não são só perfeitos<br />

dentro da boca<br />

meu dente perfeito<br />

carrego no peito<br />

É meu amuleto<br />

(um dente cravado no peito!)<br />

oculto, fechado, soneto<br />

poema aberto desprevenidamente<br />

feito braguilha<br />

prestes a ser fechada<br />

por tampilhas e barbantes!<br />

Meu sorriso<br />

me protege<br />

das suas dentadas<br />

106<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

107


Eis que suas palavras<br />

reacenderam seu desejo<br />

e ele, ávido de gemidos<br />

correu, olhos cerrados<br />

ao seu encontro.<br />

E qual? Em pleno domingo de Sol<br />

o templo do amor<br />

perdera seu brilho<br />

enquanto apenas<br />

vagalumeavam<br />

nos quatros cantos do Ser<br />

outros desejos<br />

já não mais inconfessáveis.<br />

Última Sexão<br />

Paródias fellinianas<br />

dançam na tua boca<br />

que cospe pequenas tragédias<br />

na minha cabeça, onde, tal qual<br />

antena parabólica, alguns pombos<br />

fazem filhotes e cocô.<br />

e eu, filho bastardo de Spike Lee,<br />

pouso o olhar cinematograficamente<br />

num dos ângulos da cama<br />

(o iluminado pelo abajour)<br />

e num misto de prazer e ódio<br />

desprezo e desejo GRITO!<br />

um grito patético<br />

antiestético, um urro:<br />

- MEU PAU LATINO MENTE<br />

PAULATINAMENTE!<br />

108<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

109


Beijo tua boca<br />

e sinto o cheiro do teu corpo<br />

toco esse cheiro e gosto<br />

que seja como o do vinho<br />

que se pensa doce<br />

mas amarga até o sim<br />

Lambo o teu nariz<br />

e minha língua adormece<br />

agora, te faço feliz<br />

teu cheiro me penetra<br />

e encrudesce meu olfato<br />

empalidece minha face<br />

arrefece minha visão<br />

esmorece o que eu escuto<br />

e apodrece o que eu<br />

sinto por ti.<br />

Que hábil maneira de se ir, ficando<br />

ficaste. Enches a casa com teu “AR”<br />

Pedras. Que lindas pedras<br />

por sobre o meu caminho<br />

Borboleteias aqui e adiante<br />

presenteias-me com tua presença constante<br />

Ornamentas meu pescoço<br />

com essas pérolas<br />

Enfeitas-me de fitas<br />

há azuis e amarelas<br />

Lilazes fitas fulgazes<br />

Fulgores, às vezes flores<br />

Nossas notas musicais<br />

Transformarão esse velho mundo?<br />

110<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

111


Conjecturas<br />

O que eu traço, mesmo que faça<br />

Não abre portas, mas não importa<br />

Meu embaraço me estilhaça<br />

Me deixa morta a artéria aorta<br />

Quero versar, sem desconversar<br />

Dizer o que sinto, é pior, se não minto,<br />

Tentar dispersar, sem querer dispensar<br />

O vinho tinto com o qual pinto.<br />

Assim abafo o meu desabafo<br />

No primeiro copo com quem topo<br />

Procuro um bafo que não me deixe gafo<br />

Me desloco para fugir do soco<br />

Cada passo em falso leva ao cadafalso<br />

Cada bom momento cai no esquecimento<br />

O vôo que eu alço mesmo sem ter calço<br />

É o do sofrimento para o longínquo alento<br />

Minha dor não tem rima nem é minha sina<br />

Fazê-la poesia não foi só cortesia<br />

Eu estou por cima... observa, atina:<br />

Não sente azia quem tem a barriga vazia<br />

O que houve no meio<br />

do silêncio<br />

Estourou meus tímpanos<br />

Assim como balão<br />

de aniversário<br />

que pipoca antes<br />

ou depois<br />

da festa.<br />

112<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

113


Analogia<br />

Vemo-nos espelhados quando choramos<br />

no reflexo do seu vestido de seminua<br />

(semideusa soa FORTE para a adoção<br />

do necessário sacrilégio)...<br />

FORTE é o termo. FRÁGIL é o ato em si, só.<br />

O Amor é um pimpolho num carrinho desgovernado<br />

é sobra de réstia na porta fechada<br />

ilusória e temporariamente aberta:<br />

– fecha-se os olhos e a porta some –<br />

Nem eu nem você temos a chave<br />

do enigma, perdida no labirinto<br />

das dobras dos lençóis da nossa cama.<br />

Vamos desfazer o Amor<br />

a fim de reencontrar a saída<br />

Refazer a cama e olhá-la de soslaio:<br />

Atraiçoarmo-nos. Negar a atração lúdica<br />

e ceder à tentação de olhar para trás<br />

e nos transformar em estátuas de sal.<br />

Evoco os momentos<br />

que vinham depois do clímax<br />

E do clímax, depois<br />

dos instintos saciados...<br />

Relembro que você se abandonava<br />

num estado de languidez provocante<br />

Naqueles minutos mágicos<br />

a vida inteira me parecia<br />

leve como brumas do mar<br />

O verdadeiro amor para mim<br />

nascia a partir da imobilidade<br />

dos nossos corpos prostrados<br />

Como a vida brotando<br />

dos restos de um banquete<br />

Súbito, a campainha do telefone<br />

Os pregões matinais dos ambulantes<br />

O sol nos assaltando pela fresta<br />

A languidez sendo expulsa<br />

O sonho se esgueirando das nossas mãos<br />

Que já não se crispavam<br />

que agora eram rijas<br />

calejadas<br />

secas...<br />

114<br />

Poeminflamado<br />

Agendas da Vida<br />

115


Quarto de Ofício XXX //116 a 121<br />

Quarto de Ofício<br />

Ângelo Bueno, Erickson Luna, França e Mauro.


Prezado<br />

dá licença<br />

pois sou<br />

de casa e<br />

posso<br />

falar<br />

Venho de terno branco<br />

chapéu,<br />

gravata vermelha<br />

amarrada na testa<br />

pedindo passagem,<br />

CÃO DO INFERNO<br />

saia da frente<br />

pois trago a morte<br />

dentro de mim.<br />

corro desesperado<br />

trocando segundos<br />

por horas<br />

anos por séculos<br />

e se chegar a tempo<br />

não morro.<br />

Transito entre<br />

a neurose urbana<br />

e os traumas do campo;<br />

buscando o bucólico<br />

volto desolado,<br />

melancólico<br />

soltando a voz na cidade<br />

imitando cachorros<br />

feios e magros<br />

Guenzo<br />

compartilhando a fome<br />

e a falta do não fazer<br />

esfrego-me na sarjeta<br />

assumindo esta condição,<br />

não por aceitação<br />

mas sim por rejeição<br />

ao condicionamento<br />

que só a ti satisfaz.<br />

Passaram por mim barcos<br />

Passaram por mim trens<br />

Passaram por mim bondes<br />

Passaram por mim ônibus<br />

Passaram por mim kombis<br />

e agora passam por mim<br />

bestas<br />

lotadas.<br />

Acredito que ando tão rasgado<br />

que não tem “bandaid” que dê jeito<br />

estou preferindo usar<br />

merthiolate que mercúrio<br />

mesmo que arda<br />

e acho bom que você<br />

tome sua cerveja<br />

antes que eu a veje XXXI<br />

pois de hoje<br />

você não passa<br />

e se passar<br />

Passará sorrindo!<br />

Gata bandida<br />

esborrachada<br />

na janela,<br />

assistindo a tudo<br />

passar<br />

gata ladra dos<br />

meus olhos,<br />

roubando-os por<br />

entre os cílios<br />

118<br />

Poeminflamado<br />

Quarto de Ofício<br />

119


quem dera ser eu,<br />

ser seu parapeito,<br />

para em meu peito<br />

se aninhar.<br />

Maracajá ladrão<br />

vai-te do meu galinheiro<br />

deixando de roubar meus sonhos<br />

se retornar aos meus pesadelos<br />

ao invés de levar<br />

minhas galinhas<br />

Vai tomar é chumbo<br />

Coaxávamos noite à dentro<br />

em busca de desejos<br />

co-achando incessantemente<br />

o que queríamos<br />

ficando intrinsecamente juntos<br />

Eu não vou financiar<br />

a sua loucura<br />

pois a minha já me sai<br />

muito cara<br />

Não me diga<br />

aquilo<br />

que não quer<br />

ouvir<br />

ouviu!<br />

É dificil enxergar<br />

o que as pessoas<br />

sentem se você<br />

se sentar de Lado<br />

Perfiro esse<br />

quartinho<br />

de cana<br />

do que aquele<br />

quarteirão<br />

todo vazio<br />

Não quero<br />

mais viver<br />

escondido<br />

quero sair do<br />

negativo<br />

desejo que me<br />

revelem<br />

espalhando-me<br />

por toda a cidade<br />

outdoor, outdoor, outbus<br />

outdoor<br />

120<br />

Poeminflamado<br />

Quarto de Ofício<br />

121


Luz do Litoral//122 a 131<br />

Luz do Litoral


Pouso solto<br />

Em sua mão aberta<br />

Estendida para a minha<br />

Por detrás de um sorriso congelado<br />

Me quereria seu escravo?<br />

Solto penas<br />

Nos seus dentes<br />

E morro antecipando-me<br />

À dor de sua mordida<br />

Amaciada pelos meus flancos<br />

Da fímbria do mar<br />

Vôo ao encontro<br />

De uma errática dúvida<br />

Ver-te com avelã arriada e presa<br />

Ou perder-te no espasmo<br />

De um ínfimo prazer?<br />

Pouso alto<br />

Em tua mão aberta<br />

Sopro areia nos teus olhos, e?<br />

Forro!<br />

Espelho d´água, Espelho meu<br />

O<br />

Mar<br />

Tem tanto<br />

Sururu<br />

E eu aqui<br />

A ver<br />

Navios<br />

124<br />

Poeminflamado<br />

Luz do Litoral<br />

125


E se chegar XXXII Devagar De mansinho e Sem avisar<br />

Te pegar pelo pé Pelo olhar Te colher como flor Ao<br />

alcance da mão Ou seja como For De bala, anzol<br />

Ou arpão<br />

E você Não tiver aonde ir....<br />

... Só pensar em fugir Sem rumo E a morte Parecer<br />

a única Saída Para a vida Então o que fazer Sem<br />

coragem Para morrer Nem matar O sentimento<br />

Maior que tudo.<br />

Sangue<br />

Lágrima<br />

Riacho<br />

Rio<br />

Oceano<br />

Lágrimas<br />

Sangue.<br />

Líquidos Sobem<br />

Sul acima<br />

126<br />

Poeminflamado<br />

Luz do Litoral<br />

127


Aumenta<br />

aos poucos<br />

O grupo<br />

que está<br />

à porta<br />

As mãos<br />

antes<br />

vigorosas<br />

No<br />

trabalho ou<br />

na prece<br />

Agora se<br />

fecham em<br />

punhos<br />

Feito flor<br />

que<br />

recrudesce<br />

Ao botão<br />

Murmurejam<br />

pragas<br />

Entre as<br />

orações<br />

E assim,<br />

retiram<br />

Um a um<br />

Os tijolos<br />

do edifício<br />

Nosso povo dá gargalhadas<br />

Nos arcos altos da noite<br />

- Do que riem?<br />

- Não é riso é um aviso debochado<br />

Ecoam nos terreiros<br />

Trovejam nas encruzilhadas<br />

Flores brancas no mar azul!<br />

De que riem? Que festejam?<br />

Não é riso nem é festa<br />

É um recado abusado<br />

Ultrapassam a noite invadem o dia<br />

Risadas, deboches, pregões matinais<br />

De que riem?<br />

O que dizem?<br />

Não é riso. É um grito de guerra!<br />

128<br />

Poeminflamado<br />

Luz do Litoral<br />

129


Estou a procurar,<br />

um pescador<br />

Curiosamente ele<br />

lembra meu avô<br />

Nem programei notícias<br />

suas pela relva orvalhada<br />

que meus dedos acariciam<br />

Cheiro de peixe que se encrusta no palato<br />

Mal sinal? Má sina?<br />

Avemaria, meudeusdocéu!<br />

Unir para a guerra<br />

Retomar as forças<br />

À força<br />

Guiar através das pedras<br />

Reatravessar o deserto<br />

Ferir o mar<br />

Tornar vermelho o chão<br />

Subir ao convés para ir aos céus<br />

Acordar os orixás<br />

De Seu Manoel<br />

Entrar pelo portal<br />

Do sol<br />

Na noite esquecida<br />

Pela lua<br />

Pular o fosso<br />

Furar o cerco<br />

Cuidado com a isca!<br />

Perder o medo de alcançar<br />

O sonho<br />

Plantar raízes<br />

Regar semente<br />

Ações de quem não foi<br />

Simbora<br />

Soprar clarins<br />

Vitória<br />

130<br />

Poeminflamado<br />

Luz do Litoral<br />

131


Poemas para Voz XXXIII //132 a 137<br />

Poemas para Voz


O meu corpo te exige XXXIV<br />

Um desejo corrosivo me aflige<br />

Com impetuosa força e tenacidade<br />

A alma, o pensamento e a personalidade<br />

E no delírio desse desejo<br />

Eu começo a divagar e vejo<br />

Teu lindo corpo despido<br />

Como se nunca o houvesses vestido<br />

No auge do meu devaneio<br />

Tenho uma mão no teu seio,<br />

Teu sexo no meu beijo<br />

A minha sede de desejo<br />

A minha semente lasciva<br />

Não concebe, não dá vida<br />

Quem me dera que tivesse<br />

Os gozos que já me desse<br />

Eis porque és tão viçosa:<br />

Com meu sêmen regas teu corpo<br />

No meu sonho te faço inteira...<br />

E passas por mim vaidosa<br />

Como se eu fosse morto?<br />

Ah, masturbação derradeira!<br />

– Lá vem ela! XXXV<br />

– Ela quem, home?<br />

– A fome!<br />

– Lá vem ela!<br />

– Ela quem, home?<br />

– A fome!<br />

A fome vem descendo a Ladeira da Misericórida<br />

Sem misericórdia nenhuma<br />

A fome come<br />

E alimenta outras carências<br />

A fome come<br />

E cada vez mais elimina as diferenças<br />

Entre seres humanos e animais<br />

E o pobre homem<br />

– De tão pobre, de tão humilde,<br />

Impertinente –<br />

Encontra um santo padre descendo a ladeira e diz:<br />

– Valei-me, meu padim, que eu já não acredito mais em Deus<br />

Nem nessa ave-maria que eu ouvi cantar.<br />

Porque não há mais em quem acreditar<br />

Do que o feijão carroz do meu dia a dia,<br />

Já que fósforos e sal eu guardo na rodia<br />

E gravetos eu faço com o santo e com o altar.<br />

Me diga mais uma vez, uma vez só, meu padim:<br />

Se o homem é a semelhança de Deus<br />

Quais dos que eu conheço que circulam entre nós<br />

Que não seja branco e muito rico e bem sorridente?<br />

Ou será, meu padim,<br />

Será que, por acaso, esse Deus tem parte com o cão?<br />

Por que será que os da minha cor<br />

Lavam a latrina dessa multidão?<br />

134<br />

Poeminflamado<br />

Poemas para Voz<br />

135


É assim mesmo que eu olho pra você XXXVI<br />

Assim como se olha pra alguém que nos roubou<br />

Não foi você não?<br />

Se não foi você, foi seu pai<br />

Se não foi seu pai, seu bisavô<br />

Olinda está muito mal XXXVII<br />

Em decúbito ventral<br />

Desde o primeiro Carnaval<br />

Tendo sido incendiada<br />

Por legiões de urbanos<br />

Tal qual era colonial<br />

E a dos greco-romanos<br />

Vem sendo violentada<br />

Todo ano em romaria<br />

“Olinda menina linda<br />

Tens a boca desdentada<br />

Os olhos enremelados<br />

Nariz podre, encatarrado”<br />

V8 vê tudo calado<br />

Varad´ouro vara os olhos<br />

De quem chega e o coração<br />

De quem o vê todo dia<br />

Olinda vai muito mal<br />

Prostrada em decúbito dorsal<br />

Em vias de novo estupro anal<br />

Pelos do bem e os do mal<br />

136<br />

Poeminflamado<br />

Poemas para Voz<br />

137


O homem que marcha sobre si:<br />

poemas Inéditos XXXVIII //138 a 175<br />

O hOMeM Que MArchA sObre si:<br />

POEMAS INédITOS


Pense... XXXIX<br />

Pense numa coisa<br />

pontuda<br />

pontiaguda<br />

parecendo<br />

ponta de lança<br />

para que você possa chutar<br />

mesmo que estiver<br />

calçado com um sapato bico de aço<br />

vai rasgar o dedão<br />

É falta,<br />

É pênalti,<br />

Vai chutar!<br />

Vai chutar...<br />

ou não?<br />

Que ideia<br />

dizer coisas<br />

por<br />

escrito<br />

É tempo de sobra<br />

para<br />

o<br />

poema<br />

fugir<br />

Nem musgo<br />

nem visgo<br />

140<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

141<br />

Nem<br />

gaiola<br />

nem ao léu


Laço de Fogo<br />

Deixa que eu pinte<br />

Em teu pedaço<br />

E dá teu braço<br />

Vem no meu passo<br />

Caminhar...<br />

Deixa que a vida<br />

Seja um laço<br />

De fogo e morte<br />

Pra quem não tem<br />

Sorte nem abraço<br />

Para dar<br />

Eis que eu estou<br />

No teu encalço<br />

Correndo descalço<br />

E tem espinhos<br />

No meu pisar<br />

Não sei por que<br />

Você se viu<br />

Entre quatro paredes<br />

Por que você caiu<br />

Nas malhas dessa rede<br />

Sem pensar<br />

A vida não<br />

É uma transa-à-toa<br />

É uma transa-boa<br />

A morte é que é má<br />

Eis que eu estou<br />

No teu encalço<br />

Correndo descalço<br />

E tem espinhos<br />

No meu pisar<br />

142<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

143


Constatação<br />

Onde foi que eu perdi<br />

A minha naturalidade?<br />

Que gesto ou palavra aprisionou<br />

A minha espontaneidade?<br />

Ou foi a mão do meu pai, fazendo nãos,<br />

Antecipando-se ao meu ato,<br />

Precipitando-se ao meu gesto...<br />

Ou será porque sou negro, quero dizer,<br />

Todos os negros são assim?<br />

Por quê este olhar desconfiado<br />

Meu, do meu pai, do meu avô<br />

De quem não sabe se tem permissão<br />

Para rir, chorar, gritar, gemer, gozar?<br />

Permissão pra reclamar, se irritar, se exceder;<br />

Permissão para mijar, permissão para ser,<br />

Para ter, para estar?<br />

Ainda chamam de arrogante<br />

O negro que não tem o olhar subserviente: Negro Besta.<br />

Eu passei a minha vida inteira pedindo desculpas:<br />

“Desculpe-me por estar aqui... por ter que me ver.”<br />

Sr. Analista: Em que momento da minha vida<br />

Me tornaram assim? A que tipo de lavagem me submeteram?<br />

Quanto tenho que pagar para ter de volta minha cidadania?<br />

Estudar pra ser Doutor?<br />

Pergunte ao Dr. Negro o que ele teve de fazer pra ser Doutor<br />

Ser jogador de Futebol?<br />

Até Romário tem os olhos baixos, ou melhor,<br />

Pergunte a ele se ele é negro.<br />

Não, não adianta dizer que a escravidão acabou.<br />

Eles ainda são senhores de todos os nossos passos<br />

Antes, da nossa vida, nosso corpo;<br />

Hoje das nossas mentes e dos nossos destinos.<br />

Elegem um negro e dizem: Você é o nosso rei.<br />

Desde que nos diga que é rico<br />

E a eles que é branco!<br />

Cabe-nos fazer alarido para despertar Zumbi<br />

O Zumba que hoje dorme em cada um de nós.<br />

Fazer uma guerra, sem tréguas, sem bombas, sem par<br />

Uma guerra na rua, no trabalho, na escola, na casa:<br />

OLHAR COM ALTIVEZ! E NUNCA NA VIDA A CABEÇA BAIXAR.<br />

144<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

145


Internetem-nos!<br />

Queremos a sensação de<br />

Não estarmos alienados<br />

Ao embalo desta rede<br />

Navegar neste navio<br />

Faz parte da nossa história<br />

Este é o tumbeiro atual<br />

Em vez de ser Rei Nagô<br />

Queremos outro carnaval e<br />

Um tão potente tambor<br />

Nós que produzimos a paz<br />

Na terra, nós os donos da boa vontade<br />

Nós que temos morrido na praia<br />

Nós que lavamos suas latrinas<br />

Que cuidamos dos seus filhos<br />

Que cozemos sua comida<br />

Bem contra a nossa vontade<br />

Sempre com a velha “Barbie”<br />

Ou a nova boneca de pano<br />

Internetem-nos!<br />

Ou será que também isto<br />

Teremos que fazê-lo<br />

Com as nossas próprias mãos?<br />

Café não é preto<br />

Açúcar não é branco<br />

Cacau não é marrom<br />

Amarelo não é ouro<br />

É a farda do gari<br />

De que cores tô falando?<br />

O natural não é pálido<br />

Nem cinza é a natureza<br />

A garrafa de aguardente<br />

Contém lágrimas de criança<br />

Será que dá para ver<br />

De que cores tô falando?<br />

Veja a cor da igualdade<br />

E da Justiça Social<br />

“A liberdade é azul”<br />

Logo o azul, tão pastel?<br />

Do exército brasileiro, da polícia militar<br />

De que cores tô falando?<br />

Da cor da Universidade<br />

E da TV colorida onde preto não é cor<br />

Nem há ausência de cores<br />

Qual a cor da cabra alada e a do burro quando foge<br />

E do maracatu atômico<br />

De que cores tô falando?<br />

Já estou ficando tiririca<br />

De que cor estou falando?<br />

146<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

147


A Chico Science<br />

A festa apenas começara<br />

detonaram o artista<br />

Os “urubus” se refestelam<br />

na sua carniça<br />

Saqueiam sua bolsa<br />

Surrupiam o seu ouro<br />

Projetam seu futuro<br />

Atestam uma causa pro seu óbito<br />

Engarrafam o seu corpo<br />

E rotulam-no “is dead”.<br />

Só que artistas não morrem.<br />

Você Caê caiu de quatro<br />

Neste novo-liberal festim<br />

Sulamericanafricado.<br />

Tenho fugido<br />

das ferramentas<br />

que manuseio com certa<br />

habilidade<br />

Desprezo a ciência<br />

e o aprendizado<br />

acadêmico<br />

Eu bebo o Futuro<br />

com ares<br />

de<br />

quem<br />

tá mijando o<br />

passado<br />

148<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

149


150<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

151


Diretas, já!<br />

O slogan perfeito<br />

que explodiu<br />

da garganta<br />

dos brasileiros<br />

por tantas vezes,<br />

implodiu no peito<br />

dos guerreiros<br />

como o grito<br />

de morte<br />

das reses.<br />

Por sorte<br />

restou a esperança<br />

de saber<br />

que decerto<br />

a agonia (que não cansa)<br />

e a dor<br />

entrarão como setas<br />

desta vez DIRETAS<br />

no peito<br />

do opressor.<br />

De resto,<br />

nos resta<br />

a certeza<br />

de que tudo passa.<br />

Até esta<br />

tristeza...<br />

até essa<br />

alegria<br />

que, de resto,<br />

lhes resta.<br />

Ai minha preta, tu me pedes XL<br />

Para falar sobre os negros<br />

No dia treze de maio e eu choro:<br />

Agora que conheço a história<br />

Desdenho do branco que a fez<br />

Ai minha preta tu me pedes<br />

Para falar sobre os negros<br />

No dia vinte de novembro e eu pasmo:<br />

Gritos ecoam na minha mente:<br />

Zumbi morreu! Zumbi morreu em vão!<br />

E ainda me pedes minha querida<br />

Para falar sobre os negros<br />

Que estudam na minha escola<br />

E eu lembro tê-los visto apenas do lado de fora<br />

Mais na Igreja do que na Escola<br />

Sem rei, sem terra, distinção ou louvor<br />

Lavando latrinas, lambendo sapatos<br />

No Brasil, os negros estão onde sempre estiveram!<br />

Sobre os negros, minha preta<br />

Eu não falo. Ou tu não vês<br />

Toda essa gente explorada<br />

E todo mundo calado?<br />

152<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

153


Canto a um bode expiatório<br />

Que os negros de qualquer cor<br />

Pobres irmãos do mundo inteiro<br />

Dêem o seu próximo passo<br />

Em seu próprio benefício<br />

Retomem à força o Leme<br />

Das mãos do escroto Capitão<br />

Relembrem o grito de guerra<br />

E a paz que traz a farta mesa<br />

Ou acreditem na inflação 0%<br />

No imposto provisório<br />

Que eutanásia é novidade<br />

“Que a favela é seu lugar.”<br />

A “Abelardo” benedito dos santos<br />

Pensem nos nossos “Beneditos”<br />

A serviço do Exército ou da torcida<br />

Explorados pela fé que não os exorciza<br />

Enquanto jantamos assistindo futebol<br />

A Internet é o tambor do milênio<br />

Mas não se iludam, Pelé não é Rei<br />

Muito menos um ministro<br />

E Mandela é apenas um griot moderno.<br />

154<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

155


Brasil – Quinhentos Anos<br />

Pindorama, Oh Pindorama<br />

Berço dos nossos avós<br />

Estrangulou tua voz<br />

Quem hoje diz que te ama<br />

Macacos nas majestosas palmeiras<br />

Araras barítonas, papagaios tenores<br />

Gritam em coro: Cuidado! Invasores!<br />

Mas Caramuru jogou pajé na fogueira<br />

Vera Cruz, Santa Cruz, Brasilis – Brasil<br />

Cruz + espada + chicote = nação<br />

Pela mão sagrada hóstia e cicuta<br />

América incendiada, Canaã do ano 2mil<br />

A serviço da Ciência e da Religião<br />

500 anos mais de resistência e luta!<br />

Nanã Burukê<br />

Nanã Burukê<br />

Me solta me solta<br />

Que eu levo<br />

As doenças<br />

E espalho<br />

As mortes<br />

Me prende me prende<br />

Que eu arraso<br />

As cidades<br />

E suas gentes<br />

Da noite pro dia<br />

Me solta Nanã<br />

Burukê me prende<br />

156<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

157


Sopro de vida insuflada<br />

por mais uma vez<br />

Viver o tempo de reviver<br />

um grande amor<br />

Uma terceira dentição inesperada<br />

Milagres que o amuleto<br />

quebra<br />

para ser realizado.<br />

Pedaço da gente<br />

que andava desgarrado<br />

gesto-ação de plantar sementes<br />

e esperar pra ver<br />

a grande árvore brotar<br />

fruto:<br />

Leite do teu peito em minha boca<br />

derramado<br />

Ao filho, leite de outros peitos<br />

Ao amante o cálice envenenado<br />

Ao amado o desencontro<br />

na estação das flores<br />

Ao pai, a cruz devolvida por Sedex<br />

E assim, o Homem se vai, mais uma vez,<br />

por entre vossas pernas<br />

negando a sua e buscando<br />

uma nova mãe<br />

Como as plantas<br />

Criemos raízes<br />

Na nossa casinha<br />

Façamos a nossa própria comida<br />

Somos artífices<br />

Não precisamos trabalhar pra ninguém<br />

Só para nós<br />

Vendendo<br />

Comprando<br />

Plantando<br />

Fazendo<br />

Limpando<br />

Lavando<br />

Só para nós<br />

Trabalhando<br />

Capoeirando<br />

Cá entre nós<br />

Estudando<br />

Buscando o<br />

Sonho dos nossos avós:<br />

O centro da terra<br />

158<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

159


Entre as pernas fechadas<br />

Um caminho se bifurca<br />

Dois caminhos se unificam<br />

E a vida continua<br />

Na encruzilhada aberta.<br />

Eita, me perdi!<br />

A linha do rio<br />

Servi-me de você<br />

sem sequer<br />

tocá-la<br />

e nem a mim.<br />

sua<br />

mente<br />

brinca/dança<br />

agora numa<br />

gaiola<br />

de<br />

espelhos<br />

dentro da<br />

minha<br />

160<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

161


Ciclo natural<br />

No instante da morte<br />

A mente antecipa o golpe<br />

Mas não prevê o seu efeito<br />

E ante a fragilidade do corpo<br />

Decerto se regozija em livrar-se dele<br />

Ei-la então solta como um pássaro<br />

Recém-liberto voa para tão longe<br />

Que se lhe é impossível<br />

Reencontrar o caminho de volta<br />

Outra língua, outros meios de<br />

Comunicação intangíveis.<br />

De nascer ave ou árvore<br />

Ou outro corpo ou veículo<br />

Preso a um rangido ininteligível<br />

Mas tão perto, como quem fala<br />

do lado de dentro; Assim,<br />

Alimenta a Terra e<br />

Dela continua tirando o<br />

Seu sustento.<br />

A<br />

PALAVRA<br />

NÃO<br />

ESPREITADA<br />

QUER SER ENGAIOLADA<br />

Nem tão sisuda<br />

Nem também<br />

Só engraçada<br />

Ela quer<br />

Ser<br />

Somente<br />

Palavra<br />

às vezes muda<br />

Semente<br />

do<br />

nada<br />

162<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

163


Suo o suor do rosto de todos os homens<br />

E sinto dor.<br />

Aspiro o desejo contido no centro do mundo<br />

E perco a vida.<br />

Choro o pranto de asselvajadas criaturas<br />

E sinto medo<br />

Espero o tempo parar de bater na parede<br />

E me desespero<br />

Quero que a vida não ruja pra mim<br />

E me deleito<br />

Trabalho mais fundo mais perto do fim<br />

E me desgosto<br />

Do jeito que vim poderei um dia partir<br />

E me consolo.<br />

Sadomasoquismo<br />

Esse Amor<br />

Escaramuça<br />

Atropela<br />

Engalfinha<br />

Engambela<br />

Atrofia<br />

Esmiúça<br />

Esmerila<br />

Insinua a dor...<br />

Essa dor<br />

Insinua<br />

Esmerila<br />

Esmiuça<br />

Atrofia<br />

Engambela<br />

Engalfinha<br />

Atropela<br />

Escaramuça o amor...<br />

164<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

165


Sonhei que estávamos passeando<br />

no jardim da tua casa<br />

Ondas quebravam na margem<br />

do lago sem cisnes<br />

Edgard repousava na<br />

cadeira<br />

O que sempre quiseram<br />

evitar, explodiu-se<br />

em quedas abissais<br />

E a cúmplice natureza<br />

derramou ao chão<br />

mil flores amarelas<br />

entorpecentes<br />

adstringentes<br />

afrodisíacas<br />

Dançamos<br />

Nadamos<br />

Por quê a pressa? Pra quê tanta pressa?<br />

Ei vem cá me dá teu abraço<br />

E toma um beijo meu<br />

Eu te afago tu me afagas<br />

E assim abalamos a fé<br />

nos deuses<br />

E isto é mover montanhas<br />

Fazer acordar um deus<br />

Acordemo-lo e eu lhe perguntarei:<br />

Ei Senhor onde dormias tu<br />

Que não vedes a quantas vai este<br />

mundo<br />

Ora, ora, ora todo mundo aqui<br />

está fadado a ficar engravatado<br />

dentro de um ônibus lotado<br />

- Às 7hs da manhã<br />

166<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

167


Preso pelo meio<br />

Exijo os meus direitos<br />

Peço deferimento<br />

Bato o pé no juiz<br />

Telefono pra esquerda<br />

E sou solto pela metade<br />

Solto pela metade<br />

Voo mas não muito alto<br />

Vou mas não muito longe<br />

Sou mas não sou inteiro<br />

Falo mas nem eu escuto:<br />

Continuo preso pelo meio<br />

A comida que fiz<br />

Pra mim com tanto amor<br />

Agora a mesa me sabe<br />

Sem gosto<br />

E quanto mais insípida<br />

Mais como devagar<br />

Devagar, devagar.<br />

É como se buscasse<br />

No fundo poço da obscura<br />

Memória algo que perdi<br />

E não identifico<br />

Mastigo, mastigo,<br />

E mastigar me dá um grande<br />

Prazer.<br />

É como um prenúncio<br />

O terceiro toque, um resgate<br />

O som de roldanas girando<br />

A antevisão de cortinas se abrindo<br />

Um piscar de luzes<br />

Alta baixa baixa baixa<br />

A cena vai começar.<br />

168<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

169


Danço a dança que<br />

a Morte me<br />

ensina<br />

para que<br />

não me<br />

machuque<br />

a dureza<br />

da vida!<br />

170<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

171


172<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

173


Em caso de dúvidas!<br />

Perguntar<br />

a uma<br />

criança:<br />

Você sabe<br />

onde<br />

mora<br />

França?<br />

174<br />

Poeminflamado<br />

O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />

175


Posfácio//176 a 177<br />

PARA ALÉM DO POEMINFLAMADO<br />

Falar de França é difícil, e tem que ser fácil. Difícil porque até com<br />

este livro é impossível dizer tudo – mesmo trazendo a compilação mais<br />

completa possível de seus poemas, além de depoimentos e outras informações<br />

sobre sua obra. Imagine então fazer isso em um posfácio.<br />

E tem que ser fácil porque para dizer dele é preciso falar e ouvir e<br />

ver – aproximar a escrita da voz e deixar rolar, alimentar o que a memória<br />

guarda com admiração e afeto, e observar o mundo a partir de<br />

seu ponto de vista – para então, compartilhar.<br />

Falar de França é antes de mais nada falar de um multiartista, de<br />

um guerreiro terno e autodidata cujo trabalho teve repercussão em<br />

diferentes meios e muitas vidas.<br />

É falar de sua poesia enquanto plena e fisicamente viva. De sua maneira<br />

de recitar, da originalidade de seu estilo de performance poética<br />

e da maneira com que enxergava e traduzia suas crenças em versos,<br />

divertindo(-se) e emancipando.<br />

E da ressurgência da poesia apresentada, nas últimas décadas. É falar da<br />

força da voz e do corpo no atual panorama cultural não só de Recife, mas de<br />

São Paulo, do Rio, de Salvador – e de Buenos Aires, de Nova Iorque, de Paris.<br />

Falar de uma potência ancestral desreprimida a partir do século passado,<br />

a Corpoesia praticada e presente em todas as sociedades humanas,<br />

em diferentes funções e materializações. Que por conta das novas tecnologias,<br />

e do esforço e prazer de muita gente, evoluiu a partir dos anos 50,<br />

utilizando suportes ancestrais como o blues, o repente, os sermões, as<br />

leituras. Com Allen Ginsberg, Last Poets, Chacal e a Nuvem Cigana; até a<br />

Slam Poetry, e a cena atual de Recife, com vários grupos de recitadores e<br />

artistas como Miró da Muribeca, Lara, Cida Pedrosa, Valmir Jordão, Fernando<br />

Chile, Malungo e tantos outros, parceiros de fé no ofício.<br />

Falar de França é falar da reconformação que a crença na performance<br />

poética faz com o sistema literário, com suas redes que agem<br />

de maneira alternativa e interligada à circulação mais convencional de<br />

livros. Aproveitando os grandes eventos para se lançar, por exemplo,<br />

mas tendo as suas próprias estruturas, espaços para recitação e circulação<br />

de poesia como foi o seu Eu, Poeta Errante.<br />

E da multidão de recitais que se multiplicam por todos os lugares.<br />

Dos Open Mics das maiores cidades americanas, aos torneios de poesia<br />

europeus. Do CEP 20000 ao Cooperifa e ao Quartas Literárias.<br />

É falar da força de suas publicações, artesanato editorial independente,<br />

nascidas do encontro com Sil, artista gráfica talentosíssima,<br />

amor que gerou a Mão-de-Veludo.<br />

E das várias editoras independentes na guerrilha cultural do dia a<br />

dia, filhas da caligrafia e do manuscrito, do xérox e depois afilhadas do<br />

computador. Nascidas de milhares de ações apenas entre amigos, de<br />

tantos ambientes culturais espalhados pelo Ocidente. Criando e publicando<br />

através do básico obras rudimentares e primorosas.<br />

E é ainda falar do TAO – o Teatro dos Amadores de Olinda, grupo<br />

por ele fundado, e falar da montagem do A Cor da Exclusão. Do<br />

dramaturgo formado em Cênicas na UFPE, com grau colado após seu<br />

falecimento, em homenagem e reconhecimento à conclusão do aprendizado<br />

na Universidade e nos palcos de rua.<br />

Mas falar de França, além do multiartista, é principalmente dizer<br />

da sua negritude combativa e impassível. Do mundo de hoje,<br />

onde ainda se vê que a escravidão não acabou, que seus efeitos<br />

continuam – e da luta cada vez maior e mais ativa por real igualdade<br />

espalhada pelo Planeta. É falar por isso da Capoeira, do Candomblé,<br />

dos Afoxés. De seus anos de estudo e luta, de sua pesquisa<br />

sobre Solano Trindade.<br />

É falar de sua ética de desapego tranquilo e consciente perante a<br />

vida. E de tanta gente que de tantas maneiras diferentes vive sem seguir<br />

os padrões que a sociedade de consumo procura lhes obrigar.<br />

E falar, finalmente, de sua presença viva na memória de tantos admiradores.<br />

Gente que se entusiasmou por poesia e por viver poesia<br />

corporalmente através dele, e que continua seu legado de tantas formas,<br />

criando e cultivando as artes que ele escolheu e misturou.<br />

Centelha de luz plantada em peitos e cabeças, brotando e gerando<br />

a partir das sementes que o mestre continua oferecendo...<br />

...e que agora germina esse livro, o site e as apresentações de<br />

Poeminflamado.<br />

Na esperança, na fé e na certeza que sua multicolorida ArteVida<br />

continua. Continua falando, ensinando, divertindo, conscientizando. E<br />

continuará, multiplicada em mais e mais mentes e corações.<br />

Axé, França!<br />

André Telles do Rosário, amigo e admirador.<br />

Mestre em Letras - Teoria Literária, pela universidade Federal de Pernambuco<br />

176<br />

Poeminflamado<br />

Posfácio<br />

177


Depoimentos//178 a 187<br />

A HERANÇA DO POETA FRANÇA<br />

Um belo dia ouvi um velho dizer: – Quem sai de sua cidade cedo,<br />

jovem, pequeno, menino, quem não vive nela a turbulência da adolescência,<br />

nunca poderá captar a alma de sua cidade como um verdadeiro<br />

cidadão. Se voltar para sua cidade, voltará já uma estátua. Seu destino:<br />

ficar embutido numa praça qualquer, a ver mil sóis nascerem e se porem.<br />

Eternamente presente, jamais um participante.<br />

Levantei a bandeira da indignação e perguntei: – Mas meu senhor,<br />

então me diga uma coisa: Como é que se alimenta uma árvore? Uma<br />

planta qualquer? Não é pelas suas raízes? Qualquer ser tem veias! Vínculos<br />

que lhe mantêm vivos!<br />

– Pense! Disse ele, seus olhos arregalados. – Pense numa árvore que<br />

cresce com o nariz para cima. Ela só olha para o sol que a esquenta e a<br />

chuva que a refresca e se esquece completamente de alimentar suas raízes.<br />

Enquanto isso suas raízes vão enfraquecendo, vão secando, e, um belo dia,<br />

elas morrerão. Por mais impressionante que seja essa árvore, ela vai cair!<br />

Neste ponto já estava bastante assustada, mas o maldito continuou:<br />

– E tem mais!, disse ele, subitamente curvando seu corpo para a<br />

frente, e se aproximando da minha pessoa com uma lentidão assustadora.<br />

– Ela vai cair sem nem saber se era mangueira ou pinheiro!<br />

Na verdade, este velho não existe, mas ele me ensinou uma coisa<br />

muito importante: se eu não quisesse voltar uma estátua, precisava<br />

procurar minhas raízes. Saber se eu dava frutos, ou somente sombra. E<br />

teria que encarar certas coisas.<br />

Primeiro: França se foi. Embora às vezes ainda pareça uma coisa<br />

fictícia. Parece um Elvis. Até agora há quem negue que foi embora.<br />

Percorro as mesmas ruas que percorri com ele, desta vez sozinha. Às<br />

vezes prendia o ar ao dobrar uma esquina, numa mistura de medo e<br />

vontade de reencontrá-lo. Medo, porque o susto seria tão grande que<br />

eu mesma bateria as botas. Vontade porque a saudade simplesmente<br />

é imensa. Mas desde 2007 nunca mais aconteceu e nunca mais acontecerá.<br />

A coisa é, portanto, um fato.<br />

Ao andar com ele pelas ruas de Olinda sentia um orgulho imenso<br />

e só agora sei de quê. Em retrospectiva, parece que só o via em 2D.<br />

Paradoxalmente, agora que só restam seus escritos, sua trilha de pensamento<br />

num pedaço de papel, sua voz num DVD - só agora que seu<br />

ser não é mais, ganhou outra dimensão.<br />

Porém, isto não é nenhum lamento, e isto me leva ao segundo ponto:<br />

ele se foi, e deixou um vácuo absoluto. Mas este vácuo não é um<br />

mero vazio. É um espaço que pode ser preenchido novamente. Vivia<br />

educando, plantando sementes. E talvez era necessário que ele fosse,<br />

que ele desse lugar a novos seres, a novas árvores, se quiser.<br />

Sua herança é essa. É como ele. Não se mede em dinheiro, nunca<br />

estará sujeita às malícias da política e às flutuações do mercado. Não<br />

se pesa em ouro. E, generoso como era, não deixou isso tudo só para<br />

seus filhos. Compartiu com seus amigos, e, de fato, todos que cruzaram<br />

seu caminho.<br />

Um grande amigo sempre diz: compartir es vivir. França continuará<br />

vivendo através do que compartiu conosco. Através das suas histórias,<br />

das nossas memórias, e através de sua obra. Chegará a conviver com<br />

nossos filhos e os filhos deles. Extrapolou as fronteiras da matéria. Expandiu<br />

as fronteiras do Brasil. E o melhor de tudo isso, é que uma semente<br />

não precisa cair no mesmo solo para gerar outro ser. Basta que<br />

caia em solo fértil.<br />

HISTÓRIA DA FRANCIDADE<br />

QUANTO MAIS SEI,<br />

MAIS SINTO<br />

ORGULHO<br />

Carolina Maciel, de França.<br />

[Fã, filha, tradutora e educadora]<br />

178<br />

Poeminflamado<br />

Posfácio<br />

179


MEMÓRIA DO TEATRO DOS AMADORES<br />

DE OLINDA - TAO<br />

Em um lugar de Pernambuco, não há muito tempo, vivia um homem<br />

de sorriso largo, coração grande, palavra poderosa, teatro puro e<br />

estremecedora poesia.<br />

Quem conheceu França leva sua semente, quem o viu atuar sua magia.<br />

Feiticeiro de palavras e pessoas, duende da poesia, cavalheiro do teatro.<br />

Com a elegância substancial de seus gestos, como uma ginga rasteira,<br />

desenhava espirais alcançando a união do círculo: vida-morte,<br />

Horácio-Xangô, sertão-mar.<br />

Autodidata de sua sabedoria (embora graduado em Artes Cênicas<br />

pela Universidade Federal de Pernambuco), educador com um magnetismo<br />

natural, estandarte da tradição oral, herdeiro dos griots africanos<br />

com escritura lapidada: herança e aquisição.<br />

Expandiu a poesia como um big bang em Olinda com seus recitais<br />

semanais “Eu, Poeta Errante” e suas apresentações teatrais.<br />

Encaminhou-nos a fundar o TAO - Teatro dos Amadores de Olinda,<br />

para fazer do teatro poesia; despertar a consciência do oprimido<br />

continuando a prática de Boal. Os integrantes eram poetas, estudantes<br />

de teatro, taxistas, advogados, domésticas, comissários de bordo e<br />

até atores. O processo criado nos ensaios, ao desentorpecer o corpo<br />

alienado pelas tarefas quotidianas, dava-nos armas para levar ao povo<br />

a força do teatro e da poesia. Emissores e receptores se misturavam,<br />

qualquer pessoa pode ser um ator, compartilhar o poder da palavra,<br />

levar o teatro às ruas para que todos o sentissem como seu.<br />

Representar Solano Trindade ou A Cor da Exclusão, na praça do<br />

morro, nas comunidades, nas escolas, nas universidades e inclusive<br />

nos teatros, transportar o palco fazia-se leve ao unir a festa e a provocação<br />

do pensar.<br />

Talvez este seja seu maior objetivo e legado, saber que dentro de<br />

nós existe um poeta, um sonhador, um fazedor, um pescador de palavras,<br />

um rei em seu mundo, um sustentador de dignidade, um mestre<br />

em ensinar, um homem com barba, um ser especial.<br />

Juan Ramón Martinez e Laine Amaral<br />

são integrantes do TAO.<br />

180<br />

Poeminflamado<br />

Depoimentos<br />

181


MEMÓRIA MÃO-DE-VELUDO<br />

Escrita por Sil, em novembro de 2010*<br />

Acho que era março, 1998, subi o morro da Barreira, Olinda, onde<br />

França morava, junto com Wagner (Porto). Tínhamos combinado de<br />

conversar sobre um livro que ele queria fazer, todo manuscrito. Wagner<br />

fizera o contato, eu fazia livros, encadernava.<br />

Aprendi a encadernar com um colega de faculdade, o Eduardo (Rosa)<br />

e viciei; na época sempre carregava cadernos de viagem feitos por mim<br />

pra onde quer que eu fosse, eles faziam sucesso entre meus amigos,<br />

muita gente queria aprender a fazer. Desenvolvi um jeito particular de<br />

encadernar, sem usar quase nenhum material específico de encadernação<br />

(meus melhores “amigos” nessa arte eram um estilete e uma<br />

agulha) e, reaproveitando todo o material que tivesse a disposição,<br />

fazia o máximo com o mínimo. Eu usava todo tipo de lixo que pudesse<br />

ser incorporado aos meus cadernos: embalagens, roupas velhas, papéis,<br />

cartas de baralho, anúncios, cartazes etc.<br />

França me mostrou os poemas, eu mostrei meus cadernos. Nascia<br />

então uma parceria amorosa, um encontro cheio de poesia e afeto que<br />

produziria cartões, agendas, cadernos e livros únicos, feitos de quase<br />

nada e repletos de quase tudo o que ia em nossas veias e corações.<br />

Comecei o projeto gráfico do livro A COR DA EXCLUSÃO a partir desse<br />

primeiro encontro: seleção dos poemas, ilustrações, tipo de papel,<br />

encadernação.<br />

Mas a urgência da vida exigia pagamento<br />

de contas, compras de mantimentos,<br />

eu não tinha onde morar<br />

e França me ofereceu sua casa, um<br />

cômodo com cozinha e banheiro. Tí-<br />

nhamos que sustentá-lo e sustentar-nos.<br />

Na época, França fazia recitais em bares<br />

de Olinda. Ele foi convidado a se apresentar<br />

no teatro da FAFIRE (em maio<br />

de 1998), como parte de um Seminário<br />

com o tema “O imaginário da Exclusão”<br />

e me propôs fazer alguns cartões com<br />

poemas para levar lá e vender. Procurei<br />

pela casa materiais que pudessem ser<br />

usados. Papel pardo de embrulho, palha<br />

1<br />

da costa, um papel cartão preto, restos de colares, flores secas, retalhos,<br />

pedras, e fiz uns pequenos quadros com molduras, onde estavam<br />

inscritos os poemas (1).<br />

França adorou, achou que aquilo era um meio de divulgar os textos<br />

por escrito, uma forma de arranjar dinheiro, algo que ficava depois<br />

que os poemas eram ditos, uma lembrança, um eco. Precisava de uma<br />

marca, uma identidade, um nome: MÃO-DE-VELUDO, o que é? O que<br />

significa? Um tapa sem mão, um desafio com luva de pelica, uma carícia<br />

que é uma porrada, um afago nem um pouco manso. Esperteza,<br />

clareza, delicadeza... Tudo junto e ambíguo.<br />

Realmente foi um sucesso, como ele previra:<br />

num instante se esgotavam os cartões e<br />

as pessoas procuravam mais, queriam, desejavam.<br />

O segundo produto que fiz foram oito<br />

livrinhos a partir de umas pastas de elástico<br />

que França tinha: amarela, vermelha, verde<br />

e preta. Cortei o miolo retangular, dobrei ao<br />

meio, e tinha ali as oito capas; no miolo usei<br />

um papel manteiga velho que era sobra de<br />

um escritório de arquitetura e do qual eu<br />

tinha um monte de folhas (o mesmo de A COR<br />

DA EXCLUSÃO). Tínhamos então oito poemas<br />

pequenos, um desenho de uma mandala em<br />

aquarela dentro e na capa outra mandala<br />

vazada. Misturei as cores das pastas (o recorte<br />

de uma cor eu incorporava nas outras<br />

de maneira que todas as oito capas tivessem<br />

as quatro cores africanas)(2). Com as sobras<br />

das capas fiz oito molduras para quadrinhos<br />

com poemas grandes, vendemos tudo.<br />

A partir daí, a coisa começou a ficar mais<br />

séria e mais profissional. Comprei saquinhos<br />

plásticos para embalar os cartões e cartolina<br />

para fazê-los; mandei fazer um carimbo da<br />

MÃO-DE-VELUDO com o símbolo da pena<br />

(que é escrita e leveza...); os envelopes muitas<br />

vezes eram de folhas de revista, embalagens<br />

de café, ou comprados. Os poemas<br />

eram escritos sempre de maneira diferente e<br />

ilustrados também de forma diferente.<br />

182<br />

Poeminflamado<br />

Depoimentos<br />

183<br />

2


3<br />

Eu fazia séries, que continham uma linguagem comum,<br />

uma ilustrada com recortes de revista, outra<br />

com pingentes, outra com manchas coloridas...(3)<br />

O projeto de A COR DA EXCLUSÃO ganhou corpo:<br />

Isa do Amparo doou uns cartazes de uma expo que<br />

ela tinha feito na década de 80 para as ilustrações;<br />

um tecido bonito que França tinha cobriria a capa<br />

que seria de papelão de caixa. E assim quase não<br />

gastaríamos em material. O lançamento foi no dia<br />

20 de novembro (1998) no Grupo de Capoeira Angola<br />

Mãe (de mestre Sapo), com uma apresentação<br />

de teatro e um sorteio do livro número 1, que foi<br />

vencido por Eunápio, poeta que estava festejando<br />

seu aniversário justamente naquele dia(4). Na data<br />

tí-nhamos três livros somente e todos foram vendidos.<br />

Depois, começamos a produzi-los por encomenda,<br />

ao todo imagino que tenham sido feito uns<br />

cem livros.<br />

A violência na Barreira estava aumentando, e com<br />

o crescimento da MÃO-DE-VELUDO resolvemos nos<br />

mudar (para perto do farol de Olinda, no Amaro<br />

Branco) e criar um ateliê, onde várias pessoas trabalharam,<br />

aprenderam a arte de encadernar e trocaram<br />

experiências. A casa estava sempre cheia, tínhamos<br />

muitos amigos/colaboradores: Chloë, Fernanda,<br />

Bianca, Ana, Felipe, Mariano, o pessoal da capoeira...<br />

Fomos nos profissionalizando, aumentando a<br />

produção de cartões, quadros e cadernos.<br />

Fizemos uma seleção de poemas médios e pequenos<br />

para serem usados em cartões, que tinham<br />

um tamanho padrão de 10cm X 15cm aproximadamente,<br />

e que sempre se repetiam; alguns tinham<br />

muita saída e eram mais produzidos que outros.<br />

Tinha também uma seleção de poemas grandes para<br />

cartões grandes ou quadros, mas que eram menos<br />

vendáveis. Fizemos também um expositor, com um<br />

antigo cobertor pintado e pregadores (existem três<br />

deles). Os poemas eram vendidos em recitais, feiras,<br />

praças, eventos musicais, festas, etc.<br />

Havia também em Olinda uma galeria (Frans Post)<br />

4<br />

onde se faziam recitais. Os donos gostavam muito<br />

do meu trabalho, convidaram-nos para expor os poemas,<br />

fiz uns quadros pequenos usando coisas naturais<br />

(galhos, conchas, flores secas, etc.) e caixas de<br />

papelão. Recebíamos também encomendas de li-<br />

vros únicos, feitos à mão.<br />

Tudo era muito intenso, existia um movimento na<br />

cidade, vários grupos criando, tinha os Molusco-lama,<br />

o Boizinho Alinhado, os Bagulhadores do Mió,<br />

a Capoeira Angola Mãe e tinha a MÃO-DE-VELUDO.<br />

Em novembro de 1999, um ano depois de lançar A<br />

COR DA EXCLUSÃO, descobri que estava grávida de<br />

Pedra (de dois meses...), que é, sem dúvida, o maior<br />

fruto desta parceria. A gravidez foi um momento especial<br />

e criativo para mim, de autodescoberta e de<br />

crescimento, uma nova etapa da vida. A AGENDA DA VIDA foi desenvolvida<br />

e criada junto com Pedra, é uma homenagem e um presente<br />

a esse ser que estava por vir, feita por causa dele e para ele e por<br />

isso tem esse nome. Eram as nossas vidas se misturando, expondo-se<br />

e dando frutos... Abrindo espaço para que a vida dos outros fizesse<br />

parte também da MÃO-DE-VELUDO, já que a agenda é completada por<br />

seu dono e cada vida é única. As agendas também marcam o início do<br />

uso do xérox pela editora. A primeira agenda (de 2000) foi produzida<br />

com a ajuda de Rosa (Melo) que arrumou um lugar pra fazer as cópias<br />

xérox; tentei colocar nela o maior número de poemas possível, já<br />

que o destino da AGENDA DA VIDA naquele momento era incerto... Ao<br />

todo foram dez edições (quem diria!) de 2000 a 2009.<br />

As duas primeiras foram feitas todas com xérox, as capas eram de<br />

papel de seda e colagens sobre cartão. Todas as capas eram exclusivas,<br />

cada agenda era única. A encadernação era com espiral. Devido à falta<br />

de recursos e a uma independência desejada das copiadoras, a agenda<br />

2002 foi toda gerada em casa: bolamos os carimbos para os dias e<br />

meses, fizemos os poemas e ilustrações em telas de silk e a encadernação<br />

passou a ser com três furos e ganchos de cortina, e a capa era<br />

de papelão grosso forrado com tecido. As agendas seguintes são uma<br />

mistura do que deu certo nessas experiências anteriores: o texto e as<br />

ilustrações são de xérox, o miolo de carimbo, a capa de papelão com<br />

tecido. (5)<br />

Nessa época também editei um livro meu de poemas antigos, o<br />

IGUAL. Eram pequenos poemas, quase haikais, que eu escrevi na déca-<br />

184<br />

Poeminflamado<br />

Depoimentos<br />

185<br />

5


6<br />

da de 80 e repaginei com desenhos para fazer o<br />

livro todo xerocado, do tamanho da palma da mão.<br />

Fazíamos exposições no ateliê, com recitais e<br />

shows, os EXPOEMAS. Também em 2000 França<br />

criou o movimento de recitais EU, POETA ERRANTE,<br />

que teve início na casa das Anas (Escurra e Schuartz),<br />

ali na rua de Pai Edu em Olinda: cada 5ª feira<br />

numa casa diferente da cidade, à meia-noite em<br />

ponto, começava o recital; fiz o logo e os cartazes,<br />

com o pé de Pedra impresso um em cada direção<br />

para marcar a errância do poeta. Acho que as pegadas do símbolo<br />

têm a ver com o começar a andar com os próprios pés, como sempre<br />

acontecia nesses recitais onde tantos poetas começaram a dizer seus<br />

primeiros poemas e editar seu primeiro livro, onde tantas pessoas se<br />

acharam, descobriram-se.(6)<br />

Nós também atingíamos a maturidade, e publicávamos o CAFUNÉ<br />

(Agosto de 2003). Em termos editoriais e de projeto gráfico considero<br />

o CAFUNÉ o nosso produto mais bem acabado, onde tudo o que<br />

aprendemos nessa caminhada se manifesta. É um livro que, a meu<br />

ver, realiza todos os preceitos da MÃO-DE-VELUDO, atinge todos os<br />

nossos objetivos. É artesanal: impresso em xérox, papel reciclado,<br />

capas de papelão ondulado sempre diferentes, encadernado à mão;<br />

é barato; é produzido em quantidade; é alternativo ao grande mercado;<br />

nós temos controle dos meios de produção (não temos máquinas<br />

de xérox, mas temos amigos que têm).<br />

A ideia da MÃO-DE-VELUDO é: você quer? Então faça você mesmo!<br />

Nós fizemos, e inspiramos muitos a fazer também!<br />

Provamos que sonhos podem se realizar, que ideais podem ter forma<br />

concreta, e que podemos viver, existir a partir daquilo que acreditamos.<br />

Nós vivíamos MÃO-DE-VELUDO, e desafiávamos o estabelecido<br />

no nosso dia a dia: SIM, NÓS PODEMOS! E muitos frutos foram<br />

gerados a partir daí.<br />

Sil é Silvana Beraldo Massera.<br />

Artista plástica.<br />

186<br />

Poeminflamado<br />

Depoimentos<br />

187


Notas dos poemas//188 a 204<br />

I Feito à mão, o perfumado e multicolorido livro A Cor da Exclusão foi<br />

lançado na cidade de Olinda, Pernambuco, a 20 de novembro de 1998, em<br />

pleno Dia Nacional da Consciência Negra.<br />

Com 23 poemas de França e arte de Sil, o produto da Mão-de-Veludo<br />

Edições Artesanais circulou pelo Brasil e pelo mundo através de aproximadamente<br />

100 exemplares que, pela característica de terem sido confeccionados<br />

um a um, através de métodos tradicionais de produção (manuscritos,<br />

encadernados artesanalmente, ilustrados com colagens, raízes, ervas<br />

e papéis reciclados) sempre diferiam entre si.<br />

O diálogo da poesia de França com a arte de Sil conferia movimento<br />

aos poemas, uma vez que a artista gráfica costumava interferir na disposição<br />

visual dos versos de acordo com suas ilustrações. Aqui – assim como<br />

no capítulo subsequente, referente ao livro Cafuné – tivemos o cuidado<br />

de manter esse conceito visual do movimento, porém adaptando-o à<br />

nova realidade editorial e respeitando as formas originais dos poemas,<br />

encontradas nos manuscritos do poeta. A não padronização da utilização<br />

de maiúsculas no início dos versos remete também a essa característica<br />

do movimento e da oralização da escrita, que achamos por bem manter.<br />

Vale ressaltar que o livro tem sua origem em uma performance homônima<br />

estreada pelo autor no dia 20 de novembro de 1996. Ela foi apresentada<br />

semanalmente no sótão do Bar Almanaque, situado no Sítio Histórico de Olinda<br />

(mais precisamente no Varadouro), até o ano seguinte. A partir de imagens<br />

dessas apresentações – feitas pelo videasta Jeferson Luiz e inseridas no DVD<br />

anexo a esta edição – pode-se constatar que o autor operou cuidadosas seleção<br />

e revisão dos poemas utilizados nas performances (até então circulados<br />

apenas oralmente) para, então, adaptá-los e incluí-los à publicação escrita.<br />

No mais, o livro em comento traz como prólogo poemas de três intercessores<br />

de França – o inglês Kemble Williams, pai de seu amigo Peter<br />

Williams; o amigo e parceiro em literatura e performances Angelo Bueno;<br />

e Erickson Luna, grande referência da poesia urbana de Recife e símbolo<br />

do que se costumou convencionar/rotular na cidade como poesia marginal.<br />

A poesia de Luna também se encontra em seu livro Do moço e do<br />

bêbado, editado em Recife no ano de 2004.<br />

Portanto, a presença dos três poemas em comento nos revela uma<br />

face importante da ideologia do trabalho de França: a inserção de outras<br />

vozes em sua obra, enriquecendo e materializando a teia intertextual de<br />

comunicação entre os atores do sistema literário em que o poeta se inclui.<br />

Assim, a interpretação da função específica de cada um desses poemas<br />

n´A Cor da Exclusão faz-se de extrema importância para a compreensão<br />

IN Consumido<br />

Preservam poesia<br />

em geladeiras-bibliotecas.<br />

servem-na seca<br />

nas escolas<br />

ano após ano<br />

Ninguém poderia consumi-la toda,<br />

nem se gastasse a vida inteira;<br />

estamos ainda digerindo colheitas<br />

do século dezesseis.<br />

Quem me dera que comêssemos poesia<br />

como tortas,<br />

Lambêssemos até o último naco<br />

deixando as páginas em branco.<br />

Assim eles implorariam<br />

que poetas enchessem os livros,<br />

poetas seriam populares,<br />

como cozinheiros,<br />

e quando se sentassem<br />

famintos numa biblioteca<br />

somente poesia feita na hora<br />

seria servida<br />

(Kemble Williams / Tradução: Peter Williams)<br />

do todo do livro. Seguem os três poemas citados.<br />

188<br />

Poeminflamado<br />

Notas<br />

189<br />

Brechava<br />

A fresta<br />

A festa que havia<br />

todos sorriam<br />

todos bailavam<br />

todos dançavam.<br />

Eu? Ora,<br />

Eu brechava<br />

(Angelo Bueno)


Agora<br />

A poesia atropelou meu verso<br />

saiu da linha<br />

e traça a vida por um triz (Erickson Luna)<br />

E, em consonância com essa rede intertextual e polifônica tecida pelo<br />

autor, merece destaque a presença do poema de autoria de Eduardo Alves<br />

da Costa (“No Caminho, com Maiakóvski”) na introdução da performance<br />

de 1996. Abaixo segue a transcrição – feita a partir das imagens do videasta<br />

Jeferson Luiz – de trecho do poema de Costa utilizado como uma<br />

apresentação à performance d´A Cor da Exclusão:<br />

“[...] Na primeira noite / eles se aproximam / e colhem uma flor<br />

de nosso jardim/ e não dizemos nada. / Na segunda noite, já não<br />

se escondem; / Pisam nas flores, matam nosso cão. / e não dizemos<br />

nada. / Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho<br />

em nossa casa, / rouba-nos a lua e,/ conhecendo o nosso medo, /<br />

arranca-nos a voz da garganta. / e por que não dissemos nada, / já<br />

não podemos dizer nada. [...]” (sic)<br />

II Este poema foi também publicado em seu segundo livro, Cafuné, de<br />

2003. Ver página 53.<br />

III Este poema também circulou através da Revista Palmares (Revista<br />

Palmares. Cultura Afro-brasileira. Ano I, nº I – agosto, 2005. Fundação Cultural<br />

Palmares, p.51)<br />

IV Estão inclusas no DVD que acompanha este livro imagens cedidas<br />

pela jornalista Bárbara Cristina. Elas fazem parte de entrevista do poeta<br />

para o filme Onde Estará a Norma? , sobre o poeta Miró. Nessa ocasião,<br />

França recita o poema conhecido como “Robocop” com algumas alterações<br />

em relação à versão escrita. Estas se resumem aos 6º, 11º e 20º<br />

versos do poema, que recebe como adendo dois novos versos ao final<br />

(25º e 26º). Os versos recriados ao sabor do improviso e da oralidade<br />

seguem, respectivamente: “Abrindo, assim, a janela”; “perante nossos<br />

filhos e nossos irmãos”; “que estoura”; “Cotidianamente / e você finge<br />

que não vê”.<br />

V Conhecido como “Isadora”, este poema é uma marca registrada do<br />

poeta e de seus recitais. Ultrapassou as fronteiras das linguagens e, num<br />

movimento bastante espontâneo, virou música: um afoxé. E, por isso,<br />

além de recitada, foi bastante cantada. Em especial, quando havia tambores<br />

ou qualquer instrumento musical no recital, tornava-se um dos pontos<br />

altos do Eu, Poeta Errante.<br />

VI No DVD anexo a esta publicação há ainda imagens de França, feitas<br />

pelo videasta Jeferson Luiz, recitando versão deste poema. Trata-se da<br />

primeira performance d´A Cor da Exclusão, ocorrida em Olinda, a 20 de<br />

novembro de 1996, Dia Nacional da Consciência Negra. A Cor da Exclusão<br />

foi obra de arte que o poeta desdobrou e ressignificou em diversas linguagens:<br />

performance, livro e peça teatral. Vale ressaltar que, em análise<br />

comparativa com a sua posterior versão escrita, a versão falada de 1996<br />

apresenta inversões de estrofes.<br />

VII Os caminhos traçados por este poema nos indicam as alterações que<br />

a possibilidade de reedição em outras publicações e o tom fluido (orquestrado<br />

pelo improviso e pelos contextos da realização oral) lhe conferiram.<br />

Assim, em 2002, o referido poema foi reeditado no Marginal recife:<br />

coletânea poética 1, onde ainda estavam inclusos outros poetas-referência<br />

no universo da poesia oral urbana da Grande Recife, tais como Erickson<br />

Luna, Cida Pedrosa, Francisco Espinhara e Miró. Após análise comparativa<br />

entre as versões (A Cor da Exclusão e Marginal Recife) do poema em questão,<br />

percebe-se que a versão da coletânea traz algumas modificações,<br />

principalmente localizadas na última estrofe, conforme segue:<br />

“(...)Teatral. Teatro ateu e platéia plebéia / Povo politicamente<br />

falando: Povo! / Aleluia! Aleluia! barrabás! bArrAbÁs!!! / PMDb-<br />

-PeFeLÊ-PTT, prá que ter? / enquanto o voto obrigatório / detona o<br />

país há quem pinte / Pontes.”<br />

(Marginal Recife - Coletânea Poética I, 2002, p. 31)<br />

Já em material audiovisual capturado pelo videasta Fernando Peres<br />

(julho de 2007 / Festival de Inverno de Garanhuns – PE) tem-se registradas<br />

a imagem e a voz do poeta em ação, “a dizer” o referido poema no<br />

recital itinerante de poesia performática Chá das Cinco – realizado junto<br />

aos poetas Miró, Valmir Jordão, Malungo e Trelles.<br />

190<br />

Poeminflamado<br />

Notas<br />

191


Em declamação com claras indicações de improviso, neste vídeo (presente<br />

no DVD) o poeta faz-nos localizar ainda mais alterações em relação à<br />

primeira publicação escrita do poema. Percebe-se que o poeta movimenta<br />

e contextualiza sua obra ao suprimir trechos de estrofes, ao inserir novos<br />

versos, além de realizar marcações linguísticas típicas da oralidade, conforme<br />

transcrição abaixo:<br />

“Vamos continuar comendo porcarias / Fodendo à maneira das<br />

Marias profissionais / bebendo coca-cola, excreções e coisa e tais<br />

/ Fazendo mais e mais Josés que nos puxarão os pés / antes de<br />

aterrisarmos em poderosos tapetes voadores / hein!? / TNT- buM,<br />

bhT-buM, bNh-buM Fhc-buM, LuLALÁ-buM / ML, iML de antecadáveres<br />

/ uhs, Vhs e nenhum sinal dela / aqui, entre as minhas<br />

pernas / sOs pedindo socorro em silêncio / sepulcral / Teatral (eu<br />

sOu TeATrAL): teatro ateu, plateia plebeia / Aleluia! Aleluia, senhor!<br />

barrabás! barrabás!! / Povo politicamente falando: POVO! /<br />

PMDb, Pefelê – pra quê ter? / enquanto o voto obrigatório detona<br />

o país / há quem pinte pontes”<br />

VIII Poema incluso na coletânea Marginal Recife I. Também aqui se percebem<br />

algumas alterações, sendo sua maior a supressão dos sexto e sétimo<br />

versos originais.<br />

No DVD anexo a esta publicação há ainda imagens de França, feitas<br />

pelo videasta Jeferson Luiz, recitando versão do poema em questão.<br />

Trata-se da já referida performance d´A Cor da Exclusão datada de 1996.<br />

Abaixo, segue transcrição da referida versão do poema, caracterizada por<br />

marcações linguísticas típicas da oralidade e por apresentar-se ainda sem<br />

o tratamento ou revisão conferidos pelo poeta para sua versão escrita:<br />

“Nem bem começou a grande crise / e a classe média abarrotou<br />

os ônibus / com sua boca cheirando a cream-cracker com café /<br />

e deles – dos ônibus – mudou-se o itinerário / Para acomodar sua<br />

bunda / digamos flácida / Ou inflada de tédio e de ócio / Neles<br />

entrava madame : / – sobe, motô, para aê. sobe, motô! / e descia<br />

simples passageira. / e sentia náuseas com o cheiro forte da zona<br />

norte / A ladeira tomada de assalto era subida com sua presença /<br />

Que pedia a benção à preta fala, / Da boca morta, da língua morta,<br />

/ A lhe dizer, cheia de vida: / – Óa, menina, cuidado senão tu vai<br />

morrer, visse?”<br />

IX Poema incluso na já citada coletânea. Esta traz uma única variação<br />

em relação à versão escrita d´A Cor da Exclusão: o segundo verso da terceira<br />

estrofe aparece sob a seguinte forma: “(...) Brasil do ano dois mil”<br />

(Marginal recife – coletânea Poética i, 2002, p. 33)<br />

X Também incluso no Marginal Recife – Coletânea 1. Nesta, a versão do<br />

poema em questão, em comparação com o livro A Cor da Exclusão, traz<br />

algumas pequenas variações, conforme seguem:<br />

Vens tão mansa / Vens tão bela / tão bela / Que fechas as portas /<br />

Atrás de ti / Vens... vem... vem... / O gato brilha / A porta geme / A<br />

tua mão me descostura / Ao sabor do vento / e agora te vejo precisamente:<br />

/ Vais? / Vens ou vais? / Vem e vai! / Ou sou eu que / Não<br />

sei se sou tobogã / Ou gangorra? / Masmorra / Tronco / calabouço<br />

/ Porão do teu âmago / Me vejo tão dentro de ti / Que cacimba te mataria<br />

a sede? / se não fosse pelo teu / sabor acidoalcalino / Abacateabacaxi<br />

/ eu não saberia / se tobogã ou gangorra / Te atrairia hoje!<br />

(Marginal Recife – Coletânea Poética I, 2002, p.34)<br />

XI No DVD que compõe esta publicação há uma versão “mais oral” deste<br />

poema. Trata-se da já mencionada primeira performance d´A Cor da Exclusão,<br />

filmada pelo videasta Jeferson Luiz em 1996. Ela apresenta algumas<br />

pequenas alterações em relação à versão escrita. Abaixo, segue transcrição:<br />

“há um buraco no fundo do barco chamado brasil / Que já não<br />

mais navega à deriva / Mas agora tem rumo certo / Vai fundo no<br />

fundo do fundo / há outro buraco insistente / e eu nem quero falar<br />

/ eu nem quero falar no meu dente / bem no centro de todo humano<br />

/ e outros buracos, e tantos buracos / Na nossa casa, nas ruas,<br />

nas praças / Na cidade inteira / buracos / e tudo o que queremos,<br />

tudo o que buscamos / está num grande buraco, não tão grande /<br />

eu também tenho cavidades vulcânicas / No meu peito / implodindo<br />

o meu ego / sou tão curvo / No entanto / Não rolo, não roubo,<br />

nem cedo tão cedo / bisavô também dizia: / - Morreu dotô fulano /<br />

Agora ele só tem / O buraco e a catinga”<br />

Já nas imagens da performance realizada pelo artista no lançamento<br />

do livro Quarto de Ofício, nos é apresentada uma alteração marcante no<br />

8º verso: “E outros e outros buracos nas BRs, nos próprios buracos”<br />

192<br />

Poeminflamado<br />

Notas<br />

193


XII Este poema está presente em outras publicações. Caracteristicamente,<br />

em todas elas encontramos pequenas variações. Em Cafuné, segundo<br />

livro de poemas do autor, há duas pequenas alterações (em relação à versão<br />

d´A Cor da Exclusão, primeira publicação do poema): “punho” no lugar<br />

de “punhos”, além do acréscimo de uma vírgula no décimo verso, como<br />

se vê na página 64.<br />

Já em Luz do Litoral, livro do fotógrafo Mateus Sá – com poemas de<br />

França – a alteração se restringe à adição da vírgula no décimo verso (ver<br />

página 128). Para além disso, a disposição espacial do poema foi bastante<br />

modificada, conferindo um novo frescor à leitura, dinamizando novas<br />

interpretações; e mais: o diálogo do poema com a fotografia de Mateus<br />

Sá (e a realidade ali aprisionada) enriquece ainda mais esse processo de<br />

ressignificação, articulando outros lugares no discurso do poeta.<br />

XIII Em material audiovisual captado por Fernando Peres, podemos<br />

acessar a brincadeira, a reordenação, a recriação, a ressignificação, a provocação<br />

orquestradas pelo poeta, em sua própria obra, quando em ação,<br />

em performance. Segue, abaixo, transcrição de vídeo presente no DVD,<br />

feito em julho de 2007, no já referido festival:<br />

“Agora / o rei e a batalha se oferecem / por vias, atalhos e mares / Agora<br />

/ a flor e o fruto se oferecem / por osmose, simbiose, frutose. / Absalão,<br />

Absalão! / amarra teu cabelo / bem no meio da tua mão / Parabólicos,<br />

guarda-chuvas, para-raios / Até quando seremos mercadorias?”<br />

XIV Este poema também nos é apresentado oralmente no DVD, na já citada<br />

performance de 1996, em imagens feitas por Jeferson Luiz. A versão falada<br />

traz notórias diferenças, principalmente no desfecho do poema, em relação<br />

à versão de 1998, escrita. Abaixo, segue transcrição da performance:<br />

“Nenhum de nós dois / Tem a ciência do laço / Nem no manejo do ato<br />

/ Nem no desacato da forca / Mas para morrer de morte certa / em<br />

caso de tentativa / bastar-nos-ão os nós nas nossas próprias gargantas<br />

/ Ou então a explosão dos nãos / Mesmo sem haver perguntas<br />

/ Ou então pode-se apodrecer a dois / Lentamente / Depois de um<br />

lauto jantar / A camarão decomposto e vinagre de vinho branco /<br />

Tudo isso / Á luz da televisão / e então o tédio entrou / instalou-se na<br />

poltrona / Fez buM! / enchendo toda a casa com um cheiro bom /<br />

e afastando de nós dois, definitivamente, / essas ideias de suicídio.”<br />

XV Poema bastante difundido oralmente, foi duplamente intitulado<br />

pelo autor: ABCdecadente ou ABCDcadente. O caminho traçado pelo poema<br />

traduz a força da transmissão oral do conhecimento: muitos espectadores/interlocutores<br />

dos recitais sabiam-no de cor sem nunca o terem<br />

acessado pela leitura.<br />

E, nesse caminhar, o poema foi sofrendo algumas modificações. Nos<br />

últimos tempos, o poeta costumava recitá-lo assim como registrado no<br />

DVD incluso nesta publicação, em imagens cedidas pela jornalista Bárbara<br />

Cristina (em entrevista do poeta para o filme Onde estará a Norma?, sobre<br />

o poeta Miró) e também pelo programa Som da Sopa, realizado e veiculado<br />

em Pernambuco pela TV Universitária (direção de Eduardo Homem<br />

e apresentação de Roger de Renor) em ocasião do já mencionado Chá<br />

das Cinco, em Garanhuns, 2007. Após assisti-los, observa-se que, numa<br />

análise comparativa entre o registro escrito e os registros orais do poema,<br />

há indicação de alterações vocabulares nos 11º, 17º, 18º e 26º versos. Os<br />

registros audiovisuais nos mostram essa variação, que seguem respectivamente:<br />

Jesus, Judas, jogam, jantam juntos; Pretos, pobres, pedem pão.<br />

Povos põem panos quentes & Pobres pedem pão. Povos, pastores, padres<br />

põem panos quentes; Quem quer querelas? Querelas quentinhas, quem<br />

quer?; Universidades... Vomitemo-as. Vomitamo-as!!.<br />

Há outro registro do poema, este feito por Fernando Peres, e remete<br />

ao mesmo ano dos vídeos anteriores. A alteração refere-se ao 11º verso:<br />

“Jesus, Judas, jogam, jantam, jejuam juntos”<br />

Há ainda dois registros mais antigos. No primeiro, feito por Jeferson Luiz<br />

em ocasião da primeira performance d´A Cor da Exclusão, em 1996, o poeta<br />

profere a versão mais antiga a que tivemos acesso. Nota-se que a versão<br />

que segue foi revista, nela foram operadas muitas substituições vocabulares<br />

e, principalmente, adicionados alguns elementos e até versos inteiros.<br />

“Arde ávida a acidez / Arranha, bale, bole, berra brutalmente / corre<br />

calado cúmplice cão / cujos dentes dignos de devoção / Decerto<br />

enfrentam espadas e esporas / enquanto famintos furiosos felinos<br />

/ Grudam-lhe garras grossas / hoje hospedam homeros, horácios<br />

/ imponentes igrejas, idiotas igrejas / Jejuns, jogos, juras, jantam<br />

juntos / e loucos lamas lêem livros lúcidos / Mas mestres místicos<br />

metem medo / No ninho nascem noivas néscias / e outras ostras<br />

ocultam pérolas, porém / Pretos pedem pão. Padres põem panos<br />

quentes. / Quentes. Quentes. / Quem quer querelas? Quem, quem?<br />

/ rotulam reggaes, rejeitam rocks / súbito surgem sangrentas sar-<br />

194<br />

Poeminflamado<br />

Notas<br />

195


jetas / Transamazonicamente / Tão tristemente. / universidades...<br />

universidades. / unhas untam úberes. / Vêm vindo vozes! Vêm vindo<br />

vozes! / Xiiii.... Xiiiiiii.... Xiiiiii.... / Xangô? Xangô? Xangô? / Zeza?<br />

Zumbi? / Zarpemos! / Zeeeeennnnn...”<br />

No segundo vídeo, que remete à festa de lançamento do Quarto de<br />

Ofício (1997), encontramos transgressões significantes no 2º e último versos,<br />

que seguem transcritos, respectivamente: “ A agonia arranha, bate,<br />

berra (bééé!) brutamente; Zen.... Zen... Zaratustra!”<br />

XVI Segue abaixo o prefácio à edição de 2003 do Cafuné:<br />

Prefácio<br />

Para uma capa dura, papelão<br />

Para a militância, xérox<br />

Paralelo de oito graus atravessando<br />

Paradoxos no meridiano trinta e quatro<br />

A cabeça, a mão, o cafuné<br />

De veludo, pedra e paciência<br />

A fazer-se literária produção<br />

e findar-se recomeço em quatro atos<br />

Eunápio Mário<br />

XVII Como mais uma evidência das pequenas transgressões ou das sutis<br />

teatralizações operadas no processo da circulação oral da obra de França,<br />

transcrevemos aqui um verso de uma versão oral do poema em questão.<br />

Ela traz um pequeno mas revelador marcador linguístico da oralidade.<br />

Feita a partir de imagens de Jeferson Luiz, a transcrição (do 3º verso do<br />

poema, que segue adiante) remete à apresentação da já comentada performance<br />

d´A Cor da Exclusão, de 1996: “ - À nossa vida, querida!”<br />

XVIII A trajetória deste poema revela as relações de vida, de movimento –<br />

até mesmo na palavra escrita, teoricamente menos fluida e/ou modificável<br />

que a palavra falada – que a poesia de França trazia em si. Essas relações<br />

evidenciam-se quando postas em diálogo com outros elementos: seja com<br />

os interlocutores (plateia) dos seus recitais; seja com a fotografia de Ma-<br />

teus Sá; ou ainda, de maneira especial, com a dinamização visual que as palavras<br />

soltas, manuscritas de sua parceira Sil – responsável pela arte das publicações<br />

artesanais de França – conferiam ao resultado final dos poemas.<br />

Sil produziu várias realizações visuais do poema em questão, seja com<br />

intervenção figurativa (desenhos, colagens e afins) ou mesmo com modificações<br />

na disposição dos versos.<br />

Especificamente para a publicação do fotógrafo Mateus Sá, o poeta<br />

França insere um verso (ver página 125) com contorno de título ou preâmbulo<br />

ao poema: “Espelho d´água, espelho meu”.<br />

XIX A Mão-de-Veludo Edições Artesanais produziu uma extensa quantidade<br />

de cartões com os poemas de França. Felizmente, depois deste projeto,<br />

há um primeiro registro sistematizado dos poemas veiculados e vendidos<br />

em forma de cartão. Está documentado que muitos desses poemas estão<br />

n´A Cor da Exclusão, no Cafuné e nas Agendas da Vida. Dessa forma, adotamos<br />

como método elencar – dentre o material ao qual tivemos acesso<br />

– apenas a seleção dos poemas que não se repetem em outras publicações.<br />

XX As Agendas da Vida configuraram-se como uma das ações editoriais<br />

da editora artesanal Mão-de-Veludo. Tratava-se de agendas não-convencionais,<br />

em que poemas de França e ilustrações de Sil eram complementados<br />

pelo curso da vida, pelos compromissos e apontamentos de cada<br />

comprador/dono da agenda.<br />

Grande parte da obra do poeta – dentre poemas já publicados em seus<br />

livros e muitos outros inéditos – foi veiculada através delas. As mesmas<br />

ofereciam, a cada ano, seleções de poemas e concepções gráficas únicas.<br />

Carimbos, xérox e serigrafia já fizeram parte de seus modos de fazer.<br />

Alguns poemas podem ser encontrados em várias edições das agendas,<br />

muitas vezes com algumas pequenas modificações. Neste capítulo,<br />

organizamos os poemas por ordem cronológica de aparição, porém utilizando<br />

sempre sua versão mais recente (no caso dos poemas repetidos). As<br />

agendas foram editadas no período de 2000 a 2009.<br />

XXI Este poema estreia na Agenda da Vida de 2000, a primeira feita pela<br />

Mão-de-Veludo. Curiosamente, nesta agenda as estrofes do poema apareciam<br />

soltas, uma por vez; como se marcando subdivisões na publicação,<br />

marcando a passagem/contagem do tempo; como a representação dos<br />

pontos altos de uma narrativa. Nessa única ocasião, o poema em questão<br />

foi acrescido de uma quinta estrofe, que segue abaixo:<br />

196<br />

Poeminflamado<br />

Notas<br />

197


“De tanto plantar-me à porta, insistente / Me expele um dia no leito<br />

de um rio / e o vento me arrasta / qual barco à vela / Às portas dos<br />

mares pororoca primeira / Que dentro de mim explode em fogueira”<br />

XXII A comparação entre as versões (escrita e orais) deste poema nos oferece<br />

um exemplo das sutis transgressões que o poeta operava em sua própria obra:<br />

ao sabor dos recitais, das apresentações, do improviso, da memória, da oralidade.<br />

Seguem, abaixo, duas transcrições de performances do poeta – presentes<br />

no braço audiovisual desta publicação – relativas a versões do poema em<br />

comento. A primeira remete ao ano de 1996, em apresentação já mencionada<br />

d´A Cor da Exclusão, filmada por Jeferson Luiz, e segue transcrita abaixo:<br />

“Quero parar / esta água salgada / Que cai no meu dente / e entre / e vai<br />

desaguar no leito do peito / Deus sabe não cabe / Na alma tão<br />

calma / essa gota de neve / Tão leve, tão neve / Mas que rola, vira<br />

bola, mirabola/ Amarga água, amarga ida, amarga vida / A mais<br />

garrida, / A mais garrida,/A mais garrida, / Ai, Margarida!”<br />

A segunda remete a uma versão falada no ano de 2007, transcrita abaixo<br />

tal e qual recitado pelo poeta em Garanhuns, no já mencionado recital Chá<br />

das Cinco, em imagens cedidas pelo programa Som da Sopa (TV Universitária):<br />

“Quero / parar / ess´água / que cai / no meu dente / e entre / e<br />

entra / e vai desaguar direito / no leito do meu peito / Deus sabe /<br />

não cabe / na m´alma / tão calma / essa gota / não leve / não breve<br />

/ não neve / que rola / vira bola / mirabola / me enrola / Amarga<br />

água / amarga vida / a mais garrida / Ai, Margarida!”<br />

XXIII Na primeira edição da Agenda da Vida (2000) este poema apresenta<br />

mais um verso, entre os oitavo e nono versos da versão da presente edição.<br />

Esta adota a forma de todas as demais publicações do poema em questão, que<br />

parecem respeitar a supressão do referido verso, que segue: “Nem de sóis decadentes”<br />

XXIV Há uma versão deste poema no DVD incluso a esta publicação, referente<br />

à já citada performance de 1996, filmada por Jeferson Luiz. Nota-<br />

-se que esse poema não foi incluso no livro A Cor da Exclusão, tendo sido<br />

“publicado”, por escrito, somente com o advento das Agendas da Vida.<br />

Segue, abaixo, a referida versão oral transcrita. Percebe-se, por análise<br />

comparativa, que a versão da agenda foi pontualmente reformulada.<br />

“Mulheres. / há mulheres surpreendentes / com ares de inteligentes<br />

/ e me olham dos seus dentes / como se eu fosse um demente<br />

/ eu lhes digo, entrementes / Ao vê-las, posso lê-las / Ao<br />

lê-las, aprendê-las / Apreendê-las / compreendê-las / escolhê-las /<br />

e comê-las / como? / como quando como estrelas.”<br />

XXV A primeira edição das Agendas da Vida (2000), assim como foi visto,<br />

apresenta-nos alguns poemas que sofreram modificações para entrar em<br />

posteriores publicações. Fruto dessa revisão foi também o poema iniciado<br />

pelo verso “Cadê o seu cartão?”. Em sua primeira publicação, o sexto verso<br />

foi apresentado sob a seguinte forma: “é lícito. é usual”; ademais, o nono<br />

verso inexistia.<br />

XXVI Em sua primeira aparição, através da Agenda da Vida de 2000, este<br />

mesmo poema circulou sob outra forma. Após análise comparativa, ficam<br />

evidentes a reforma da disposição dos versos e a supressão recorrente de<br />

uma pontuação regular. Nesse caso, esses detalhes configuram uma mudança<br />

no ritmo, mas, principalmente, no caráter visual do poema – seara<br />

em que, nos poemas de França, a escrita à mão de Sil interferia com livre<br />

arbítrio. Segue a primeira versão abaixo:<br />

Flor de cactus. Perdido no sertão, / bebo a sua água, como do seu<br />

pão, / ‘te vejo como o fogo do cometa que caiu, / te sinto como o<br />

broto de bambu / que escapou da cobiça do chinês / te quero como<br />

uma figurinha / que se coleciona dia a dia / Te amo. e não sei dizer<br />

como: / se mãe, se filho, ou simplesmente / pelo teu jeito de rir teu<br />

riso / Ainda não conheces a vida / e ai de mim, aprendiz do teu /<br />

Jeito de rir. De só ser / De só querer...<br />

XXVII Há duas versões orais desse poema no DVD anexo a esta publicação.<br />

A primeira foi registrada por Jeferson Luiz e é referente à já<br />

comentada performance de 1996 d´A Cor da Exclusão; a segunda remete<br />

ao ano de 1997, quando da performance feita na festa de lançamento<br />

do livro Quarto de Ofício. Após análise comparativa das versões<br />

orais com a escrita, percebe-se que para retextualizar o poema para<br />

o papel, França “enxugou” o mesmo, além de refazer algumas escolhas<br />

lexicais e modificar drasticamente o seu final. Seguem, abaixo, as<br />

198<br />

Poeminflamado<br />

Notas<br />

199


transcrições do material audiovisual. A primeira refere-se à versão de<br />

1996, a segunda à de 1997:<br />

“Desarme-me dos meus olhos / se eles se abaixarem ao seu olhar/<br />

e da minha língua / se ela não o delatar / e das minhas mãos /<br />

se elas por acaso o adularem / Desarmem-me do meu sexo / Para<br />

não enrabar minha filha, seu puto! / Mas devolva-me a minha religião<br />

/ Devolva-me a minha língua, / Devolva-me a minha cultura, /<br />

Devolva-me o meu verão / Que a minha pele queima todo o dia / e<br />

agora, e aqui, nenhuma andorinha / Pra remédio.”<br />

“Desarme-me dos meus olhos/ se por acaso eles se abaixarem ao seu<br />

olhar/ Livre-me das minhas mãos/ se algum dia ele(a)s o adularem/ e<br />

dos meus pés se não correr no encalço de lhe denunciar/ e da minha<br />

religião/ Livre-me porque por ela eu fiz um juramento// Mas devolva-<br />

-me a minha cultura/ A verdadeira história/ O meu baseado, a minha<br />

caneta e o meu papel/ Porque eu preciso registrar a minha história”<br />

Importante ressaltar que como preâmbulo à performance de 1997, o<br />

poema é introduzido por uma pequena encenação do artista, que forja um<br />

“baculejo” policial.<br />

XXVIII Este poema faz referência ao coletivo Molusco Lama, grupo de<br />

artistas marcado pelo livre-pensar e pelo livre-fazer, que fez história em<br />

Olinda e Recife. Viviam alternativamente em comunidade, com sua produção<br />

concentrada na década de 1990. Fernando Peres, Lourival Cuquinha<br />

e Grilo foram alguns de seus componentes. O coletivo chegou a efetivar<br />

parcerias com França, como as participações em algumas performances<br />

d´A Cor da Exclusão, realizadas em 1996/1997.<br />

XXIX Há outra versão deste poema no livro Luz do Litoral. Percebem-se<br />

algumas adequações temáticas. Ver página 131.<br />

XXX <strong>Livro</strong>-poema de autoria de Angelo Bueno e colaborações de Mauro,<br />

Erickson Luna e França. Os dois últimos também fizeram a apresentação<br />

do livro. Este poema foi reiteradamente recitado no Eu, Poeta Errante,<br />

além de amplamente conhecido e bem aceito pelo público. Nessas ocasiões,<br />

era recitado tanto por França, por Angelo Bueno ou pelos dois.<br />

XXXI Curiosamente, esta contravenção gramatical permaneceu delibera-<br />

damente no poema, segundo Angelo Bueno, pelo fato de todo erro contra<br />

a Língua Portuguesa constituir, para ele, um acerto contra a colonização.<br />

XXXII Coautoria do poeta França com Silvana Beraldo Massera (Sil).<br />

XXXIII Este capítulo foi reservado a notórios poemas de França que circularam<br />

– e ainda circulam – apenas na oralidade. Trazem em si a dúbia<br />

relação da notoriedade oral e do ineditismo na escrita.<br />

O critério de seleção utilizado foi o do acesso efetivo ao registro de versões<br />

dessas peças – tanto nos manuscritos pessoais do poeta quanto em mídia audiovisual.<br />

Vale salientar que, para além dos poucos aqui registrados, ainda existem<br />

algumas composições poéticas similares – mas apenas na memória dos<br />

que vivenciaram a poesia de França, sem nenhuma concreta documentação ou<br />

mesmo relato que sirva de ponto de partida para uma adequada transcrição.<br />

XXXIV Por escrito, este poema constava apenas nos manuscritos pessoais<br />

do poeta. Oralmente, porém, já havia circulado desde as primeiras<br />

performances d´A Cor da Exclusão. A versão escolhida para integrar esta<br />

publicação foi transcrita de imagens feitas por Jeferson Luiz, da já referida<br />

performance, datada de 20 de novembro de 1996.<br />

XXXV O poema em questão circulou apenas oralmente: nos recitais e em<br />

outras apresentações. Nunca foi registrado em quaisquer publicações do<br />

autor. A versão inclusa neste capítulo é resultado da transcrição de uma<br />

performance de França – a partir de imagens contidas no DVD anexo a este<br />

livro – quando da festa de lançamento do livro Quarto de Ofício, em 1997.<br />

É de comum senso que este poema foi bastante recitado, adaptado ao<br />

sabor do improviso, dos contextos de apresentação e, inclusive, foi ponto<br />

de partida para performances como a executada no vídeo Farândola,<br />

realizado pelo Canal 03, também em 1997. Neste vídeo, que retrata a(s)<br />

realidade(s) das ruas de Recife e Olinda, o poeta – que também era ator,<br />

encenador, educador e capoeirista – fez o que foi denominado uma “performance<br />

da fome”. Transcrevemos aqui o texto da performance, que dá<br />

ênfase a alguns versos – inclusive repetindo-os – da versão aqui publicada:<br />

“- Lá vem ela / Lá vem ela / - ela quem? / - A fome! // Lá vem ela<br />

descendo a Ladeira da Misericórdia / sem misericórdia nenhuma<br />

// - Lá vem ela / - ela quem? // e alimenta outras carências... // A<br />

fome vem / e a fome vem / e alimenta outras carências / e a fome<br />

200<br />

Poeminflamado<br />

Notas<br />

vem / e elimina as diferenças / entre seres humanos / e animais //<br />

201


Lá vem a fome / lá vem a fome / Descendo a ladeira da misericórdia<br />

/sem misericórdia nenhuma // e a fome vem / e elimina as diferenças<br />

/ entre seres humanos / e animais // A fome / a fome”<br />

Foi também encontrada uma versão deste poema nos manuscritos pessoais<br />

do autor, que segue:<br />

“cada vez nossa voz se faz/ mais cadavérica e atroz/ surge em evidência<br />

suja/ sórdida e veloz a fome/ – sem respaldo aparente/ sem<br />

limite condizente –/ de circo de água e de pão// – Lá vem ela/ – ela<br />

quem, home?/ – A fome/ – Quem?/ – A Fome!/ / e a fome vem descendo<br />

a Ladeira/ da Misericórdia sem misericórdia nenhuma/ Lá<br />

vem ela descendo ladeira/ lá vem danada ligeira/ e a fome come e<br />

alimenta outras carências/ e a fome come e elimina as diferenças/<br />

entre seres humanos e animais”<br />

XXXVI Mais um poema mínimo ou “poemínimo” do autor. Esta versão foi<br />

transcrita de vídeo produzido a partir de performance do artista na ocasião<br />

da festa de lançamento do livro Quarto de Ofício, ocorrida em 1997.<br />

Inserido na realidade intersemiótica de sua obra, este poema pode ser<br />

também visto como uma curta cena teatral: aberta para as interpretações<br />

e as realizações operadas pela recepção de cada leitor.<br />

XXXVII Este poema, em especial, é bastante conhecido entre os que frequentaram<br />

os recitais nos Quatro Cantos de Olinda (ou “o umbigo do<br />

mundo”, como o poeta falava). Trata de sua visão lúcida e de sua crítica<br />

sobre a cidade “patrimônio histórico da humanidade”.<br />

A versão aqui apresentada remete a um manuscrito pessoal de França,<br />

e não corresponde ipsis litteris às versões que ele costumava recitar. Infelizmente,<br />

não tivemos acesso a outro registro mais recente (audiovisual,<br />

por exemplo) desse poema, de modo que a versão incluída na publicação<br />

guarda algumas alterações em relação às suas realizações orais.<br />

Realizações orais (no plural) porque, como já foi ressaltado, uma das<br />

características de sua poesia e da poesia falada em geral é a da obra aberta,<br />

ou seja, da poesia em constante diálogo com o instante e com o contexto<br />

em que é recitada. Assim, é sabido que os espetáculos, as performances,<br />

os recitais e os poemas de França viravam outros, transformavam-se,<br />

ao sabor de cada acontecimento artístico. Desta feita, mesmo se transcrevêssemos<br />

aqui uma de suas versões orais, ficaria a ressalva de que esse<br />

processo era aberto: sua obra sofria constantemente pequenas mutações.<br />

Não obstante, consta que, como preâmbulo à recitação deste poema,<br />

França costumava formalizar uma espécie de rito com a inclusão de música<br />

e brincadeiras. Num processo que mirava a inclusão do público, antes<br />

de recitar o poema propriamente dito, o poeta costumava entoar uma<br />

clássica introdução a diversos frevos da cidade, em referência à música e<br />

ao carnaval de Olinda. Após o preâmbulo musical, vinha o mote: “Blém,<br />

blém, blém / Não é Pará / Não é belém / Venho aqui anunciar / Que Olinda<br />

não vai bem!”. Por fim, o poema-denúncia. E o choque entre as delícias e<br />

as dores daquela cidade.<br />

XXXVIII Este capítulo traz uma seleção de poemas inéditos do poeta França,<br />

ainda desconhecidos do público: tanto no plano da oralidade quanto<br />

pelas vias editoriais. A reunião destes poemas foi possível pelo pleno acesso<br />

que os pesquisadores tiveram aos manuscritos do autor. Dentre eles,<br />

foi encontrado um bilhete do autor à sua então companheira Sil – também<br />

parceira nas empreitadas editoriais da Mão-de-Veludo – em que ele sugere<br />

a substituição do título de A Cor da Exclusão por O homem que marcha<br />

sobre si, sugestão esta que não vingou.<br />

Resolvemos, assim, agregar esse título ao capítulo dos inéditos: o homem<br />

que marcha, que caminha sobre si é aquele que empreende uma<br />

jornada de autoconhecimento, de descoberta de novas identificações, de<br />

revelações. Através de si. De sua produção artística.<br />

XXXIX Poema de Angelo Bueno cuja circulação oral França multiplicou.<br />

Vale salientar que, antes da presente publicação, este poema ainda não<br />

havia sido registrado por escrito. Não raro, a autoria do “Pense” foi popularmente<br />

atribuída a França. Isto porque a parceria dos amigos França e<br />

Bueno era intensa, e tais questões de autoria diluíam-se – até mesmo para<br />

o interlocutor da obra.<br />

Este poema era uma peça fundamental nos recitais do Eu, Poeta Errante;<br />

um verdadeiro jogo teatral – que junto a poemas como Isadora e a<br />

famosa brincadeira com o popular mote dos vendedores de bairro (“Dona<br />

Maria, Dona Maria, este é o carro da economia! Uma poesia por apenas<br />

um real! Traga a vasilha...”) – configuravam-se como artifícios para costurar<br />

a dinâmica dos recitais e proporcionar a interação mais estreita do<br />

poeta e da poesia com o público presente.<br />

Decidimos colocá-lo como abertura deste capítulo – através de um<br />

teatral movimento de apresentação – por ele trazer em si essa relação<br />

ambígua do ineditismo: ser “de domínio público” (entre os que viveram<br />

202<br />

Poeminflamado<br />

Notas<br />

203


poesia em Recife e Olinda nas décadas de 1990 e 2000), porém sem nunca<br />

ter sido publicada por escrito. E, principalmente, pelo costume entre Angelo<br />

Bueno, Erickson Luna e França de figurarem nos livros uns dos outros:<br />

como os exemplos da pontual ocorrência de poemas de Bueno e Luna no<br />

preâmbulo da A Cor da Exclusão e de Luna e França na apresentação do<br />

Quarto de Ofício.<br />

XL Neste exemplo fica também evidente o trabalho cotidiano do poeta<br />

em maturar, reinterpretar e revisar a sua obra. No DVD incluso a esta<br />

edição, temos acesso a uma versão antiga do poema em comento. As<br />

imagens remetem ao já bastante mencionado evento performativo d´A<br />

Cor da Exclusão, ocorrido em 1996 e registrado em mídia audiovisual por<br />

Jeferson Luiz.<br />

Após análise comparativa das duas versões, percebe-se na versão escrita<br />

um maior apuro formal (característico mesmo do veículo da palavra<br />

escrita) em relação a sistematização/métrica das estrofes. Principalmente,<br />

percebe-se uma inserção contextual, por vezes direta e por outras indireta,<br />

de entidades ou figuras sociais à narrativa (o branco, a Igreja, os sem-<br />

-terra): o que confere ao poema, à voz do poeta e ao leitor um diálogo<br />

direto com a História. Segue, abaixo, transcrição da referida versão oral<br />

do poema:<br />

“Ah, minha preta, tu me pedes pra falar / sobre o negro no dia 13<br />

de maio / e eu choro / Agora que eu conheço a história / Desdenho<br />

daquele que a escreveu / Ah, minha preta, tu me pedes / Pra falar<br />

sobre o negro no dia 20 de novembro / e eu pasmo / Que pergunta<br />

ecoa na sua mente? / Zumbi morreu? / Zumbi morreu. / Zumbi<br />

morreu? / Minha preta, tu me pedes / Pra falar sobre os negros<br />

da minha escola / e eu lembro tê-los visto apenas do lado de fora<br />

/ sobre os negros, minha preta, não / sobre os negros eu não falo<br />

/ Ou tu não vês? / Tem tanta gente estudada / Tudo que é negro<br />

explorado / e todo mundo calado”<br />

204<br />

Poeminflamado<br />

Notas<br />

205


Lista de obras publicadas //207<br />

- BUENO, Angelo et alii.Quarto de Ofício. Recife, s/d.<br />

- FRANÇA, Valdemilton Alfredo de. A Cor da Exclusão. Olinda: Mão-de-Veludo<br />

Edições Artesanais, 1998.<br />

- __________________________. Cafuné. Olinda: Mão-de-Veludo Edições<br />

Artesanais, 2003.<br />

- FRANÇA, Valdemilton Alfredo de et alii. Marginal Recife - Coletânea Poética<br />

I. Organizadores: Cida Pedrosa, Miró e Valmir Jordão. Recife: Prefeitura do<br />

Recife - Secretaria de Cultura da Cidade do Recife, 2002.<br />

- Revista Palmares. Cultura Afro-brasileira. Ano I, nº I – agosto, 2005. Fundação<br />

Cultural Palmares. ISSN 108 7280.<br />

- SÁ, Mateus et alii. Luz do Litoral. Recife, 2005.


Índice remissivo dos poemas //208 a 211<br />

4 61<br />

A boca do lixo 56<br />

A cena contém (A Sopa Contém) 67<br />

A Chico Science 148<br />

A comida que fiz 169<br />

A linda do rio 161<br />

A Linda e Mauro 20<br />

À MORTE – por ser imortal 50<br />

A PALAVRA 163<br />

Agora a flor e o fruto se oferecem 38<br />

Agora percebo o sentido 32<br />

Agora procuro quem 99<br />

Ah, os meus sentidos 24<br />

Ai minha preta, tu me pedes 153<br />

ANALOGIA 114<br />

Arde ávida a acidez (ABCdecadente ou ABCDecadente) 40<br />

As grades engradam as praças 34<br />

Aumenta aos poucos 37 e 64<br />

Ave ama Seca 47<br />

Bastava ouvir berimbau 105<br />

Beijo tua boca 110<br />

Brasa nos olhos, amor? 57<br />

Brasil – Quinhentos Anos 156<br />

Cadê o seu cartão? 84<br />

Café não é preto 147<br />

Canto a um bode expiatório 154<br />

Ciclo natural 162<br />

Como as plantas 159<br />

CONJECTURAS 112<br />

Constatação 144<br />

Danço a dança que 170<br />

DEGENERAÇÃO 83<br />

Desarme-me dos meus olhos 87<br />

destinoRdestino 73<br />

Dia após dia, saudade crescendo 89<br />

Diretas, já! 152<br />

55 Doce balanço<br />

136 É assim mesmo que eu olho pra você<br />

66 E eu pensando<br />

126 E se chegar<br />

88 É você que me aparece<br />

108 Eis que suas palavras<br />

94 Eita gosto seco, azedo<br />

174 Em caso de dúvidas!<br />

160 Entre as pernas fechadas<br />

95 És feita do vento, dos risos da Tristeza<br />

125 Espelho d´água, Espelho meu<br />

130 Estou a procurar<br />

54 eu não sou um<br />

115 Evoco os momentos<br />

85 flor de cactus<br />

97 Guerreiro de onde vens<br />

82 Há mulheres surpreendentes<br />

35 Há um buraco no meio do Barco Brasil<br />

49 História da Humanidade<br />

146 Internetem-nos!<br />

62 IV ATO<br />

36 Lá estávamos nós dois<br />

135 Lá vem ela! (A Fome)<br />

142 Laço de Fogo<br />

91 Logo, logo descerá o pano<br />

81 Marca indelével na minha vida<br />

106 Matadores perfilados<br />

96 Me envolvo mansamente onde (Maconha)<br />

90 Na casa de espetáculos o palhaço chora<br />

70 Nada me inspira<br />

157 Nanã Burukê<br />

21 Não sei se há o que dizer<br />

107 Não sou como queiram<br />

65 Nebulosa carta cujo signo<br />

29 Nem bem começou a grande crise<br />

39 Nenhum de nós dois


No lago, ao entardecer 79<br />

No mundo dos sonhos 19<br />

No princípio (Robocop) 23<br />

Nômade que sou não tenho74<br />

Nosso povo dá gargalhadas 129<br />

O design 33<br />

O devastador 63<br />

o mar (Sururu) 59<br />

O meu corpo te exige 134<br />

o meu sangue 51<br />

O nó na garganta sufoca 93<br />

O novo quebrou 52<br />

O poeta 104<br />

O que houve no meio 113<br />

O Sol 46<br />

Olá! Alô? 86<br />

Olinda está muito mal 137<br />

Onze horas 30<br />

Pense 140<br />

Poeminflamado 58<br />

Por ser água barrenta 60<br />

Porquê a pressa? Pra quê tanta pressa? 167<br />

Posso vislumbrar meu futuro 22<br />

Pouso solto 124<br />

Preconceito 18 e 53<br />

Preso pelo meio 168<br />

Prezado (Quarto de Ofício) 118<br />

Quando finalmente 28<br />

Quantas folhas deste pape l72<br />

Que hábil maneira de se ir, ficando 111<br />

Que ideia 141<br />

Quero (Margarida) 80<br />

Sadomasoquismo 165<br />

Sangue 127<br />

Sapatos 98<br />

Secreto! Top Secret! Top Secret! 92<br />

48 Sempre que a beleza<br />

166 Sonhei que estávamos passeando<br />

158 Sopro de vida insuflada<br />

102 Sou árvore / Dou sombra<br />

103 Sou árvore / portanto estática/extática<br />

164 Suo o suor do rosto de todos os homens<br />

27 Tempo de chuva<br />

149 Tenho fugido<br />

101 Transávamos<br />

109 Última Sexão<br />

45 Um ninho se faz em paz<br />

78 Uma deusa do fogo<br />

100 e 131 Unir para a guerra<br />

24 Vaitimbora (Isadora)<br />

26 Vamos continuar comendo porcarias<br />

71 Vem negra com tua dança<br />

31 Vens tão mansa<br />

A maioria dos poemas de França não possui título. No plano da oralidade, alguns têm<br />

“apelidos”: os participantes dos recitais e conhecedores de sua poesia é que acabavam<br />

nomeando determinados poemas, na necessidade de se referir aos mesmos. Nesta<br />

lista, elencamos os poemas por ordem alfabética. Utilizamos para referenciá-los: seu<br />

título ou seus primeiros versos, seguidos de seus apelidos (quando estes existirem)<br />

entre parênteses.


Este livro foi composto na tipografia Calibri 10/13<br />

e impresso em papel polen soft 90g na Provisual Gráfica e Editora

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