Baixe o Livro - poeminflamado
Baixe o Livro - poeminflamado
Baixe o Livro - poeminflamado
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Projeto Poeminflamado:<br />
A Voz Tridimensional do Poeta França<br />
Coordenação do projeto / Produção executiva / Pesquisa<br />
:: Laine Amaral<br />
Coordenação e orientação de pesquisa<br />
:: André Telles do Rosário<br />
Pesquisa / Catalogação e digitalização do acervo<br />
:: Rafaela Valença Gomes<br />
Produção / Pesquisa<br />
:: Juan Ramón Martínez<br />
Digitalização, tratamento e edição fotográfica<br />
:: Mateus Sá<br />
Digitalização, tratamento e edição audiovisual<br />
:: Mariano Pikman<br />
Criação do site www.poetafranca.com<br />
:: Jailton Ferreira<br />
Poeminflamado<br />
Edição<br />
:: Rafaela Valença Gomes e André Telles do Rosário<br />
Textos<br />
:: Miró da Muribeca, Rafaela Valença Gomes, André Telles do Rosário,<br />
Carolina França, Juan Ramón Martínez, Laine Amaral e Silvana Beraldo<br />
Revisão<br />
:: Rafaela Valença Gomes, André Telles do Rosário e Gabriela Monteiro<br />
Projeto Gráfico<br />
:: João Lin<br />
Designer Assistente<br />
:: Kleber Monteiro<br />
Capa<br />
:: Sil Beraldo, Pedra França e João Lin<br />
Ilustrações<br />
:: Mascaro e Sil Beraldo
SUMÁRIO<br />
Prefácio 7<br />
Apresentação 9<br />
Cor da Exclusão 16<br />
Cafuné 42<br />
Cartões 68<br />
Agendas da Vida 76<br />
Quarto de Ofício 116<br />
Luz do Litoral 122<br />
Poemas para voz 132<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos 138<br />
Posfácio 176<br />
Depoimentos 178<br />
A Herança do Poeta França 178<br />
Memória do Teatro dos Amadores de Olinda – TAO 180<br />
Memória Mão-de-Veludo 182<br />
Notas dos poemas 188<br />
Lista de obras publicadas 207<br />
Índice remissivo de poemas 208
PRÉ FRANÇA<br />
Falar de França não é fácil,<br />
inda mais prefácio, por isso serei conciso.<br />
Andavam juntos, elegância e poesia,<br />
lado a lado.<br />
Eu quase sempre ali do lado.<br />
Nos recitais da vida<br />
vividas tantas coisas...<br />
A porta aberta na madrugada das Olindas<br />
para os irmãos de coração.<br />
Por ele ninguém dormiria nas ruas.<br />
Às vezes me confundia:<br />
Ele é a poesia ou a poesia é ele?<br />
Eu bem que podia perguntar se ele era a poesia<br />
mas era é passado<br />
e França não passou.<br />
Poeta não morre,<br />
vira páginas.<br />
Agora cabe ao caro leitor<br />
ir folha a folha semeando o que o negão plantou.<br />
Plantou não.<br />
Planta.<br />
Aqui a palavra “era” já era.<br />
(Aqui agora é quinta-feira queiram ou não queiram os juízes)<br />
Faltam alguns minutos para meia-noite<br />
França tá chegando...<br />
“Vaitimbora, Isadora, tu é mulher de Xangô”<br />
Chega.<br />
Senão fico triste.<br />
Dona Maria,<br />
Dona Maria,<br />
Olha o carro da economia!<br />
Um poema apenas por um real!<br />
Risos sérios ao poeta errante...<br />
Avante leitores...<br />
Miró da Muribeca.<br />
Poeta, parceiro de recitais e amigo de França.
APRESENTANDO A AÇÃO<br />
O incêndio<br />
“(...) Pois eu tenho o dever de<br />
Registrar a minha história”<br />
França<br />
Valdemilton Alfredo de França nasceu no Engenho Pirapama, área<br />
rural da cidade do Cabo de Santo Agostinho (PE), e lá foi criança. Filho<br />
primogênito de Dona Jandira e Seu Manoel, foi o primeiro rebento de<br />
uma humilde família negra; abriu caminho para muitos irmãos. Foi menino<br />
em trânsito, iniciou aos oito anos sua itinerância entre cidades e<br />
ninhos: entre o Cabo e Olinda, entre a casa da mãe e o aconchego da<br />
avó Carolina.<br />
Em tempos de tenra mocidade, já se apresentava articulado nos palcos<br />
da vida: aluno estudioso na escola, pastor mirim na igreja, trabalhador<br />
de destaque da fábrica. Mas na fábrica, na igreja e na escolinha,<br />
Milton já não cabia. Da luta pela sobrevivência e da vocação precoce em<br />
trilhar novos caminhos surgiu a sua sabedoria: aprendeu a se resguardar<br />
do emaranhado de determinações sociais e valores preestabelecidos e<br />
se permitiu saborear o mundo. Sabê-lo intensamente. De dentro. E ele,<br />
o mundo, foi o seu mestre.<br />
Foi França, assim, entrar no jogo dos homens: dominá-lo (o jogo)<br />
para subvertê-lo. Então ele – o único da família – passou pela Academia<br />
(Psicologia, Economia, até a posterior conclusão em Artes Cênicas) e por<br />
cargos de chefia no serviço público. Provou a si mesmo e à sociedade<br />
que, a despeito de toda opressão e de todo o preconceito, era um sujeito<br />
capaz. Mas logo se deparou com a necessidade de um projeto de vida<br />
mais arrojado, de um mergulho mais profundo, de uma religação com<br />
seu passado, com a memória de seu povo, com o essencial. E “perder o<br />
medo de alcançar o SONHO”...<br />
Nessa encruzilhada, iniciou uma busca solitária – por muitos incompreendida<br />
– e encontrou a sua saída: superar as aparências e as superfícies<br />
e acentuar os conflitos, as ambivalências e os dinamismos da<br />
condição humana, da relação intersubjetiva e da nossa realidade social.<br />
As ferramentas por ele escolhidas foram a arte-educação e a poesia. A<br />
partir daí, ganhou espaço imensurável na sua biografia a celebração: da<br />
vida, do corpo, do pensamento crítico, da voz, da liberdade, do encontro,<br />
do diálogo, da poesia.<br />
8<br />
Poeminflamado<br />
Apresentação<br />
9
O corpo e a voz:<br />
elementos ATIVOS<br />
“A palavra mata.<br />
A palavra mesmo morta mata.”<br />
França<br />
Empoderado de sua voz, de seu livre pensar e de uma crítica e aguda<br />
consciência da(s) verdadeira(s) realidade(s) de seu povo, o Arte-educador,<br />
Poeta, Encenador, Ator e Capoeirista França desvelou ao seu aluno/leitor/espectador/interlocutor<br />
essa tal estrutura de desigualdade<br />
da nossa civilização. Alguém no sofá ou na plateia poderia lhe perguntar:<br />
– Mas, se ninguém te ouve, como podes falar? Bom, na contramão<br />
dos processos da atual sociedade do espetáculo, em que o cidadão é<br />
paralisado e manipulado pelo medo, França agiu ativa e politicamente<br />
em nome da restituição do poder do livre pensar-sentir-agir-falar do ser<br />
humano. O caminho? O “do meio” – a arte, a imaginação, a educação, a<br />
criatividade, a poesia. A arma? Seu corpo, sua palavra e sua voz.<br />
O artista teceu sua filosofia de vida e sua arte na organicidade da<br />
conexão entre voz, corpo e território, sempre partindo de um fértil<br />
processo de construção de suas localizações identitárias no plano do<br />
gesto e do corpo. Foi buscar na cultura de seus ancestrais africanos<br />
a articulação simbólica da corporalidade com a territorialidade. Adotou<br />
como intercessores diretos Solano Trindade e Zumbi dos Palmares.<br />
E foi viver a experiência corporal como uma forma de conhecimento<br />
intuitivo, direto sobre o mundo. Entender seu corpo como um microcosmo<br />
do mundo e como parte integrante da natureza, não como seu<br />
contraponto. Experimentou em seu próprio corpo a sua cultura, sua<br />
memória, as relações com o divino, a sua luta e a resistência: no cabelo<br />
e na filosofia Rasta, nos movimentos de capoeira, na poesia falada.<br />
Para o artista, a questão não era sobreviver ou viver da arte: a vida-<br />
-morte-vida requer um despertar cotidiano da mente e do corpo, exige<br />
movimento, interação. E tal qual um Exu literário, França movimentou<br />
a cena local, propiciou o contato e a troca entre os poetas e o público,<br />
transportou a sua e muitas outras falas. Abriu caminhos.<br />
Nesse diapasão, França espalhou muitas sementes: desde o fim da<br />
década de 1990, com os primeiros encontros poéticos promovidos em<br />
seu bar Sociedade dos Poetas Vivos até a apoteose da comunhão poética<br />
nas madrugadas de Olinda, no seu semanal recital poético Eu, Poeta<br />
Errante (2000-2007). Isso sem falar em Felipe, Carolina, Danilo e Pedra,<br />
seus descendentes diretos; sem falar também nas incontáveis crianças<br />
que participaram de suas aulas; nos não-atores e até mesmo atores que<br />
com ele fundaram o coletivo Teatro dos Amadores de Olinda; nos admiradores<br />
da lógica antimercadológica da Mão-de-Veludo Edições Artesanais,<br />
tocada por ele e pela artista gráfica Sil. Falar de França é olhar<br />
para além de sua obra. É falar, sobretudo, de seu público, que com ele<br />
aprendeu a participar ativamente da experiência artística.<br />
Assim, o compassivo e pacífico lutador, o terno guerreiro da arte-<br />
-educação, da militância literária, do anticonformismo, da contracultura<br />
e do exercício responsável da liberdade foi e continua sendo figura<br />
mítica da cidade de Olinda. Seu sorriso franco, seus ensinamentos e<br />
seus versos permanecem vivos nos becos e nas ladeiras da Cidade Alta,<br />
mas principalmente na memória dos com que ele compartilharam a<br />
experiência do altruísmo e da autotransformação através da poesia.<br />
A poesia viva, os caminhos abertos:<br />
sem interdições.<br />
“Grite o seu pensamento<br />
Esparrame sua dor<br />
Multiplique o alarido<br />
Pra que não descanse em paz<br />
o seu opressor”<br />
França<br />
O corpo, a voz, a cultura e a memória do negro interditados. Mas<br />
França não silenciou. Ele acreditava que o poeta negro tem a missão<br />
de expor as feridas da sociedade: não transformando essas feridas em<br />
obra de arte (forjando, talvez, uma estética do oprimido), mas sim assumindo<br />
o papel de porta-voz de seu povo, de personagem da História.<br />
A narrativa crônica e concreta do cotidiano, das ladeiras e dos becos –<br />
uma das faces de sua poesia – passa, assim, a revelar a rede de forças e<br />
práticas culturais que tecem as relações de poder da sociedade.<br />
Foi para falar sobre essas interdições, perdas, desagregações e diásporas<br />
– que até hoje ecoam nos caminhos e vidas dos afro-brasileiros – que o poeta<br />
construiu sua primeira obra, A Cor da Exclusão. Concebida como performance<br />
(1996), transformou-se em livro (1998) e, na década de 2000, foi também<br />
peça de teatro. Daí se auscultam as fronteiras fluidas, líquidas, da arte de França:<br />
teatro-literatura, performance-poesia, oralidade-escritura, arte-vida.<br />
10<br />
Poeminflamado<br />
Apresentação<br />
11
A performatividade latente nos impressos do poeta nos revela uma<br />
das diversas faces do hibridismo característico de sua obra: a função<br />
política e estética de oralização da escrita. Numa verdadeira reação à<br />
normatização da sociedade e da arte (operada por mecanismos hegemônicos<br />
de controle social, pela interdição à memória e à voz do “subjugado”<br />
e pelo primado da escrita) o autor faz questão de reiterar a<br />
legitimidade da milenar cultura de transmissão oral do conhecimento.<br />
Tanto na dinâmica dos seus recitais e performances, quanto na comunicabilidade<br />
diferenciada de sua palavra escrita.<br />
Vale salientar que a construção visual do poema se faz elemento<br />
dinâmico na poesia escrita de França, corroborando para uma relação<br />
integrativa entre forma e conteúdo, para uma possibilidade dinâmica,<br />
ativa da palavra. Tal diálogo gráfico encontrava correspondência na realização<br />
oral desses poemas, em ocasião dos recitais: através do ritual da<br />
voz em ação, da palavra indo e vindo, do corpo do poeta como suporte<br />
para a arte e para a celebração. Através da simbólica travessia de fronteiras:<br />
na integração do poeta com a plateia, no improviso, no fenômeno<br />
concreto do interlocutor como coautor daquela celebração, daquela<br />
performance, daquele acontecimento artístico, corporal, espiritual.<br />
Também a bem-estruturada e apurada escritura de França requer<br />
uma genuína disponibilização de todos os sentidos de quem com<br />
ela interage. Nela, há sempre uma ação: personagens e eu lírico que<br />
agem, atuam, transformam. Sua poética é tecida não por imagens,<br />
mas por cenas. Algumas delas recorrentes: espetáculo, luzes acesas,<br />
cortinas abertas; o subir e o descer as ladeiras da cidade; os sonhos, a<br />
ilusão, as máscaras, as armaduras; portas se abrindo. Grandes narrativas<br />
e poemínimos – estes mais presentes no Cafuné – assaltam-nos<br />
com o refinado senso de humor e o erotismo provocante do poeta. O<br />
imaginário da gênese e da morte e uma lírica amorosa lúcida chegam<br />
pisando forte nas linhas e entrelinhas da poesia de França. Sobretudo,<br />
dela se intui a questão da urgência da comunicabilidade: interpessoal,<br />
endereçada, mas também num plano maior, do social.<br />
Assim, num contexto em que muitas vezes o ato de produção artística<br />
por si só se faz empenho, engajamento, resistência cultural, o<br />
poeta assume para si a função de instrumentalizar o leitor para essa<br />
travessia: da passividade ao protagonismo, “da sala para a tela”. Mas<br />
não se trata aqui de uma arte panfletária, compromissada com outros<br />
discursos e dogmas. A arte de França é compromissada com o movimento,<br />
com o diálogo, com a sua própria circulação. Numa função de<br />
encaminhar o indivíduo, através do diálogo – neste caso artístico – à<br />
encruzilhada, para que ele possa, por si só, escolher seus caminhos,<br />
tomar suas decisões. Abrir as portas, instigar, provocar, atear fogo!<br />
Poeminflamado<br />
Voz-lume a clarear o esquecido, a conflagrar revelações, a queimar<br />
o silêncio outrora outorgado. Voz reconquistada, a narrar a história.<br />
Outra História... Palavras e ideias que latejam aos sentidos de quem as<br />
experimentam. Corpoesia, performance, diálogo, catarse. Chama que<br />
se alastra, que corre ligeira a expor feridas e a espalhar denúncias, novas<br />
perspectivas, ternura, versos, provocações – no contato, na intersubjetividade,<br />
no olho no olho, no ser-em-relação, na explosão... Arte-<br />
-combustível que encurta a solene distância entre o leitor e a poesia,<br />
entre a plateia e o artista, entre o ouvinte aprendiz e o griot.<br />
Amplificar a voz do poeta França e, em certa medida, estender ao<br />
novo leitor essa tal incendiária e irreproduzível experiência do contato<br />
pessoal com o autor e sua artevida são os objetivos fulcrais dos que<br />
colaboraram nesta publicação. Para lograr esta tarefa, reuniram-se alguns<br />
bons amigos do poeta. Guiados pelo aprendizado e pelo amor<br />
que França proporcionou-lhes em vida, realizaram uma pesquisa científica<br />
de mapeamento e catalogação de todo seu acervo escrito, manuscrito<br />
e audiovisual. Recebeu o nome Poeminflamado – A Voz Tridimensional<br />
do Poeta França e foi subsidiada pelo Fundo Pernambucano<br />
de Incentivo à Cultura (Funcultura/Fundarpe).<br />
Um dos resultados dessa empreitada chega, agora, às mãos do leitor:<br />
uma antologia da obra de França – entre publicados e inéditos, escritos e falados,<br />
papel e vídeo, letra e voz. O tutano da presente edição é dividido em<br />
capítulos: os dois primeiros remetem aos livros A Cor da Exclusão (1998) e<br />
Cafuné (2003). Em seguida, está a reunião de poemas que circularam sob a<br />
forma de Cartões (1998-2007), além dos demais poemas publicados nas famosas<br />
Agendas da Vida (2000-2009). Na sequência, dois projetos editoriais<br />
em que o poeta colaborou: Quarto de Ofício (livro-poema de Angelo Bueno,<br />
e com intervenções de França, Erickson Luna e Mauro) e Luz do Litoral<br />
(2005), livro de fotografias de Mateus Sá e pontuado por poemas de França.<br />
Em Poesia para voz apresentam-se poemas que circularam bastante na<br />
oralidade, mas que o poeta nunca dantes havia publicado por escrito. Finalmente,<br />
os inéditos em letra e em voz em O homem que marcha sobre si.<br />
12<br />
Poeminflamado<br />
Apresentação<br />
13
Contudo, a busca por uma adequada representação da tridimensionalidade<br />
da voz do poeta na presente edição nos ofereceu um delicioso<br />
desafio: como agregar ao material impresso ao menos uma<br />
centelha da performance, da fala, da teatralidade, da materialidade,<br />
do dialogismo e da plenitude de sua experiência poética – aquela que<br />
somente quem o viu em ação pôde experimentar? Paradoxalmente,<br />
apenas através de outro suporte, para além do papel e da tinta: a mídia<br />
audiovisual. Assim, no DVD anexo à presente publicação elencamos<br />
momentos capturados por diversos videastas e fotógrafos da cidade,<br />
numa seleção de performances, entrevistas, recitações e outros episódios<br />
da vida do autor. Através deste DVD e do site http://poetafranca.<br />
com – outro produto da pesquisa – o leitor poderá acessar de maneira<br />
prismática o universo tridimensional da voz de França.<br />
França vive. Divirtam-se com sua presença encantadora e libertária.<br />
E uma dica: esqueçam-se dos bombeiros...<br />
14 Apresentação<br />
Poeminflamado<br />
Rafaela Valença Gomes.<br />
Tradutora, editora e pesquisadora da obra de França.
A Cor da Exclusão I //16 a 40
Preconceito II<br />
É luz alta na cara<br />
A gente se sente<br />
Exposta<br />
Na dúvida<br />
Será que você vai ficar?<br />
Também pode ser<br />
quando você se<br />
esconde atrás<br />
dessa câmera<br />
seus olhos<br />
dizendo click<br />
e os meus,<br />
na TV<br />
sem remelas.<br />
No mundo dos sonhos<br />
A tua imagem veio<br />
e vinha até que em<br />
estátua de sal<br />
materializou-se<br />
na minha vida<br />
O outro ser<br />
que tecemos em teias<br />
às quais bezuntamos<br />
venenos e feitiçarias<br />
te clama do passado<br />
Caldeirão derramado em<br />
aparente acidente casual<br />
diz que a hora de partir<br />
não coincide com o horário<br />
do trem.<br />
18<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
19
Dois sorrisos<br />
tão abertos<br />
quase indecentes<br />
inconsequentes<br />
andam de mãos dadas<br />
nas ruas nas casas nas festas<br />
No riso o tiro mortal<br />
de quem diz e acerta em cheio<br />
que apesar de<br />
tanta exploração<br />
a felicidade<br />
também é um alvo<br />
a se<br />
conquistar<br />
A Linda e Mauro<br />
Não sei se há o que dizer<br />
já que estou na fase do sentir<br />
há outra dimensão na expressão<br />
do sentimento (a comunicação<br />
transcende a palavra e o pensamento)<br />
Nem sei se há o que esperar de nós<br />
se eu estou na loucura do querer<br />
há outra linguagem, outro signo, quando<br />
a voz do coração fala mais alto<br />
e abranda o tédio da silenciosa razão<br />
Na verdade não há, bem sei, o que saber<br />
somos todos tão leigos nesses assuntos<br />
Pobres de nós, desastrados alquimistas<br />
de desejos e frustrações acumulados<br />
na melhor de seis ou oito décadas<br />
mergulhados em aleatórias proporções<br />
de temperatura e pressão, e, presos<br />
à ampulheta de um tempo metafísico<br />
Onde trinta e poucos anos<br />
se revivem, plenamente, em alguns minutos!<br />
20<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
21
Posso vislumbrar meu futuro III<br />
num mundo de caricatos moribundos<br />
Sou o anterior e assim sendo<br />
mais belo, mais eu, mais puro<br />
Era apenas uma sombra<br />
hoje, sobra luz agonizante<br />
como pás de cal em cima do assunto<br />
Monólogo: monótono proparoxítona<br />
ou seja, me sentas na sílaba fraca<br />
A palavra mata.<br />
A palavra mesmo morta mata.<br />
Olho ao redor e pressinto<br />
labirintos em espirais coloridos<br />
longe do arco-íris; perto de ti<br />
tão perto que te confunde<br />
A roda emperra na areia da frase solta<br />
e eu guardo meu riso de escárnio<br />
para usá-lo na presença<br />
de apenas uma testemunha:<br />
O meu retrovisor.<br />
No princípio IV<br />
ROBOCOP invadia<br />
a favela<br />
apenas através<br />
da tela<br />
Aberta a janela<br />
para o pontapé<br />
na porta abaixo<br />
Na ponta da língua<br />
a humilhação<br />
perante os nossos filhos<br />
Na ponta dos dedos<br />
a bolinação<br />
nas nossas mulheres<br />
molhadas de água e sabão<br />
E o estalido<br />
que estava escondido<br />
na palma da mão?<br />
E o estampido<br />
que explode, na cara da gente,<br />
a lei e o tubo<br />
da TV:<br />
Dez pedaços de cena real<br />
espalhados na sua frente...<br />
22<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
23
Vaitimbora V<br />
Isadora<br />
Vaitimbora<br />
Tu é mulé de Xangô<br />
- Mulé de Xangô<br />
Foi um dia um dia foi<br />
Ogum carregou<br />
Num carro de boi<br />
- Você me rejeita<br />
você não me quer<br />
Olhalá sou mulé<br />
De quem eu quiser<br />
Vai-te embora, Isadora<br />
Não foi assim, não senhora<br />
Isadora vai-te embora<br />
Vaitimbora Isadora<br />
Isadora vaitimbora<br />
Oxalá que te acompanhe<br />
Isadora vem timbora<br />
Oxalá que me perdoe<br />
Aliás, não devo nada<br />
Isadora vem timbora<br />
Ah, os meus sentidos VI<br />
tão sentidos, são gemidos<br />
tão perdidos, são erigidos<br />
quando não tenho ereção<br />
Ai, os meus miolos<br />
são tijolos, são abrolhos<br />
são atolos, são tão tolos<br />
quando não te digo não<br />
E os meus pecados?<br />
São calados, são falados<br />
escrachados, são safados<br />
quando não tenho perdão<br />
Ui, as minhas taras<br />
minha cara, são tão raras<br />
São Saara, são tão caras<br />
quando não te meto a mão<br />
E a minha doença<br />
é a desavença tão imensa<br />
de tua presença tão intensa<br />
Eu sou são. Eu sou são?<br />
24<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
25
Vamos continuar comendo porcarias VII<br />
fudendo às Marias, bebendo excreções<br />
fazendo mais Josés que nos puxarão os pés<br />
antes de aterrisarmos em poderosos tapetes<br />
VO<br />
A<br />
DO<br />
RES<br />
TNT-BUM, BHT-BUM, BNH-BUM, DDDT<br />
ML IML de antecadáveres UHS VHS nenhum sinal dela<br />
aqui entre minhas pernas<br />
SOS pedindo socorro em silêncio<br />
SE<br />
PUL<br />
CRAL<br />
Teatral. Teatro ateu, plateia plebeia<br />
Povo politicamente povo: cadela! cadela!<br />
Aleluia! Aleluia! PMDB-PEFELÊ-PTT, Pra quê ter?<br />
Enquanto o voto detona o país há quem pinte<br />
PON<br />
TES<br />
Tempo de chuva<br />
barro na casa<br />
xícara de chá<br />
mesa com pão<br />
maconha no pote<br />
o terceiro olho<br />
enxergando o óbvio<br />
que nunca sumiu<br />
A cama quente<br />
engana o só<br />
olho na rua<br />
coração grande<br />
abraça o mundo<br />
ensaia um aú<br />
enraba a sereia<br />
que nunca saiu<br />
Mês de agosto<br />
cheiro de sangue<br />
na encruzilhada<br />
um umbigo gera<br />
a Revolução<br />
Exu paquera<br />
a Pomba gira<br />
que nunca caiu<br />
26<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
27
Quando finalmente<br />
caiu a última máscara<br />
Senti-me realmente nu<br />
E os meus olhos se envergonharam<br />
da minha nudez mascarada<br />
Mais felizes Adões<br />
Comeram maçãs envenenadas<br />
pelo puro beijo da coragem<br />
Enquanto eu catolicamente<br />
Me atiro à penitência<br />
de abrir mão<br />
do doce<br />
abrigo<br />
Nem bem começou a grande crise VIII<br />
quando a classe média abarrotou<br />
os ônibus urbanos com sua boca<br />
cheirando a cream-cracker com café<br />
e deles, mudou-se o itinerário<br />
(agora RIO DOCE-CDU passa<br />
em pleno Espinheiro)<br />
para acomodar sua bunda<br />
inflada de ócio e de tédio<br />
e neles entrava madame: - Sobe, motô!<br />
e saía simples passageira: - Desce, porra!!<br />
e tomava de assalto (salto alto na mão)<br />
a enorme ladeira<br />
sentindo náuseas<br />
com o cheiro forte<br />
da Zona Norte:<br />
quem pode mais do que Deus?<br />
e entre rezas e benzeduras enfim a bênção<br />
da preta fala, da boca torta<br />
da língua morta, a lhe dizer<br />
cheia de vida:<br />
- Tu vais morrer, querida!!!<br />
28<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
29
Onze horas IX<br />
Onze anos de idade<br />
um botijão de gás<br />
asfixia a criança<br />
que sobe, ligeira, a ladeira<br />
e à força das gravidades<br />
não poderá mais crescer<br />
Sete horas<br />
Setecentas cabecinhas<br />
dentro do ônibus sagrado<br />
rezam sete ave-marias<br />
de sete em sete segundos<br />
e à força das gravidades<br />
não poderão mais subir<br />
Meia-noite<br />
O mundo do ano dois mil<br />
explode em artifícios<br />
camufla o novo holocausto<br />
sacrifica ao deus-bezerro<br />
e à força das gravidades<br />
muito sangue há de correr<br />
Sim, nós temos super-heróis<br />
Só não estão na TV<br />
nem nas áreas de lazer<br />
em qualquer dificuldade<br />
em caso de overdose<br />
e à força das gravidades<br />
CHAMEM O BATMAN!<br />
Vens tão mansa X<br />
tão bela<br />
que fechas as portas<br />
atrás de ti<br />
Vens... vem... vem...<br />
O gato brilha<br />
a porta geme<br />
a tua mão me descostura<br />
ao sabor do vento<br />
e agora te vejo<br />
precisamente:<br />
Vais?<br />
Vens ou vais?<br />
Vais... vai... vai...<br />
Vem e vai!<br />
Vai e vem!<br />
Ou sou eu que<br />
não sei se sou<br />
tobogã ou gangorra<br />
masmorra<br />
tronco<br />
calabouço<br />
porão do teu âmago<br />
te vejo tão dentro de mim!<br />
Que cacimba<br />
te mataria a sede?<br />
Se não fosse<br />
pelo teu sabor<br />
ácidoalcalino<br />
abacateabacaxi<br />
eu não saberia<br />
se tobogã ou gangorra<br />
te atrairia<br />
hoje!<br />
30<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
31
Agora percebo o sentido<br />
se me concentro explodo<br />
se explodir, estilhaçarei o mundo!<br />
Som de metal nem sempre<br />
é audível<br />
Porta fechada não é<br />
intransponível<br />
Meu medo é sintomático<br />
meu amor patológico<br />
Eu venho de uma ditadura<br />
que ditou a medida exata do meu orgulho<br />
Hoje ele é apenas o símbolo do que sonhou ser<br />
Pendula tiquetaqueando<br />
a minha vontade<br />
Se corro, perco o fôlego<br />
Se paro, perco espaço<br />
Por dizer “fim” três vezes,<br />
em linha reta<br />
tornei-me um homem reticente...<br />
O design<br />
do meu computador<br />
me mostrou<br />
que o meu know how<br />
saiu prum rolê<br />
e nunca mais voltou<br />
Aí pensei:<br />
Oh não!<br />
E now??<br />
Hoje é quase impossível<br />
ler-se em português<br />
integral<br />
Tem cada vez<br />
menos freguês<br />
na quitanda<br />
do Quintana<br />
E não se trata de uma simples<br />
consulta ao MICHAEL<br />
A ultramoderna Babel<br />
dessa vez é de papel<br />
E é garantida<br />
pelo Banco do Papai Noel<br />
Em todo caso<br />
hoje tem festa<br />
na cabana da Joana<br />
E lá talvez<br />
eu encontre<br />
alguma tangência<br />
sob o rótulo<br />
do whisky escocês!<br />
32<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
33
As grades engradam as praças<br />
engaiolam as pombas, as plantas<br />
as crianças, o playground<br />
As grades gradeiam a cidade<br />
As grades evocam lembranças<br />
– desagradáveis imagens –<br />
de campos de concentração<br />
Desengradem as universidades!<br />
As grades desagravam as prisões<br />
agravam o seminário e o<br />
centro de convenções<br />
Lúgubres grades que sugerem<br />
Sucesso de metralhamento<br />
perfeito confinamento<br />
completa segregação<br />
As grades são caras<br />
as caras dos caras<br />
As grades degradam a vontade<br />
As grades desgraçam a cidade<br />
As grades atraem desgraças!!<br />
Há um buraco no meio do Barco Brasil XI<br />
que já não navega à deriva<br />
Vai fundo pro fundo profundo<br />
Há outro buraco insistente<br />
(e eu nem quero falar no meu dente)<br />
bem no centro de todo humano<br />
Outros e outros e dentro de casa<br />
pomba sem asas que traz<br />
certa paz<br />
Há também cavidades vulcânicas<br />
no meu peito implodindo o meu ego<br />
Sou tão curvo e no entanto<br />
não rodo, não rolo e nem cedo tão cedo<br />
O que eu quero o que eu busco<br />
está dentro de uma enorme cratera...<br />
Ah, lembrei de quem meu pai dizia:<br />
Morreu Dr. Fulano. Agora só tem o buraco<br />
e a catinga.<br />
34<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
35
Lá estávamos nós dois<br />
e não havia luz<br />
eu sentia teu corpo<br />
tateava tua forma<br />
tua curva<br />
tua vulva<br />
tua mão<br />
eu ouvia o barulho<br />
de entrar e sair de você<br />
e de repente<br />
a explosão<br />
de sementes<br />
e flores<br />
e folhas<br />
e frutos<br />
tudo<br />
tudo morrendo<br />
num saquinho plástico<br />
em nome da vida!<br />
Aumenta aos poucos XII<br />
O grupo que está à porta<br />
As mãos antes vigorosas<br />
No trabalho ou na prece<br />
Agora se fecham em punhos<br />
Feito flor que recrudesce<br />
ao botão<br />
Murmurejam pragas<br />
Entre as Orações<br />
E assim retiram<br />
um a um<br />
Os tijolos do edifício.<br />
36<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
37
Agora a flor e o fruto se oferecem XIII<br />
frutose na flor – metamorfose por osmose<br />
Alimentam o espírito ávido do novo<br />
que embriagado faz as pazes com o corpo<br />
Agora o rei e a coroa resplandecem<br />
Guerras e batalhas por mares e atalhos<br />
Vencidas e vincendas fazem do ego<br />
descer certeiros golpes: Craft! Craft! Craft!<br />
Absalão, Absalão, amarra teus cabelos<br />
bem no meio da tua mão<br />
Parabólicos guarda-chuvas para-raios<br />
Somos mercadorias penduradas em carvalhos.<br />
Nenhum de nós dois XIV<br />
tem a ciência do laço<br />
nem no manejo do ato<br />
nem no desacato da forca<br />
mas para morrer de morte certa<br />
em caso de tentativa<br />
bastar-nos-ão os nós<br />
nas nossas próprias gargantas<br />
ou a explosão dos nãos<br />
mesmo sem haver perguntas<br />
e, em caso de aversão<br />
à solidão ou à ausência<br />
pode-se apodrecer a dois<br />
depois de lauto jantar<br />
a camarão decomposto<br />
e vinagre de vinho branco<br />
à luz da televisão<br />
PLIM, PLIM!!<br />
38<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
39
Arde ávida a acidez XV<br />
a agonia arranha, bale<br />
bole, berra, bate brutalmente<br />
Corre calado cúmplice cão<br />
cujos dentes dignos de devoção<br />
Decerto enfrentam espadas e esporas<br />
Enquanto, famintos, furiosos felinos<br />
grudam-lhe garras grossas<br />
Hoje hospedam Homeros, Horácios<br />
Imponentes igrejas imponentes<br />
Jejuns, jogos, juras, jantam juntos<br />
Lêem loucos livros lúcidos lamas<br />
Mas, mestres místicos, maconha<br />
metem medo. No ninho nascem<br />
novas noivas néscias. Outras<br />
ostras ocultam pérolas, porém.<br />
Pretos pedem pão. Povos põem<br />
panos quentes. Quem quer querelas?<br />
Rotulam rocks. Rejeitam reggaes.<br />
Súbito surgem sangrentas sarjetas<br />
transamazonicamente<br />
transcontinentalmente<br />
tão tristemente!!<br />
Unhas untam úberes<br />
Universalmente<br />
Universidades? Vomitamo-as!!<br />
Vêm vindo vozes!!<br />
Xiii....<br />
Xangô?<br />
Xenófobos?<br />
Zeza?<br />
Zumbi?<br />
Zarpemos. Zeeennnn.<br />
40<br />
Poeminflamado<br />
A Cor da Exclusão<br />
41
Cafuné XVI //42 a 67
44<br />
Poeminflamado<br />
Cafuné<br />
45<br />
UM<br />
NINHO<br />
SE FAZ<br />
EM<br />
PAZ
O<br />
Sol<br />
do<br />
Sertão<br />
Secará<br />
o Sangue<br />
do Senador<br />
Ave ama Seca<br />
cheia de leite<br />
Bendita sois vós<br />
entre as estéreis<br />
Vai pro Sertão<br />
Tu levas leite<br />
Eu levo pão<br />
Bendito é o fruto<br />
do vosso peito<br />
AMMOONN!<br />
Béé é é é é é...<br />
46<br />
Poeminflamado<br />
Cafuné<br />
47
Sempre que a beleza<br />
Se debruça sobre a DOR<br />
Assume ares de Santa<br />
Quando sagrada seria<br />
a dor que ninguém<br />
evoca<br />
História da Humanidade<br />
quanto mais sei<br />
mais sinto<br />
VERGONHA<br />
48<br />
Poeminflamado<br />
Cafuné<br />
49
À MORTE – por ser imortal, XVII<br />
ergo um brinde, dizendo:<br />
- À NOSSA VIDA!<br />
e ela responde ofendida:<br />
- NÃO ME ESCAPARÁS!<br />
o meu sangue<br />
VERMELHO<br />
se e s p a l h a<br />
e torna violeta<br />
o etéreo<br />
50<br />
Poeminflamado<br />
Cafuné<br />
51<br />
sangue<br />
AZUL
O novo quebrou<br />
a casca do ovo<br />
e emudeceu o antigo<br />
Quem deflagra uma guerra<br />
perde o poder de<br />
dar-lhe rumo<br />
O meio exato é a<br />
negação dos extremos<br />
Ah, ah, ah, quem de mim<br />
terá aplausos?<br />
PRECONCEITO<br />
é luz alta na cara<br />
A gente se sente exposta<br />
Na dúvida<br />
será que você vai ficar?<br />
dessa câmera<br />
seus olhos<br />
dizendo CLICK<br />
e os meus,<br />
na TV,<br />
sem remelas.<br />
Também pode ser<br />
quando você se<br />
esconde atrás<br />
52<br />
Poeminflamado<br />
Cafuné<br />
53
eu não sou um<br />
objeto fálico que<br />
se ate e se desatarrache<br />
à toa.<br />
LÍNGUA SERVE TAMBÉM<br />
PARA PESAR PODERES<br />
Doce balanço<br />
menina-consolo<br />
teus braços<br />
soltam<br />
meu corpo<br />
que cai<br />
cai<br />
cai<br />
em teus braços<br />
nova<br />
e<br />
suavemente<br />
54<br />
Poeminflamado<br />
Cafuné<br />
55
A boca do lixo<br />
É a boca do bicho<br />
Em movimento<br />
Mandíbula batendo<br />
nos ossos da face<br />
Rangendo, rangendo<br />
Sem lubrificantes<br />
Saia daí de baixo<br />
Pule da sala pra tela<br />
ou continue<br />
A vislumbrar a barata<br />
E à sombra dela<br />
Embriagar-se sob o cheiro<br />
Do inseticida inútil.<br />
Brasa nos olhos, amor?<br />
Água nela.<br />
E que lágrima!<br />
mas se for por bobagem<br />
neguinha, fui mimbora<br />
e esqueci de chamar<br />
OS BOMBEIROS!<br />
56<br />
Poeminflamado<br />
Cafuné<br />
57
<strong>poeminflamado</strong><br />
VOCÊ É O FOGO<br />
que queimou<br />
o FOGO que estava<br />
queimando<br />
o meu FOGO!<br />
o mar XVIII<br />
tem tanto<br />
SU<br />
RU<br />
RU<br />
e eu aqui<br />
a ver navios...<br />
58<br />
Poeminflamado<br />
Cafuné<br />
59
Por ser água barrenta<br />
Não me julgue profundo<br />
Não mergulhe em mim<br />
E é bom levar um tempo<br />
para me engolir<br />
Pode apenas banhar-se<br />
É esta a razão<br />
de ser eu<br />
á g u a<br />
tão turva.<br />
4<br />
Quatro. Esse é o número<br />
da besta que me governa.<br />
Quarta. Quarto. Quatro<br />
vezes de quatro<br />
Quarta-feira, cinzas<br />
Quarto Ato – epílogo!<br />
E também nunca<br />
pude esquecer<br />
das 4 vezes<br />
que me<br />
comeste<br />
60<br />
Poeminflamado<br />
Cafuné<br />
61
IV Ato<br />
Mamede mata Goreth<br />
Solano salva Trindade<br />
Alcabuz é destruída<br />
Nunganga é coroada<br />
Ogan toca pra subir<br />
Há licor de jenipapo<br />
(envenenado)<br />
Servir e apagar as luzes<br />
O devastador<br />
de florestas<br />
olhou pros meus cabelos<br />
e o cabo do machado<br />
do seu patrão estremeceu<br />
na sua mão<br />
62<br />
Poeminflamado<br />
Cafuné<br />
63
Aumenta aos poucos<br />
O grupo que está à porta<br />
As mãos antes vigorosas<br />
No trabalho ou na prece<br />
Agora se fecham em punho<br />
Feito flor que recrudesce<br />
Ao botão<br />
Murmurejam pragas<br />
Entre as orações<br />
E assim, retiram<br />
um a um<br />
Os tijolos do edifício.<br />
Nebulosa carta cujo signo<br />
A vidente não retém<br />
– Passeio ao ar livre –<br />
Campo: Cemitério ou picnic?<br />
Flores: Festa ou velório?<br />
Meu corpo sob outro:<br />
Faço amor ou faço guerra?<br />
Frio: mudança de estação ou<br />
de habitat?<br />
Ai, o amor deveria avisar:<br />
“Chego amanhã”.<br />
64<br />
Poeminflamado<br />
Cafuné<br />
65
Cafuné<br />
Poeminflamado<br />
66 67<br />
E eu pensando<br />
que podia moer<br />
essa máquina<br />
Sem tua lubricidade<br />
s<br />
o<br />
p<br />
r<br />
e<br />
a<br />
p<br />
e<br />
n<br />
a<br />
s<br />
c<br />
o<br />
m<br />
h<br />
á<br />
l<br />
i<br />
t<br />
o<br />
A<br />
C<br />
E<br />
N<br />
A<br />
C<br />
O<br />
N<br />
T<br />
É<br />
M<br />
:<br />
q<br />
u<br />
e<br />
n<br />
t<br />
e<br />
a<br />
g<br />
o<br />
t<br />
a<br />
d<br />
e<br />
s<br />
u<br />
o<br />
r<br />
d<br />
o<br />
r<br />
o<br />
s<br />
t<br />
o<br />
D<br />
O<br />
T<br />
R<br />
A<br />
B<br />
A<br />
L<br />
H<br />
A<br />
D<br />
O<br />
R<br />
j<br />
u<br />
n<br />
t<br />
e<br />
u<br />
m<br />
a<br />
c<br />
a<br />
b<br />
e<br />
ç<br />
a<br />
d<br />
e<br />
A<br />
L<br />
H<br />
O<br />
A<br />
O<br />
P<br />
E<br />
S<br />
C<br />
O<br />
Ç<br />
O<br />
s<br />
u<br />
o<br />
r<br />
é<br />
á<br />
g<br />
u<br />
a<br />
e<br />
s<br />
a<br />
l<br />
l<br />
e<br />
v<br />
e<br />
T<br />
U<br />
D<br />
O<br />
A<br />
O<br />
F<br />
O<br />
G<br />
O<br />
É<br />
L<br />
U<br />
Z<br />
m<br />
u<br />
i<br />
t<br />
a<br />
L<br />
U<br />
Z<br />
.<br />
.<br />
.<br />
A<br />
S<br />
O<br />
P<br />
A<br />
C<br />
O<br />
N<br />
T<br />
É<br />
M<br />
:<br />
E tu pensando<br />
que podias dançar<br />
essa vida sem<br />
minha poesia
Cartões XIX //68 a 74
Nada me inspira<br />
com sua ausência<br />
perco-me nas entrelinhas<br />
não me encontro<br />
Não demore tanto<br />
a voltar... te proponho.<br />
CORRO O RISCO DE ACORDAR DO MEU SONHO<br />
não demore tanto<br />
sem ligar<br />
Como pode ficar<br />
sem sentir o que sinto<br />
e persistir?<br />
não se afaste<br />
por muito tempo<br />
TEMO QUE ALGO ME ARRASTE DO SEU PENSAMENTO<br />
Vem negra com tua dança<br />
com teu mimo<br />
sorriso tão doce, olhar maternal<br />
Vem branca de todas as partes<br />
tão independente,<br />
tão liberada e intelectual<br />
Vem índia do rosto redondo<br />
pureza nos olhos<br />
tão presa e tão solta pés no lamaçal<br />
Vem amarela com tua sapiência<br />
tua paciência e submissão<br />
traz a tua Suam do Nepal<br />
Vem vermelha ucraniana<br />
tão socialista<br />
venha mestiça, venha pura<br />
Vem mulher de toda cor<br />
Toda língua ou religião<br />
Vem e me dá tua bênção!<br />
70<br />
Poeminflamado<br />
Cartões<br />
71
Quantas folhas deste papel<br />
Minhas mãos já amassaram<br />
Quantas palavras aqui não estão<br />
Porque do pensamento não passaram<br />
Quantas coisas mesmo<br />
Eu queria te dizer<br />
Mas como vou conseguir<br />
Se nem consigo escrever?<br />
Às vezes eu sonhava<br />
Que conversava contigo<br />
E nos sonhos eu dizia<br />
Tudo que aqui não digo<br />
Nos sonhos eu cantava<br />
Eu vibrava de alegria<br />
Gritava bem alto teu nome<br />
Pensando que me ouvias<br />
Se queres mesmo saber<br />
Tudo que aqui não falei<br />
Sonha comigo menina<br />
E no sonho juro que te direi<br />
destinoRdestino<br />
Menino da rua<br />
pergunta ao da roça:<br />
- Menino da roça?<br />
Cadê você?<br />
- Estou no lixão<br />
- Está na cidade<br />
fazendo o quê?<br />
- Plantando espigão<br />
- Como vai plantar<br />
se aí não tem chão?<br />
Como vai colher?<br />
- Colher de pedreiro<br />
Foi o que eu vim colher<br />
Menino de rua<br />
Pergunta ao da roça:<br />
- Que colhe você?<br />
- Mil balas no peito<br />
acabei de colher!<br />
- Pro mode plantar?<br />
- Não. Pro mode querer!<br />
dedicado aos sem-terra<br />
72<br />
Poeminflamado<br />
Cartões<br />
73
Nômade que sou não tenho<br />
morada certa. Os meus<br />
credores duvidam das<br />
minhas intenções<br />
E me esperam à minha<br />
mesa. Esta terá que<br />
estar vazia... Senão, por quê<br />
terá pão, ou frutas, ou mesmo água<br />
- Comprados a míseros cents<br />
- As frutas? São apenas sementes<br />
E a água foi um presente<br />
que me mandou algum parente<br />
(Dir-lhes-ei sobre a lareira quente?)<br />
Houve uma mulher na cama<br />
- Não, não a paguei...<br />
(E se me ama por que foi embora?)<br />
... Como o faria?<br />
Nem posso expulsá-los<br />
(Não tenho morada certa)<br />
- Mas de quando é mesmo a dívida?<br />
- Duvido!<br />
- Devido.<br />
- Quanto?<br />
(O que eu não posso mais)<br />
- De quanto é a dívida?<br />
74<br />
Poeminflamado<br />
Cartões<br />
75
Agendas da Vida XX //76 a 115
Uma deusa do fogo XXI<br />
Me lambe a mente<br />
Me queima a semente<br />
De uma nova ideia<br />
Uma deusa pagã, ateia.<br />
Outra, da água, submerge em mim<br />
E me desvenda os mistérios<br />
Sem no entanto mo revelá-los<br />
E agora me vejo mais incognoscível<br />
Exceto no que me admito desprezível<br />
Ei-la que me aparece alada<br />
Cheia de plumas, porém empalhada<br />
A dona dos ares tão subjugada<br />
Pela metade do meu desejo<br />
Que voa bem longe morrendo de medo<br />
Nem cria na ameaçadora esquina<br />
E menos na cumprição da promessa<br />
Saltita a morte peremptoriamente eterna<br />
E dá-me de presente ao seio da terra<br />
Que sem cerimônias me abraça e me encerra!<br />
No lago, ao entardecer<br />
Cantavam os pássaros<br />
À distâncias prudentes<br />
das serpentes que<br />
Moviam-se sobre as águas<br />
Como se puxadas pelos movimentos<br />
das suas línguas.<br />
Deixei-me cair, hesitante,<br />
E adiei o mergulho<br />
No que julguei<br />
Águas envenenadas.<br />
- Será que as serpentes deixam seu veneno<br />
na margem, antes do banho?<br />
O meu veneno está sempre ao meu alcance<br />
Pensei e pulei<br />
com estrondo<br />
na serenidade<br />
daquele<br />
crepúsculo.<br />
Assustado, mas<br />
afastando lagartos e<br />
cobras e libélulas e pássaros<br />
do meu medo<br />
Daquela horripilante sensação<br />
de dezenas de línguas<br />
Serpenteando-me<br />
Sem nem um só<br />
bote mortal!!<br />
78<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
79
Quero XXII<br />
parar<br />
essa gota<br />
de água<br />
salgada<br />
ardente<br />
fervente<br />
doente<br />
que entra<br />
e vai<br />
desaguar<br />
direito<br />
no leito<br />
do peito<br />
deus sabe<br />
não cabe<br />
na alma<br />
tão calma<br />
esse trauma<br />
não leve<br />
não neve<br />
não breve<br />
que rola<br />
vira bola<br />
mirabola<br />
amarga água<br />
amarga ida<br />
amarga vida<br />
a mais garrida<br />
Ai, MARGARIDA!<br />
Marca indelével na minha vida XXIII<br />
Marco inconfundível na minha trajetória<br />
Cisão entre o meu presente<br />
E o teu futuro<br />
Elo entre as minhas duas partes<br />
A de dentro e a de dentro.<br />
A partir de ti não precisarei<br />
De estrelas cadentes<br />
Astros reis desgovernantes<br />
Puxa-sacos del Rey tiempo<br />
Decadência não. De cadência<br />
Tenho o teu passo lúdico<br />
E o bambolear de tua bunda<br />
Quando vens ao meu encontro<br />
Dos tambores que me chamam<br />
Só as batidas do teu peito<br />
Dos odores aos quais aspiro<br />
Apenas o cheiro da tua carne<br />
Teu suor, tua saliva, teu gozo<br />
Minhas bebidas prediletas<br />
Meu éter: tua instabilidade<br />
Teu sonho, minha direção.<br />
80<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
81
Há mulheres surpreendentes XXIV<br />
que me olham prepotentes<br />
com ares de inteligentes<br />
como se eu fosse demente<br />
Eu lhes digo entrementes:<br />
Ao vê-las<br />
posso lê-las<br />
aprendê-las<br />
apreendê-las<br />
compreendê-las<br />
escolhê-las<br />
e comê-las<br />
Como?<br />
Como quando como estrelas.<br />
Degeneração<br />
Quando aqui cheguei<br />
entre quatro paredes me vi<br />
e vi também um par<br />
de rostos risonhos<br />
de bondade e de amor<br />
Logo me vesti<br />
tudo era lindo e irreal<br />
como nos sonhos<br />
Com o tempo<br />
outras paredes conheci<br />
e também outros<br />
rostos contentes<br />
mas entre estas paredes<br />
eu me perdi<br />
e não me senti gente<br />
entre essa gente<br />
Eles usavam armaduras<br />
douradas, belas, belas<br />
E nos seus rostos<br />
o que sorriam sempre<br />
eram umas máscaras<br />
cor da pele<br />
que usavam para<br />
dizerem-se contentes<br />
Vi em dois olhos<br />
o brilho esquisito<br />
da inveja, da revolta,<br />
da ambição<br />
vi e não pude conter<br />
um grito<br />
fora enganado<br />
e que doce ilusão!<br />
Ouvi palavras<br />
grotescas, duras<br />
vi gestos obscenos<br />
e imundos<br />
vi o que continham<br />
as belas armaduras<br />
carne a carne podre<br />
do mundo<br />
Minha alma<br />
rasgou as suas vestes<br />
meu coração<br />
turbou o seu semblante<br />
despido fiquei<br />
dentro de mim<br />
das coisas boas<br />
que existiam antes<br />
Então tomei uma<br />
das belas armaduras<br />
e pus também<br />
uma das máscaras<br />
sorridentes<br />
agora por dentro<br />
sou feito de amarguras<br />
mas por fora<br />
sou normal<br />
sou gente!<br />
82<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
83
Cadê o seu cartão? XXV<br />
Não tem cartão?<br />
Ponha um carimbo de LIVRE PASSE<br />
na sua identidade<br />
E passe e repasse sua trajetória<br />
É lícito. Não é usual<br />
Grite o seu pensamento<br />
Esparrame sua dor<br />
Multiplique o alarido<br />
Pra que não descanse em paz<br />
o seu opressor<br />
flor de cactus XXVI<br />
perdido no Sertão<br />
bebo a sua água<br />
como do seu pão<br />
te vejo como o fogo<br />
do cometa que caiu<br />
te sinto como broto de bambu<br />
que escapou da cobiça do Chinês<br />
te quero como uma figurinha<br />
que se coleciona dia a dia. TE AMO<br />
e não sei dizer como: se mãe,<br />
se filho, ou simplesmente<br />
pelo teu jeito de rir teu riso<br />
ainda não conheces a vida<br />
e ai de mim, aprendiz do teu<br />
jeito de rir. de só ser<br />
DE SÓ QUERER<br />
...<br />
84<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
85
Olá! Alô?<br />
Vamos dar uma bola?<br />
Me escrutinou um par<br />
de olhos tão redondos<br />
que mais pareciam<br />
duas bolas de gude<br />
E eu os vi se derreterem<br />
e se transformarem em<br />
duas lágrimas de sangue<br />
que se cristalizaram<br />
e nunca mais jurei aos pés do altar<br />
Três bolas depois eu<br />
a encontrei no abril<br />
imediatamente o sorvete<br />
derreteu no meio do mangue<br />
E hoje creio que o visgo<br />
da mangaba nos grudou<br />
um no outro<br />
na quarta e quinta-feira<br />
Balas! Foi aquele bang-bang<br />
Justo na hora da sexta-feira<br />
Bolas, muitas bolas depois<br />
Ela fez as malas<br />
fumando bem devagarinho<br />
Os olhos volteando o lugar<br />
jurou nunca mais voltar<br />
Mandei atrás dela a gangue<br />
E não é que<br />
aqui pra nós<br />
Ela, a danada,<br />
Nunca mais me voltou!?!<br />
Oláááá<br />
Alôôôô<br />
Vamos dar<br />
uma bola?<br />
Desarme-me dos meus olhos XXVII<br />
se não sustentarem seu olhar<br />
Da minha boca, se não o delatar<br />
Das minhas mãos, se o adularem<br />
E do meu sexo, “para não enrabar sua filha”.<br />
Mas, me devolva a Língua-mãe<br />
A minha cultura, o meu baseado<br />
a minha caneta e o meu papel<br />
Pois eu tenho o dever de<br />
Registrar a minha história<br />
86<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
87
É você que me aparece<br />
vestida não sei de quê<br />
em cada esquina avistada<br />
em cada saia encarnada<br />
é você quem me aparece<br />
no vulto que vem da rua<br />
no meio da ladainha<br />
no sax embalo do reggae<br />
é você quem me aparece<br />
na saudade de mulher<br />
em cada blusa rendada<br />
na roda do candomblé<br />
Agora entendo a pedra<br />
no caminho do poeta:<br />
se penso em gargalhadas<br />
você logo me aparece;<br />
se me vejo em precipício<br />
e até mesmo em um hospício<br />
se retomo o antigo vício<br />
se traio algum princípio<br />
se te abordo por propício<br />
se te dou algum indício<br />
de que ainda te cobiço<br />
Você me desaparece...<br />
Dia após dia, saudade crescendo<br />
e nós nos esquecendo de mantê-la<br />
Saudade morrendo e nós nos<br />
inclinando a matá-la.<br />
Lua nasce nova já duas vezes<br />
duas vidas cheias de fases cheias<br />
ânsia e desejo cuidam de nós<br />
Novamente um lampejo<br />
a porta só se abre se te sésamo<br />
Luzes acesas, cortinas abertas<br />
única é tua voz força do meu sorriso<br />
abrir-te será sereno e eterno<br />
Velho bater de asas. Novo rumo.<br />
Esgueiro-me por entre labirintos<br />
Jogos. Rainha, peão, torre.<br />
O sonho. O ardor. A vida em equilíbrio<br />
Te vejo na sacada. O relógio<br />
enregela-se sem tréguas<br />
Uivo nossa canção predileta<br />
Novo dia. Ânsia e desejo cuidam de mim<br />
O meu dia é tua noite. E assim<br />
me trazes, preto preso em rédeas curtas<br />
E o meu lado cachorro apenas te fareja.<br />
88<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
89
Na casa de espetáculos o palhaço chora<br />
E sua maquiagem desbota ao contato<br />
de lágrimas multicoloridas contorcendo<br />
seu rosto de dor e máscara grotesca<br />
Desce o pano sem aplausos nem vaias<br />
Apagam-se as luzes sem pontas de<br />
cigarros parecendo vaga-lumes acesos<br />
se vistos à distância.<br />
No picadeiro agora a bailarina<br />
gira sobre si mesma numa velocidade<br />
estonteante. Ela está louca.<br />
O vendedor de cigarros acende o seu<br />
último, e quer tomar um trago<br />
de aguardente de arroz.<br />
Acendem-se as luzes e já não há<br />
ninguém na plateia<br />
nem o palhaço, nem a bailarina<br />
Apenas o espetáculo no ar<br />
Sem risos, sem vozes. Sem luzes e sem som.<br />
Logo, logo descerá o pano<br />
Desse espetáculo lúgubre<br />
Denso. Louco. Tétrico.<br />
E eu prendo defensivamente<br />
A respiração e a palavra.<br />
No prenúncio do apocalipse<br />
Vejo as narinas da Besta;<br />
No trajeto de massificação do Espírito<br />
Vejo a carne desnudada,<br />
O corpo em pelo,<br />
O ego nu!<br />
Solto os estribos do meu animal<br />
E capoto numa curva<br />
Aberta sem prévio aviso.<br />
Dói-me dilaceradamente<br />
Coração e pênis<br />
E substitui o prazer<br />
A imensidão da dor<br />
De me ver só;<br />
Exposição involuntária<br />
De pescoço e jugular<br />
Aos dentes caninos<br />
Da solidão parasitária:<br />
Nem o eco das minhas<br />
Inevitáveis palavras<br />
Nem o som do meu<br />
Eloquente silêncio!<br />
90<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
91
Secreto! Top Secret! Top Secret! XXVIII<br />
Gnomolusco Lama-fusco<br />
Centro do fuso horário<br />
Portanto atemporal<br />
Fusão do ar com o mar<br />
e terra, e todos e tudo é o tudo<br />
Que fogo pode apagar<br />
Se não for pra aquietar<br />
Nem esquente<br />
Bomba H radioativa<br />
Puro orgônio Reichiano<br />
Antigo como o ato de nascer<br />
Eu não sou ave, Maria,<br />
mas posso voar<br />
Ser molusco é viver isso<br />
que herdamos de você,<br />
seu bosta!<br />
O nó na garganta sufoca<br />
a vontade de chorar<br />
dentro de mim aumenta o<br />
som do grunhido gutural<br />
lembranças leves fortes<br />
suam ao peso do acordar<br />
balanço agonizante, enjôo<br />
o cheiro me embriaga<br />
a luz me ofusca<br />
olho de lado. Olhos para baixo!<br />
Vislumbro uma mão<br />
Peso a distância. Meço a velocidade.<br />
Antes que grilhão me alcance<br />
corro, corro, danço e morro<br />
Brindo à tua silhueta<br />
bebo a teu mau humor<br />
trago as mãos calejadas<br />
de te esculpir<br />
em imagem e som<br />
mitsubishianos<br />
De olhos bem abertos<br />
dedilho uma canção agourenta<br />
Li tua sina na minha mão<br />
Vi teu destino no meu sonho<br />
Criei o Verbo. Criaste o Não<br />
– Advérbio de negação –<br />
Ora, ora, ora é hora de viver<br />
tua vida sem atrelá-la à minha<br />
Sem encontrar outra tu<br />
Revelar o que teu anseio esconde<br />
E por a minha fotografia<br />
na tua coleção<br />
92<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
93
Eita gosto seco, azedo<br />
no meio da língua<br />
travando o paladar<br />
Eita visão assombrosa, embaçada<br />
cortando os olhos, ferindo o olhar<br />
Eita mãozinha pesada, crespenta<br />
arranhando a pele, doendo ao tocar<br />
Eita que cheiro enjoado, nauseante<br />
que sangra narinas e dá ânsia de vômito,<br />
Eita palavra tão nua, tão crua<br />
tão dura de escutar: NÃO!<br />
Arrancando olhos, perfurando<br />
tímpanos. Entrando bem dentro,<br />
bem fundo. No coração do SIM.<br />
És feita do vento, dos risos da Tristeza<br />
Da chuva, do Sol, dos desencontros,<br />
Das lágrimas da Alegria<br />
És feita de derrotas e vitórias...<br />
Arde dentro de ti um fogo, que te bole<br />
Que te come, que te queima,<br />
Moram dentro de ti, a um tempo<br />
Anjo e Demônio, fada e bruxa<br />
Não os odeias, não os temes<br />
Antes, abraça-te ao mais próximo,<br />
Agarra-te ao mais forte, ao mais belo<br />
E assim, ora resplandeces nas trevas<br />
Povoada de anjos e fadas.<br />
Ora enegreces na luz arrastada<br />
Por demônios e bruxas.<br />
Vivam os duendes, os gasparzinhos<br />
Morra a morte tão real<br />
Quase palpável, quase visível;<br />
Morra a dor, tão profunda, tão marcante,<br />
Onipresente deusa da amargura<br />
Morram as desesperanças entre<br />
Os espinhos da cruel realidade<br />
Nasçam as flores do desejo e<br />
Desabrochem no prazer maior...<br />
Dê-se. Ame. Ame e goze<br />
Goze, goze, goze e<br />
Disperse com o seu gozo<br />
O aglomerado das coisas impossíveis.<br />
94<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
95
Me envolvo mansamente onde<br />
A razão e o sentimento<br />
Coabitam em harmonia<br />
O pesadelo é a realidade<br />
Na qual a gente se vê!<br />
Há o espinho, há a rosa<br />
A rosa, pra mim, é você!<br />
Guerreiro de onde vens<br />
De onde vens, pra onde vais<br />
Dizes teu nome, teus feitos.<br />
Enleva-me com cantigas de teus pais<br />
Solta a voz, estronda o peito<br />
Satisfaz os teus desejos<br />
Reina em nós teus ancestrais<br />
Guerreiro para que vens<br />
Dize-nos e conduzirás<br />
Nossos carros, nossas lendas.<br />
Aumentais nosso panteão<br />
És filho dos Orixás<br />
Bem-vindos filhos e netos<br />
Bisnetos, tataranetos<br />
Toda linhagem real<br />
Eu reino sobre mim mesmo<br />
Sobre ti não haverá ninguém na terra<br />
Sendo assim sucederás<br />
Os que por aqui passaram<br />
Seja na guerra ou na paz<br />
Guerreiro me conta logo<br />
De onde vens,<br />
Pra onde vais.<br />
96<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
97
Sapatos<br />
não me apertam os pés<br />
Gravatas<br />
não me enforcam mais<br />
Cuecas<br />
não me assam os escrotos<br />
Cintos não me afetam os rins<br />
Nem uso algum indigno índigo<br />
Somente Algodão e Blues<br />
debaixo de 40 graus<br />
Minha casa não tem<br />
cercas<br />
nem tem grades<br />
nem tem<br />
muros, nenhum<br />
corredor escuro<br />
não tem sótão<br />
nem porão<br />
Somente algumas janelas<br />
abertas janelas azuis<br />
debaixo de 40 graus<br />
Somente Algodão e Blues<br />
debaixo de 40 graus<br />
Abertas janelas azuis<br />
debaixo de 40 graus<br />
Agora procuro quem<br />
te pôs na minha vida<br />
É uma busca cósmica<br />
cíclica<br />
mas inteira,<br />
ANTROPOFÁGICA<br />
meus pelos pubianos<br />
escondem<br />
tua<br />
origem<br />
Ou eu, fruto de ti,<br />
na flor de minha<br />
semente?<br />
Agora procuro quem<br />
me pôs<br />
na tua<br />
VIDA<br />
98<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
99
Unir para a guerra XXIX<br />
Retomar as forças<br />
à força<br />
Guiar através das pedras<br />
Reatravessar o deserto<br />
Ferir o mar<br />
Tornar vermelho o chão<br />
Subir aos céus<br />
Desafiar os deuses<br />
dorminhocos<br />
sonolentos deuses<br />
de Seu Manoel<br />
Entrar pelo portal<br />
do Sol<br />
na noite esquecida<br />
pela Lua<br />
Pular o fosso<br />
o cerco<br />
perder o medo<br />
de alcançar<br />
o SONHO<br />
Plantar raízes<br />
Regar sementes<br />
Ações de quem não foi<br />
simbora<br />
Inflar pulmões<br />
Soprar clarins<br />
VITÓRIA!!<br />
Transávamos<br />
debaixo dos lençóis<br />
luz apagada<br />
língua colada<br />
no travesseiro<br />
No espasmo<br />
a sensação<br />
de ter partido pra luta<br />
Hoje se vê<br />
que a nação desenvolve<br />
a mesma política da<br />
era colonial<br />
e como dois amigos<br />
que fenecem juntos<br />
não nos importamos<br />
com a decadência<br />
um do outro<br />
100<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
101
Sou árvore<br />
Dou sombra<br />
Abrigo ninhos<br />
Suporto ventos<br />
viajo pro centro<br />
Da terra e do céu<br />
Ao mesmo tempo<br />
Direções de ir<br />
Resoluções de vir<br />
No mesmo asfalto<br />
Mão e contramão<br />
Também dou frutos<br />
Até broto brotos<br />
E os solto na relva<br />
Os meus sonhos<br />
Sou árvore<br />
airosa<br />
frondosa<br />
pomposa<br />
E cheia de clorofila<br />
Pra lhe deixar verde.<br />
Sou árvore<br />
portanto estática/extática<br />
mas antimetálica, mulher<br />
Ai, o fogo me mata<br />
(os Homens e os deuses)<br />
Sou toco, tição!<br />
E cheia de melanina<br />
pra lhe deixar<br />
PRETO<br />
Sou árvore<br />
retinta<br />
extinta<br />
bizarra<br />
patética<br />
Uma torre<br />
de papel<br />
Estou nas<br />
suas entranhas<br />
passeio na sua cozinha<br />
cheia de adrenalina<br />
pra lhe deixar<br />
LOUCO!!<br />
102<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
103
O poeta<br />
É como uma galinha<br />
Enquanto não caga<br />
uma Poesia<br />
Fica de lá pra cáááá<br />
De cá pra láááááá<br />
Até que o sal<br />
Ao léu se calcifique<br />
E mesmo que seja<br />
A vida toda um<br />
único ovo<br />
Faz-se mais uma vez<br />
Celular semente<br />
Que como um véu<br />
Se presentifica.<br />
COCORICOCÓ COCORICOCÓ<br />
Bastava ouvir berimbau<br />
Que eu ia jogar capoeira<br />
Pernas pro ar<br />
Parecendo bananeira<br />
Jogo justo, jogo inteiro<br />
A gente joga sorrindo<br />
O som dessa gargalhada<br />
A garganta vem abrindo<br />
Cabeça prum lado<br />
Rabo de arraia já foi<br />
Não deixe ninguém<br />
Carregar Camará velho<br />
Esse seu carro de boi<br />
Cabeça pra frente<br />
A neve já foi<br />
Não deixe ninguém<br />
Carregar camará veio<br />
Esse seu carro de boi<br />
104<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
105
Matadores perfilados<br />
Piscam olhos entre si<br />
Ante notícia matinal<br />
Sobre crianças e adolescentes<br />
Massacrados e assim<br />
Comemoram mais um ano<br />
De vida da corporação<br />
Assassinos encapuzados<br />
De crachás e contracheques<br />
Todos manchados de sangue<br />
Imitam sons de coruja<br />
E assinalam na favela<br />
O destino das próximas vítimas<br />
Dia a dia. Noite a noite<br />
Nenhum capuz esconde<br />
A alma dos carrascos<br />
O cheiro nauseabundo do sangue<br />
Das vítimas os acompanha<br />
Insepultos os seus corpos<br />
Servirão de alimento<br />
Para outros carniceiros.<br />
Não sou como queiram<br />
se não quiser saber<br />
de mim bata a porta<br />
procurem endereços<br />
a partir do meu<br />
Não tenho apetite<br />
no que me oferecem<br />
Meus dentes perfeitos<br />
não são só perfeitos<br />
dentro da boca<br />
meu dente perfeito<br />
carrego no peito<br />
É meu amuleto<br />
(um dente cravado no peito!)<br />
oculto, fechado, soneto<br />
poema aberto desprevenidamente<br />
feito braguilha<br />
prestes a ser fechada<br />
por tampilhas e barbantes!<br />
Meu sorriso<br />
me protege<br />
das suas dentadas<br />
106<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
107
Eis que suas palavras<br />
reacenderam seu desejo<br />
e ele, ávido de gemidos<br />
correu, olhos cerrados<br />
ao seu encontro.<br />
E qual? Em pleno domingo de Sol<br />
o templo do amor<br />
perdera seu brilho<br />
enquanto apenas<br />
vagalumeavam<br />
nos quatros cantos do Ser<br />
outros desejos<br />
já não mais inconfessáveis.<br />
Última Sexão<br />
Paródias fellinianas<br />
dançam na tua boca<br />
que cospe pequenas tragédias<br />
na minha cabeça, onde, tal qual<br />
antena parabólica, alguns pombos<br />
fazem filhotes e cocô.<br />
e eu, filho bastardo de Spike Lee,<br />
pouso o olhar cinematograficamente<br />
num dos ângulos da cama<br />
(o iluminado pelo abajour)<br />
e num misto de prazer e ódio<br />
desprezo e desejo GRITO!<br />
um grito patético<br />
antiestético, um urro:<br />
- MEU PAU LATINO MENTE<br />
PAULATINAMENTE!<br />
108<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
109
Beijo tua boca<br />
e sinto o cheiro do teu corpo<br />
toco esse cheiro e gosto<br />
que seja como o do vinho<br />
que se pensa doce<br />
mas amarga até o sim<br />
Lambo o teu nariz<br />
e minha língua adormece<br />
agora, te faço feliz<br />
teu cheiro me penetra<br />
e encrudesce meu olfato<br />
empalidece minha face<br />
arrefece minha visão<br />
esmorece o que eu escuto<br />
e apodrece o que eu<br />
sinto por ti.<br />
Que hábil maneira de se ir, ficando<br />
ficaste. Enches a casa com teu “AR”<br />
Pedras. Que lindas pedras<br />
por sobre o meu caminho<br />
Borboleteias aqui e adiante<br />
presenteias-me com tua presença constante<br />
Ornamentas meu pescoço<br />
com essas pérolas<br />
Enfeitas-me de fitas<br />
há azuis e amarelas<br />
Lilazes fitas fulgazes<br />
Fulgores, às vezes flores<br />
Nossas notas musicais<br />
Transformarão esse velho mundo?<br />
110<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
111
Conjecturas<br />
O que eu traço, mesmo que faça<br />
Não abre portas, mas não importa<br />
Meu embaraço me estilhaça<br />
Me deixa morta a artéria aorta<br />
Quero versar, sem desconversar<br />
Dizer o que sinto, é pior, se não minto,<br />
Tentar dispersar, sem querer dispensar<br />
O vinho tinto com o qual pinto.<br />
Assim abafo o meu desabafo<br />
No primeiro copo com quem topo<br />
Procuro um bafo que não me deixe gafo<br />
Me desloco para fugir do soco<br />
Cada passo em falso leva ao cadafalso<br />
Cada bom momento cai no esquecimento<br />
O vôo que eu alço mesmo sem ter calço<br />
É o do sofrimento para o longínquo alento<br />
Minha dor não tem rima nem é minha sina<br />
Fazê-la poesia não foi só cortesia<br />
Eu estou por cima... observa, atina:<br />
Não sente azia quem tem a barriga vazia<br />
O que houve no meio<br />
do silêncio<br />
Estourou meus tímpanos<br />
Assim como balão<br />
de aniversário<br />
que pipoca antes<br />
ou depois<br />
da festa.<br />
112<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
113
Analogia<br />
Vemo-nos espelhados quando choramos<br />
no reflexo do seu vestido de seminua<br />
(semideusa soa FORTE para a adoção<br />
do necessário sacrilégio)...<br />
FORTE é o termo. FRÁGIL é o ato em si, só.<br />
O Amor é um pimpolho num carrinho desgovernado<br />
é sobra de réstia na porta fechada<br />
ilusória e temporariamente aberta:<br />
– fecha-se os olhos e a porta some –<br />
Nem eu nem você temos a chave<br />
do enigma, perdida no labirinto<br />
das dobras dos lençóis da nossa cama.<br />
Vamos desfazer o Amor<br />
a fim de reencontrar a saída<br />
Refazer a cama e olhá-la de soslaio:<br />
Atraiçoarmo-nos. Negar a atração lúdica<br />
e ceder à tentação de olhar para trás<br />
e nos transformar em estátuas de sal.<br />
Evoco os momentos<br />
que vinham depois do clímax<br />
E do clímax, depois<br />
dos instintos saciados...<br />
Relembro que você se abandonava<br />
num estado de languidez provocante<br />
Naqueles minutos mágicos<br />
a vida inteira me parecia<br />
leve como brumas do mar<br />
O verdadeiro amor para mim<br />
nascia a partir da imobilidade<br />
dos nossos corpos prostrados<br />
Como a vida brotando<br />
dos restos de um banquete<br />
Súbito, a campainha do telefone<br />
Os pregões matinais dos ambulantes<br />
O sol nos assaltando pela fresta<br />
A languidez sendo expulsa<br />
O sonho se esgueirando das nossas mãos<br />
Que já não se crispavam<br />
que agora eram rijas<br />
calejadas<br />
secas...<br />
114<br />
Poeminflamado<br />
Agendas da Vida<br />
115
Quarto de Ofício XXX //116 a 121<br />
Quarto de Ofício<br />
Ângelo Bueno, Erickson Luna, França e Mauro.
Prezado<br />
dá licença<br />
pois sou<br />
de casa e<br />
posso<br />
falar<br />
Venho de terno branco<br />
chapéu,<br />
gravata vermelha<br />
amarrada na testa<br />
pedindo passagem,<br />
CÃO DO INFERNO<br />
saia da frente<br />
pois trago a morte<br />
dentro de mim.<br />
corro desesperado<br />
trocando segundos<br />
por horas<br />
anos por séculos<br />
e se chegar a tempo<br />
não morro.<br />
Transito entre<br />
a neurose urbana<br />
e os traumas do campo;<br />
buscando o bucólico<br />
volto desolado,<br />
melancólico<br />
soltando a voz na cidade<br />
imitando cachorros<br />
feios e magros<br />
Guenzo<br />
compartilhando a fome<br />
e a falta do não fazer<br />
esfrego-me na sarjeta<br />
assumindo esta condição,<br />
não por aceitação<br />
mas sim por rejeição<br />
ao condicionamento<br />
que só a ti satisfaz.<br />
Passaram por mim barcos<br />
Passaram por mim trens<br />
Passaram por mim bondes<br />
Passaram por mim ônibus<br />
Passaram por mim kombis<br />
e agora passam por mim<br />
bestas<br />
lotadas.<br />
Acredito que ando tão rasgado<br />
que não tem “bandaid” que dê jeito<br />
estou preferindo usar<br />
merthiolate que mercúrio<br />
mesmo que arda<br />
e acho bom que você<br />
tome sua cerveja<br />
antes que eu a veje XXXI<br />
pois de hoje<br />
você não passa<br />
e se passar<br />
Passará sorrindo!<br />
Gata bandida<br />
esborrachada<br />
na janela,<br />
assistindo a tudo<br />
passar<br />
gata ladra dos<br />
meus olhos,<br />
roubando-os por<br />
entre os cílios<br />
118<br />
Poeminflamado<br />
Quarto de Ofício<br />
119
quem dera ser eu,<br />
ser seu parapeito,<br />
para em meu peito<br />
se aninhar.<br />
Maracajá ladrão<br />
vai-te do meu galinheiro<br />
deixando de roubar meus sonhos<br />
se retornar aos meus pesadelos<br />
ao invés de levar<br />
minhas galinhas<br />
Vai tomar é chumbo<br />
Coaxávamos noite à dentro<br />
em busca de desejos<br />
co-achando incessantemente<br />
o que queríamos<br />
ficando intrinsecamente juntos<br />
Eu não vou financiar<br />
a sua loucura<br />
pois a minha já me sai<br />
muito cara<br />
Não me diga<br />
aquilo<br />
que não quer<br />
ouvir<br />
ouviu!<br />
É dificil enxergar<br />
o que as pessoas<br />
sentem se você<br />
se sentar de Lado<br />
Perfiro esse<br />
quartinho<br />
de cana<br />
do que aquele<br />
quarteirão<br />
todo vazio<br />
Não quero<br />
mais viver<br />
escondido<br />
quero sair do<br />
negativo<br />
desejo que me<br />
revelem<br />
espalhando-me<br />
por toda a cidade<br />
outdoor, outdoor, outbus<br />
outdoor<br />
120<br />
Poeminflamado<br />
Quarto de Ofício<br />
121
Luz do Litoral//122 a 131<br />
Luz do Litoral
Pouso solto<br />
Em sua mão aberta<br />
Estendida para a minha<br />
Por detrás de um sorriso congelado<br />
Me quereria seu escravo?<br />
Solto penas<br />
Nos seus dentes<br />
E morro antecipando-me<br />
À dor de sua mordida<br />
Amaciada pelos meus flancos<br />
Da fímbria do mar<br />
Vôo ao encontro<br />
De uma errática dúvida<br />
Ver-te com avelã arriada e presa<br />
Ou perder-te no espasmo<br />
De um ínfimo prazer?<br />
Pouso alto<br />
Em tua mão aberta<br />
Sopro areia nos teus olhos, e?<br />
Forro!<br />
Espelho d´água, Espelho meu<br />
O<br />
Mar<br />
Tem tanto<br />
Sururu<br />
E eu aqui<br />
A ver<br />
Navios<br />
124<br />
Poeminflamado<br />
Luz do Litoral<br />
125
E se chegar XXXII Devagar De mansinho e Sem avisar<br />
Te pegar pelo pé Pelo olhar Te colher como flor Ao<br />
alcance da mão Ou seja como For De bala, anzol<br />
Ou arpão<br />
E você Não tiver aonde ir....<br />
... Só pensar em fugir Sem rumo E a morte Parecer<br />
a única Saída Para a vida Então o que fazer Sem<br />
coragem Para morrer Nem matar O sentimento<br />
Maior que tudo.<br />
Sangue<br />
Lágrima<br />
Riacho<br />
Rio<br />
Oceano<br />
Lágrimas<br />
Sangue.<br />
Líquidos Sobem<br />
Sul acima<br />
126<br />
Poeminflamado<br />
Luz do Litoral<br />
127
Aumenta<br />
aos poucos<br />
O grupo<br />
que está<br />
à porta<br />
As mãos<br />
antes<br />
vigorosas<br />
No<br />
trabalho ou<br />
na prece<br />
Agora se<br />
fecham em<br />
punhos<br />
Feito flor<br />
que<br />
recrudesce<br />
Ao botão<br />
Murmurejam<br />
pragas<br />
Entre as<br />
orações<br />
E assim,<br />
retiram<br />
Um a um<br />
Os tijolos<br />
do edifício<br />
Nosso povo dá gargalhadas<br />
Nos arcos altos da noite<br />
- Do que riem?<br />
- Não é riso é um aviso debochado<br />
Ecoam nos terreiros<br />
Trovejam nas encruzilhadas<br />
Flores brancas no mar azul!<br />
De que riem? Que festejam?<br />
Não é riso nem é festa<br />
É um recado abusado<br />
Ultrapassam a noite invadem o dia<br />
Risadas, deboches, pregões matinais<br />
De que riem?<br />
O que dizem?<br />
Não é riso. É um grito de guerra!<br />
128<br />
Poeminflamado<br />
Luz do Litoral<br />
129
Estou a procurar,<br />
um pescador<br />
Curiosamente ele<br />
lembra meu avô<br />
Nem programei notícias<br />
suas pela relva orvalhada<br />
que meus dedos acariciam<br />
Cheiro de peixe que se encrusta no palato<br />
Mal sinal? Má sina?<br />
Avemaria, meudeusdocéu!<br />
Unir para a guerra<br />
Retomar as forças<br />
À força<br />
Guiar através das pedras<br />
Reatravessar o deserto<br />
Ferir o mar<br />
Tornar vermelho o chão<br />
Subir ao convés para ir aos céus<br />
Acordar os orixás<br />
De Seu Manoel<br />
Entrar pelo portal<br />
Do sol<br />
Na noite esquecida<br />
Pela lua<br />
Pular o fosso<br />
Furar o cerco<br />
Cuidado com a isca!<br />
Perder o medo de alcançar<br />
O sonho<br />
Plantar raízes<br />
Regar semente<br />
Ações de quem não foi<br />
Simbora<br />
Soprar clarins<br />
Vitória<br />
130<br />
Poeminflamado<br />
Luz do Litoral<br />
131
Poemas para Voz XXXIII //132 a 137<br />
Poemas para Voz
O meu corpo te exige XXXIV<br />
Um desejo corrosivo me aflige<br />
Com impetuosa força e tenacidade<br />
A alma, o pensamento e a personalidade<br />
E no delírio desse desejo<br />
Eu começo a divagar e vejo<br />
Teu lindo corpo despido<br />
Como se nunca o houvesses vestido<br />
No auge do meu devaneio<br />
Tenho uma mão no teu seio,<br />
Teu sexo no meu beijo<br />
A minha sede de desejo<br />
A minha semente lasciva<br />
Não concebe, não dá vida<br />
Quem me dera que tivesse<br />
Os gozos que já me desse<br />
Eis porque és tão viçosa:<br />
Com meu sêmen regas teu corpo<br />
No meu sonho te faço inteira...<br />
E passas por mim vaidosa<br />
Como se eu fosse morto?<br />
Ah, masturbação derradeira!<br />
– Lá vem ela! XXXV<br />
– Ela quem, home?<br />
– A fome!<br />
– Lá vem ela!<br />
– Ela quem, home?<br />
– A fome!<br />
A fome vem descendo a Ladeira da Misericórida<br />
Sem misericórdia nenhuma<br />
A fome come<br />
E alimenta outras carências<br />
A fome come<br />
E cada vez mais elimina as diferenças<br />
Entre seres humanos e animais<br />
E o pobre homem<br />
– De tão pobre, de tão humilde,<br />
Impertinente –<br />
Encontra um santo padre descendo a ladeira e diz:<br />
– Valei-me, meu padim, que eu já não acredito mais em Deus<br />
Nem nessa ave-maria que eu ouvi cantar.<br />
Porque não há mais em quem acreditar<br />
Do que o feijão carroz do meu dia a dia,<br />
Já que fósforos e sal eu guardo na rodia<br />
E gravetos eu faço com o santo e com o altar.<br />
Me diga mais uma vez, uma vez só, meu padim:<br />
Se o homem é a semelhança de Deus<br />
Quais dos que eu conheço que circulam entre nós<br />
Que não seja branco e muito rico e bem sorridente?<br />
Ou será, meu padim,<br />
Será que, por acaso, esse Deus tem parte com o cão?<br />
Por que será que os da minha cor<br />
Lavam a latrina dessa multidão?<br />
134<br />
Poeminflamado<br />
Poemas para Voz<br />
135
É assim mesmo que eu olho pra você XXXVI<br />
Assim como se olha pra alguém que nos roubou<br />
Não foi você não?<br />
Se não foi você, foi seu pai<br />
Se não foi seu pai, seu bisavô<br />
Olinda está muito mal XXXVII<br />
Em decúbito ventral<br />
Desde o primeiro Carnaval<br />
Tendo sido incendiada<br />
Por legiões de urbanos<br />
Tal qual era colonial<br />
E a dos greco-romanos<br />
Vem sendo violentada<br />
Todo ano em romaria<br />
“Olinda menina linda<br />
Tens a boca desdentada<br />
Os olhos enremelados<br />
Nariz podre, encatarrado”<br />
V8 vê tudo calado<br />
Varad´ouro vara os olhos<br />
De quem chega e o coração<br />
De quem o vê todo dia<br />
Olinda vai muito mal<br />
Prostrada em decúbito dorsal<br />
Em vias de novo estupro anal<br />
Pelos do bem e os do mal<br />
136<br />
Poeminflamado<br />
Poemas para Voz<br />
137
O homem que marcha sobre si:<br />
poemas Inéditos XXXVIII //138 a 175<br />
O hOMeM Que MArchA sObre si:<br />
POEMAS INédITOS
Pense... XXXIX<br />
Pense numa coisa<br />
pontuda<br />
pontiaguda<br />
parecendo<br />
ponta de lança<br />
para que você possa chutar<br />
mesmo que estiver<br />
calçado com um sapato bico de aço<br />
vai rasgar o dedão<br />
É falta,<br />
É pênalti,<br />
Vai chutar!<br />
Vai chutar...<br />
ou não?<br />
Que ideia<br />
dizer coisas<br />
por<br />
escrito<br />
É tempo de sobra<br />
para<br />
o<br />
poema<br />
fugir<br />
Nem musgo<br />
nem visgo<br />
140<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
141<br />
Nem<br />
gaiola<br />
nem ao léu
Laço de Fogo<br />
Deixa que eu pinte<br />
Em teu pedaço<br />
E dá teu braço<br />
Vem no meu passo<br />
Caminhar...<br />
Deixa que a vida<br />
Seja um laço<br />
De fogo e morte<br />
Pra quem não tem<br />
Sorte nem abraço<br />
Para dar<br />
Eis que eu estou<br />
No teu encalço<br />
Correndo descalço<br />
E tem espinhos<br />
No meu pisar<br />
Não sei por que<br />
Você se viu<br />
Entre quatro paredes<br />
Por que você caiu<br />
Nas malhas dessa rede<br />
Sem pensar<br />
A vida não<br />
É uma transa-à-toa<br />
É uma transa-boa<br />
A morte é que é má<br />
Eis que eu estou<br />
No teu encalço<br />
Correndo descalço<br />
E tem espinhos<br />
No meu pisar<br />
142<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
143
Constatação<br />
Onde foi que eu perdi<br />
A minha naturalidade?<br />
Que gesto ou palavra aprisionou<br />
A minha espontaneidade?<br />
Ou foi a mão do meu pai, fazendo nãos,<br />
Antecipando-se ao meu ato,<br />
Precipitando-se ao meu gesto...<br />
Ou será porque sou negro, quero dizer,<br />
Todos os negros são assim?<br />
Por quê este olhar desconfiado<br />
Meu, do meu pai, do meu avô<br />
De quem não sabe se tem permissão<br />
Para rir, chorar, gritar, gemer, gozar?<br />
Permissão pra reclamar, se irritar, se exceder;<br />
Permissão para mijar, permissão para ser,<br />
Para ter, para estar?<br />
Ainda chamam de arrogante<br />
O negro que não tem o olhar subserviente: Negro Besta.<br />
Eu passei a minha vida inteira pedindo desculpas:<br />
“Desculpe-me por estar aqui... por ter que me ver.”<br />
Sr. Analista: Em que momento da minha vida<br />
Me tornaram assim? A que tipo de lavagem me submeteram?<br />
Quanto tenho que pagar para ter de volta minha cidadania?<br />
Estudar pra ser Doutor?<br />
Pergunte ao Dr. Negro o que ele teve de fazer pra ser Doutor<br />
Ser jogador de Futebol?<br />
Até Romário tem os olhos baixos, ou melhor,<br />
Pergunte a ele se ele é negro.<br />
Não, não adianta dizer que a escravidão acabou.<br />
Eles ainda são senhores de todos os nossos passos<br />
Antes, da nossa vida, nosso corpo;<br />
Hoje das nossas mentes e dos nossos destinos.<br />
Elegem um negro e dizem: Você é o nosso rei.<br />
Desde que nos diga que é rico<br />
E a eles que é branco!<br />
Cabe-nos fazer alarido para despertar Zumbi<br />
O Zumba que hoje dorme em cada um de nós.<br />
Fazer uma guerra, sem tréguas, sem bombas, sem par<br />
Uma guerra na rua, no trabalho, na escola, na casa:<br />
OLHAR COM ALTIVEZ! E NUNCA NA VIDA A CABEÇA BAIXAR.<br />
144<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
145
Internetem-nos!<br />
Queremos a sensação de<br />
Não estarmos alienados<br />
Ao embalo desta rede<br />
Navegar neste navio<br />
Faz parte da nossa história<br />
Este é o tumbeiro atual<br />
Em vez de ser Rei Nagô<br />
Queremos outro carnaval e<br />
Um tão potente tambor<br />
Nós que produzimos a paz<br />
Na terra, nós os donos da boa vontade<br />
Nós que temos morrido na praia<br />
Nós que lavamos suas latrinas<br />
Que cuidamos dos seus filhos<br />
Que cozemos sua comida<br />
Bem contra a nossa vontade<br />
Sempre com a velha “Barbie”<br />
Ou a nova boneca de pano<br />
Internetem-nos!<br />
Ou será que também isto<br />
Teremos que fazê-lo<br />
Com as nossas próprias mãos?<br />
Café não é preto<br />
Açúcar não é branco<br />
Cacau não é marrom<br />
Amarelo não é ouro<br />
É a farda do gari<br />
De que cores tô falando?<br />
O natural não é pálido<br />
Nem cinza é a natureza<br />
A garrafa de aguardente<br />
Contém lágrimas de criança<br />
Será que dá para ver<br />
De que cores tô falando?<br />
Veja a cor da igualdade<br />
E da Justiça Social<br />
“A liberdade é azul”<br />
Logo o azul, tão pastel?<br />
Do exército brasileiro, da polícia militar<br />
De que cores tô falando?<br />
Da cor da Universidade<br />
E da TV colorida onde preto não é cor<br />
Nem há ausência de cores<br />
Qual a cor da cabra alada e a do burro quando foge<br />
E do maracatu atômico<br />
De que cores tô falando?<br />
Já estou ficando tiririca<br />
De que cor estou falando?<br />
146<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
147
A Chico Science<br />
A festa apenas começara<br />
detonaram o artista<br />
Os “urubus” se refestelam<br />
na sua carniça<br />
Saqueiam sua bolsa<br />
Surrupiam o seu ouro<br />
Projetam seu futuro<br />
Atestam uma causa pro seu óbito<br />
Engarrafam o seu corpo<br />
E rotulam-no “is dead”.<br />
Só que artistas não morrem.<br />
Você Caê caiu de quatro<br />
Neste novo-liberal festim<br />
Sulamericanafricado.<br />
Tenho fugido<br />
das ferramentas<br />
que manuseio com certa<br />
habilidade<br />
Desprezo a ciência<br />
e o aprendizado<br />
acadêmico<br />
Eu bebo o Futuro<br />
com ares<br />
de<br />
quem<br />
tá mijando o<br />
passado<br />
148<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
149
150<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
151
Diretas, já!<br />
O slogan perfeito<br />
que explodiu<br />
da garganta<br />
dos brasileiros<br />
por tantas vezes,<br />
implodiu no peito<br />
dos guerreiros<br />
como o grito<br />
de morte<br />
das reses.<br />
Por sorte<br />
restou a esperança<br />
de saber<br />
que decerto<br />
a agonia (que não cansa)<br />
e a dor<br />
entrarão como setas<br />
desta vez DIRETAS<br />
no peito<br />
do opressor.<br />
De resto,<br />
nos resta<br />
a certeza<br />
de que tudo passa.<br />
Até esta<br />
tristeza...<br />
até essa<br />
alegria<br />
que, de resto,<br />
lhes resta.<br />
Ai minha preta, tu me pedes XL<br />
Para falar sobre os negros<br />
No dia treze de maio e eu choro:<br />
Agora que conheço a história<br />
Desdenho do branco que a fez<br />
Ai minha preta tu me pedes<br />
Para falar sobre os negros<br />
No dia vinte de novembro e eu pasmo:<br />
Gritos ecoam na minha mente:<br />
Zumbi morreu! Zumbi morreu em vão!<br />
E ainda me pedes minha querida<br />
Para falar sobre os negros<br />
Que estudam na minha escola<br />
E eu lembro tê-los visto apenas do lado de fora<br />
Mais na Igreja do que na Escola<br />
Sem rei, sem terra, distinção ou louvor<br />
Lavando latrinas, lambendo sapatos<br />
No Brasil, os negros estão onde sempre estiveram!<br />
Sobre os negros, minha preta<br />
Eu não falo. Ou tu não vês<br />
Toda essa gente explorada<br />
E todo mundo calado?<br />
152<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
153
Canto a um bode expiatório<br />
Que os negros de qualquer cor<br />
Pobres irmãos do mundo inteiro<br />
Dêem o seu próximo passo<br />
Em seu próprio benefício<br />
Retomem à força o Leme<br />
Das mãos do escroto Capitão<br />
Relembrem o grito de guerra<br />
E a paz que traz a farta mesa<br />
Ou acreditem na inflação 0%<br />
No imposto provisório<br />
Que eutanásia é novidade<br />
“Que a favela é seu lugar.”<br />
A “Abelardo” benedito dos santos<br />
Pensem nos nossos “Beneditos”<br />
A serviço do Exército ou da torcida<br />
Explorados pela fé que não os exorciza<br />
Enquanto jantamos assistindo futebol<br />
A Internet é o tambor do milênio<br />
Mas não se iludam, Pelé não é Rei<br />
Muito menos um ministro<br />
E Mandela é apenas um griot moderno.<br />
154<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
155
Brasil – Quinhentos Anos<br />
Pindorama, Oh Pindorama<br />
Berço dos nossos avós<br />
Estrangulou tua voz<br />
Quem hoje diz que te ama<br />
Macacos nas majestosas palmeiras<br />
Araras barítonas, papagaios tenores<br />
Gritam em coro: Cuidado! Invasores!<br />
Mas Caramuru jogou pajé na fogueira<br />
Vera Cruz, Santa Cruz, Brasilis – Brasil<br />
Cruz + espada + chicote = nação<br />
Pela mão sagrada hóstia e cicuta<br />
América incendiada, Canaã do ano 2mil<br />
A serviço da Ciência e da Religião<br />
500 anos mais de resistência e luta!<br />
Nanã Burukê<br />
Nanã Burukê<br />
Me solta me solta<br />
Que eu levo<br />
As doenças<br />
E espalho<br />
As mortes<br />
Me prende me prende<br />
Que eu arraso<br />
As cidades<br />
E suas gentes<br />
Da noite pro dia<br />
Me solta Nanã<br />
Burukê me prende<br />
156<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
157
Sopro de vida insuflada<br />
por mais uma vez<br />
Viver o tempo de reviver<br />
um grande amor<br />
Uma terceira dentição inesperada<br />
Milagres que o amuleto<br />
quebra<br />
para ser realizado.<br />
Pedaço da gente<br />
que andava desgarrado<br />
gesto-ação de plantar sementes<br />
e esperar pra ver<br />
a grande árvore brotar<br />
fruto:<br />
Leite do teu peito em minha boca<br />
derramado<br />
Ao filho, leite de outros peitos<br />
Ao amante o cálice envenenado<br />
Ao amado o desencontro<br />
na estação das flores<br />
Ao pai, a cruz devolvida por Sedex<br />
E assim, o Homem se vai, mais uma vez,<br />
por entre vossas pernas<br />
negando a sua e buscando<br />
uma nova mãe<br />
Como as plantas<br />
Criemos raízes<br />
Na nossa casinha<br />
Façamos a nossa própria comida<br />
Somos artífices<br />
Não precisamos trabalhar pra ninguém<br />
Só para nós<br />
Vendendo<br />
Comprando<br />
Plantando<br />
Fazendo<br />
Limpando<br />
Lavando<br />
Só para nós<br />
Trabalhando<br />
Capoeirando<br />
Cá entre nós<br />
Estudando<br />
Buscando o<br />
Sonho dos nossos avós:<br />
O centro da terra<br />
158<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
159
Entre as pernas fechadas<br />
Um caminho se bifurca<br />
Dois caminhos se unificam<br />
E a vida continua<br />
Na encruzilhada aberta.<br />
Eita, me perdi!<br />
A linha do rio<br />
Servi-me de você<br />
sem sequer<br />
tocá-la<br />
e nem a mim.<br />
sua<br />
mente<br />
brinca/dança<br />
agora numa<br />
gaiola<br />
de<br />
espelhos<br />
dentro da<br />
minha<br />
160<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
161
Ciclo natural<br />
No instante da morte<br />
A mente antecipa o golpe<br />
Mas não prevê o seu efeito<br />
E ante a fragilidade do corpo<br />
Decerto se regozija em livrar-se dele<br />
Ei-la então solta como um pássaro<br />
Recém-liberto voa para tão longe<br />
Que se lhe é impossível<br />
Reencontrar o caminho de volta<br />
Outra língua, outros meios de<br />
Comunicação intangíveis.<br />
De nascer ave ou árvore<br />
Ou outro corpo ou veículo<br />
Preso a um rangido ininteligível<br />
Mas tão perto, como quem fala<br />
do lado de dentro; Assim,<br />
Alimenta a Terra e<br />
Dela continua tirando o<br />
Seu sustento.<br />
A<br />
PALAVRA<br />
NÃO<br />
ESPREITADA<br />
QUER SER ENGAIOLADA<br />
Nem tão sisuda<br />
Nem também<br />
Só engraçada<br />
Ela quer<br />
Ser<br />
Somente<br />
Palavra<br />
às vezes muda<br />
Semente<br />
do<br />
nada<br />
162<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
163
Suo o suor do rosto de todos os homens<br />
E sinto dor.<br />
Aspiro o desejo contido no centro do mundo<br />
E perco a vida.<br />
Choro o pranto de asselvajadas criaturas<br />
E sinto medo<br />
Espero o tempo parar de bater na parede<br />
E me desespero<br />
Quero que a vida não ruja pra mim<br />
E me deleito<br />
Trabalho mais fundo mais perto do fim<br />
E me desgosto<br />
Do jeito que vim poderei um dia partir<br />
E me consolo.<br />
Sadomasoquismo<br />
Esse Amor<br />
Escaramuça<br />
Atropela<br />
Engalfinha<br />
Engambela<br />
Atrofia<br />
Esmiúça<br />
Esmerila<br />
Insinua a dor...<br />
Essa dor<br />
Insinua<br />
Esmerila<br />
Esmiuça<br />
Atrofia<br />
Engambela<br />
Engalfinha<br />
Atropela<br />
Escaramuça o amor...<br />
164<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
165
Sonhei que estávamos passeando<br />
no jardim da tua casa<br />
Ondas quebravam na margem<br />
do lago sem cisnes<br />
Edgard repousava na<br />
cadeira<br />
O que sempre quiseram<br />
evitar, explodiu-se<br />
em quedas abissais<br />
E a cúmplice natureza<br />
derramou ao chão<br />
mil flores amarelas<br />
entorpecentes<br />
adstringentes<br />
afrodisíacas<br />
Dançamos<br />
Nadamos<br />
Por quê a pressa? Pra quê tanta pressa?<br />
Ei vem cá me dá teu abraço<br />
E toma um beijo meu<br />
Eu te afago tu me afagas<br />
E assim abalamos a fé<br />
nos deuses<br />
E isto é mover montanhas<br />
Fazer acordar um deus<br />
Acordemo-lo e eu lhe perguntarei:<br />
Ei Senhor onde dormias tu<br />
Que não vedes a quantas vai este<br />
mundo<br />
Ora, ora, ora todo mundo aqui<br />
está fadado a ficar engravatado<br />
dentro de um ônibus lotado<br />
- Às 7hs da manhã<br />
166<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
167
Preso pelo meio<br />
Exijo os meus direitos<br />
Peço deferimento<br />
Bato o pé no juiz<br />
Telefono pra esquerda<br />
E sou solto pela metade<br />
Solto pela metade<br />
Voo mas não muito alto<br />
Vou mas não muito longe<br />
Sou mas não sou inteiro<br />
Falo mas nem eu escuto:<br />
Continuo preso pelo meio<br />
A comida que fiz<br />
Pra mim com tanto amor<br />
Agora a mesa me sabe<br />
Sem gosto<br />
E quanto mais insípida<br />
Mais como devagar<br />
Devagar, devagar.<br />
É como se buscasse<br />
No fundo poço da obscura<br />
Memória algo que perdi<br />
E não identifico<br />
Mastigo, mastigo,<br />
E mastigar me dá um grande<br />
Prazer.<br />
É como um prenúncio<br />
O terceiro toque, um resgate<br />
O som de roldanas girando<br />
A antevisão de cortinas se abrindo<br />
Um piscar de luzes<br />
Alta baixa baixa baixa<br />
A cena vai começar.<br />
168<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
169
Danço a dança que<br />
a Morte me<br />
ensina<br />
para que<br />
não me<br />
machuque<br />
a dureza<br />
da vida!<br />
170<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
171
172<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
173
Em caso de dúvidas!<br />
Perguntar<br />
a uma<br />
criança:<br />
Você sabe<br />
onde<br />
mora<br />
França?<br />
174<br />
Poeminflamado<br />
O homem que marcha sobre si: poemas inéditos<br />
175
Posfácio//176 a 177<br />
PARA ALÉM DO POEMINFLAMADO<br />
Falar de França é difícil, e tem que ser fácil. Difícil porque até com<br />
este livro é impossível dizer tudo – mesmo trazendo a compilação mais<br />
completa possível de seus poemas, além de depoimentos e outras informações<br />
sobre sua obra. Imagine então fazer isso em um posfácio.<br />
E tem que ser fácil porque para dizer dele é preciso falar e ouvir e<br />
ver – aproximar a escrita da voz e deixar rolar, alimentar o que a memória<br />
guarda com admiração e afeto, e observar o mundo a partir de<br />
seu ponto de vista – para então, compartilhar.<br />
Falar de França é antes de mais nada falar de um multiartista, de<br />
um guerreiro terno e autodidata cujo trabalho teve repercussão em<br />
diferentes meios e muitas vidas.<br />
É falar de sua poesia enquanto plena e fisicamente viva. De sua maneira<br />
de recitar, da originalidade de seu estilo de performance poética<br />
e da maneira com que enxergava e traduzia suas crenças em versos,<br />
divertindo(-se) e emancipando.<br />
E da ressurgência da poesia apresentada, nas últimas décadas. É falar da<br />
força da voz e do corpo no atual panorama cultural não só de Recife, mas de<br />
São Paulo, do Rio, de Salvador – e de Buenos Aires, de Nova Iorque, de Paris.<br />
Falar de uma potência ancestral desreprimida a partir do século passado,<br />
a Corpoesia praticada e presente em todas as sociedades humanas,<br />
em diferentes funções e materializações. Que por conta das novas tecnologias,<br />
e do esforço e prazer de muita gente, evoluiu a partir dos anos 50,<br />
utilizando suportes ancestrais como o blues, o repente, os sermões, as<br />
leituras. Com Allen Ginsberg, Last Poets, Chacal e a Nuvem Cigana; até a<br />
Slam Poetry, e a cena atual de Recife, com vários grupos de recitadores e<br />
artistas como Miró da Muribeca, Lara, Cida Pedrosa, Valmir Jordão, Fernando<br />
Chile, Malungo e tantos outros, parceiros de fé no ofício.<br />
Falar de França é falar da reconformação que a crença na performance<br />
poética faz com o sistema literário, com suas redes que agem<br />
de maneira alternativa e interligada à circulação mais convencional de<br />
livros. Aproveitando os grandes eventos para se lançar, por exemplo,<br />
mas tendo as suas próprias estruturas, espaços para recitação e circulação<br />
de poesia como foi o seu Eu, Poeta Errante.<br />
E da multidão de recitais que se multiplicam por todos os lugares.<br />
Dos Open Mics das maiores cidades americanas, aos torneios de poesia<br />
europeus. Do CEP 20000 ao Cooperifa e ao Quartas Literárias.<br />
É falar da força de suas publicações, artesanato editorial independente,<br />
nascidas do encontro com Sil, artista gráfica talentosíssima,<br />
amor que gerou a Mão-de-Veludo.<br />
E das várias editoras independentes na guerrilha cultural do dia a<br />
dia, filhas da caligrafia e do manuscrito, do xérox e depois afilhadas do<br />
computador. Nascidas de milhares de ações apenas entre amigos, de<br />
tantos ambientes culturais espalhados pelo Ocidente. Criando e publicando<br />
através do básico obras rudimentares e primorosas.<br />
E é ainda falar do TAO – o Teatro dos Amadores de Olinda, grupo<br />
por ele fundado, e falar da montagem do A Cor da Exclusão. Do<br />
dramaturgo formado em Cênicas na UFPE, com grau colado após seu<br />
falecimento, em homenagem e reconhecimento à conclusão do aprendizado<br />
na Universidade e nos palcos de rua.<br />
Mas falar de França, além do multiartista, é principalmente dizer<br />
da sua negritude combativa e impassível. Do mundo de hoje,<br />
onde ainda se vê que a escravidão não acabou, que seus efeitos<br />
continuam – e da luta cada vez maior e mais ativa por real igualdade<br />
espalhada pelo Planeta. É falar por isso da Capoeira, do Candomblé,<br />
dos Afoxés. De seus anos de estudo e luta, de sua pesquisa<br />
sobre Solano Trindade.<br />
É falar de sua ética de desapego tranquilo e consciente perante a<br />
vida. E de tanta gente que de tantas maneiras diferentes vive sem seguir<br />
os padrões que a sociedade de consumo procura lhes obrigar.<br />
E falar, finalmente, de sua presença viva na memória de tantos admiradores.<br />
Gente que se entusiasmou por poesia e por viver poesia<br />
corporalmente através dele, e que continua seu legado de tantas formas,<br />
criando e cultivando as artes que ele escolheu e misturou.<br />
Centelha de luz plantada em peitos e cabeças, brotando e gerando<br />
a partir das sementes que o mestre continua oferecendo...<br />
...e que agora germina esse livro, o site e as apresentações de<br />
Poeminflamado.<br />
Na esperança, na fé e na certeza que sua multicolorida ArteVida<br />
continua. Continua falando, ensinando, divertindo, conscientizando. E<br />
continuará, multiplicada em mais e mais mentes e corações.<br />
Axé, França!<br />
André Telles do Rosário, amigo e admirador.<br />
Mestre em Letras - Teoria Literária, pela universidade Federal de Pernambuco<br />
176<br />
Poeminflamado<br />
Posfácio<br />
177
Depoimentos//178 a 187<br />
A HERANÇA DO POETA FRANÇA<br />
Um belo dia ouvi um velho dizer: – Quem sai de sua cidade cedo,<br />
jovem, pequeno, menino, quem não vive nela a turbulência da adolescência,<br />
nunca poderá captar a alma de sua cidade como um verdadeiro<br />
cidadão. Se voltar para sua cidade, voltará já uma estátua. Seu destino:<br />
ficar embutido numa praça qualquer, a ver mil sóis nascerem e se porem.<br />
Eternamente presente, jamais um participante.<br />
Levantei a bandeira da indignação e perguntei: – Mas meu senhor,<br />
então me diga uma coisa: Como é que se alimenta uma árvore? Uma<br />
planta qualquer? Não é pelas suas raízes? Qualquer ser tem veias! Vínculos<br />
que lhe mantêm vivos!<br />
– Pense! Disse ele, seus olhos arregalados. – Pense numa árvore que<br />
cresce com o nariz para cima. Ela só olha para o sol que a esquenta e a<br />
chuva que a refresca e se esquece completamente de alimentar suas raízes.<br />
Enquanto isso suas raízes vão enfraquecendo, vão secando, e, um belo dia,<br />
elas morrerão. Por mais impressionante que seja essa árvore, ela vai cair!<br />
Neste ponto já estava bastante assustada, mas o maldito continuou:<br />
– E tem mais!, disse ele, subitamente curvando seu corpo para a<br />
frente, e se aproximando da minha pessoa com uma lentidão assustadora.<br />
– Ela vai cair sem nem saber se era mangueira ou pinheiro!<br />
Na verdade, este velho não existe, mas ele me ensinou uma coisa<br />
muito importante: se eu não quisesse voltar uma estátua, precisava<br />
procurar minhas raízes. Saber se eu dava frutos, ou somente sombra. E<br />
teria que encarar certas coisas.<br />
Primeiro: França se foi. Embora às vezes ainda pareça uma coisa<br />
fictícia. Parece um Elvis. Até agora há quem negue que foi embora.<br />
Percorro as mesmas ruas que percorri com ele, desta vez sozinha. Às<br />
vezes prendia o ar ao dobrar uma esquina, numa mistura de medo e<br />
vontade de reencontrá-lo. Medo, porque o susto seria tão grande que<br />
eu mesma bateria as botas. Vontade porque a saudade simplesmente<br />
é imensa. Mas desde 2007 nunca mais aconteceu e nunca mais acontecerá.<br />
A coisa é, portanto, um fato.<br />
Ao andar com ele pelas ruas de Olinda sentia um orgulho imenso<br />
e só agora sei de quê. Em retrospectiva, parece que só o via em 2D.<br />
Paradoxalmente, agora que só restam seus escritos, sua trilha de pensamento<br />
num pedaço de papel, sua voz num DVD - só agora que seu<br />
ser não é mais, ganhou outra dimensão.<br />
Porém, isto não é nenhum lamento, e isto me leva ao segundo ponto:<br />
ele se foi, e deixou um vácuo absoluto. Mas este vácuo não é um<br />
mero vazio. É um espaço que pode ser preenchido novamente. Vivia<br />
educando, plantando sementes. E talvez era necessário que ele fosse,<br />
que ele desse lugar a novos seres, a novas árvores, se quiser.<br />
Sua herança é essa. É como ele. Não se mede em dinheiro, nunca<br />
estará sujeita às malícias da política e às flutuações do mercado. Não<br />
se pesa em ouro. E, generoso como era, não deixou isso tudo só para<br />
seus filhos. Compartiu com seus amigos, e, de fato, todos que cruzaram<br />
seu caminho.<br />
Um grande amigo sempre diz: compartir es vivir. França continuará<br />
vivendo através do que compartiu conosco. Através das suas histórias,<br />
das nossas memórias, e através de sua obra. Chegará a conviver com<br />
nossos filhos e os filhos deles. Extrapolou as fronteiras da matéria. Expandiu<br />
as fronteiras do Brasil. E o melhor de tudo isso, é que uma semente<br />
não precisa cair no mesmo solo para gerar outro ser. Basta que<br />
caia em solo fértil.<br />
HISTÓRIA DA FRANCIDADE<br />
QUANTO MAIS SEI,<br />
MAIS SINTO<br />
ORGULHO<br />
Carolina Maciel, de França.<br />
[Fã, filha, tradutora e educadora]<br />
178<br />
Poeminflamado<br />
Posfácio<br />
179
MEMÓRIA DO TEATRO DOS AMADORES<br />
DE OLINDA - TAO<br />
Em um lugar de Pernambuco, não há muito tempo, vivia um homem<br />
de sorriso largo, coração grande, palavra poderosa, teatro puro e<br />
estremecedora poesia.<br />
Quem conheceu França leva sua semente, quem o viu atuar sua magia.<br />
Feiticeiro de palavras e pessoas, duende da poesia, cavalheiro do teatro.<br />
Com a elegância substancial de seus gestos, como uma ginga rasteira,<br />
desenhava espirais alcançando a união do círculo: vida-morte,<br />
Horácio-Xangô, sertão-mar.<br />
Autodidata de sua sabedoria (embora graduado em Artes Cênicas<br />
pela Universidade Federal de Pernambuco), educador com um magnetismo<br />
natural, estandarte da tradição oral, herdeiro dos griots africanos<br />
com escritura lapidada: herança e aquisição.<br />
Expandiu a poesia como um big bang em Olinda com seus recitais<br />
semanais “Eu, Poeta Errante” e suas apresentações teatrais.<br />
Encaminhou-nos a fundar o TAO - Teatro dos Amadores de Olinda,<br />
para fazer do teatro poesia; despertar a consciência do oprimido<br />
continuando a prática de Boal. Os integrantes eram poetas, estudantes<br />
de teatro, taxistas, advogados, domésticas, comissários de bordo e<br />
até atores. O processo criado nos ensaios, ao desentorpecer o corpo<br />
alienado pelas tarefas quotidianas, dava-nos armas para levar ao povo<br />
a força do teatro e da poesia. Emissores e receptores se misturavam,<br />
qualquer pessoa pode ser um ator, compartilhar o poder da palavra,<br />
levar o teatro às ruas para que todos o sentissem como seu.<br />
Representar Solano Trindade ou A Cor da Exclusão, na praça do<br />
morro, nas comunidades, nas escolas, nas universidades e inclusive<br />
nos teatros, transportar o palco fazia-se leve ao unir a festa e a provocação<br />
do pensar.<br />
Talvez este seja seu maior objetivo e legado, saber que dentro de<br />
nós existe um poeta, um sonhador, um fazedor, um pescador de palavras,<br />
um rei em seu mundo, um sustentador de dignidade, um mestre<br />
em ensinar, um homem com barba, um ser especial.<br />
Juan Ramón Martinez e Laine Amaral<br />
são integrantes do TAO.<br />
180<br />
Poeminflamado<br />
Depoimentos<br />
181
MEMÓRIA MÃO-DE-VELUDO<br />
Escrita por Sil, em novembro de 2010*<br />
Acho que era março, 1998, subi o morro da Barreira, Olinda, onde<br />
França morava, junto com Wagner (Porto). Tínhamos combinado de<br />
conversar sobre um livro que ele queria fazer, todo manuscrito. Wagner<br />
fizera o contato, eu fazia livros, encadernava.<br />
Aprendi a encadernar com um colega de faculdade, o Eduardo (Rosa)<br />
e viciei; na época sempre carregava cadernos de viagem feitos por mim<br />
pra onde quer que eu fosse, eles faziam sucesso entre meus amigos,<br />
muita gente queria aprender a fazer. Desenvolvi um jeito particular de<br />
encadernar, sem usar quase nenhum material específico de encadernação<br />
(meus melhores “amigos” nessa arte eram um estilete e uma<br />
agulha) e, reaproveitando todo o material que tivesse a disposição,<br />
fazia o máximo com o mínimo. Eu usava todo tipo de lixo que pudesse<br />
ser incorporado aos meus cadernos: embalagens, roupas velhas, papéis,<br />
cartas de baralho, anúncios, cartazes etc.<br />
França me mostrou os poemas, eu mostrei meus cadernos. Nascia<br />
então uma parceria amorosa, um encontro cheio de poesia e afeto que<br />
produziria cartões, agendas, cadernos e livros únicos, feitos de quase<br />
nada e repletos de quase tudo o que ia em nossas veias e corações.<br />
Comecei o projeto gráfico do livro A COR DA EXCLUSÃO a partir desse<br />
primeiro encontro: seleção dos poemas, ilustrações, tipo de papel,<br />
encadernação.<br />
Mas a urgência da vida exigia pagamento<br />
de contas, compras de mantimentos,<br />
eu não tinha onde morar<br />
e França me ofereceu sua casa, um<br />
cômodo com cozinha e banheiro. Tí-<br />
nhamos que sustentá-lo e sustentar-nos.<br />
Na época, França fazia recitais em bares<br />
de Olinda. Ele foi convidado a se apresentar<br />
no teatro da FAFIRE (em maio<br />
de 1998), como parte de um Seminário<br />
com o tema “O imaginário da Exclusão”<br />
e me propôs fazer alguns cartões com<br />
poemas para levar lá e vender. Procurei<br />
pela casa materiais que pudessem ser<br />
usados. Papel pardo de embrulho, palha<br />
1<br />
da costa, um papel cartão preto, restos de colares, flores secas, retalhos,<br />
pedras, e fiz uns pequenos quadros com molduras, onde estavam<br />
inscritos os poemas (1).<br />
França adorou, achou que aquilo era um meio de divulgar os textos<br />
por escrito, uma forma de arranjar dinheiro, algo que ficava depois<br />
que os poemas eram ditos, uma lembrança, um eco. Precisava de uma<br />
marca, uma identidade, um nome: MÃO-DE-VELUDO, o que é? O que<br />
significa? Um tapa sem mão, um desafio com luva de pelica, uma carícia<br />
que é uma porrada, um afago nem um pouco manso. Esperteza,<br />
clareza, delicadeza... Tudo junto e ambíguo.<br />
Realmente foi um sucesso, como ele previra:<br />
num instante se esgotavam os cartões e<br />
as pessoas procuravam mais, queriam, desejavam.<br />
O segundo produto que fiz foram oito<br />
livrinhos a partir de umas pastas de elástico<br />
que França tinha: amarela, vermelha, verde<br />
e preta. Cortei o miolo retangular, dobrei ao<br />
meio, e tinha ali as oito capas; no miolo usei<br />
um papel manteiga velho que era sobra de<br />
um escritório de arquitetura e do qual eu<br />
tinha um monte de folhas (o mesmo de A COR<br />
DA EXCLUSÃO). Tínhamos então oito poemas<br />
pequenos, um desenho de uma mandala em<br />
aquarela dentro e na capa outra mandala<br />
vazada. Misturei as cores das pastas (o recorte<br />
de uma cor eu incorporava nas outras<br />
de maneira que todas as oito capas tivessem<br />
as quatro cores africanas)(2). Com as sobras<br />
das capas fiz oito molduras para quadrinhos<br />
com poemas grandes, vendemos tudo.<br />
A partir daí, a coisa começou a ficar mais<br />
séria e mais profissional. Comprei saquinhos<br />
plásticos para embalar os cartões e cartolina<br />
para fazê-los; mandei fazer um carimbo da<br />
MÃO-DE-VELUDO com o símbolo da pena<br />
(que é escrita e leveza...); os envelopes muitas<br />
vezes eram de folhas de revista, embalagens<br />
de café, ou comprados. Os poemas<br />
eram escritos sempre de maneira diferente e<br />
ilustrados também de forma diferente.<br />
182<br />
Poeminflamado<br />
Depoimentos<br />
183<br />
2
3<br />
Eu fazia séries, que continham uma linguagem comum,<br />
uma ilustrada com recortes de revista, outra<br />
com pingentes, outra com manchas coloridas...(3)<br />
O projeto de A COR DA EXCLUSÃO ganhou corpo:<br />
Isa do Amparo doou uns cartazes de uma expo que<br />
ela tinha feito na década de 80 para as ilustrações;<br />
um tecido bonito que França tinha cobriria a capa<br />
que seria de papelão de caixa. E assim quase não<br />
gastaríamos em material. O lançamento foi no dia<br />
20 de novembro (1998) no Grupo de Capoeira Angola<br />
Mãe (de mestre Sapo), com uma apresentação<br />
de teatro e um sorteio do livro número 1, que foi<br />
vencido por Eunápio, poeta que estava festejando<br />
seu aniversário justamente naquele dia(4). Na data<br />
tí-nhamos três livros somente e todos foram vendidos.<br />
Depois, começamos a produzi-los por encomenda,<br />
ao todo imagino que tenham sido feito uns<br />
cem livros.<br />
A violência na Barreira estava aumentando, e com<br />
o crescimento da MÃO-DE-VELUDO resolvemos nos<br />
mudar (para perto do farol de Olinda, no Amaro<br />
Branco) e criar um ateliê, onde várias pessoas trabalharam,<br />
aprenderam a arte de encadernar e trocaram<br />
experiências. A casa estava sempre cheia, tínhamos<br />
muitos amigos/colaboradores: Chloë, Fernanda,<br />
Bianca, Ana, Felipe, Mariano, o pessoal da capoeira...<br />
Fomos nos profissionalizando, aumentando a<br />
produção de cartões, quadros e cadernos.<br />
Fizemos uma seleção de poemas médios e pequenos<br />
para serem usados em cartões, que tinham<br />
um tamanho padrão de 10cm X 15cm aproximadamente,<br />
e que sempre se repetiam; alguns tinham<br />
muita saída e eram mais produzidos que outros.<br />
Tinha também uma seleção de poemas grandes para<br />
cartões grandes ou quadros, mas que eram menos<br />
vendáveis. Fizemos também um expositor, com um<br />
antigo cobertor pintado e pregadores (existem três<br />
deles). Os poemas eram vendidos em recitais, feiras,<br />
praças, eventos musicais, festas, etc.<br />
Havia também em Olinda uma galeria (Frans Post)<br />
4<br />
onde se faziam recitais. Os donos gostavam muito<br />
do meu trabalho, convidaram-nos para expor os poemas,<br />
fiz uns quadros pequenos usando coisas naturais<br />
(galhos, conchas, flores secas, etc.) e caixas de<br />
papelão. Recebíamos também encomendas de li-<br />
vros únicos, feitos à mão.<br />
Tudo era muito intenso, existia um movimento na<br />
cidade, vários grupos criando, tinha os Molusco-lama,<br />
o Boizinho Alinhado, os Bagulhadores do Mió,<br />
a Capoeira Angola Mãe e tinha a MÃO-DE-VELUDO.<br />
Em novembro de 1999, um ano depois de lançar A<br />
COR DA EXCLUSÃO, descobri que estava grávida de<br />
Pedra (de dois meses...), que é, sem dúvida, o maior<br />
fruto desta parceria. A gravidez foi um momento especial<br />
e criativo para mim, de autodescoberta e de<br />
crescimento, uma nova etapa da vida. A AGENDA DA VIDA foi desenvolvida<br />
e criada junto com Pedra, é uma homenagem e um presente<br />
a esse ser que estava por vir, feita por causa dele e para ele e por<br />
isso tem esse nome. Eram as nossas vidas se misturando, expondo-se<br />
e dando frutos... Abrindo espaço para que a vida dos outros fizesse<br />
parte também da MÃO-DE-VELUDO, já que a agenda é completada por<br />
seu dono e cada vida é única. As agendas também marcam o início do<br />
uso do xérox pela editora. A primeira agenda (de 2000) foi produzida<br />
com a ajuda de Rosa (Melo) que arrumou um lugar pra fazer as cópias<br />
xérox; tentei colocar nela o maior número de poemas possível, já<br />
que o destino da AGENDA DA VIDA naquele momento era incerto... Ao<br />
todo foram dez edições (quem diria!) de 2000 a 2009.<br />
As duas primeiras foram feitas todas com xérox, as capas eram de<br />
papel de seda e colagens sobre cartão. Todas as capas eram exclusivas,<br />
cada agenda era única. A encadernação era com espiral. Devido à falta<br />
de recursos e a uma independência desejada das copiadoras, a agenda<br />
2002 foi toda gerada em casa: bolamos os carimbos para os dias e<br />
meses, fizemos os poemas e ilustrações em telas de silk e a encadernação<br />
passou a ser com três furos e ganchos de cortina, e a capa era<br />
de papelão grosso forrado com tecido. As agendas seguintes são uma<br />
mistura do que deu certo nessas experiências anteriores: o texto e as<br />
ilustrações são de xérox, o miolo de carimbo, a capa de papelão com<br />
tecido. (5)<br />
Nessa época também editei um livro meu de poemas antigos, o<br />
IGUAL. Eram pequenos poemas, quase haikais, que eu escrevi na déca-<br />
184<br />
Poeminflamado<br />
Depoimentos<br />
185<br />
5
6<br />
da de 80 e repaginei com desenhos para fazer o<br />
livro todo xerocado, do tamanho da palma da mão.<br />
Fazíamos exposições no ateliê, com recitais e<br />
shows, os EXPOEMAS. Também em 2000 França<br />
criou o movimento de recitais EU, POETA ERRANTE,<br />
que teve início na casa das Anas (Escurra e Schuartz),<br />
ali na rua de Pai Edu em Olinda: cada 5ª feira<br />
numa casa diferente da cidade, à meia-noite em<br />
ponto, começava o recital; fiz o logo e os cartazes,<br />
com o pé de Pedra impresso um em cada direção<br />
para marcar a errância do poeta. Acho que as pegadas do símbolo<br />
têm a ver com o começar a andar com os próprios pés, como sempre<br />
acontecia nesses recitais onde tantos poetas começaram a dizer seus<br />
primeiros poemas e editar seu primeiro livro, onde tantas pessoas se<br />
acharam, descobriram-se.(6)<br />
Nós também atingíamos a maturidade, e publicávamos o CAFUNÉ<br />
(Agosto de 2003). Em termos editoriais e de projeto gráfico considero<br />
o CAFUNÉ o nosso produto mais bem acabado, onde tudo o que<br />
aprendemos nessa caminhada se manifesta. É um livro que, a meu<br />
ver, realiza todos os preceitos da MÃO-DE-VELUDO, atinge todos os<br />
nossos objetivos. É artesanal: impresso em xérox, papel reciclado,<br />
capas de papelão ondulado sempre diferentes, encadernado à mão;<br />
é barato; é produzido em quantidade; é alternativo ao grande mercado;<br />
nós temos controle dos meios de produção (não temos máquinas<br />
de xérox, mas temos amigos que têm).<br />
A ideia da MÃO-DE-VELUDO é: você quer? Então faça você mesmo!<br />
Nós fizemos, e inspiramos muitos a fazer também!<br />
Provamos que sonhos podem se realizar, que ideais podem ter forma<br />
concreta, e que podemos viver, existir a partir daquilo que acreditamos.<br />
Nós vivíamos MÃO-DE-VELUDO, e desafiávamos o estabelecido<br />
no nosso dia a dia: SIM, NÓS PODEMOS! E muitos frutos foram<br />
gerados a partir daí.<br />
Sil é Silvana Beraldo Massera.<br />
Artista plástica.<br />
186<br />
Poeminflamado<br />
Depoimentos<br />
187
Notas dos poemas//188 a 204<br />
I Feito à mão, o perfumado e multicolorido livro A Cor da Exclusão foi<br />
lançado na cidade de Olinda, Pernambuco, a 20 de novembro de 1998, em<br />
pleno Dia Nacional da Consciência Negra.<br />
Com 23 poemas de França e arte de Sil, o produto da Mão-de-Veludo<br />
Edições Artesanais circulou pelo Brasil e pelo mundo através de aproximadamente<br />
100 exemplares que, pela característica de terem sido confeccionados<br />
um a um, através de métodos tradicionais de produção (manuscritos,<br />
encadernados artesanalmente, ilustrados com colagens, raízes, ervas<br />
e papéis reciclados) sempre diferiam entre si.<br />
O diálogo da poesia de França com a arte de Sil conferia movimento<br />
aos poemas, uma vez que a artista gráfica costumava interferir na disposição<br />
visual dos versos de acordo com suas ilustrações. Aqui – assim como<br />
no capítulo subsequente, referente ao livro Cafuné – tivemos o cuidado<br />
de manter esse conceito visual do movimento, porém adaptando-o à<br />
nova realidade editorial e respeitando as formas originais dos poemas,<br />
encontradas nos manuscritos do poeta. A não padronização da utilização<br />
de maiúsculas no início dos versos remete também a essa característica<br />
do movimento e da oralização da escrita, que achamos por bem manter.<br />
Vale ressaltar que o livro tem sua origem em uma performance homônima<br />
estreada pelo autor no dia 20 de novembro de 1996. Ela foi apresentada<br />
semanalmente no sótão do Bar Almanaque, situado no Sítio Histórico de Olinda<br />
(mais precisamente no Varadouro), até o ano seguinte. A partir de imagens<br />
dessas apresentações – feitas pelo videasta Jeferson Luiz e inseridas no DVD<br />
anexo a esta edição – pode-se constatar que o autor operou cuidadosas seleção<br />
e revisão dos poemas utilizados nas performances (até então circulados<br />
apenas oralmente) para, então, adaptá-los e incluí-los à publicação escrita.<br />
No mais, o livro em comento traz como prólogo poemas de três intercessores<br />
de França – o inglês Kemble Williams, pai de seu amigo Peter<br />
Williams; o amigo e parceiro em literatura e performances Angelo Bueno;<br />
e Erickson Luna, grande referência da poesia urbana de Recife e símbolo<br />
do que se costumou convencionar/rotular na cidade como poesia marginal.<br />
A poesia de Luna também se encontra em seu livro Do moço e do<br />
bêbado, editado em Recife no ano de 2004.<br />
Portanto, a presença dos três poemas em comento nos revela uma<br />
face importante da ideologia do trabalho de França: a inserção de outras<br />
vozes em sua obra, enriquecendo e materializando a teia intertextual de<br />
comunicação entre os atores do sistema literário em que o poeta se inclui.<br />
Assim, a interpretação da função específica de cada um desses poemas<br />
n´A Cor da Exclusão faz-se de extrema importância para a compreensão<br />
IN Consumido<br />
Preservam poesia<br />
em geladeiras-bibliotecas.<br />
servem-na seca<br />
nas escolas<br />
ano após ano<br />
Ninguém poderia consumi-la toda,<br />
nem se gastasse a vida inteira;<br />
estamos ainda digerindo colheitas<br />
do século dezesseis.<br />
Quem me dera que comêssemos poesia<br />
como tortas,<br />
Lambêssemos até o último naco<br />
deixando as páginas em branco.<br />
Assim eles implorariam<br />
que poetas enchessem os livros,<br />
poetas seriam populares,<br />
como cozinheiros,<br />
e quando se sentassem<br />
famintos numa biblioteca<br />
somente poesia feita na hora<br />
seria servida<br />
(Kemble Williams / Tradução: Peter Williams)<br />
do todo do livro. Seguem os três poemas citados.<br />
188<br />
Poeminflamado<br />
Notas<br />
189<br />
Brechava<br />
A fresta<br />
A festa que havia<br />
todos sorriam<br />
todos bailavam<br />
todos dançavam.<br />
Eu? Ora,<br />
Eu brechava<br />
(Angelo Bueno)
Agora<br />
A poesia atropelou meu verso<br />
saiu da linha<br />
e traça a vida por um triz (Erickson Luna)<br />
E, em consonância com essa rede intertextual e polifônica tecida pelo<br />
autor, merece destaque a presença do poema de autoria de Eduardo Alves<br />
da Costa (“No Caminho, com Maiakóvski”) na introdução da performance<br />
de 1996. Abaixo segue a transcrição – feita a partir das imagens do videasta<br />
Jeferson Luiz – de trecho do poema de Costa utilizado como uma<br />
apresentação à performance d´A Cor da Exclusão:<br />
“[...] Na primeira noite / eles se aproximam / e colhem uma flor<br />
de nosso jardim/ e não dizemos nada. / Na segunda noite, já não<br />
se escondem; / Pisam nas flores, matam nosso cão. / e não dizemos<br />
nada. / Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho<br />
em nossa casa, / rouba-nos a lua e,/ conhecendo o nosso medo, /<br />
arranca-nos a voz da garganta. / e por que não dissemos nada, / já<br />
não podemos dizer nada. [...]” (sic)<br />
II Este poema foi também publicado em seu segundo livro, Cafuné, de<br />
2003. Ver página 53.<br />
III Este poema também circulou através da Revista Palmares (Revista<br />
Palmares. Cultura Afro-brasileira. Ano I, nº I – agosto, 2005. Fundação Cultural<br />
Palmares, p.51)<br />
IV Estão inclusas no DVD que acompanha este livro imagens cedidas<br />
pela jornalista Bárbara Cristina. Elas fazem parte de entrevista do poeta<br />
para o filme Onde Estará a Norma? , sobre o poeta Miró. Nessa ocasião,<br />
França recita o poema conhecido como “Robocop” com algumas alterações<br />
em relação à versão escrita. Estas se resumem aos 6º, 11º e 20º<br />
versos do poema, que recebe como adendo dois novos versos ao final<br />
(25º e 26º). Os versos recriados ao sabor do improviso e da oralidade<br />
seguem, respectivamente: “Abrindo, assim, a janela”; “perante nossos<br />
filhos e nossos irmãos”; “que estoura”; “Cotidianamente / e você finge<br />
que não vê”.<br />
V Conhecido como “Isadora”, este poema é uma marca registrada do<br />
poeta e de seus recitais. Ultrapassou as fronteiras das linguagens e, num<br />
movimento bastante espontâneo, virou música: um afoxé. E, por isso,<br />
além de recitada, foi bastante cantada. Em especial, quando havia tambores<br />
ou qualquer instrumento musical no recital, tornava-se um dos pontos<br />
altos do Eu, Poeta Errante.<br />
VI No DVD anexo a esta publicação há ainda imagens de França, feitas<br />
pelo videasta Jeferson Luiz, recitando versão deste poema. Trata-se da<br />
primeira performance d´A Cor da Exclusão, ocorrida em Olinda, a 20 de<br />
novembro de 1996, Dia Nacional da Consciência Negra. A Cor da Exclusão<br />
foi obra de arte que o poeta desdobrou e ressignificou em diversas linguagens:<br />
performance, livro e peça teatral. Vale ressaltar que, em análise<br />
comparativa com a sua posterior versão escrita, a versão falada de 1996<br />
apresenta inversões de estrofes.<br />
VII Os caminhos traçados por este poema nos indicam as alterações que<br />
a possibilidade de reedição em outras publicações e o tom fluido (orquestrado<br />
pelo improviso e pelos contextos da realização oral) lhe conferiram.<br />
Assim, em 2002, o referido poema foi reeditado no Marginal recife:<br />
coletânea poética 1, onde ainda estavam inclusos outros poetas-referência<br />
no universo da poesia oral urbana da Grande Recife, tais como Erickson<br />
Luna, Cida Pedrosa, Francisco Espinhara e Miró. Após análise comparativa<br />
entre as versões (A Cor da Exclusão e Marginal Recife) do poema em questão,<br />
percebe-se que a versão da coletânea traz algumas modificações,<br />
principalmente localizadas na última estrofe, conforme segue:<br />
“(...)Teatral. Teatro ateu e platéia plebéia / Povo politicamente<br />
falando: Povo! / Aleluia! Aleluia! barrabás! bArrAbÁs!!! / PMDb-<br />
-PeFeLÊ-PTT, prá que ter? / enquanto o voto obrigatório / detona o<br />
país há quem pinte / Pontes.”<br />
(Marginal Recife - Coletânea Poética I, 2002, p. 31)<br />
Já em material audiovisual capturado pelo videasta Fernando Peres<br />
(julho de 2007 / Festival de Inverno de Garanhuns – PE) tem-se registradas<br />
a imagem e a voz do poeta em ação, “a dizer” o referido poema no<br />
recital itinerante de poesia performática Chá das Cinco – realizado junto<br />
aos poetas Miró, Valmir Jordão, Malungo e Trelles.<br />
190<br />
Poeminflamado<br />
Notas<br />
191
Em declamação com claras indicações de improviso, neste vídeo (presente<br />
no DVD) o poeta faz-nos localizar ainda mais alterações em relação à<br />
primeira publicação escrita do poema. Percebe-se que o poeta movimenta<br />
e contextualiza sua obra ao suprimir trechos de estrofes, ao inserir novos<br />
versos, além de realizar marcações linguísticas típicas da oralidade, conforme<br />
transcrição abaixo:<br />
“Vamos continuar comendo porcarias / Fodendo à maneira das<br />
Marias profissionais / bebendo coca-cola, excreções e coisa e tais<br />
/ Fazendo mais e mais Josés que nos puxarão os pés / antes de<br />
aterrisarmos em poderosos tapetes voadores / hein!? / TNT- buM,<br />
bhT-buM, bNh-buM Fhc-buM, LuLALÁ-buM / ML, iML de antecadáveres<br />
/ uhs, Vhs e nenhum sinal dela / aqui, entre as minhas<br />
pernas / sOs pedindo socorro em silêncio / sepulcral / Teatral (eu<br />
sOu TeATrAL): teatro ateu, plateia plebeia / Aleluia! Aleluia, senhor!<br />
barrabás! barrabás!! / Povo politicamente falando: POVO! /<br />
PMDb, Pefelê – pra quê ter? / enquanto o voto obrigatório detona<br />
o país / há quem pinte pontes”<br />
VIII Poema incluso na coletânea Marginal Recife I. Também aqui se percebem<br />
algumas alterações, sendo sua maior a supressão dos sexto e sétimo<br />
versos originais.<br />
No DVD anexo a esta publicação há ainda imagens de França, feitas<br />
pelo videasta Jeferson Luiz, recitando versão do poema em questão.<br />
Trata-se da já referida performance d´A Cor da Exclusão datada de 1996.<br />
Abaixo, segue transcrição da referida versão do poema, caracterizada por<br />
marcações linguísticas típicas da oralidade e por apresentar-se ainda sem<br />
o tratamento ou revisão conferidos pelo poeta para sua versão escrita:<br />
“Nem bem começou a grande crise / e a classe média abarrotou<br />
os ônibus / com sua boca cheirando a cream-cracker com café /<br />
e deles – dos ônibus – mudou-se o itinerário / Para acomodar sua<br />
bunda / digamos flácida / Ou inflada de tédio e de ócio / Neles<br />
entrava madame : / – sobe, motô, para aê. sobe, motô! / e descia<br />
simples passageira. / e sentia náuseas com o cheiro forte da zona<br />
norte / A ladeira tomada de assalto era subida com sua presença /<br />
Que pedia a benção à preta fala, / Da boca morta, da língua morta,<br />
/ A lhe dizer, cheia de vida: / – Óa, menina, cuidado senão tu vai<br />
morrer, visse?”<br />
IX Poema incluso na já citada coletânea. Esta traz uma única variação<br />
em relação à versão escrita d´A Cor da Exclusão: o segundo verso da terceira<br />
estrofe aparece sob a seguinte forma: “(...) Brasil do ano dois mil”<br />
(Marginal recife – coletânea Poética i, 2002, p. 33)<br />
X Também incluso no Marginal Recife – Coletânea 1. Nesta, a versão do<br />
poema em questão, em comparação com o livro A Cor da Exclusão, traz<br />
algumas pequenas variações, conforme seguem:<br />
Vens tão mansa / Vens tão bela / tão bela / Que fechas as portas /<br />
Atrás de ti / Vens... vem... vem... / O gato brilha / A porta geme / A<br />
tua mão me descostura / Ao sabor do vento / e agora te vejo precisamente:<br />
/ Vais? / Vens ou vais? / Vem e vai! / Ou sou eu que / Não<br />
sei se sou tobogã / Ou gangorra? / Masmorra / Tronco / calabouço<br />
/ Porão do teu âmago / Me vejo tão dentro de ti / Que cacimba te mataria<br />
a sede? / se não fosse pelo teu / sabor acidoalcalino / Abacateabacaxi<br />
/ eu não saberia / se tobogã ou gangorra / Te atrairia hoje!<br />
(Marginal Recife – Coletânea Poética I, 2002, p.34)<br />
XI No DVD que compõe esta publicação há uma versão “mais oral” deste<br />
poema. Trata-se da já mencionada primeira performance d´A Cor da Exclusão,<br />
filmada pelo videasta Jeferson Luiz em 1996. Ela apresenta algumas<br />
pequenas alterações em relação à versão escrita. Abaixo, segue transcrição:<br />
“há um buraco no fundo do barco chamado brasil / Que já não<br />
mais navega à deriva / Mas agora tem rumo certo / Vai fundo no<br />
fundo do fundo / há outro buraco insistente / e eu nem quero falar<br />
/ eu nem quero falar no meu dente / bem no centro de todo humano<br />
/ e outros buracos, e tantos buracos / Na nossa casa, nas ruas,<br />
nas praças / Na cidade inteira / buracos / e tudo o que queremos,<br />
tudo o que buscamos / está num grande buraco, não tão grande /<br />
eu também tenho cavidades vulcânicas / No meu peito / implodindo<br />
o meu ego / sou tão curvo / No entanto / Não rolo, não roubo,<br />
nem cedo tão cedo / bisavô também dizia: / - Morreu dotô fulano /<br />
Agora ele só tem / O buraco e a catinga”<br />
Já nas imagens da performance realizada pelo artista no lançamento<br />
do livro Quarto de Ofício, nos é apresentada uma alteração marcante no<br />
8º verso: “E outros e outros buracos nas BRs, nos próprios buracos”<br />
192<br />
Poeminflamado<br />
Notas<br />
193
XII Este poema está presente em outras publicações. Caracteristicamente,<br />
em todas elas encontramos pequenas variações. Em Cafuné, segundo<br />
livro de poemas do autor, há duas pequenas alterações (em relação à versão<br />
d´A Cor da Exclusão, primeira publicação do poema): “punho” no lugar<br />
de “punhos”, além do acréscimo de uma vírgula no décimo verso, como<br />
se vê na página 64.<br />
Já em Luz do Litoral, livro do fotógrafo Mateus Sá – com poemas de<br />
França – a alteração se restringe à adição da vírgula no décimo verso (ver<br />
página 128). Para além disso, a disposição espacial do poema foi bastante<br />
modificada, conferindo um novo frescor à leitura, dinamizando novas<br />
interpretações; e mais: o diálogo do poema com a fotografia de Mateus<br />
Sá (e a realidade ali aprisionada) enriquece ainda mais esse processo de<br />
ressignificação, articulando outros lugares no discurso do poeta.<br />
XIII Em material audiovisual captado por Fernando Peres, podemos<br />
acessar a brincadeira, a reordenação, a recriação, a ressignificação, a provocação<br />
orquestradas pelo poeta, em sua própria obra, quando em ação,<br />
em performance. Segue, abaixo, transcrição de vídeo presente no DVD,<br />
feito em julho de 2007, no já referido festival:<br />
“Agora / o rei e a batalha se oferecem / por vias, atalhos e mares / Agora<br />
/ a flor e o fruto se oferecem / por osmose, simbiose, frutose. / Absalão,<br />
Absalão! / amarra teu cabelo / bem no meio da tua mão / Parabólicos,<br />
guarda-chuvas, para-raios / Até quando seremos mercadorias?”<br />
XIV Este poema também nos é apresentado oralmente no DVD, na já citada<br />
performance de 1996, em imagens feitas por Jeferson Luiz. A versão falada<br />
traz notórias diferenças, principalmente no desfecho do poema, em relação<br />
à versão de 1998, escrita. Abaixo, segue transcrição da performance:<br />
“Nenhum de nós dois / Tem a ciência do laço / Nem no manejo do ato<br />
/ Nem no desacato da forca / Mas para morrer de morte certa / em<br />
caso de tentativa / bastar-nos-ão os nós nas nossas próprias gargantas<br />
/ Ou então a explosão dos nãos / Mesmo sem haver perguntas<br />
/ Ou então pode-se apodrecer a dois / Lentamente / Depois de um<br />
lauto jantar / A camarão decomposto e vinagre de vinho branco /<br />
Tudo isso / Á luz da televisão / e então o tédio entrou / instalou-se na<br />
poltrona / Fez buM! / enchendo toda a casa com um cheiro bom /<br />
e afastando de nós dois, definitivamente, / essas ideias de suicídio.”<br />
XV Poema bastante difundido oralmente, foi duplamente intitulado<br />
pelo autor: ABCdecadente ou ABCDcadente. O caminho traçado pelo poema<br />
traduz a força da transmissão oral do conhecimento: muitos espectadores/interlocutores<br />
dos recitais sabiam-no de cor sem nunca o terem<br />
acessado pela leitura.<br />
E, nesse caminhar, o poema foi sofrendo algumas modificações. Nos<br />
últimos tempos, o poeta costumava recitá-lo assim como registrado no<br />
DVD incluso nesta publicação, em imagens cedidas pela jornalista Bárbara<br />
Cristina (em entrevista do poeta para o filme Onde estará a Norma?, sobre<br />
o poeta Miró) e também pelo programa Som da Sopa, realizado e veiculado<br />
em Pernambuco pela TV Universitária (direção de Eduardo Homem<br />
e apresentação de Roger de Renor) em ocasião do já mencionado Chá<br />
das Cinco, em Garanhuns, 2007. Após assisti-los, observa-se que, numa<br />
análise comparativa entre o registro escrito e os registros orais do poema,<br />
há indicação de alterações vocabulares nos 11º, 17º, 18º e 26º versos. Os<br />
registros audiovisuais nos mostram essa variação, que seguem respectivamente:<br />
Jesus, Judas, jogam, jantam juntos; Pretos, pobres, pedem pão.<br />
Povos põem panos quentes & Pobres pedem pão. Povos, pastores, padres<br />
põem panos quentes; Quem quer querelas? Querelas quentinhas, quem<br />
quer?; Universidades... Vomitemo-as. Vomitamo-as!!.<br />
Há outro registro do poema, este feito por Fernando Peres, e remete<br />
ao mesmo ano dos vídeos anteriores. A alteração refere-se ao 11º verso:<br />
“Jesus, Judas, jogam, jantam, jejuam juntos”<br />
Há ainda dois registros mais antigos. No primeiro, feito por Jeferson Luiz<br />
em ocasião da primeira performance d´A Cor da Exclusão, em 1996, o poeta<br />
profere a versão mais antiga a que tivemos acesso. Nota-se que a versão<br />
que segue foi revista, nela foram operadas muitas substituições vocabulares<br />
e, principalmente, adicionados alguns elementos e até versos inteiros.<br />
“Arde ávida a acidez / Arranha, bale, bole, berra brutalmente / corre<br />
calado cúmplice cão / cujos dentes dignos de devoção / Decerto<br />
enfrentam espadas e esporas / enquanto famintos furiosos felinos<br />
/ Grudam-lhe garras grossas / hoje hospedam homeros, horácios<br />
/ imponentes igrejas, idiotas igrejas / Jejuns, jogos, juras, jantam<br />
juntos / e loucos lamas lêem livros lúcidos / Mas mestres místicos<br />
metem medo / No ninho nascem noivas néscias / e outras ostras<br />
ocultam pérolas, porém / Pretos pedem pão. Padres põem panos<br />
quentes. / Quentes. Quentes. / Quem quer querelas? Quem, quem?<br />
/ rotulam reggaes, rejeitam rocks / súbito surgem sangrentas sar-<br />
194<br />
Poeminflamado<br />
Notas<br />
195
jetas / Transamazonicamente / Tão tristemente. / universidades...<br />
universidades. / unhas untam úberes. / Vêm vindo vozes! Vêm vindo<br />
vozes! / Xiiii.... Xiiiiiii.... Xiiiiii.... / Xangô? Xangô? Xangô? / Zeza?<br />
Zumbi? / Zarpemos! / Zeeeeennnnn...”<br />
No segundo vídeo, que remete à festa de lançamento do Quarto de<br />
Ofício (1997), encontramos transgressões significantes no 2º e último versos,<br />
que seguem transcritos, respectivamente: “ A agonia arranha, bate,<br />
berra (bééé!) brutamente; Zen.... Zen... Zaratustra!”<br />
XVI Segue abaixo o prefácio à edição de 2003 do Cafuné:<br />
Prefácio<br />
Para uma capa dura, papelão<br />
Para a militância, xérox<br />
Paralelo de oito graus atravessando<br />
Paradoxos no meridiano trinta e quatro<br />
A cabeça, a mão, o cafuné<br />
De veludo, pedra e paciência<br />
A fazer-se literária produção<br />
e findar-se recomeço em quatro atos<br />
Eunápio Mário<br />
XVII Como mais uma evidência das pequenas transgressões ou das sutis<br />
teatralizações operadas no processo da circulação oral da obra de França,<br />
transcrevemos aqui um verso de uma versão oral do poema em questão.<br />
Ela traz um pequeno mas revelador marcador linguístico da oralidade.<br />
Feita a partir de imagens de Jeferson Luiz, a transcrição (do 3º verso do<br />
poema, que segue adiante) remete à apresentação da já comentada performance<br />
d´A Cor da Exclusão, de 1996: “ - À nossa vida, querida!”<br />
XVIII A trajetória deste poema revela as relações de vida, de movimento –<br />
até mesmo na palavra escrita, teoricamente menos fluida e/ou modificável<br />
que a palavra falada – que a poesia de França trazia em si. Essas relações<br />
evidenciam-se quando postas em diálogo com outros elementos: seja com<br />
os interlocutores (plateia) dos seus recitais; seja com a fotografia de Ma-<br />
teus Sá; ou ainda, de maneira especial, com a dinamização visual que as palavras<br />
soltas, manuscritas de sua parceira Sil – responsável pela arte das publicações<br />
artesanais de França – conferiam ao resultado final dos poemas.<br />
Sil produziu várias realizações visuais do poema em questão, seja com<br />
intervenção figurativa (desenhos, colagens e afins) ou mesmo com modificações<br />
na disposição dos versos.<br />
Especificamente para a publicação do fotógrafo Mateus Sá, o poeta<br />
França insere um verso (ver página 125) com contorno de título ou preâmbulo<br />
ao poema: “Espelho d´água, espelho meu”.<br />
XIX A Mão-de-Veludo Edições Artesanais produziu uma extensa quantidade<br />
de cartões com os poemas de França. Felizmente, depois deste projeto,<br />
há um primeiro registro sistematizado dos poemas veiculados e vendidos<br />
em forma de cartão. Está documentado que muitos desses poemas estão<br />
n´A Cor da Exclusão, no Cafuné e nas Agendas da Vida. Dessa forma, adotamos<br />
como método elencar – dentre o material ao qual tivemos acesso<br />
– apenas a seleção dos poemas que não se repetem em outras publicações.<br />
XX As Agendas da Vida configuraram-se como uma das ações editoriais<br />
da editora artesanal Mão-de-Veludo. Tratava-se de agendas não-convencionais,<br />
em que poemas de França e ilustrações de Sil eram complementados<br />
pelo curso da vida, pelos compromissos e apontamentos de cada<br />
comprador/dono da agenda.<br />
Grande parte da obra do poeta – dentre poemas já publicados em seus<br />
livros e muitos outros inéditos – foi veiculada através delas. As mesmas<br />
ofereciam, a cada ano, seleções de poemas e concepções gráficas únicas.<br />
Carimbos, xérox e serigrafia já fizeram parte de seus modos de fazer.<br />
Alguns poemas podem ser encontrados em várias edições das agendas,<br />
muitas vezes com algumas pequenas modificações. Neste capítulo,<br />
organizamos os poemas por ordem cronológica de aparição, porém utilizando<br />
sempre sua versão mais recente (no caso dos poemas repetidos). As<br />
agendas foram editadas no período de 2000 a 2009.<br />
XXI Este poema estreia na Agenda da Vida de 2000, a primeira feita pela<br />
Mão-de-Veludo. Curiosamente, nesta agenda as estrofes do poema apareciam<br />
soltas, uma por vez; como se marcando subdivisões na publicação,<br />
marcando a passagem/contagem do tempo; como a representação dos<br />
pontos altos de uma narrativa. Nessa única ocasião, o poema em questão<br />
foi acrescido de uma quinta estrofe, que segue abaixo:<br />
196<br />
Poeminflamado<br />
Notas<br />
197
“De tanto plantar-me à porta, insistente / Me expele um dia no leito<br />
de um rio / e o vento me arrasta / qual barco à vela / Às portas dos<br />
mares pororoca primeira / Que dentro de mim explode em fogueira”<br />
XXII A comparação entre as versões (escrita e orais) deste poema nos oferece<br />
um exemplo das sutis transgressões que o poeta operava em sua própria obra:<br />
ao sabor dos recitais, das apresentações, do improviso, da memória, da oralidade.<br />
Seguem, abaixo, duas transcrições de performances do poeta – presentes<br />
no braço audiovisual desta publicação – relativas a versões do poema em<br />
comento. A primeira remete ao ano de 1996, em apresentação já mencionada<br />
d´A Cor da Exclusão, filmada por Jeferson Luiz, e segue transcrita abaixo:<br />
“Quero parar / esta água salgada / Que cai no meu dente / e entre / e vai<br />
desaguar no leito do peito / Deus sabe não cabe / Na alma tão<br />
calma / essa gota de neve / Tão leve, tão neve / Mas que rola, vira<br />
bola, mirabola/ Amarga água, amarga ida, amarga vida / A mais<br />
garrida, / A mais garrida,/A mais garrida, / Ai, Margarida!”<br />
A segunda remete a uma versão falada no ano de 2007, transcrita abaixo<br />
tal e qual recitado pelo poeta em Garanhuns, no já mencionado recital Chá<br />
das Cinco, em imagens cedidas pelo programa Som da Sopa (TV Universitária):<br />
“Quero / parar / ess´água / que cai / no meu dente / e entre / e<br />
entra / e vai desaguar direito / no leito do meu peito / Deus sabe /<br />
não cabe / na m´alma / tão calma / essa gota / não leve / não breve<br />
/ não neve / que rola / vira bola / mirabola / me enrola / Amarga<br />
água / amarga vida / a mais garrida / Ai, Margarida!”<br />
XXIII Na primeira edição da Agenda da Vida (2000) este poema apresenta<br />
mais um verso, entre os oitavo e nono versos da versão da presente edição.<br />
Esta adota a forma de todas as demais publicações do poema em questão, que<br />
parecem respeitar a supressão do referido verso, que segue: “Nem de sóis decadentes”<br />
XXIV Há uma versão deste poema no DVD incluso a esta publicação, referente<br />
à já citada performance de 1996, filmada por Jeferson Luiz. Nota-<br />
-se que esse poema não foi incluso no livro A Cor da Exclusão, tendo sido<br />
“publicado”, por escrito, somente com o advento das Agendas da Vida.<br />
Segue, abaixo, a referida versão oral transcrita. Percebe-se, por análise<br />
comparativa, que a versão da agenda foi pontualmente reformulada.<br />
“Mulheres. / há mulheres surpreendentes / com ares de inteligentes<br />
/ e me olham dos seus dentes / como se eu fosse um demente<br />
/ eu lhes digo, entrementes / Ao vê-las, posso lê-las / Ao<br />
lê-las, aprendê-las / Apreendê-las / compreendê-las / escolhê-las /<br />
e comê-las / como? / como quando como estrelas.”<br />
XXV A primeira edição das Agendas da Vida (2000), assim como foi visto,<br />
apresenta-nos alguns poemas que sofreram modificações para entrar em<br />
posteriores publicações. Fruto dessa revisão foi também o poema iniciado<br />
pelo verso “Cadê o seu cartão?”. Em sua primeira publicação, o sexto verso<br />
foi apresentado sob a seguinte forma: “é lícito. é usual”; ademais, o nono<br />
verso inexistia.<br />
XXVI Em sua primeira aparição, através da Agenda da Vida de 2000, este<br />
mesmo poema circulou sob outra forma. Após análise comparativa, ficam<br />
evidentes a reforma da disposição dos versos e a supressão recorrente de<br />
uma pontuação regular. Nesse caso, esses detalhes configuram uma mudança<br />
no ritmo, mas, principalmente, no caráter visual do poema – seara<br />
em que, nos poemas de França, a escrita à mão de Sil interferia com livre<br />
arbítrio. Segue a primeira versão abaixo:<br />
Flor de cactus. Perdido no sertão, / bebo a sua água, como do seu<br />
pão, / ‘te vejo como o fogo do cometa que caiu, / te sinto como o<br />
broto de bambu / que escapou da cobiça do chinês / te quero como<br />
uma figurinha / que se coleciona dia a dia / Te amo. e não sei dizer<br />
como: / se mãe, se filho, ou simplesmente / pelo teu jeito de rir teu<br />
riso / Ainda não conheces a vida / e ai de mim, aprendiz do teu /<br />
Jeito de rir. De só ser / De só querer...<br />
XXVII Há duas versões orais desse poema no DVD anexo a esta publicação.<br />
A primeira foi registrada por Jeferson Luiz e é referente à já<br />
comentada performance de 1996 d´A Cor da Exclusão; a segunda remete<br />
ao ano de 1997, quando da performance feita na festa de lançamento<br />
do livro Quarto de Ofício. Após análise comparativa das versões<br />
orais com a escrita, percebe-se que para retextualizar o poema para<br />
o papel, França “enxugou” o mesmo, além de refazer algumas escolhas<br />
lexicais e modificar drasticamente o seu final. Seguem, abaixo, as<br />
198<br />
Poeminflamado<br />
Notas<br />
199
transcrições do material audiovisual. A primeira refere-se à versão de<br />
1996, a segunda à de 1997:<br />
“Desarme-me dos meus olhos / se eles se abaixarem ao seu olhar/<br />
e da minha língua / se ela não o delatar / e das minhas mãos /<br />
se elas por acaso o adularem / Desarmem-me do meu sexo / Para<br />
não enrabar minha filha, seu puto! / Mas devolva-me a minha religião<br />
/ Devolva-me a minha língua, / Devolva-me a minha cultura, /<br />
Devolva-me o meu verão / Que a minha pele queima todo o dia / e<br />
agora, e aqui, nenhuma andorinha / Pra remédio.”<br />
“Desarme-me dos meus olhos/ se por acaso eles se abaixarem ao seu<br />
olhar/ Livre-me das minhas mãos/ se algum dia ele(a)s o adularem/ e<br />
dos meus pés se não correr no encalço de lhe denunciar/ e da minha<br />
religião/ Livre-me porque por ela eu fiz um juramento// Mas devolva-<br />
-me a minha cultura/ A verdadeira história/ O meu baseado, a minha<br />
caneta e o meu papel/ Porque eu preciso registrar a minha história”<br />
Importante ressaltar que como preâmbulo à performance de 1997, o<br />
poema é introduzido por uma pequena encenação do artista, que forja um<br />
“baculejo” policial.<br />
XXVIII Este poema faz referência ao coletivo Molusco Lama, grupo de<br />
artistas marcado pelo livre-pensar e pelo livre-fazer, que fez história em<br />
Olinda e Recife. Viviam alternativamente em comunidade, com sua produção<br />
concentrada na década de 1990. Fernando Peres, Lourival Cuquinha<br />
e Grilo foram alguns de seus componentes. O coletivo chegou a efetivar<br />
parcerias com França, como as participações em algumas performances<br />
d´A Cor da Exclusão, realizadas em 1996/1997.<br />
XXIX Há outra versão deste poema no livro Luz do Litoral. Percebem-se<br />
algumas adequações temáticas. Ver página 131.<br />
XXX <strong>Livro</strong>-poema de autoria de Angelo Bueno e colaborações de Mauro,<br />
Erickson Luna e França. Os dois últimos também fizeram a apresentação<br />
do livro. Este poema foi reiteradamente recitado no Eu, Poeta Errante,<br />
além de amplamente conhecido e bem aceito pelo público. Nessas ocasiões,<br />
era recitado tanto por França, por Angelo Bueno ou pelos dois.<br />
XXXI Curiosamente, esta contravenção gramatical permaneceu delibera-<br />
damente no poema, segundo Angelo Bueno, pelo fato de todo erro contra<br />
a Língua Portuguesa constituir, para ele, um acerto contra a colonização.<br />
XXXII Coautoria do poeta França com Silvana Beraldo Massera (Sil).<br />
XXXIII Este capítulo foi reservado a notórios poemas de França que circularam<br />
– e ainda circulam – apenas na oralidade. Trazem em si a dúbia<br />
relação da notoriedade oral e do ineditismo na escrita.<br />
O critério de seleção utilizado foi o do acesso efetivo ao registro de versões<br />
dessas peças – tanto nos manuscritos pessoais do poeta quanto em mídia audiovisual.<br />
Vale salientar que, para além dos poucos aqui registrados, ainda existem<br />
algumas composições poéticas similares – mas apenas na memória dos<br />
que vivenciaram a poesia de França, sem nenhuma concreta documentação ou<br />
mesmo relato que sirva de ponto de partida para uma adequada transcrição.<br />
XXXIV Por escrito, este poema constava apenas nos manuscritos pessoais<br />
do poeta. Oralmente, porém, já havia circulado desde as primeiras<br />
performances d´A Cor da Exclusão. A versão escolhida para integrar esta<br />
publicação foi transcrita de imagens feitas por Jeferson Luiz, da já referida<br />
performance, datada de 20 de novembro de 1996.<br />
XXXV O poema em questão circulou apenas oralmente: nos recitais e em<br />
outras apresentações. Nunca foi registrado em quaisquer publicações do<br />
autor. A versão inclusa neste capítulo é resultado da transcrição de uma<br />
performance de França – a partir de imagens contidas no DVD anexo a este<br />
livro – quando da festa de lançamento do livro Quarto de Ofício, em 1997.<br />
É de comum senso que este poema foi bastante recitado, adaptado ao<br />
sabor do improviso, dos contextos de apresentação e, inclusive, foi ponto<br />
de partida para performances como a executada no vídeo Farândola,<br />
realizado pelo Canal 03, também em 1997. Neste vídeo, que retrata a(s)<br />
realidade(s) das ruas de Recife e Olinda, o poeta – que também era ator,<br />
encenador, educador e capoeirista – fez o que foi denominado uma “performance<br />
da fome”. Transcrevemos aqui o texto da performance, que dá<br />
ênfase a alguns versos – inclusive repetindo-os – da versão aqui publicada:<br />
“- Lá vem ela / Lá vem ela / - ela quem? / - A fome! // Lá vem ela<br />
descendo a Ladeira da Misericórdia / sem misericórdia nenhuma<br />
// - Lá vem ela / - ela quem? // e alimenta outras carências... // A<br />
fome vem / e a fome vem / e alimenta outras carências / e a fome<br />
200<br />
Poeminflamado<br />
Notas<br />
vem / e elimina as diferenças / entre seres humanos / e animais //<br />
201
Lá vem a fome / lá vem a fome / Descendo a ladeira da misericórdia<br />
/sem misericórdia nenhuma // e a fome vem / e elimina as diferenças<br />
/ entre seres humanos / e animais // A fome / a fome”<br />
Foi também encontrada uma versão deste poema nos manuscritos pessoais<br />
do autor, que segue:<br />
“cada vez nossa voz se faz/ mais cadavérica e atroz/ surge em evidência<br />
suja/ sórdida e veloz a fome/ – sem respaldo aparente/ sem<br />
limite condizente –/ de circo de água e de pão// – Lá vem ela/ – ela<br />
quem, home?/ – A fome/ – Quem?/ – A Fome!/ / e a fome vem descendo<br />
a Ladeira/ da Misericórdia sem misericórdia nenhuma/ Lá<br />
vem ela descendo ladeira/ lá vem danada ligeira/ e a fome come e<br />
alimenta outras carências/ e a fome come e elimina as diferenças/<br />
entre seres humanos e animais”<br />
XXXVI Mais um poema mínimo ou “poemínimo” do autor. Esta versão foi<br />
transcrita de vídeo produzido a partir de performance do artista na ocasião<br />
da festa de lançamento do livro Quarto de Ofício, ocorrida em 1997.<br />
Inserido na realidade intersemiótica de sua obra, este poema pode ser<br />
também visto como uma curta cena teatral: aberta para as interpretações<br />
e as realizações operadas pela recepção de cada leitor.<br />
XXXVII Este poema, em especial, é bastante conhecido entre os que frequentaram<br />
os recitais nos Quatro Cantos de Olinda (ou “o umbigo do<br />
mundo”, como o poeta falava). Trata de sua visão lúcida e de sua crítica<br />
sobre a cidade “patrimônio histórico da humanidade”.<br />
A versão aqui apresentada remete a um manuscrito pessoal de França,<br />
e não corresponde ipsis litteris às versões que ele costumava recitar. Infelizmente,<br />
não tivemos acesso a outro registro mais recente (audiovisual,<br />
por exemplo) desse poema, de modo que a versão incluída na publicação<br />
guarda algumas alterações em relação às suas realizações orais.<br />
Realizações orais (no plural) porque, como já foi ressaltado, uma das<br />
características de sua poesia e da poesia falada em geral é a da obra aberta,<br />
ou seja, da poesia em constante diálogo com o instante e com o contexto<br />
em que é recitada. Assim, é sabido que os espetáculos, as performances,<br />
os recitais e os poemas de França viravam outros, transformavam-se,<br />
ao sabor de cada acontecimento artístico. Desta feita, mesmo se transcrevêssemos<br />
aqui uma de suas versões orais, ficaria a ressalva de que esse<br />
processo era aberto: sua obra sofria constantemente pequenas mutações.<br />
Não obstante, consta que, como preâmbulo à recitação deste poema,<br />
França costumava formalizar uma espécie de rito com a inclusão de música<br />
e brincadeiras. Num processo que mirava a inclusão do público, antes<br />
de recitar o poema propriamente dito, o poeta costumava entoar uma<br />
clássica introdução a diversos frevos da cidade, em referência à música e<br />
ao carnaval de Olinda. Após o preâmbulo musical, vinha o mote: “Blém,<br />
blém, blém / Não é Pará / Não é belém / Venho aqui anunciar / Que Olinda<br />
não vai bem!”. Por fim, o poema-denúncia. E o choque entre as delícias e<br />
as dores daquela cidade.<br />
XXXVIII Este capítulo traz uma seleção de poemas inéditos do poeta França,<br />
ainda desconhecidos do público: tanto no plano da oralidade quanto<br />
pelas vias editoriais. A reunião destes poemas foi possível pelo pleno acesso<br />
que os pesquisadores tiveram aos manuscritos do autor. Dentre eles,<br />
foi encontrado um bilhete do autor à sua então companheira Sil – também<br />
parceira nas empreitadas editoriais da Mão-de-Veludo – em que ele sugere<br />
a substituição do título de A Cor da Exclusão por O homem que marcha<br />
sobre si, sugestão esta que não vingou.<br />
Resolvemos, assim, agregar esse título ao capítulo dos inéditos: o homem<br />
que marcha, que caminha sobre si é aquele que empreende uma<br />
jornada de autoconhecimento, de descoberta de novas identificações, de<br />
revelações. Através de si. De sua produção artística.<br />
XXXIX Poema de Angelo Bueno cuja circulação oral França multiplicou.<br />
Vale salientar que, antes da presente publicação, este poema ainda não<br />
havia sido registrado por escrito. Não raro, a autoria do “Pense” foi popularmente<br />
atribuída a França. Isto porque a parceria dos amigos França e<br />
Bueno era intensa, e tais questões de autoria diluíam-se – até mesmo para<br />
o interlocutor da obra.<br />
Este poema era uma peça fundamental nos recitais do Eu, Poeta Errante;<br />
um verdadeiro jogo teatral – que junto a poemas como Isadora e a<br />
famosa brincadeira com o popular mote dos vendedores de bairro (“Dona<br />
Maria, Dona Maria, este é o carro da economia! Uma poesia por apenas<br />
um real! Traga a vasilha...”) – configuravam-se como artifícios para costurar<br />
a dinâmica dos recitais e proporcionar a interação mais estreita do<br />
poeta e da poesia com o público presente.<br />
Decidimos colocá-lo como abertura deste capítulo – através de um<br />
teatral movimento de apresentação – por ele trazer em si essa relação<br />
ambígua do ineditismo: ser “de domínio público” (entre os que viveram<br />
202<br />
Poeminflamado<br />
Notas<br />
203
poesia em Recife e Olinda nas décadas de 1990 e 2000), porém sem nunca<br />
ter sido publicada por escrito. E, principalmente, pelo costume entre Angelo<br />
Bueno, Erickson Luna e França de figurarem nos livros uns dos outros:<br />
como os exemplos da pontual ocorrência de poemas de Bueno e Luna no<br />
preâmbulo da A Cor da Exclusão e de Luna e França na apresentação do<br />
Quarto de Ofício.<br />
XL Neste exemplo fica também evidente o trabalho cotidiano do poeta<br />
em maturar, reinterpretar e revisar a sua obra. No DVD incluso a esta<br />
edição, temos acesso a uma versão antiga do poema em comento. As<br />
imagens remetem ao já bastante mencionado evento performativo d´A<br />
Cor da Exclusão, ocorrido em 1996 e registrado em mídia audiovisual por<br />
Jeferson Luiz.<br />
Após análise comparativa das duas versões, percebe-se na versão escrita<br />
um maior apuro formal (característico mesmo do veículo da palavra<br />
escrita) em relação a sistematização/métrica das estrofes. Principalmente,<br />
percebe-se uma inserção contextual, por vezes direta e por outras indireta,<br />
de entidades ou figuras sociais à narrativa (o branco, a Igreja, os sem-<br />
-terra): o que confere ao poema, à voz do poeta e ao leitor um diálogo<br />
direto com a História. Segue, abaixo, transcrição da referida versão oral<br />
do poema:<br />
“Ah, minha preta, tu me pedes pra falar / sobre o negro no dia 13<br />
de maio / e eu choro / Agora que eu conheço a história / Desdenho<br />
daquele que a escreveu / Ah, minha preta, tu me pedes / Pra falar<br />
sobre o negro no dia 20 de novembro / e eu pasmo / Que pergunta<br />
ecoa na sua mente? / Zumbi morreu? / Zumbi morreu. / Zumbi<br />
morreu? / Minha preta, tu me pedes / Pra falar sobre os negros<br />
da minha escola / e eu lembro tê-los visto apenas do lado de fora<br />
/ sobre os negros, minha preta, não / sobre os negros eu não falo<br />
/ Ou tu não vês? / Tem tanta gente estudada / Tudo que é negro<br />
explorado / e todo mundo calado”<br />
204<br />
Poeminflamado<br />
Notas<br />
205
Lista de obras publicadas //207<br />
- BUENO, Angelo et alii.Quarto de Ofício. Recife, s/d.<br />
- FRANÇA, Valdemilton Alfredo de. A Cor da Exclusão. Olinda: Mão-de-Veludo<br />
Edições Artesanais, 1998.<br />
- __________________________. Cafuné. Olinda: Mão-de-Veludo Edições<br />
Artesanais, 2003.<br />
- FRANÇA, Valdemilton Alfredo de et alii. Marginal Recife - Coletânea Poética<br />
I. Organizadores: Cida Pedrosa, Miró e Valmir Jordão. Recife: Prefeitura do<br />
Recife - Secretaria de Cultura da Cidade do Recife, 2002.<br />
- Revista Palmares. Cultura Afro-brasileira. Ano I, nº I – agosto, 2005. Fundação<br />
Cultural Palmares. ISSN 108 7280.<br />
- SÁ, Mateus et alii. Luz do Litoral. Recife, 2005.
Índice remissivo dos poemas //208 a 211<br />
4 61<br />
A boca do lixo 56<br />
A cena contém (A Sopa Contém) 67<br />
A Chico Science 148<br />
A comida que fiz 169<br />
A linda do rio 161<br />
A Linda e Mauro 20<br />
À MORTE – por ser imortal 50<br />
A PALAVRA 163<br />
Agora a flor e o fruto se oferecem 38<br />
Agora percebo o sentido 32<br />
Agora procuro quem 99<br />
Ah, os meus sentidos 24<br />
Ai minha preta, tu me pedes 153<br />
ANALOGIA 114<br />
Arde ávida a acidez (ABCdecadente ou ABCDecadente) 40<br />
As grades engradam as praças 34<br />
Aumenta aos poucos 37 e 64<br />
Ave ama Seca 47<br />
Bastava ouvir berimbau 105<br />
Beijo tua boca 110<br />
Brasa nos olhos, amor? 57<br />
Brasil – Quinhentos Anos 156<br />
Cadê o seu cartão? 84<br />
Café não é preto 147<br />
Canto a um bode expiatório 154<br />
Ciclo natural 162<br />
Como as plantas 159<br />
CONJECTURAS 112<br />
Constatação 144<br />
Danço a dança que 170<br />
DEGENERAÇÃO 83<br />
Desarme-me dos meus olhos 87<br />
destinoRdestino 73<br />
Dia após dia, saudade crescendo 89<br />
Diretas, já! 152<br />
55 Doce balanço<br />
136 É assim mesmo que eu olho pra você<br />
66 E eu pensando<br />
126 E se chegar<br />
88 É você que me aparece<br />
108 Eis que suas palavras<br />
94 Eita gosto seco, azedo<br />
174 Em caso de dúvidas!<br />
160 Entre as pernas fechadas<br />
95 És feita do vento, dos risos da Tristeza<br />
125 Espelho d´água, Espelho meu<br />
130 Estou a procurar<br />
54 eu não sou um<br />
115 Evoco os momentos<br />
85 flor de cactus<br />
97 Guerreiro de onde vens<br />
82 Há mulheres surpreendentes<br />
35 Há um buraco no meio do Barco Brasil<br />
49 História da Humanidade<br />
146 Internetem-nos!<br />
62 IV ATO<br />
36 Lá estávamos nós dois<br />
135 Lá vem ela! (A Fome)<br />
142 Laço de Fogo<br />
91 Logo, logo descerá o pano<br />
81 Marca indelével na minha vida<br />
106 Matadores perfilados<br />
96 Me envolvo mansamente onde (Maconha)<br />
90 Na casa de espetáculos o palhaço chora<br />
70 Nada me inspira<br />
157 Nanã Burukê<br />
21 Não sei se há o que dizer<br />
107 Não sou como queiram<br />
65 Nebulosa carta cujo signo<br />
29 Nem bem começou a grande crise<br />
39 Nenhum de nós dois
No lago, ao entardecer 79<br />
No mundo dos sonhos 19<br />
No princípio (Robocop) 23<br />
Nômade que sou não tenho74<br />
Nosso povo dá gargalhadas 129<br />
O design 33<br />
O devastador 63<br />
o mar (Sururu) 59<br />
O meu corpo te exige 134<br />
o meu sangue 51<br />
O nó na garganta sufoca 93<br />
O novo quebrou 52<br />
O poeta 104<br />
O que houve no meio 113<br />
O Sol 46<br />
Olá! Alô? 86<br />
Olinda está muito mal 137<br />
Onze horas 30<br />
Pense 140<br />
Poeminflamado 58<br />
Por ser água barrenta 60<br />
Porquê a pressa? Pra quê tanta pressa? 167<br />
Posso vislumbrar meu futuro 22<br />
Pouso solto 124<br />
Preconceito 18 e 53<br />
Preso pelo meio 168<br />
Prezado (Quarto de Ofício) 118<br />
Quando finalmente 28<br />
Quantas folhas deste pape l72<br />
Que hábil maneira de se ir, ficando 111<br />
Que ideia 141<br />
Quero (Margarida) 80<br />
Sadomasoquismo 165<br />
Sangue 127<br />
Sapatos 98<br />
Secreto! Top Secret! Top Secret! 92<br />
48 Sempre que a beleza<br />
166 Sonhei que estávamos passeando<br />
158 Sopro de vida insuflada<br />
102 Sou árvore / Dou sombra<br />
103 Sou árvore / portanto estática/extática<br />
164 Suo o suor do rosto de todos os homens<br />
27 Tempo de chuva<br />
149 Tenho fugido<br />
101 Transávamos<br />
109 Última Sexão<br />
45 Um ninho se faz em paz<br />
78 Uma deusa do fogo<br />
100 e 131 Unir para a guerra<br />
24 Vaitimbora (Isadora)<br />
26 Vamos continuar comendo porcarias<br />
71 Vem negra com tua dança<br />
31 Vens tão mansa<br />
A maioria dos poemas de França não possui título. No plano da oralidade, alguns têm<br />
“apelidos”: os participantes dos recitais e conhecedores de sua poesia é que acabavam<br />
nomeando determinados poemas, na necessidade de se referir aos mesmos. Nesta<br />
lista, elencamos os poemas por ordem alfabética. Utilizamos para referenciá-los: seu<br />
título ou seus primeiros versos, seguidos de seus apelidos (quando estes existirem)<br />
entre parênteses.
Este livro foi composto na tipografia Calibri 10/13<br />
e impresso em papel polen soft 90g na Provisual Gráfica e Editora