PAG: E09SR10 -- EDI: JAN09 <strong>de</strong> a<strong>de</strong>us nos olhos ternos, e a voz era quase um sussurro <strong>de</strong>seperado e trágico... Ó África, minha mae-terra, diz-me tu: Que foi feito <strong>de</strong> minha irmá do mato, que nunca mais <strong>de</strong>sceu à cida<strong>de</strong> com seus filhos eternos (um nas costas, um no v<strong>en</strong>tre), com seu eterno pregao <strong>de</strong> v<strong>en</strong><strong>de</strong>dora <strong>de</strong> carvao? Ó África, minha mae-terra, ao m<strong>en</strong>os tu nao abandones minha irmá heorica, perpetua-a no monum<strong>en</strong>to glorioso dos teus braços! [Poema da infância distante] Quando eu nasci na gran<strong>de</strong> casa à beira-mar, era meio-dia e o sol brilhava sobre o índico. Gaivotas pairavam, brancas, doidas <strong>de</strong> azul. Os barcos dos pescadores indianos não tiham regressado ainda arrastrando as re<strong>de</strong>s pejadas. Na ponte, os gritos dos negros dos botes chamando as mamanas amolecidas <strong>de</strong> calor, <strong>de</strong> trouxas à cabeça e garotos ranhosos às costas –soavam com um ar longínquo, longínquo e susp<strong>en</strong>so na neblina do silêncio. E nos <strong>de</strong>graus escaldantes, m<strong>en</strong>digo Mufasini dormitava, ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> moscas. Quando eu nasci... –Eu sei que ar estava calmo, repousado (disseram-me) e o sol brilhava sobre o mar. E no meio <strong>de</strong>sta calma fui lançado ao mundo, já com meu estigma. E chorei e gritei –nem sei porquê. Ah, mas pela vida fora, minhas lágrimas secaram ao lume da revolta. E o sol nunca mais me brilhou como nos dias primeiros da minha existência, embora o c<strong>en</strong>ário brilhante e marítimo da minha infância, constantem<strong>en</strong>te calmo como un pântano, t<strong>en</strong>ha sido quem guiou meus passos <strong>de</strong> adolesc<strong>en</strong>te, –meu estigma também. Mais, mais ainda: meus heterogéneos companheiros <strong>de</strong> infância. Meus companheiros <strong>de</strong> pescarias por <strong>de</strong>baixo da ponte, com anzol <strong>de</strong> alfinete e linha <strong>de</strong> guita, meus amigos esfarrapados <strong>de</strong> v<strong>en</strong>tres redondos como cabaças, companheiros nas brinca<strong>de</strong>iras e correrias pelos matos e praias <strong>de</strong> Catembe, unidos todos na maravilhosa <strong>de</strong>scoberta dum ninho <strong>de</strong> tutas, na construção duma armadilha com nembo, na caça às galas-galas e beija-flores, nas perseguiçoes aos xitambelas sob um sol qu<strong>en</strong>te <strong>de</strong> Verão... -Figuras inesquecíveis da minha infância arrapazada, solta e feliz: m<strong>en</strong>inos negros e mulatos, brancos e indianos, filhos da mainata, do pa<strong>de</strong>iro do negro do bote, do carpinteiro, vindos da miséria do Guach<strong>en</strong>e ou das casas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira dos pescadores. M<strong>en</strong>inos mimados do posto, m<strong>en</strong>inos frescalhotes dos guardas fiscais da Esquadrilha -irmanados todos na av<strong>en</strong>tura sempre nova dos assaltos aos cajueiros das machambas, no segredo das maçalas mais doces, companheiros na inquieta s<strong>en</strong>sação <strong>de</strong> mistério da ‘‘Ilha dos navios perdidos’’ –on<strong>de</strong> n<strong>en</strong>hum brado fica sem eco. Ah, meus companheiros acocorados na roda maravilhosa e boquiabertos do ‘‘Karingana wa karingana’’ das históricas da cocuana do Maputo, em crepúsculos negros e terríveis <strong>de</strong> tempesta<strong>de</strong> (o v<strong>en</strong>to uvindo no telhado <strong>de</strong> zinco, o mar ameaçando <strong>de</strong>rrubar as escadas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira da varanda a casuarina gem<strong>en</strong>do, gem<strong>en</strong>do, oh inconsolavelm<strong>en</strong>te gem<strong>en</strong>do, acordando medos estranhos, inexplicáveis nas nossas almas cheias <strong>de</strong> xitucumulucumbas <strong>de</strong>s<strong>de</strong>ntadas e reis Massingas virado jibóias...) Ah, meis companheiros me semearam esta instisfacão dia a dia mais insatisfeita. Eles me <strong>en</strong>cheram a infância do sol que brilhou no dia em que nasci. Com sua camaradagem luminosa, imp<strong>en</strong>sada, sua alegria radiante, seu <strong>en</strong>tusiasmo explosivo diante <strong>de</strong> qualquer papagaio <strong>de</strong> papel feito asa no céu dum azul tecnicolor, sua lealda<strong>de</strong> sem código, sempre pronta, -eles <strong>en</strong>cheran minha infância arrapazada <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> e av<strong>en</strong>tura inesquecíveis. Se hoje o sol não brilha como no dia em que nasci, na gran<strong>de</strong> casa à beira do ïndico, não me <strong>de</strong>ixo adormecer na escuridão. Meus companheiros me são seguros guias na minha rota através da vida Eles me provoram que ‘‘fraternida<strong>de</strong>’’ não é mera palavra bonita escrita a negro no dicionário da estante: <strong>en</strong>sinaram-me que ‘‘fraternida<strong>de</strong>’’ é um s<strong>en</strong>tim<strong>en</strong>to belo, e possível, mesmo quando as epi<strong>de</strong>rmes e a paisagem circundante são tão difer<strong>en</strong>tes. Por isso eu CREIO que um dia o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o ïndico. Gaivotas pairarão, brancas, doidas <strong>de</strong> azul e os pescadores voltarão cantando, navegando sobre a tar<strong>de</strong> ténue. E este v<strong>en</strong><strong>en</strong>o <strong>de</strong> lua que a dor me injectou nas veias em noites <strong>de</strong> tambor e batuque <strong>de</strong>ixará para sempre <strong>de</strong> me inquietar Um dia, o sol inundará a vida. E será como que uma nova infância raiando para todos... 10 O Correo Galego 9/1/03 O Correo Galego 9/1/03 11
PAG: E16SR01 -- EDI: JAN16 revista das letras 452 As mans do mundo