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Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
A LENDA URBANA DE BANKSY NO NOMADISMO E NA ABSORÇÃO<br />
DOS MUROS EXPOSITIVOS<br />
José Schneedorf, Escola <strong>de</strong> Belas Artes/UFMG<br />
Resumo: A diligente marca grafiteira Banksy, que circunscreve os muros do globo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados da<br />
década passada, está <strong>na</strong> lanter<strong>na</strong> da diáspora artística <strong>de</strong> sua geração: exposições com residência<br />
<strong>na</strong>s potencialida<strong>de</strong>s, exposições com residência <strong>na</strong> volta ao mundo – em ambos os sentidos. No<br />
paradoxo, esse heterônimo retém e preserva a<strong>no</strong>nimamente a autoria (individual ou coletiva) e<br />
alcança repercussão mundial e aprovação popular <strong>no</strong>vida<strong>de</strong>iras para a arte <strong>urba<strong>na</strong></strong>. Alcança também<br />
inserção: ainda maior ineditismo encontra-se <strong>na</strong> proposta coextensiva que Banksy hoje melhor<br />
representa entre os espaços expositivos intramuros e extramuros, tradicio<strong>na</strong>lmente avessos entre si.<br />
Uma pendularida<strong>de</strong> para a qual os artistas <strong>de</strong> rua se apresentam cada vez mais aptos e eticamente<br />
harmonizados, selando a reorientação do contracultural mesmo <strong>de</strong>ntro da contemporaneida<strong>de</strong>, e<br />
selando ainda mais a <strong>de</strong>cantação da cizânia, da segregação mútua entre o institucio<strong>na</strong>l e o periférico:<br />
relevam-se contrarieda<strong>de</strong>s aparentemente termi<strong>na</strong>is e revelam-se acessos <strong>de</strong> uns para os outros.<br />
Palavras-chave: Grafite. Instituição. Coextensivida<strong>de</strong>. Alternância. Desterritorialização.<br />
THE BANKSY’S URBAN LEGEND ON THE NOMADISM AND THE ABSORPTION<br />
OF THE EXPOSITIVE WALLS<br />
Abstract: The diligent graffiti tag Banksy, which bounds globe walls since the middles of last <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>,<br />
is in the flashlight of its generation’s artistic Diaspora: exhibitions dwelling in the potentialities,<br />
exhibitions dwelling in the run around the world - in both meanings. In the paradox, that pen <strong>na</strong>me<br />
a<strong>no</strong>nymously retains and preserves the authorship (individual or collective) and reaches world<br />
repercussion and popular approval faddist for the urban art. It also reaches insertion: even larger<br />
<strong>no</strong>velty is in the coextensive proposal which Banksy today best represents between the intramurally<br />
and extramurally expositive spaces, traditio<strong>na</strong>lly conversed between each other. An oscillation on<br />
which street artists present themselves more and more capable and ethically harmonized, sealing the<br />
contra-cultural reorientation even insi<strong>de</strong> contemporaneity itself, and even more the <strong>de</strong>cantation of the<br />
darnel, the mutual segregation between the institutio<strong>na</strong>l and the peripheral: an<strong>no</strong>yances seemingly<br />
termi<strong>na</strong>l are exempted and accesses are revealed to one a<strong>no</strong>ther.<br />
Key words: graffiti, establishment, coextension, alter<strong>na</strong>tion, spaciousness.<br />
1. INTRODUÇÃO<br />
Banksy é uma voz autoral, inscrita <strong>no</strong> léxico das<br />
assi<strong>na</strong>turas murais contemporâneas. Um codi<strong>no</strong>me <strong>de</strong> grafites<br />
e estênceis a amealhar os muros e as fachadas, a adir as ruas<br />
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SCHNEEDORF, José<br />
e as praças da Inglaterra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a última década, agrupando outros tantos espaços urba<strong>no</strong>s<br />
ao redor do mundo (da Europa à América Lati<strong>na</strong>, da Palesti<strong>na</strong> aos Estados Unidos), num<br />
mapeamento e numa pertença que são procedimento e propósito comu<strong>na</strong>is aos artistas<br />
urba<strong>no</strong>s britânicos atuais – e ecoam uma cada vez mais fortalecida <strong>no</strong>madologia das artes<br />
globais.<br />
Esse breviário, <strong>de</strong> viés pa<strong>no</strong>râmico, <strong>de</strong> sua não me<strong>no</strong>s breve carreira – para a qual o<br />
<strong>de</strong>masiado volume <strong>de</strong> obras expostas dá falso testemunho – traduz o entalhado do muro<br />
bem como o retalhado da contemporaneida<strong>de</strong>, cuja soma exterioriza três pressupostos.<br />
Primeiro, setores intramuros e extramuros são ambos igualmente espaços públicos – o que<br />
é fato e dispensa prova. A frequência e a assiduida<strong>de</strong> coletivas ao primeiro são<br />
quantitativamente me<strong>no</strong>res, porque seu lugar é especializado, específico, positivamente<br />
sujeito ao arbítrio, mas isso em <strong>na</strong>da o tor<strong>na</strong> me<strong>no</strong>s público. Segundo, consolidam-se<br />
veredas e pendularida<strong>de</strong>s entre esses espaços, e tais veredas são mútuas: artistas<br />
consi<strong>de</strong>rados institucio<strong>na</strong>is, <strong>de</strong> exposições regulares, majoritária formação acadêmica e<br />
aprovação erudita, por assim dizer, há muito direcio<strong>na</strong>m-se à exploração do potencial das<br />
ruas, particularmente em performances, instalações e intervenções <strong>urba<strong>na</strong></strong>s, mas também<br />
em vertentes tradicio<strong>na</strong>is do objeto artístico, até mesmo pictóricas ou pictográficas. E o<br />
fazem <strong>de</strong> modo cada vez mais estatutário, porque levam consigo para a rua os epicentros<br />
organizacio<strong>na</strong>is da arte: o atelier, o mercado, a crítica, a história da arte, <strong>de</strong>starte o conceito<br />
<strong>de</strong> exposição. Terceiro, as realida<strong>de</strong>s metropolita<strong>na</strong>s são hoje muito assemelhadas em<br />
qualquer direção, o que permite o tráfego e o vínculo consistentes e velozes <strong>de</strong> obras e<br />
encontros; e fundamenta a congruência e a similitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> idéias entre os que se pautam pela<br />
direta refletivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tais realida<strong>de</strong>s: os artistas urba<strong>no</strong>s <strong>na</strong>turalmente militantes.<br />
Expor <strong>na</strong> rua remete ao tradicio<strong>na</strong>lmente britânico conceito <strong>de</strong> artista como<br />
trabalhador social. Remete ao lugar comum, tanto <strong>na</strong> acepção do simples quanto do<br />
comu<strong>na</strong>l: ‘a praça é do povo’. Remete à imersão <strong>na</strong> concretu<strong>de</strong>, <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong>; à <strong>de</strong>frontação<br />
direta com o espectador igualmente imerso, indistinto e anônimo, e <strong>de</strong> bom grado sujeita à<br />
efemerida<strong>de</strong>, à solvência <strong>na</strong> realida<strong>de</strong>.<br />
Tomando os indiscutíveis sucesso, atenção e acompanhamento mundiais que sua<br />
produção tem <strong>de</strong>spertado e tomando o consenso crítico <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar que Banksy tem feito<br />
pelo estêncil o mesmo que Jean Michel Basquiat fizera pelo grafite, <strong>de</strong>smurar esses<br />
pressupostos a partir <strong>de</strong> Banksy é bem utilizá-lo, obra e pessoa (ou perso<strong>na</strong>), como<br />
comprobatório e/ou ilustrativo <strong>de</strong> tais <strong>de</strong>smuros. É utilizá-lo como seu corrente exemplo<br />
car<strong>de</strong>al, aliás, u<strong>na</strong>nimida<strong>de</strong> mesmo entre seus opositores.<br />
A premissa é do próprio: “Crime contra proprieda<strong>de</strong> não é realmente crime. As<br />
pessoas olham para uma pintura a óleo e admiram o uso <strong>de</strong> pinceladas para transmitir<br />
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sentido. As pessoas olham para um grafite e admiram o uso <strong>de</strong> um dre<strong>no</strong> para ganhar<br />
acesso” (BANKSY, 2005, p. 205, tradução do autor).<br />
2. SOCIEDADE ANÔNIMA<br />
Pendular entre as inglesas Bristol e Londres, Banksy <strong>de</strong>sapropria e abriga <strong>no</strong><br />
cog<strong>no</strong>me a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> todo incógnita. Seu ortônimo é <strong>de</strong>sconhecido; sua imagem,<br />
quando aparece, é <strong>de</strong> face i<strong>na</strong>preensível – necessida<strong>de</strong>s da ilegalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua arte, mas<br />
também, ou principalmente, da <strong>de</strong>savença com a celebrida<strong>de</strong>. Trata-se <strong>de</strong> um artista fugidio:<br />
procurado; sua acessibilida<strong>de</strong> escorre entre os <strong>de</strong>dos. Corolário da diversida<strong>de</strong> quantitativa<br />
e da produtivida<strong>de</strong> qualitativa, além da capacida<strong>de</strong> quase mágica <strong>de</strong> burlar a vigilância<br />
apurada dos espaços proibidos em que expõe, questio<strong>na</strong>-se se sob o perfil se escon<strong>de</strong> um<br />
único artista ou se reveza uma equipe <strong>de</strong>les – revisão da atribuição, primazia da criação ao<br />
criador, re<strong>no</strong>vação da autoria.<br />
A linguística acaba <strong>de</strong> fornecer à <strong>de</strong>struição do Autor um instrumento<br />
a<strong>na</strong>lítico precioso, ao mostrar que a enunciação é inteiramente um processo<br />
vazio que funcio<strong>na</strong> <strong>na</strong> perfeição sem precisar ser preenchido pela pessoa<br />
dos interlocutores; linguisticamente, o autor não é senão aquele que diz eu:<br />
a linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio<br />
fora da própria enunciação que o <strong>de</strong>fine, basta para fazer “suportar” a<br />
linguagem, quer dizer, para a esgotar (BARTHES, 1988, p. 51).<br />
Na primeira hipótese, estaria encoberto o prolífico bretão Robert Banks, <strong>de</strong> supostos<br />
atuais trinta e cinco a<strong>no</strong>s – e que não se oporia a boatos e se utilizaria <strong>de</strong> substitutos, <strong>de</strong><br />
postiços, para se <strong>de</strong>ixarem fotografar, alimentando a confusão pública sobre a perso<strong>na</strong> e a<br />
consequente manutenção do bem-sucedido a<strong>no</strong>nimato. Na segunda hipótese, também<br />
provável, o pseudônimo ocultaria um coletivo <strong>de</strong> artistas que se esforçam num mesmo<br />
raciocínio plástico, especialmente num mesmo raciocínio conceitual (bem-humorado e<br />
filosófico, refratário do real, do agora). Em qualquer opção, o cog<strong>no</strong>me é aparentado, em<br />
provável a<strong>na</strong>logia, ao termo inglês bank (banco, lucro, consumo, também ribanceira, muro<br />
<strong>de</strong> arrimo, obstáculo, resistência). A marca tem algo <strong>de</strong> apelido, <strong>de</strong>rivado da semi<strong>na</strong>l<br />
assi<strong>na</strong>tura Robin Banks, que <strong>na</strong> língua <strong>na</strong>tiva soa como “roubando bancos” – firmando o<br />
caráter furtivo, o feitio sorrateiro, a ação <strong>de</strong> sorrate, subterrânea, tanto oportunista quanto<br />
oportu<strong>na</strong>. Firmando prolífica obra <strong>de</strong> raiz contestatória,<br />
que se realiza irônica, concisa, direta; e clan<strong>de</strong>sti<strong>na</strong>,<br />
esquiva, como convém. Banksy parte daí, consentâneo<br />
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ao comu<strong>na</strong>l, perspicaz e ciente <strong>de</strong> que “um muro é uma arma muito gran<strong>de</strong>. É uma das<br />
coisas mais obsce<strong>na</strong>s com as quais você po<strong>de</strong> atingir alguém” (BANKSY, 2002, p. 30,<br />
tradução do autor).<br />
Afi<strong>na</strong>l, o grafite é arte da multidão e é arte para a multidão. Sabe <strong>de</strong> si. Vai a público.<br />
Dá-se ao direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar <strong>no</strong> largo, <strong>no</strong> aberto, <strong>na</strong> praça; <strong>de</strong> brincar pelas ruas, pelos<br />
muros, a um só tempo protestando e divertindo-se. Valoriza a ação inventariante e<br />
replicadora do real, imersa <strong>na</strong> concretu<strong>de</strong>, <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong>; numa produção que acareia<br />
imediatamente o (e <strong>no</strong>) público – tomando-o não como o sujeito optante da experiência,<br />
inter<strong>no</strong> ao espaço institucio<strong>na</strong>l, mas como o espectador-cidadão.<br />
Nesse ir a público, há que se pensar se há mais coragem <strong>na</strong> arte que se dispõe a<br />
qualquer um ou <strong>na</strong>quela que não teme o processo seletivo. Nesse ir a público, a arte se<br />
<strong>de</strong>smistifica. Entrelaça-se à cultura e aproxima-se do consumo, lidimando técnicas,<br />
materiais e raciocínios industriais e <strong>de</strong> massa. Na opção <strong>de</strong> buscar esse engajamento <strong>na</strong>s<br />
formas culturais <strong>de</strong> massa, em abordagem provocativa, e <strong>de</strong>, nessa mesma abordagem<br />
provocativa, rever as posições <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r artísticas, uma possibilida<strong>de</strong> é ir <strong>de</strong> encontro aos<br />
muros sem se machucar: a mais atual incorporação dos muros.<br />
Muros perpétuos e intrínsecos ao homem, enquanto posse e separação (<strong>de</strong> público e<br />
privado, <strong>de</strong> permitido e proibido, <strong>de</strong> visível e invisível, etc.), mas contemporâneos enquanto<br />
incalculáveis <strong>no</strong> fragmentado metropolita<strong>no</strong>, tomados do convívio <strong>de</strong> todas as mensagens;<br />
enquanto potencialida<strong>de</strong> cultural e alavanca artística para uma geração imprensada pela<br />
superpopulação e sua falta <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>, pelo exponencial avanço tec<strong>no</strong>lógico e sua<br />
supressão <strong>de</strong> tempo e distância, pela ocupação regente da mídia e sua conseqüente<br />
supervalorização do sujeito – a celebrização.<br />
Portanto, trata-se sempre <strong>de</strong> uma mesma familiarida<strong>de</strong> com o possível [...].<br />
Na absoluta negativida<strong>de</strong> do oportunismo contemporâneo, <strong>na</strong> adaptação<br />
oportunista, etc., é preciso captar uma espécie <strong>de</strong> aprendizagem da massa<br />
das <strong>no</strong>vas condições do conflito. O ponto é que tanto o mau quanto o bom<br />
<strong>de</strong>rivam ambos <strong>de</strong> um mesmo núcleo, da mesma forma <strong>de</strong> ser. Por<br />
exemplo, o pensamento da esquerda tradicio<strong>na</strong>l con<strong>de</strong><strong>na</strong>, critica o<br />
oportunismo e pensa que o bem consiste em não ter à frente uma relação<br />
com o possível, senão em ter <strong>no</strong>vamente uma vida bem <strong>de</strong>finida. Nossa<br />
idéia era que, ao contrário, a multidão <strong>de</strong> todo modo tem uma forma <strong>de</strong> ser<br />
ligada ao possível, ao contingente. Essa sensibilida<strong>de</strong> pelo contingente<br />
po<strong>de</strong> <strong>de</strong>vir corrupção e oportunismo ou po<strong>de</strong> <strong>de</strong>vir revolta, mas sempre,<br />
tanto <strong>na</strong> base da corrupção quanto <strong>na</strong> base da revolta, está a sensibilida<strong>de</strong><br />
pelo possível contingente. Ambivalência da multidão (VIRNO, 2003, p. 131,<br />
tradução do autor).<br />
O grafite emergiu do a<strong>de</strong>nsamento<br />
urba<strong>no</strong>, contexto que tem por <strong>na</strong>tureza ig<strong>no</strong>rar o<br />
u<strong>no</strong>, o indivíduo. A certidão é a do caos, da<br />
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sujeira e da feiúra. Da eventualida<strong>de</strong> e do cogito. Das provisorieda<strong>de</strong>s sucessivas, pelas<br />
quais “o longínquo <strong>de</strong> países ou épocas irrompe <strong>na</strong> paisagem e <strong>no</strong> instante presente”<br />
(BENJAMIN, 2007, p. 464). A certidão é a do excesso. Talvez pelo inegável encanto <strong>de</strong>sse<br />
excesso, talvez para customizá-lo, talvez por reverência filial, talvez por tendência adquirida<br />
<strong>na</strong>sça a atuação do grafiteiro, para além da contracultura, que já não mais <strong>de</strong>fine por<br />
completo os muros. Sua referência mais direta, como transposição e transformação do<br />
comum em arte, é mesmo a da Arte Pop, patente da Inglaterra <strong>de</strong> meados do século<br />
passado. Parte <strong>de</strong>la o lidar com material previamente existente como sig<strong>no</strong>, material précodificado.<br />
Parte <strong>de</strong>la a inspiração <strong>na</strong>s comunicações <strong>de</strong> massa, <strong>na</strong> mídia, <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong> da<br />
cida<strong>de</strong>, <strong>no</strong>s utensílios industriais e comerciais – uma atitu<strong>de</strong> libertária em relação às<br />
rigorosas divisões estruturais do objeto artístico e aos padrões estabelecidos <strong>de</strong> seus<br />
suportes. Na busca por “outros critérios, além dos aspectos formalistas do mo<strong>de</strong>rnismo<br />
caracterizado pela especificida<strong>de</strong> dos meios, a Pop reposicio<strong>no</strong>u o engajamento com a<br />
gran<strong>de</strong> arte ao longo <strong>de</strong> uma vasta fronteira da cultura” (FOSTER, 2005, p. 148), situando a<br />
primeira em uma continuida<strong>de</strong> à segunda, e vice-versa.<br />
No cerne, a contemporaneida<strong>de</strong> superou ou <strong>de</strong>safiou ou transformou (mais que<br />
substituiu, pois, paradoxalmente, também prorrogou, <strong>na</strong> sobrevida dos <strong>de</strong>svios) o<br />
mo<strong>de</strong>rnismo como formação histórica e acelerou inexorável a indústria cultural, seja em<br />
sentido radial ou diametral, seja em sentido perimetral ou periférico (bem ou mal, hoje<br />
aproximam-se os anseios, as aspirações, os <strong>de</strong>sejos fetichistas). Suspen<strong>de</strong>-se, pois, o<br />
postulado mo<strong>de</strong>rnista <strong>de</strong> rígida recusa à cultura <strong>de</strong> massa, dada a niti<strong>de</strong>z, a correção, a<br />
perfeição estéticas com que se direcio<strong>na</strong>m ao institucio<strong>na</strong>l e/ou com que se reduzem em<br />
campo e em reverberação pública. Suspen<strong>de</strong>-se o ponto crítico mo<strong>de</strong>rnista da dialética com<br />
o imaginário, a visualida<strong>de</strong> e o matérico da cultura <strong>de</strong> massa – comprovados pelo<br />
<strong>na</strong>turalíssimo vínculo do artista ao interesse público, revisto e sempre em sucedâneo, ou em<br />
<strong>de</strong>slocamento. Daí a relutância da maioria dos artistas contemporâneos <strong>de</strong> bem relacio<strong>na</strong>rse<br />
seja aos esquadros mo<strong>de</strong>rnistas, seja aos esquadros multiculturais, em verso crítico e em<br />
verso reflexivo.<br />
Muitos artistas e críticos vêem o presente como afundado num fim <strong>de</strong> jogo<br />
<strong>de</strong> ironia mo<strong>de</strong>rnista para a qual a única resposta é a paródia passiva ou a<br />
recusa purita<strong>na</strong>, mas eu argumentaria que habitamos uma <strong>no</strong>va conjuntura<br />
– não uma nítida ruptura epistêmica (essa é uma observação importante,<br />
<strong>de</strong>vido ao alarme sobre o pós-mo<strong>de</strong>rnismo), mas uma <strong>no</strong>va or<strong>de</strong>m social <strong>de</strong><br />
elementos heterogêneos que <strong>de</strong>mandam uma <strong>no</strong>va posição para a arte<br />
política. (FOSTER, 1996, p. 201-202).<br />
Suspensões em relação às quais o grafite, em geral, e Banksy, em particular, são<br />
síntese da a<strong>de</strong>quação: respon<strong>de</strong>m pendulares entre a<strong>de</strong>rir à cultura <strong>de</strong> massa – selando o<br />
alargamento (ou a ruptura) dos limites culturais – ou, num pastiche, manipular e apropriar-se<br />
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<strong>de</strong> seus termos, tomando-os como clichês midiáticos (<strong>de</strong> todo manipuláveis). Aceitam a<br />
contemporaneida<strong>de</strong> em seu sentido <strong>de</strong> (sobre)vivência – daí visão privilegiada – <strong>no</strong><br />
presente, <strong>de</strong> representação sintomática, e <strong>de</strong> parida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua arte a tantos outros<br />
fenôme<strong>no</strong>s culturais. Aceitam seu tempo: positivamente liberal, <strong>de</strong> prática pluralista, <strong>de</strong><br />
raciocínio pragmático e <strong>de</strong> substrato multicultural. E fazem-<strong>no</strong> recurso.<br />
Suspensões das quais se infere ser o artista urba<strong>no</strong> o que melhor se acomoda, por a<br />
metrópole ser o mais bem-acabado retrato dos dias correntes, e <strong>no</strong> bom senso <strong>de</strong><br />
oportunida<strong>de</strong> do artista coevo e munda<strong>no</strong> consolidar-se também dos melhores suportes.<br />
Para o grafiteiro, a melhor superfície, o melhor expediente e o maior compromisso sempre<br />
serão o espaço da cida<strong>de</strong>, os paradigmas oci<strong>de</strong>ntais em geral, a sintaxe estável <strong>de</strong><br />
instabilida<strong>de</strong>s: tanto seus limites estruturais quanto seus limites sociais, bem como as<br />
circulações, <strong>de</strong>finidoras e re<strong>de</strong>finidoras, <strong>de</strong> uns para os outros. Respeitante a seus rituais, à<br />
sua dogmática maneira, o grafite caminha possibilitando agora um <strong>no</strong>vo capítulo do que já<br />
se po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar sua história estilística, que parte <strong>de</strong> um expressionismo abstrato, o<br />
estágio clássico, firma-se em um pop-psicodélico, virtuose, e agora alcança probida<strong>de</strong><br />
interpretativa, funcio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> conceitual, sem abando<strong>na</strong>r seus termos.<br />
Banksy é epítome <strong>de</strong>ssa pági<strong>na</strong> última, que faz eco, consciente ou não, ao apelo<br />
populista (porque procura o povo) e popular (porque <strong>no</strong> povo se encontra) <strong>de</strong> todos os<br />
muralismos, e que não só aceita como se compraz da convivência <strong>de</strong>sses extremos: a<br />
simplicida<strong>de</strong> do primordial e a sofisticação (referencialista) do contemporâneo, num sistema<br />
<strong>de</strong> representação “em que a elaboração [...] mais diferenciada e mais sutil encontra-se lado<br />
a lado com o riscado mais primitivo” (BOLLE, 1999, p. 153), um sistema que sobrepõe (e <strong>de</strong><br />
certa forma revaloriza) a inscrição e a simples e simplória presença e ocupação do entor<strong>no</strong>,<br />
que estão tanto <strong>na</strong> gênese das artes oci<strong>de</strong>ntais quanto <strong>na</strong> matriz e <strong>na</strong> herança genética dos<br />
muros, por contiguida<strong>de</strong>. Um sistema que sela que<br />
a contemporaneida<strong>de</strong> “cita sempre a pré-história.<br />
Isso ocorre graças à ambiguida<strong>de</strong> própria às<br />
produções e às relações sociais <strong>de</strong>ssa época”<br />
(BENJAMIN, 2007, p. 43). Para o grafiteiro, não há<br />
qualquer problema, e sim <strong>na</strong>tural e confortável<br />
aptidão ao “<strong>de</strong>safio que se colocou para as vanguardas: representar a metrópole mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong><br />
como o espaço da simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tempos históricos diferentes” (BOLLE, 1999, p. 159),<br />
ruí<strong>na</strong>s inclusas, gruas inclusas – <strong>de</strong>monstrando uma vivência assídua, assertiva, aceite e<br />
assistente da atualida<strong>de</strong> extrema, que contém em si um entendimento i<strong>na</strong>to e aquisitivo.<br />
Como ancestralmente, a pulsão é a do retrato da época, do comentário; apesar da<br />
consciência da efemerida<strong>de</strong> – ou justamente por ela –, o impulso é o <strong>de</strong> estancar e cicatrizar<br />
o tempo, <strong>de</strong>ixar o vestígio, o resíduo, a marca, a impressão, o registro <strong>no</strong> espaço<br />
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circundante, não só o que a toda espécie frequenta, mas o que o próprio criador também<br />
frequenta: lembrar ao outro – e a si mesmo – da própria existência, da própria condição.<br />
Uma exigência do verbo e da imagem como assi<strong>na</strong>turas da existência e da igual<br />
importância, como autoinclusão, consi<strong>de</strong>ração e <strong>de</strong>sígnio, como superação imaginária da<br />
facticida<strong>de</strong> majoritariamente insuperável. ‘Escreveu <strong>no</strong> muro’, da mesma forma que ‘leia <strong>na</strong><br />
minha camisa’, é gíria que bem co<strong>no</strong>ta a soma <strong>de</strong> pleito, aposta e certeza. Posição<br />
assumida, partido tomado. Inscrições feitas através <strong>de</strong> inscrições.<br />
Banksy e seus pares procuram, cada qual a seu modo, fotografar polarói<strong>de</strong>s<br />
<strong>urba<strong>na</strong></strong>s, imediatas, da situação circundante e circunstancial, da situação <strong>de</strong> <strong>no</strong>sso mundo;<br />
e, ato contínuo, professam intelecto e professam política –<br />
exercícios <strong>de</strong> comprometimento e fé. A vida <strong>urba<strong>na</strong></strong><br />
incorpora muito mais semelhanças que diferenças: em<br />
qualquer direção, espelha-se o cotidia<strong>no</strong> <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong><br />
cida<strong>de</strong>, que se serve das mesmas infraestruturas e que se<br />
cerca dos mesmos espaços públicos profusos <strong>de</strong> consumo,<br />
copiosos da a<strong>na</strong>rquia publicitária e da insurgência das<br />
pichações. Chega-se a encontrar a mesma exata<br />
propaganda, do mesmo exato produto, lá ou cá. O olhar<br />
predomi<strong>na</strong>nte é hoje o olhar publicitário, que a um só tempo<br />
confronta o indivíduo ao – e o repele do – real. Já se<br />
apresentou pré-codificado o material com que lida o artista urba<strong>no</strong> – particularmente <strong>no</strong><br />
território irma<strong>na</strong>do das pichações, dos grafites, dos estênceis, dos a<strong>de</strong>sivos, dos lambelambes,<br />
relacio<strong>na</strong>dos em simulacro a cartazes, informes, reclames, panfletos, anúncios –<br />
anzóis da difusa atenção passante, muros espessos da varieda<strong>de</strong> exponencial do consumo.<br />
Relacio<strong>na</strong>dos em avesso mimetismo, em antagonismo, é fato, mas aí se indicia a<br />
supremacia do meio reprodutível, a supremacia em <strong>absorção</strong> pública. (Re)aproveitam-se os<br />
sig<strong>no</strong>s por sua inegável eficácia, infalibilida<strong>de</strong> até. (Re)utilizam-se porque até agora <strong>na</strong>da<br />
mais certeiro. O pré-código é a publicida<strong>de</strong>, que superou imune sua crítica, fez-se<br />
onipresente, fez-se benfazeja, fez-se aceita.<br />
Ora, nesse meio tempo as coisas encostaram à queima-roupa <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong><br />
huma<strong>na</strong>. [...] O olhar essencial <strong>de</strong> hoje, o olhar mercantil que penetra <strong>no</strong><br />
coração das coisas, chama-se publicida<strong>de</strong>. Ela <strong>de</strong>smantela o espaço da<br />
contemplação <strong>de</strong>sinteressada confrontando-<strong>no</strong>s perigosamente com as<br />
coisas, assim como, <strong>na</strong> tela <strong>de</strong> cinema, um automóvel, agigantando-se,<br />
avança vibrando para cima <strong>de</strong> nós. [...] O que é que, em última instância,<br />
tor<strong>na</strong> a publicida<strong>de</strong> tão superior à crítica? Não é o que diz o lumi<strong>no</strong>so<br />
vermelho, é a poça <strong>de</strong> fogo que o espelha <strong>no</strong> asfalto (BENJAMIN apud<br />
BOLLE, 1999, p. 143).<br />
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Fruto das <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> seu tempo e <strong>de</strong> seu meio, essa tribo, esse grupo que<br />
estabeleceu o grafite <strong>no</strong> urba<strong>no</strong> contemporâneo é, <strong>de</strong> fato, uma filiação da massificação<br />
que, paradoxalmente (ou costumeiramente), buscou, com seus meios acessíveis, distinguirse:<br />
a cultura hip-hop – uma cultura com todos os atributos, uma cultura <strong>de</strong> linguagem e<br />
estilo, <strong>de</strong> comportamento acima <strong>de</strong> tudo. Um mundo arguto <strong>de</strong> perspicácias, <strong>de</strong> sagacida<strong>de</strong><br />
e truco; <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s maliciosas e astutas; <strong>de</strong> iniciativas, espertezas e sabedorias<br />
aprendidas direta e hereditariamente <strong>na</strong> rua, <strong>no</strong> comunitário.<br />
Um mundo <strong>de</strong> oxímoros, “um mundo a um só tempo cerrado e aberto ao mundo”<br />
(FOSTER, 2003, p. 130). Um mundo hábil que, em proeza, <strong>de</strong>finiu sua imagem, sua revolta<br />
e sua vanguarda precisamente em função do mercado (particularmente a moda e a música),<br />
e ainda assim conservou “um certo estetismo e uma certa ‘pureza política’” (TATE, 1998, p.<br />
119) – não somente aceitando o consumo, mas tomando-o por uma das fundações <strong>de</strong> sua<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> plástica, <strong>na</strong> reversão <strong>de</strong> que “<strong>no</strong>sso sistema sócio-econômico requer a<br />
‘diferença’, uma diferença para ser codificada, consumida, erradicada” (FOSTER, 1996, p.<br />
224).<br />
Esta procura ansiosa não só po<strong>de</strong> comprometer a recuperação do reprimido<br />
ou a diferença perdida (sexual, social, etc.); mas também po<strong>de</strong> promover a<br />
fabricação <strong>de</strong> falsas diferenças, codificadas para o consumo. E, se a<br />
diferença po<strong>de</strong> ser fabricada, também a resistência po<strong>de</strong> sê-lo. Aqui emerge<br />
a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a margi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> crítica ser um mito, um espaço<br />
i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> domi<strong>na</strong>ção on<strong>de</strong>, sob o disfarce do romantismo liberal, a<br />
diferença seja erradicada, e a diferença artificial, criada para ser consumida<br />
(FOSTER, 1996, p. 225).<br />
Em ineditismo, a hip-hop absteve-se da vitimação e apropriou-se da mercadoria <strong>de</strong><br />
sua própria expressão com tal muramento que impediu que qualquer (in)corporativo o<br />
fizesse. Ineditismo que gerou <strong>no</strong>torieda<strong>de</strong>: “vários autores acreditam que a Hip Hop será<br />
reconhecida como um movimento autêntico do século XX, com a mesma dimensão histórica<br />
<strong>de</strong> um Cubismo, dos movimentos Dada e Bepop, à qual presta tributo” (TATE, 1998, p. 119).<br />
Ineditismo maior, fez tudo isso preservando autenticida<strong>de</strong> – e credibilida<strong>de</strong>. Semiauto<strong>no</strong>mia.<br />
Mantendo – ou centralizando – seu caráter periférico, seu contexto origi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> instância <strong>de</strong><br />
excluídos que se incluem por si; comprovam-<strong>no</strong> as constantes e malsucedidas tentativas <strong>de</strong><br />
unificação pelo sistema (mercado da moda, publicida<strong>de</strong>, etc.), tentativas <strong>de</strong> subordi<strong>na</strong>ção,<br />
conversão ou reinterpretação que jamais obtiveram os resultados usuais. A hip-hop segue<br />
hermética e autossustentada – e <strong>no</strong>tória –, e, por fim, o sistema (que sempre se arrogou as<br />
tendências) é que teve <strong>de</strong> adaptar sua estrutura às<br />
exigências <strong>de</strong>la – e acolhê-la integral. Ela ultrapassou o<br />
reclame <strong>de</strong> margi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> que lhe fora <strong>de</strong>finição para<br />
8
Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
exercer “pressão sobre as dimensões totalizantes da cultura capitalista” (FOSTER, 2003, p.<br />
139), <strong>de</strong>safiou esta cultura com seus próprios mecanismos fetichistas <strong>de</strong> privação e<br />
evocações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e, por consequência, nessa brecha do muro, nessa fenda, questio<strong>no</strong>u<br />
a idoneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aposição e a alegação comu<strong>na</strong>l daquela. “Assim, estas práticas indicam<br />
uma semi-auto<strong>no</strong>mia <strong>de</strong> gênero ou meio, mas <strong>de</strong> um modo reflexivo que se abre a questões<br />
sociais” (FOSTER, 2003, p. 130). A hip-hop impôs-se, e segue imposta.<br />
Deste processo surge, quase organicamente, um paradoxo. As práticas ou<br />
exercícios radicais que <strong>no</strong> passado protegiam-se [sic] em sua própria<br />
margi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> e isolamento <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> fronteiras <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is ou circuitos<br />
culturais particulares, e que potencializavam esse radicalismo em parte<br />
graças ao fato <strong>de</strong> que se circunscreviam a um meio social específico; e que<br />
a<strong>de</strong>mais tinham a vantagem <strong>de</strong> lidar com um circuito cultural eticamente<br />
insensível, agora se encontram expostos a <strong>no</strong>vos tipos <strong>de</strong> exame global que<br />
avaliam sua legitimida<strong>de</strong> enquanto produtos culturais. [...] Nos diferentes<br />
âmbitos, institucio<strong>na</strong>l e contracultural, pe<strong>de</strong>-se o mesmo: que a obra [...]<br />
possa se apoiar em justificações morais ou políticas. Exige-se, então, uma<br />
lógica <strong>de</strong> os-fins-justificam-os-meios que confira um propósito às séries <strong>de</strong><br />
ações cujo elemento comum é a representação estética <strong>de</strong> diferentes<br />
formas <strong>de</strong> injustiça. [...] Acaso ganham algo sendo percebidas como ações<br />
habitadas por uma eco<strong>no</strong>mia moral? Acaso seria melhor discuti-las<br />
prescindindo da suposição <strong>de</strong> uma estrutura <strong>de</strong> fi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> social? (MEDINA,<br />
2005, p. 106-109 passim, tradução do autor).<br />
Trata-se, <strong>na</strong> inteligência do ‘possível’ <strong>de</strong> Vir<strong>no</strong>, <strong>de</strong> obter voz <strong>na</strong> contemporaneida<strong>de</strong>.<br />
Trata-se <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va ética em formação, uma ética que, conjuntamente à psique huma<strong>na</strong> e<br />
à psicopatia social, encontra-se <strong>no</strong> cerne das contradições da socieda<strong>de</strong> atual e <strong>no</strong> calor <strong>de</strong><br />
seus <strong>de</strong>bates. Mas não me<strong>no</strong>s ética por <strong>no</strong>va ou por em formação. Uma ética que, enquanto<br />
obra <strong>de</strong> arte, reconheça que “contém certos limites auto-impostos, próprios da condição<br />
estética. Como obras <strong>de</strong> arte, estas ações possuem fronteiras inter<strong>na</strong>s específicas e/ou<br />
momentos <strong>de</strong> neutralização. Embora situadas em um limite ético provisório, re<strong>de</strong>finem este<br />
mesmo limite sem a intenção <strong>de</strong> negá-lo” (MEDINA, 2005, p. 114, tradução do autor).<br />
Ver essas práticas como passivas não é ape<strong>na</strong>s cair numa falsa oposição<br />
(ativo/passivo, prático/teórico); mas também se enga<strong>na</strong>r sobre a posição da<br />
arte crítica em <strong>no</strong>ssa formação cultural, pois evi<strong>de</strong>ntemente esse não é um<br />
momento <strong>de</strong> confronto <strong>no</strong> sentido político clássico. Enquanto muitos<br />
i<strong>de</strong>ólogos <strong>de</strong> direita e <strong>de</strong> esquerda se atacam em público, as operações do<br />
po<strong>de</strong>r político real permanecem obscuras ou são tão espetaculares que<br />
cegam a revisão crítica. De fato, po<strong>de</strong> ser que a tarefa da arte política seja<br />
não ape<strong>na</strong>s a <strong>de</strong> resistir a essas operações, mas chamá-las ou trazê-las<br />
para fora mediante a provocação “terrorista” – literalmente fazer com que<br />
tais operações como a vigilância ou o controle <strong>de</strong> informações se tornem<br />
vividamente públicas – ou, <strong>de</strong> maneira inversa, negar ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />
intimidação sua parte (FOSTER, 1996, p. 203-204).<br />
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Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
Essa <strong>no</strong>va era e essa <strong>no</strong>va ética con<strong>de</strong>nsam, para o artista extra-institucio<strong>na</strong>l, uma<br />
estratégia benig<strong>na</strong>, <strong>de</strong> contrarieda<strong>de</strong>s mais inerentes que repelentes. Banksy é <strong>de</strong>ssa cepa<br />
<strong>de</strong> grafiteiro, e <strong>de</strong>la é expoente. É comumente chamado <strong>de</strong> arte-terrorista, <strong>de</strong> artista <strong>de</strong><br />
guerrilha, <strong>no</strong> que os termos comportem em <strong>no</strong>ssos dias. Seu método é lacônico, objetivo;<br />
flui pela imediaticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mensagem. De<strong>no</strong>ta imanência, ciência <strong>de</strong> si e autossuficiência.<br />
Sua linguagem contextualiza ícones ou obras<br />
clássicas, cultura pop, expressões<br />
antiglobalização cultural e econômica,<br />
anticapitalismo e muitos conceitos pacifistas. É<br />
um artista obsti<strong>na</strong>do, persistente e<br />
empreen<strong>de</strong>dor. É um artista te<strong>na</strong>z – e essa é<br />
uma qualida<strong>de</strong> atual a se atribuir a um artista,<br />
ligada à competitivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssos dias. Opera<br />
em origi<strong>na</strong>l apropriação, inter<strong>na</strong> ou exter<strong>na</strong> às divisas dos muros; produz um terrorismo<br />
suave, limpo, <strong>de</strong>sarmado, algo <strong>no</strong>bre, que <strong>na</strong>da retira, <strong>na</strong>da <strong>de</strong>strói; ao contrário, ape<strong>na</strong>s<br />
acrescenta, ape<strong>na</strong>s coloca. Opera, como artista, em raias inter<strong>na</strong>s particulares,<br />
autoimpostas e autorreguladas, específicas à circunstância estética, limites que não se<br />
rematam, igualmente certeiros e incertos. Limites éticos provisórios, elásticos <strong>de</strong><br />
contemporaneida<strong>de</strong>, constantemente suspensos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcados a remarcados, <strong>na</strong> intenção<br />
da sua própria procura mais que da sua refutação. Banksy:<br />
Você po<strong>de</strong> dizer que o grafite é feio, egocêntrico e que é tão somente um<br />
gesto <strong>de</strong> pessoas que <strong>de</strong>sejam algum tipo patético <strong>de</strong> fama. Mas se isso é<br />
verda<strong>de</strong>, é ape<strong>na</strong>s porque os grafiteiros são exatamente como todo o<br />
mundo nesta porcaria <strong>de</strong> país. Alguém me perguntou recentemente se eu<br />
consi<strong>de</strong>ro que a maioria dos grafiteiros <strong>na</strong> verda<strong>de</strong> são artistas frustrados<br />
como eu. Bem, eu sou frustrado por muitas coisas, mas tentar ser aceito<br />
pelo mundo da arte não é uma <strong>de</strong>las. Isto parece difícil para algumas<br />
pessoas enten<strong>de</strong>rem - você não grafita <strong>na</strong> vã esperança <strong>de</strong> que um dia<br />
algum conservador obeso o <strong>de</strong>scobrirá e porá suas obras <strong>na</strong> pare<strong>de</strong> <strong>de</strong>le<br />
(BANKSY, 2002, p. 05, tradução do autor).<br />
A amálgama <strong>de</strong> contemporaneida<strong>de</strong> e a<strong>no</strong>nimato permite proezas, permite<br />
arquitetar-se em terceira pessoa (atestam as três coletâneas editadas <strong>de</strong> seus trabalhos<br />
serem <strong>de</strong> sua própria autoria), permite inventar a si próprio como autor in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />
da curadoria, da aprovação, da validação crítica, com o auxílio da eficácia da rua, on<strong>de</strong> a<br />
arte é direcio<strong>na</strong>da diretamente ao passante e a ele imposta, abrangendo um gran<strong>de</strong>,<br />
heterogêneo, anônimo e in<strong>de</strong>finido número <strong>de</strong> pessoas; um público transitório em trânsito,<br />
<strong>na</strong>da intencio<strong>na</strong>l, muitas vezes imotivado ou <strong>de</strong>satento à observação, indistinto entre o<br />
‘passar pelas coisas’ e ‘as coisas passarem por ele’. Mas um público incontornável, por<br />
testemunho (obrigatório e habitual) já conhecedor dos câ<strong>no</strong>nes da grafitagem. Então, o<br />
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Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
entendimento é mais imediato, anexa cognição prévia; a crítica é quase sempre imediadora.<br />
A forma, portanto, dispõe-se à função, que em Banksy é o questio<strong>na</strong>mento, a provocação, a<br />
incitação.<br />
O fomento, o incentivo. Os talheres. Que <strong>na</strong>scem da vigília, do zelo. Da sentinela.<br />
Que se consolidam através do interposto, do permeio – e que se concluem mistos entre o<br />
interferente e o absorvido.<br />
Além disso, o lugar público é aci<strong>de</strong>ntado, é perigoso, é parkour 1 , e po<strong>de</strong> tor<strong>na</strong>r a<br />
obra indiscernível: o grafite generalizado surge <strong>no</strong> urba<strong>no</strong> <strong>de</strong> maneira inesperada,<br />
indiscrimi<strong>na</strong>da e tantas vezes gratuita, intenta a interferência, mas arrisca-se à fusão, à<br />
incorporação <strong>no</strong> entor<strong>no</strong> randômico; o bombar<strong>de</strong>io visual sofrido pelo transeunte, somado à<br />
roti<strong>na</strong> do trajeto, traz o cansaço do olhar – e consequente indiferença (e aí, paradoxalmente,<br />
o trabalho será mais <strong>no</strong>tado, e mais bem <strong>no</strong>tado, por aqueles, mais trei<strong>na</strong>dos, que já<br />
frequentam a galeria, o museu, os espaços i<strong>de</strong>ntificados). E mais: o cenário é também<br />
proibido, o que tor<strong>na</strong> o grafite efêmero, porque apagável. Daí o ativismo do imediato,<br />
associado ao momento, à história instante e impen<strong>de</strong>nte – e <strong>de</strong> bom grado sujeito à<br />
superação, ao esquecimento, à dissolução <strong>na</strong> realida<strong>de</strong>. Essa efemerida<strong>de</strong> prenuncia em si<br />
o fim da significação, mas também, ou por isso mesmo, aumenta o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> convencimento.<br />
Como já bem cabe e chega a ser compulsório, exposições convencio<strong>na</strong>is, e vendas<br />
a bom preço, também estão <strong>no</strong> repertório <strong>de</strong> Banksy, posto sua surpreen<strong>de</strong>nte capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> autoinserir-se, <strong>de</strong> emergir, posto também que já há espaços <strong>de</strong>dicados à diferença.<br />
1 Le Parkour (o percurso) ou Free Running (trajeto livre), o mais <strong>no</strong>vo esporte: superação <strong>de</strong> obstáculos em veloz<br />
<strong>de</strong>slocamento pelo urba<strong>no</strong>, a exemplo <strong>de</strong> correr por coberturas <strong>de</strong> edifícios, saltando <strong>de</strong> uma a outra, <strong>de</strong>scer<br />
fossos <strong>de</strong> elevador, escalar e pular muros elevados, entre outras incontáveis modalida<strong>de</strong>s.<br />
11
Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
Os próprios ‘irregulares da arte’ não escapam a essas regras <strong>de</strong><br />
homologação que continuam sempre válidas. A ‘arte bruta’ adquiriu [...] seu<br />
local permanente <strong>de</strong> exposição. [...] Assim a ‘não-cultura’ <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ser<br />
tributária da ‘cultura asfixiante’. Mas tor<strong>na</strong>ndo-se, por seu tur<strong>no</strong>, uma cultura<br />
com ple<strong>no</strong>s direitos à qual é preciso pagar tributo. O <strong>de</strong>vir-arte leva os<br />
‘a<strong>na</strong>rtistas’ a darem sua colaboração (DEBRAY, 1993, p. 226).<br />
E posto ainda que há sempre uma tentativa <strong>de</strong> assimilação do sistema: as galerias<br />
absorvem os grafiteiros, por conseguinte marcas anônimas tor<strong>na</strong>m-se assi<strong>na</strong>turas célebres,<br />
do supracitado Basquiat ou Keith Haring até, bem recentemente, a dupla brasileira<br />
‘osgemeos’ (gêmeos <strong>de</strong> fato). O oficial reivindica o paralelo: em parte, porque o que parece<br />
um jogo <strong>de</strong> provocação cultural é tantas vezes um atalho e um pleito para reconhecimento<br />
público; em parte, por retroalimentação e necessida<strong>de</strong> do <strong>no</strong>vo, ou para subverter o<br />
subversivo.<br />
As discussões sobre arte estão focadas em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> um tema essencial: o<br />
que significa ser um artista 'bem-sucedido' trabalhando <strong>no</strong> mundo atual? [...]<br />
Por esta premissa, é importante engalfinhar-se com <strong>no</strong>sso mo<strong>de</strong>lo cultural,<br />
para enten<strong>de</strong>r como ele afeta <strong>no</strong>sso jeito <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong>termi<strong>na</strong> o que nós<br />
queremos. [...] Há alguma maneira, então, <strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixar o paradigma<br />
domi<strong>na</strong>nte sob o qual nós existimos atualmente <strong>de</strong>finir quem nós somos? E<br />
em qual nível, então, o pessoal ou o cultural, o problema po<strong>de</strong> ser<br />
solucio<strong>na</strong>do? (GABLIK, 1991, p. 2-3, tradução do autor).<br />
Aí a enunciação: para a arte valem mais a comunicação e a significação em si ou o<br />
padrão <strong>de</strong> produção e recepção que a encerra mas lhe dá abrigo, suporte e turma, o espaço<br />
galeria/museu? Espaço que – por ter a quase neutralida<strong>de</strong> como local <strong>de</strong> acolhimento –<br />
<strong>de</strong>staca a obra, a mostra isoladamente, lhe dirige toda a atenção. Espaço que, por outro<br />
lado, é também um sistema <strong>de</strong> conivências, é<br />
um comando implícito, é uma liberda<strong>de</strong> vigiada.<br />
Esse enunciado não parece tanto comprometer<br />
a ética ou a valida<strong>de</strong> da arte e dos artistas <strong>de</strong><br />
ambos os lados do muro quanto expor uma<br />
simbiose <strong>de</strong> práticas <strong>no</strong>s dois campos, e então,<br />
proveitosamente, <strong>de</strong>scerrar uma janela, uma<br />
interseção, um vetor <strong>de</strong> circularida<strong>de</strong>. E<br />
explicitar a fragilida<strong>de</strong> das auto<strong>no</strong>mias, bem como dos argumentos, <strong>na</strong> inexistência <strong>de</strong> outra<br />
construção <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong> e efetivida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> outra tessitura <strong>de</strong> imperativos. Esboça-se um<br />
silogismo.<br />
Banksy não se furta aos duradouros recortes da hip-hop, enquanto pesquisa ética<br />
contemporânea. De todo modo, para a arte que se quer crítica, intervir <strong>no</strong> posicio<strong>na</strong>mento<br />
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Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
institucio<strong>na</strong>l do objeto <strong>de</strong> arte ou reivindicar uma instância cultural própria, negativa e<br />
margi<strong>na</strong>l, po<strong>de</strong>m não funcio<strong>na</strong>r tão bem quanto criticar a tradição usando as formas <strong>de</strong>ssa<br />
tradição: ser lícito, opor-se à cultura domi<strong>na</strong>nte <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la; usar a submissão como<br />
morada e senda para a subversão; ser visto numa forma culturalmente privilegiada – a<br />
galeria, o museu – e nela conquistar autenticida<strong>de</strong> e reconhecimento para subverter a<br />
subversão do subversivo. Banksy:<br />
3. SACIEDADE ANÔNIMA<br />
De fato, […] grafite é por <strong>de</strong>finição bastante proscrito. A maioria dos<br />
conselhos municipais está comprometida com a remoção <strong>de</strong> grafites<br />
ofensivos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> 24 horas; qualquer coisa racista, machista ou<br />
homofóbica, eles enviarão um time <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> 24 horas. Mas, seja como for,<br />
se é 'arte' em uma galeria, os limites do gosto não estão assim tão<br />
rigidamente <strong>de</strong>finidos (BANKSY, 2003, não pagi<strong>na</strong>do, tradução do autor 2 ).<br />
Banksy ficou conhecido ao <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se da exclusivida<strong>de</strong> ao aerossol<br />
(compactuando a alter<strong>na</strong>tiva do coletivo autoral), ampliando e diversificando o leque do<br />
artista urba<strong>no</strong>, em compromisso criativo e <strong>de</strong>scompromisso formal – <strong>na</strong>da mais<br />
contemporâneo. Disten<strong>de</strong> sua obra, primeiramente,<br />
dos muros em direção a todo o mobiliário urba<strong>no</strong>,<br />
arrogando-se <strong>de</strong>ste e revisando seus sig<strong>no</strong>s, a<br />
exemplo <strong>de</strong> infindáveis interferências sobre as<br />
estabelecidas câmeras <strong>de</strong> vigilância pública<br />
londri<strong>na</strong>s, ou sobre o seu tráfego rodoviário, <strong>no</strong> hilário<br />
proveito das placas (criando si<strong>na</strong>lizações políticas,<br />
relacio<strong>na</strong>is ou mesmo absurdas, a partir do acréscimo<br />
situacionista <strong>de</strong> poucos elementos, combi<strong>na</strong>dos ao si<strong>na</strong>l origi<strong>na</strong>l) e dos cones viários –<br />
induzindo percursos anárquicos tanto para os pe<strong>de</strong>stres quanto para os veículos. Ou sobre<br />
os monumentos públicos clássicos, heróicos <strong>de</strong> rememoração cível, épicos <strong>de</strong> memória<br />
coletiva, mas agora quase i<strong>na</strong>preendidos em sua historicida<strong>de</strong>, ressignificados <strong>no</strong> excesso<br />
urba<strong>no</strong> e <strong>no</strong> corriqueiro, quase disfuncio<strong>na</strong>is em seu propagandismo <strong>no</strong> hoje. Banksy:<br />
2 Entrevista a Simon Hattenstone.<br />
Escultura <strong>urba<strong>na</strong></strong>: se você quer que alguém seja ig<strong>no</strong>rado então construa<br />
uma estátua <strong>de</strong> bronze <strong>de</strong>le em tamanho <strong>na</strong>tural e finque-a <strong>no</strong> meio <strong>de</strong><br />
cida<strong>de</strong>. Não importa o quão gran<strong>de</strong> você foi, sempre será necessário um<br />
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Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
bêbado sem graça com tendências alpinistas para fazer as pessoas o<br />
<strong>no</strong>tarem (BANKSY, 2005, p. 180, tradução do autor).<br />
Assim, instala trancas idênticas às do <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> trânsito <strong>na</strong>s rodas <strong>de</strong><br />
triunfalistas bigas escultóricas, imobilizando o imóvel – e referindo-se à igualda<strong>de</strong>. Ou às<br />
diferenças <strong>de</strong> tratamento <strong>de</strong>ntro da igualda<strong>de</strong> huma<strong>na</strong>, afi<strong>na</strong>l os monumentos são também<br />
imposição e interposição, obrigam a olhar e a contor<strong>na</strong>r, <strong>no</strong> melhor exemplo do polêmico<br />
Tilted Arc <strong>de</strong> Richard Serra. Assim, dispõe seu próprio monumento, <strong>de</strong> seis metros <strong>de</strong> altura<br />
e três toneladas e meia <strong>de</strong> sólido bronze, em ple<strong>na</strong> praça <strong>no</strong>s arredores <strong>de</strong> Londres: sua<br />
versão <strong>de</strong> uma alegoria da Justiça – vendada e portando <strong>na</strong>s mãos os <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ntes<br />
atributos da espada e da balança, mas <strong>de</strong> botas <strong>de</strong> couro e saia suspensa, divisando a<br />
calcinha e o loro também <strong>de</strong> couro, <strong>no</strong><br />
qual se pren<strong>de</strong> um maço <strong>de</strong> <strong>no</strong>tas <strong>de</strong> dinheiro. Uma<br />
versão da justiça entre a<br />
prostituição e o sadomasoquismo,<br />
que guarda – <strong>na</strong> postura em pé<br />
(sobre um sugestivo globo), <strong>na</strong><br />
roupagem e <strong>no</strong> nimbo –<br />
propositada a<strong>na</strong>logia à Estátua da<br />
Liberda<strong>de</strong> <strong>no</strong>rte-america<strong>na</strong>; e a<br />
cuja i<strong>na</strong>uguração assomou<br />
e<strong>no</strong>rme assistência (em meio à<br />
qual se suspeitou <strong>de</strong> sua própria presença), <strong>de</strong>monstrando sua ascen<strong>de</strong>nte popularida<strong>de</strong>,<br />
seu inegável apelo popular.<br />
Esse <strong>de</strong>slocamento da arte mediante <strong>de</strong> seu próprio suporte, mediante <strong>de</strong><br />
seu próprio espetáculo, é ao mesmo tempo uma estratégia característica e<br />
uma <strong>de</strong>monstração histórica [...]. Esse emaranhamento é um <strong>de</strong>slocamento<br />
contínuo – a tal ponto que o leitor(a) começa a ver, em primeiro lugar, que<br />
ele(a) não é o indivíduo autô<strong>no</strong>mo <strong>de</strong> crenças livres tanto quanto um sujeito<br />
inserido [...] e, em segundo lugar, que essa inserção po<strong>de</strong> ser mudada<br />
(FOSTER, 1996, p. 146-150).<br />
Além do espaço público das ruas, Banksy passa a agir em pontual interferência<br />
sobre outros espaços públicos, a exemplo <strong>de</strong> zoológicos, como o <strong>de</strong> Melbourne, on<strong>de</strong>, entre<br />
outras peripécias, distribuiu a macacos e orangotangos (que <strong>de</strong> bom grado exibiram)<br />
cartazes <strong>no</strong>s quais se lia: “Socorro, ninguém me <strong>de</strong>ixará<br />
voltar para casa”, ou “Sou uma celebrida<strong>de</strong>, tirem-me<br />
daqui”. Ou o <strong>de</strong> Barcelo<strong>na</strong>, on<strong>de</strong> aplicou diretamente<br />
sobre a pele do elefante um estêncil reproduzindo as<br />
linhas inscritas que os prisioneiros cinematográficos<br />
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Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
utilizam para marcar a passagem dos dias. Banksy: “Grafitar zoológicos é brilhante porque<br />
você está vozeando aquele que não tem nenhuma voz – o que é a razão do surgimento do<br />
grafite” (BANKSY apud WARREN, 2002, não pagi<strong>na</strong>do, tradução do autor).<br />
Ou a exemplo da matriz <strong>no</strong>rte-america<strong>na</strong> da Disneylândia, on<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro mesmo das<br />
cercas setoriais do brinquedo Thun<strong>de</strong>r Mountain, alojou um ‘prisioneiro <strong>de</strong> Guantá<strong>na</strong>mo<br />
inflável’, um balão antropomórfico com os característicos<br />
uniforme laranja, cabeça ensacada e punhos algemados –<br />
num retor<strong>no</strong> ao raciocínio da cáustica performance/instalação<br />
realizada em 2004 em ple<strong>na</strong> turbulenta Picadilly Circus, praça<br />
que é a confluência <strong>de</strong> cinco movimentadas alamedas, além<br />
<strong>de</strong> estação <strong>de</strong> metrô, <strong>no</strong> coração <strong>de</strong> Londres. Fantasiado<br />
como o perso<strong>na</strong>gem Ro<strong>na</strong>ld McDo<strong>na</strong>ld, Banksy lá soltou, à<br />
luz do dia e à vista <strong>de</strong> todos, um boneco <strong>de</strong> proporção infantil,<br />
preso a um balão com as cores características e a insígnia da<br />
mundialmente arraigada re<strong>de</strong> <strong>de</strong> lanchonetes, em referência à<br />
sensação <strong>de</strong> perda impotente que temos quando balões se<br />
soltam <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssas mãos, conclusa <strong>no</strong> comentário <strong>de</strong> que o<br />
“McDo<strong>na</strong>ld’s está roubando <strong>no</strong>ssas crianças” (BANKSY, 2005,<br />
p. 185, tradução do autor), <strong>na</strong> dupla leitura que tal comentário<br />
suscita. Segundo ele, o balão sobreviveu sobrevoando a<br />
região por <strong>no</strong>ve horas, até per<strong>de</strong>r pressão e ser abalroado por<br />
um ônibus. Fi<strong>na</strong>l sintomático.<br />
Banksy ganhou mais <strong>no</strong>torieda<strong>de</strong> por esten<strong>de</strong>r suas<br />
invasões, com total primazia, às galerias e aos museus, como<br />
a Tate Britain e o Louvre, e lá inserir suas obras, até serem<br />
i<strong>de</strong>ntificadas (e então retiradas ou propositadamente<br />
incorporadas ao acervo) – <strong>de</strong>scobertas que ocorrem,<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do local, <strong>no</strong> intervalo <strong>de</strong> poucas horas até vários<br />
dias. Inserções que incluem resquícios urba<strong>no</strong>s (como<br />
carrinhos <strong>de</strong> supermercado e cones viários) impressos em<br />
cópia <strong>de</strong> paisagem lacustre <strong>de</strong> Monet, o <strong>de</strong>spetalar e murchar<br />
dos caules dos girassóis <strong>de</strong> Van Gogh, um típico hooligan<br />
quebrando a vidraça do emblemático Nighthawks <strong>de</strong> Hopper<br />
(tor<strong>na</strong>ndo-o diversamente emblemático), até o popular Smile,<br />
em substituição ao enigmático rosto da Mo<strong>na</strong> Lisa; e tantas<br />
outras intervenções por ele elaboradas sobre cópias <strong>de</strong> obras<br />
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Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
re<strong>no</strong>madas ou sobre reproduções anônimas, <strong>de</strong> autoria perdida, compradas em feiras, <strong>de</strong><br />
certo caráter acadêmico, facilmente i<strong>de</strong>ntificável com o (pré)conceito <strong>de</strong> museu. E<br />
adicio<strong>na</strong>ndo, à perfeição, as molduras e as etiquetas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação técnica, em<br />
semelhança às do museu em questão. Essas ‘arte-invasões’ enxertam suas obras burlando<br />
causticamente não ape<strong>na</strong>s a vigilância, mas especialmente o acesso, o processo seletivo e<br />
a autorização. Demonstram a consciência do artista contemporâneo em relação às<br />
suspensões espaciais. E aos paradoxos do sítio específico, em que pese tais atos só<br />
produzirem exatidão <strong>de</strong> sentido <strong>no</strong>s espaços institucio<strong>na</strong>is, não somente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong>les,<br />
mas os fazem ferramentas constitutivas e partícipes da ação.<br />
O objeto <strong>de</strong> contestação continua sendo, em gran<strong>de</strong> parte, a instituição <strong>de</strong><br />
arte burguesa/capitalista (o museu, a aca<strong>de</strong>mia, o mercado e a mídia); bem<br />
como suas <strong>de</strong>finições exclu<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> arte, artista, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e<br />
comunida<strong>de</strong>.[...] Esses acontecimentos também constituem uma<br />
série <strong>de</strong> mudanças <strong>no</strong> que se refere ao lugar da arte: da superfície<br />
do meio ao espaço do museu, das molduras institucio<strong>na</strong>is para as<br />
re<strong>de</strong>s discursivas (FOSTER, 2005, p. 138-144).<br />
Postura astuciosa, que forja seu abo<strong>no</strong>, sua<br />
permissão. Releitura contemporânea das ações<br />
situacionistas críticas à arte institucio<strong>na</strong>lizada, <strong>de</strong>fensoras<br />
da criação <strong>de</strong> conjunturas, nesse caso objetuais, ao<br />
incorporar-se a obras alheias, numa reestruturação do meio<br />
respeitante aos recursos origi<strong>na</strong>is. Uma reestruturação que<br />
tanto se integra quanto reconstitui: <strong>no</strong>va produção <strong>de</strong><br />
sentido numa segunda camada plástica sobre o mesmo<br />
suporte, que se sustenta autoral e criticamente <strong>no</strong> diálogo<br />
com a prece<strong>de</strong>nte, a corroborar a idéia <strong>de</strong> que não há uma<br />
obra situacionista, mas um uso situacionista da obra. Um<br />
<strong>de</strong>svio que se propõe inter<strong>no</strong> aos campos tradicio<strong>na</strong>is da<br />
arte, como um método <strong>de</strong> reclame e <strong>de</strong> campanha que<br />
supõe um <strong>de</strong>sgaste e uma perda <strong>de</strong> importância <strong>de</strong>stes<br />
campos. No fortuito, <strong>no</strong> autossustentado e <strong>no</strong> autoimposto,<br />
Banksy conserva-se <strong>na</strong>s tradicio<strong>na</strong>is disposições da cultura<br />
<strong>urba<strong>na</strong></strong> e da grafitagem, mas parece dar continuida<strong>de</strong><br />
mesmo aos i<strong>de</strong>ários situacionistas (que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Maio <strong>de</strong> 68<br />
estiveram mesmo entrelaçados às ruas, aos muros, aos<br />
grafites); se não intencio<strong>na</strong>lmente, então como uma prova<br />
da gran<strong>de</strong> influência cultural que estes exerceram e<br />
16
Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
exercem – como divisores, como marcos, como paradigmas – <strong>na</strong>s instâncias políticas das<br />
artes em geral, e, por conseguinte, das artes <strong>urba<strong>na</strong></strong>s em particular. Banksy: “Se você quer<br />
sobreviver como grafiteiro quando vai para interiores, sua única alter<strong>na</strong>tiva é prosseguir<br />
pintando em cima <strong>de</strong> coisas que não lhe pertencem lá tampouco” (BANKSY, 2005, p. 128-<br />
140, passim, tradução do autor).<br />
A tradução habitual do conceito – <strong>de</strong>svio – não incorpora outros sentidos do termo<br />
situacionista origi<strong>na</strong>l francês, détournement, como ‘rapto’ ou ‘subversão’, mas emprega-se<br />
como abreviação da fórmula: ‘<strong>de</strong>svio <strong>de</strong> elementos<br />
estéticos pré-fabricados’. Buscaria <strong>de</strong>spertar, através<br />
do choque, a espontaneida<strong>de</strong> perdida <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong>, um<br />
choque entre a percepção acostumada e a realida<strong>de</strong><br />
apresentada. Para <strong>de</strong>sviar as <strong>de</strong>satenções<br />
corriqueiras do olhar, propunha a inserção <strong>de</strong><br />
elementos <strong>de</strong> estranheza, <strong>na</strong> apropriação e<br />
reorganização criativa <strong>de</strong> objetos preexistentes – um<br />
processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontextualização e recontextualização. Invariavelmente implantadas sobre<br />
reproduções figurativas, tais dissonâncias compositivas contrastam a placi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> retratos e<br />
a calmaria <strong>de</strong> paisagens, posicio<strong>na</strong>ndo a fruição estética, para o espectador, em abalo, com<br />
acréscimos também figurativos – representações axiomáticas, evi<strong>de</strong>ntes, objetivas e<br />
<strong>de</strong>nunciativas <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s e urgências atuais; quase jor<strong>na</strong>lísticas. Essas obras remetem<br />
diretamente a uma série <strong>de</strong> trabalhos apresentados em 1959 pelo artista di<strong>na</strong>marquês Asger<br />
Jorn, eminente integrante da Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Situacionista, que “mostrou suas ‘Figuras<br />
Modificadas’ <strong>na</strong> Galeria Rive Gauche, [...] em Paris: eram vinte pinturas kitsch que Jorn<br />
havia ‘alterado como détournement’, através <strong>de</strong> manchas coloridas e modificações <strong>na</strong>s<br />
figuras” (HOME, 1999, p. 61). Banksy dá um passo outro, um passo performático, <strong>no</strong><br />
entranhamento das obras diretamente <strong>de</strong>ntro dos espaços institucio<strong>na</strong>is, o que cria em si<br />
uma ‘situação’, além <strong>de</strong> valer-se <strong>de</strong> ‘situações construídas’ 3 para conseguir realizar as<br />
inserções, a exemplo do uso <strong>de</strong> um par <strong>de</strong> atores representando homossexuais<br />
estereotipados, numa barulhenta e tumultuosa briga <strong>de</strong> casal que atraiu todas as atenções –<br />
<strong>de</strong> espectadores e <strong>de</strong> seguranças – <strong>de</strong>ntro do Metropolitan Museum of Art <strong>de</strong> Nova York,<br />
abrindo caminho para que pu<strong>de</strong>sse incluir tranqüilamente seu trabalho em outra ala do<br />
museu. Banksy:<br />
3 Outro conceito situacionista, referente a momentos construídos concreta e <strong>de</strong>liberadamente para a organização<br />
coletiva <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> acontecimentos, criando situações, intervindo diretamente sobre o entor<strong>no</strong>, reunindo<br />
os meios para uma extensão quantitativa e qualitativa das interferências – conceito que se paraleliza aos <strong>de</strong><br />
happening e <strong>de</strong> performance.<br />
17
Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
Torne-se bom em ludibriar e você nunca precisará tor<strong>na</strong>r-se bom em mais<br />
<strong>na</strong>da. [...] Depois <strong>de</strong> fixar o quadro eu tive cinco minutos para assistir o que<br />
aconteceu em seguida. Um mar <strong>de</strong> pessoas passou, fitou e partiu,<br />
parecendo confusas e ligeiramente enga<strong>na</strong>das. Senti-me como um<br />
verda<strong>de</strong>iro artista contemporâneo (BANKSY, 2005, p. 142 et seq., tradução<br />
do autor).<br />
Banksy aí se coloca como invasor periférico, forasteiro, coerentemente à proposta.<br />
Mas se coloca como paralelo, como exter<strong>no</strong>, não ape<strong>na</strong>s ao espaço convencio<strong>na</strong>l da arte,<br />
mas também à acepção <strong>de</strong> contemporaneida<strong>de</strong> <strong>na</strong> arte, que <strong>de</strong> fato o abrange.<br />
O abrange como o enfant terrible 4 tradicio<strong>na</strong>l das artes, mas o abrange à exatidão,<br />
até mesmo por isso. A própria intencio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> e o próprio eixo sublimi<strong>na</strong>r <strong>de</strong>monstram a<br />
inelutável continência <strong>na</strong> contemporaneida<strong>de</strong>: o questio<strong>na</strong>mento e/ou a alter<strong>na</strong>tiva entre o<br />
privilégio artístico e a autoinserção, primeiramente. Depois, a <strong>na</strong>tural conversão da distonia<br />
cada vez mais imprecisa entre centro e margem, numa sintonia <strong>de</strong> circulações e<br />
alternâncias entre ambos, autorizadas ou não – e frutífera para as duas partes. Por fim, o<br />
lugar não mais necessariamente como condição, nem necessariamente como complemento,<br />
nem necessariamente como <strong>de</strong>finição para a arte, mas como indistinto e indissociável a ela.<br />
Se tais dispositivos não fossem suficientes para o atestado, bastariam ações como essas,<br />
estruturadas <strong>de</strong> começo, meio e fim, estruturadas <strong>de</strong> significado e <strong>de</strong> produção <strong>de</strong><br />
conhecimento, para afirmar: Banksy é um artista contemporâneo. Sê-lo não lhe retira<br />
a<strong>na</strong>rquia ou dissidência ou partido. Nem mesmo lhe dá um suporte que parece temido pela<br />
incoerência ou pela domesticação ou por enfraquecer sua pertinência. A<br />
contemporaneida<strong>de</strong> é pluralista – e experiente – o bastante para ter Banksy como Banksy<br />
em seus quadros.<br />
De tal modo que lhe somou ainda mais re<strong>no</strong>me comprar CDs da "cantora" Paris<br />
Hilton (alegoria viva do fenôme<strong>no</strong> profissão-celebrida<strong>de</strong>) e adulterar ironicamente as<br />
imagens do encarte, adicio<strong>na</strong>ndo frases como "Cada CD que você compra põe-me ainda<br />
mais distante da comunida<strong>de</strong>", sampleando as canções e até mesmo trocando-lhes os<br />
títulos, para "Por que sou famosa?", "O que fiz eu?" ou ainda "Pra que sirvo?", tudo com o<br />
instrumental das artes digitais já caseiras.<br />
A produção industrial junta-se, pelo viés do computador, à criação artística<br />
[...]. Nossas artes plásticas são tão pouco incompatíveis com a máqui<strong>na</strong> que<br />
a coprodução esteve <strong>na</strong> or<strong>de</strong>m do dia das revoluções industriais. A<br />
eletrônica substitui, <strong>de</strong> forma vantajosa, o ferro e o concreto do século XIX.<br />
Digamos que o movimento <strong>de</strong> hibridação do objeto <strong>de</strong> arte prossegue dando<br />
vantagem ao produto relativamente à obra e através <strong>de</strong> uma cooperação<br />
acentuada entre industriais, engenheiros, pesquisadores e artistas plásticos<br />
(DEBRAY, 1993, p. 278).<br />
4 O significado literal <strong>no</strong> idioma origi<strong>na</strong>l francês é “criança terrível”, indisciplinável, mas o termo é comumente<br />
empregado <strong>na</strong>s artes para <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>r permissivamente o genial genioso.<br />
18
Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
Por fim, a proeza <strong>de</strong> Banksy foi repor esses CDs alterados, trocando-os <strong>de</strong>ntro das<br />
lojas por outros, origi<strong>na</strong>is, num ato contínuo <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio que culmi<strong>no</strong>u em quinhentas versões<br />
interferidas, espalhadas por quarenta e oito pontos comerciais da Inglaterra. Quintessencial<br />
frau<strong>de</strong>, saborosa compatibilida<strong>de</strong>. Ações tipicamente inglesas, tanto em sua beligerância,<br />
quanto em sua ácida troça. Ações chargistas da contemporaneida<strong>de</strong>. Inteligente e satírica<br />
(re)utilização da subordi<strong>na</strong>ção à imagem é o fato <strong>de</strong> boa parte <strong>de</strong> todas essas ações ter sido<br />
fotografada e/ou filmada por seu(s) acompanhante(s), tendo o cuidado <strong>de</strong> mascarar seu<br />
rosto, disfarçá-lo, <strong>de</strong>sfocá-lo ou excluí-lo do enquadramento. E ter sido publicada, o que<br />
certifica a imposição e o controle sobre si herdados da hip-hop, bem como das próprias<br />
injunções, das diretrizes estruturais contemporâneas, <strong>na</strong> superação <strong>de</strong> suas raias através da<br />
posse <strong>de</strong> suas prerrogativas.<br />
Em campo expandido, essas <strong>de</strong>sterritorializações dos grafites e das artes ganham<br />
contor<strong>no</strong>s <strong>de</strong> trânsito político, numa atitu<strong>de</strong> já típica da <strong>no</strong>va geração britânica <strong>de</strong> artistas do<br />
urba<strong>no</strong> em geral, grafiteiros em particular – tribo unida. Uma amplitu<strong>de</strong> que traduz a<br />
micropolítica em macropolítica, ou lhe soma ares <strong>de</strong><br />
geopolítica, ou melhor, <strong>de</strong> geografia huma<strong>na</strong> – <strong>de</strong> migrações<br />
temporárias, <strong>de</strong> irrealida<strong>de</strong> das fronteiras, <strong>de</strong> (re)<strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />
compatibilida<strong>de</strong>, continência e abrangência, <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>s<br />
mais que <strong>de</strong> diferenças, <strong>de</strong> globalização, acima <strong>de</strong> tudo –,<br />
em viagens e produções por todo o mundo. Nomadologia<br />
artística. Traçado algo otimista que acredita (e leva a efeito)<br />
que “idéias po<strong>de</strong>m viajar, mas não a bordo <strong>de</strong> tanques”<br />
(HOBSBAWM, 2007, não pagi<strong>na</strong>do 5 ). Itinerário estratégico,<br />
que busca os pontos <strong>de</strong> tensão mundiais – pontos globalmente conhecidos e, muitas vezes,<br />
globalmente ameaçadores – e neles sente-se confortável, a<strong>de</strong>quado, familiarizado,<br />
ambientado. Afi<strong>na</strong>l, somos todos estrangeiros. A i<strong>na</strong><strong>de</strong>quação é raiz comum, irma<strong>na</strong> o não<br />
sentir-se em casa em lugar algum do sentir-se em casa em qualquer lugar.<br />
O ponto contemporâneo é, aí, a livre ação do u<strong>no</strong>, ação ‘oportu<strong>na</strong>’, consciente das<br />
oportunida<strong>de</strong>s. U<strong>no</strong> distinto da cegueira atribuída ao coletivo, graças à disponibilida<strong>de</strong><br />
integradora e <strong>de</strong>scentralizadora da informação. Quanto mais as tec<strong>no</strong>logias aproximam e<br />
permitem, tanto mais <strong>no</strong>vas gerações tomam o mundo para si.<br />
5 Entrevista a Sylvia Colombo.<br />
A ‘revolução’ tec<strong>no</strong>lógica (computadores, Internet, satélites, fibras óticas,<br />
miniaturização dos aparelhos eletrônicos, etc.) permite uma circulação<br />
planetária dos bens culturais numa escala inteiramente <strong>no</strong>va. Eles já não<br />
19
Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
mais se circunscrevem a esse ou aquele país, transbordando fronteiras<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is (ORTIZ, 2000, não pagi<strong>na</strong>do).<br />
U<strong>no</strong> consciente, racio<strong>na</strong>l, distinto e agora distante da “extraordinária ausência do<br />
animal político; <strong>de</strong> fato, <strong>no</strong> passado e tudo bem consi<strong>de</strong>rado, inexiste esse animal político, o<br />
homem restringia-se à condição <strong>de</strong> súdito, e não entendia nem mesmo a guerra que estava<br />
fazendo” (ORTIZ, 2000, não pagi<strong>na</strong>do). O ponto é o fosteria<strong>no</strong> conceito <strong>de</strong> artista como<br />
etnógrafo, que observa que “hoje, em <strong>no</strong>ssa eco<strong>no</strong>mia globalizada, a presunção <strong>de</strong> uma<br />
exteriorida<strong>de</strong> pura é praticamente impossível. Isso não <strong>de</strong>ve implicar uma totalização<br />
prematura do sistema, mas sim especificar tanto a resistência quanto a i<strong>no</strong>vação” (FOSTER,<br />
2005, p. 140).<br />
Isso é típico do cenário ‘quase antropológico’. Poucos princípios do<br />
participante/observador et<strong>no</strong>gráfico são verificados, muito me<strong>no</strong>s criticados,<br />
e só se efetiva um engajamento limitado da comunida<strong>de</strong>. [...] Logicamente,<br />
esse nem sempre é o caso: muitos artistas utilizaram essas oportunida<strong>de</strong>s<br />
para colaborar com as comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> maneira i<strong>no</strong>vadora, para re<strong>de</strong>scobrir<br />
histórias suprimidas que estão situadas <strong>de</strong> maneiras particulares,<br />
acessadas por uns mais efetivamente do que por outros. E simbolicamente<br />
[...] reocupar espaços culturais perdidos e propor contramemórias históricas<br />
(FOSTER, 2005, p. 146).<br />
Trânsito que parte <strong>de</strong> seu Rei<strong>no</strong> Unido <strong>na</strong>tal, on<strong>de</strong> se<br />
vive hoje <strong>no</strong> olho do furacão (ou sempre se viveu, posto que<br />
esse é o preço do jugo econômico primeiromundista). Rei<strong>no</strong><br />
Unido que enfrenta as "invasões bárbaras", tanto <strong>no</strong><br />
a<strong>de</strong>nsamento imigratório, que já faz <strong>de</strong> Londres a maior<br />
capital islâmica do Oci<strong>de</strong>nte (a ponto <strong>de</strong> se discutir o uso do<br />
véu <strong>na</strong>s escolas), quanto <strong>na</strong> retribuição das Cruzadas, que<br />
tem o povo anglo-saxão como alvo preferencial (e que faz<br />
confundir a tiros brasileiro-subempregado com muçulma<strong>no</strong>bomba).<br />
Banksy: “Pessoas em telhados <strong>de</strong> vidro não <strong>de</strong>veriam<br />
atirar pedras. E pessoas em cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> vidro não <strong>de</strong>veriam lançar mísseis” (BANKSY, 2005,<br />
p. 197, tradução do autor).<br />
Trânsito político que segue rumo a territórios palesti<strong>no</strong>s, a criar imagens <strong>no</strong><br />
intolerante muro edificado por Israel para separar-se e isolar a Cisjordânia. Sempre em<br />
humor, revela a dubieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> intenções e interesses,<br />
contrapõe a bo<strong>na</strong>nça israelita à miséria palesti<strong>na</strong> e<br />
<strong>de</strong>scerra a questão primeira: o acesso direto ao mar. E<br />
<strong>de</strong>nuncia o aprisio<strong>na</strong>mento: “A Palesti<strong>na</strong> é hoje a maior<br />
20
prisão a céu aberto do mundo” (BANKSY, 2005, p. 110, tradução do autor).<br />
Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
Eu tenho simpatia por ambos os lados <strong>na</strong>quele conflito, e <strong>de</strong> fato recebi um<br />
bocado <strong>de</strong> apoio <strong>de</strong> soldados israelitas, mas se o gover<strong>no</strong> israelense<br />
tivesse conhecimento <strong>de</strong> que nós estávamos por lá para fazer um apoiador<br />
ataque grafiteiro em seu muro, <strong>de</strong> modo algum teríamos sido tolerados. Eles<br />
são muito paranóicos. Eles não querem que o muro seja matéria <strong>no</strong><br />
Oci<strong>de</strong>nte. No lado israelense do muro eles o abafam com forragem ver<strong>de</strong> e<br />
plantas floridas, então você nem repara que ele está lá. No lado palesti<strong>no</strong>, é<br />
tão somente uma estupidamente e<strong>no</strong>rme massa <strong>de</strong> concreto (BANKSY,<br />
2006, não pagi<strong>na</strong>do, tradução do autor 6 ).<br />
Banksy sustenta, com proprieda<strong>de</strong>, que “todo grafiteiro precisa fazer uma<br />
peregri<strong>na</strong>ção ao maior muro do mundo em algum momento <strong>de</strong> sua vida” (BANKSY apud<br />
GLAISTER; SHARP, 2006, não pagi<strong>na</strong>do, tradução do autor), vatici<strong>na</strong>ndo a razão direta do<br />
grafite aos muros, tomados como corporificação da dialética inclusão/exclusão, da<br />
uniteralida<strong>de</strong> do mundo administrado, da disparida<strong>de</strong> entre o cidadão comum e as<br />
macropolíticas (corporativas e/ou estatais) – disparida<strong>de</strong> tão recorrente em sua obra quanto<br />
o é sua legítima militância pelo (e como o) primeiro. Demonstração <strong>de</strong> que a guerrilha<br />
<strong>urba<strong>na</strong></strong>, hoje, também preza seus aspectos expositivos, ali manifestos <strong>na</strong>s potencialida<strong>de</strong>s<br />
plásticas e comunicativas do suporte.<br />
É muito difícil para os locais grafitar ilegalmente por lá. Nós certamente não<br />
iríamos fazê-lo sob as asas da escuridão; você leva um tiro. Nós saíamos<br />
<strong>no</strong> meio do dia, <strong>de</strong>ixando bem claro que éramos turistas. Duas vezes,<br />
tivemos sérios problemas com o Exército, mas uma vez a patrulha <strong>de</strong><br />
fronteira palesti<strong>na</strong> encostou com um caminhão blindado. O gover<strong>no</strong><br />
israelense faz uma gran<strong>de</strong> confusão sobre como o muro lhes pertence,<br />
apesar <strong>de</strong> construí-lo diretamente através <strong>de</strong> fazendas <strong>de</strong> palesti<strong>no</strong>s que<br />
estão por ali há gerações; então a patrulha <strong>de</strong> fronteira palesti<strong>na</strong> não dá a<br />
mínima se você grafitar ou não. Eles estacio<strong>na</strong>ram entre a rodovia e nós,<br />
<strong>de</strong>ram-<strong>no</strong>s água, e ape<strong>na</strong>s assistiram. Foi provavelmente a única vez que<br />
fui grafitar com escolta policial, sob a mira <strong>de</strong> uma metralhadora (BANKSY,<br />
2006, não pagi<strong>na</strong>do, tradução do autor 7 ).<br />
Trânsito político que continua a juntar-se temporariamente ao movimento zapatista<br />
do subcomandante Marcos, <strong>de</strong>ixando <strong>na</strong>s Chiapas mexica<strong>na</strong>s seus registros murais,<br />
trocando a guerra intergover<strong>na</strong>mental, mercantil e religiosa, por outra, <strong>de</strong> me<strong>no</strong>r escala,<br />
revolucionária, indicativa dos <strong>de</strong>safios <strong>de</strong> permuta e <strong>de</strong> manutenção da política radical <strong>na</strong><br />
contemporaneida<strong>de</strong>; capitaneada por um representante legítimo do heroísmo i<strong>de</strong>ológico e<br />
da auto<strong>no</strong>mia do a<strong>no</strong>nimato. Dileção arriscada <strong>na</strong> perene reverberação entre qualida<strong>de</strong><br />
estética em face à relevância política, e <strong>na</strong> antropologia atual em que o artista comprometido<br />
batalha em <strong>no</strong>me do outro et<strong>no</strong>gráfico, o que oscila entre o patro<strong>na</strong>to i<strong>de</strong>ológico e a<br />
6 Entrevista a Shepard Fairey.<br />
7 Entrevista a Shepard Fairey.<br />
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Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
alterida<strong>de</strong> crítica e colaboradora do sujeito diverso, entre a exteriorida<strong>de</strong> testemunhal e<br />
relatora e a hoje possível – ou próxima – experiência da igualda<strong>de</strong> e da pertença (FOSTER,<br />
2005, p. 137-141); entre a inserção completa, <strong>de</strong>fensora, e a parcial, <strong>de</strong>fensiva<br />
(preservadora e autopreservadora).<br />
Entretanto, ao que tudo indica (dado o controle e a escassez <strong>de</strong> <strong>no</strong>tícias inter<strong>na</strong>s<br />
àquele foco <strong>de</strong> mobilização social, além <strong>de</strong> comprobatórias imagens <strong>de</strong> sua obra, somados<br />
ao próprio silêncio cúmplice), Banksy lá se ajustou como respeitosa audiência e participou<br />
em contribuição grafiteira cautelosa e insuspeita, nem intérprete nem interferente,<br />
positivamente discreta, ainda mais indistinta do que lhe é <strong>de</strong> praxe, não sendo tomado por<br />
mais “um ‘turista revolucionário’, como sarcasticamente chama a contrainsurgência<br />
mexica<strong>na</strong> aos muitos intelectuais, ativistas e visitantes que têm viajado [...] <strong>na</strong> última década<br />
para imiscuir-se (ou ser testemunhas) da luta dos maias contra o capitalismo tardio”<br />
(MEDINA, 2005, p. 110, tradução do autor). Surpreen<strong>de</strong>ntemente bem aceito enquanto<br />
artista primeiromundista <strong>de</strong> pauta antropológica globalizadora, infiltrou-se justamente num<br />
enfrentamento e numa resistência aos níveis extremos <strong>de</strong> pobreza e exclusão resultantes da<br />
inexorável a<strong>de</strong>são do gover<strong>no</strong> mexica<strong>no</strong> ao processo <strong>de</strong> integração à globalização<br />
mercadológica, que lá se toma como colonialista, por aplicada em comunida<strong>de</strong>s indíge<strong>na</strong>s<br />
<strong>na</strong>tivas e por advinda das hegemônicas <strong>de</strong>mocracias <strong>de</strong> mercado neoliberais, <strong>de</strong> matriz<br />
exploradora e massificante, das quais a pátria <strong>de</strong> Banksy – <strong>de</strong> cujo proletariado é oriundo –<br />
“a Grã-Bretanha, dividida em classes, [é] exemplo <strong>no</strong>tável” (HOBSBAWN, 1995, p. 492).<br />
Trânsito político que culmi<strong>na</strong> <strong>na</strong> recente viagem a Nova Orleans, pela ocasião<br />
coinci<strong>de</strong>nte do aniversário <strong>de</strong> três a<strong>no</strong>s do furacão Katri<strong>na</strong> e das alarmadas aproximações<br />
consecutivas <strong>de</strong> três <strong>no</strong>vos furacões,<br />
Gustav, Ike e Omar. Lá, Banksy<br />
intercalou muros <strong>de</strong> imagens<br />
poéticas, <strong>de</strong> menção à musicalida<strong>de</strong><br />
do povo e <strong>de</strong> home<strong>na</strong>gem à sua<br />
negritu<strong>de</strong>, com outras <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia à<br />
calamida<strong>de</strong>, aos saques, ao<br />
<strong>de</strong>spreparo logístico, científico e<br />
municipal <strong>na</strong> previsão e <strong>no</strong> enfrentamento <strong>de</strong> forças <strong>na</strong>turais cada vez mais comuns, e o<br />
todos-contra-todos que essas situações geram. Ou revelam.<br />
Desconsi<strong>de</strong>rando a relativa visibilida<strong>de</strong> que a presença <strong>de</strong> suas obras dá a essas<br />
regiões, ser bem-aceito em seções tão voláteis constitui-se, <strong>de</strong> fato, em ser praticamente<br />
ig<strong>no</strong>rado, <strong>no</strong> que pouco auxilia sua verve comprovada e experiente para o combativo, e bem<br />
versada para vozear o mi<strong>no</strong>ritário e o reprimido, e muito auxilia sua perícia para a<br />
incog<strong>no</strong>scibilida<strong>de</strong>. Banksy: “E agora eu teria amigos que po<strong>de</strong>ria visitar do outro lado do<br />
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Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
mundo. Mas faz parte do trabalho calar a boca e não conhecer as pessoas” (BANKSY,<br />
2006, não pagi<strong>na</strong>do, tradução do autor 8 ).<br />
A obscurida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Banksy tira partido das necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> segurança e liberda<strong>de</strong> –<br />
que caracterizam aqueles em guerrilha – para ter in<strong>de</strong>pendência moral e intelectual, regerse<br />
por leis próprias, escolher sua conduta, e para romper com o domínio da individualida<strong>de</strong><br />
autoral, em escala mínima, mas em alcance (co)letivo. Revisa a atribuição <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong><br />
que coliga o autor e a obra, através do reconhecimento do primeiro como efetivação da<br />
autenticida<strong>de</strong> do que é apresentado, suficiente para torná-lo um regulador expositivo,<br />
controlador da proliferação <strong>de</strong> seus sentidos. Suspen<strong>de</strong> o jugo autoral <strong>no</strong> jogo <strong>de</strong> forjar uma<br />
perso<strong>na</strong> substitutiva e ampliativa. Este exercício inci<strong>de</strong> sobre o conceito aparentemente<br />
i<strong>na</strong>lterável <strong>de</strong> autor como princípio e como estrutura <strong>de</strong> uma certa unida<strong>de</strong> criativa,<br />
pluralizando-o numa quase livre função-autor.<br />
Um texto anônimo que se lê <strong>na</strong> rua em uma pare<strong>de</strong> terá um redator, não<br />
terá um autor. A função-autor é portanto característica do modo <strong>de</strong><br />
existência, <strong>de</strong> circulação e <strong>de</strong> funcio<strong>na</strong>mento <strong>de</strong> certos discursos <strong>no</strong> interior<br />
<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>. [...] Na verda<strong>de</strong>, todos os discursos que possuem a<br />
função-autor comportam essa pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> egos. [...] O autor não é uma<br />
fonte infinita <strong>de</strong> significações que viriam preencher a obra, o autor não<br />
prece<strong>de</strong> as obras. Ele é um certo princípio funcio<strong>na</strong>l pelo qual, em <strong>no</strong>ssa<br />
cultura, <strong>de</strong>limita-se, exclui-se ou selecio<strong>na</strong>-se: em suma, o princípio pelo<br />
qual se entrava a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição,<br />
<strong>de</strong>composição, recomposição da ficção (FOUCAULT, 2006, p. 274-288,<br />
passim).<br />
No solipsismo que guia a atualida<strong>de</strong>, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do criador, <strong>de</strong> fato exter<strong>na</strong> à<br />
criação, tor<strong>na</strong>-se, <strong>na</strong> arte, com muita facilida<strong>de</strong> e com muita frequência, excessivamente<br />
participativa, po<strong>de</strong>ndo até sobrepujar-se ao talento. É a indústria do carisma, a fabricação <strong>de</strong><br />
gênios artísticos <strong>no</strong>s mol<strong>de</strong>s da fabricação <strong>de</strong><br />
estrelas <strong>de</strong> cinema – eleição icônica em meio às<br />
massas e por elas sustentada, a custo servil, por<br />
constante concessão, constante conservação <strong>de</strong><br />
atributos. É a fama – o Graal <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssos tempos. É<br />
a grife: a marca mais importante que o produto. A<br />
grife afiliada ao espetáculo e à indústria cultural.<br />
Banksy: “A época <strong>de</strong> ganhar fama por seu próprio<br />
<strong>no</strong>me termi<strong>no</strong>u. O trabalho <strong>de</strong> arte que é só sobre querer ser famoso nunca o fará famoso.<br />
Fama é um subproduto <strong>de</strong> fazer algo a mais” (BANKSY, 2005, p. 205, tradução do autor).<br />
8 Entrevista a Shepard Fairey.<br />
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Revista PALÍNDROMO 2<br />
SCHNEEDORF, José<br />
A <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> em <strong>de</strong>mocracia midiática [...] está também <strong>na</strong> capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> se mostrar, pessoalmente. Em todos os lugares públicos (restaurante,<br />
teatro, avião, etc.), o rosto já visto em outra parte ganha <strong>de</strong> direito a<br />
precedência sobre o rosto jamais visto em alguma parte. A visibilida<strong>de</strong><br />
tor<strong>na</strong>-se critério em uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classes: <strong>de</strong> um lado, os visíveis, que<br />
são os <strong>no</strong>vos <strong>no</strong>bres, emissores <strong>de</strong> opiniões autorizadas; do outro, os<br />
ignóbeis, ou não-conhecidos, que não têm acesso à tela. [...] Seria<br />
<strong>de</strong>sejável que essa clivagem entre indivíduos com direito à imagem, como<br />
outrora à preposição <strong>no</strong>biliárquica e à espada, e os homens privados <strong>de</strong>sse<br />
direito, não se tor<strong>na</strong>sse uma contradição forte porque, hoje em dia, não<br />
dispomos <strong>de</strong> um dispositivo <strong>de</strong> tratamento apropriado para esse <strong>no</strong>vo tipo<br />
<strong>de</strong> sublevação <strong>de</strong> massa: a revolta das sombras contra os V.I.P. (DEBRAY,<br />
1993, p. 332).<br />
No culto à perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> que há muito permeia a ativida<strong>de</strong> artística, há que se<br />
pensar se arte precisa ou prescin<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>no</strong>meação, <strong>de</strong> figura particular exata, precondição e<br />
subsunção em que a “<strong>no</strong>ção do autor constitui o momento crucial da individualização <strong>na</strong><br />
história das idéias” (FOUCAULT, 2006, p. 267). Se sua solvência é mesmo viável ou é<br />
quimera, i<strong>de</strong>alismo, ou se é atitu<strong>de</strong>, pose, banca, tipo.<br />
Em tempos <strong>de</strong> celebrida<strong>de</strong> a qualquer preço, há que se pensar se o a<strong>no</strong>nimato é<br />
honesta luci<strong>de</strong>z, que relativiza a importância e a obrigatorieda<strong>de</strong> do autor como uma esfera<br />
<strong>de</strong> legitimação e autenticida<strong>de</strong>, ou, efeito contrário, se colabora para a manutenção do<br />
interesse público, posto que dissolver o indivíduo, numa era <strong>de</strong> individualismos, atrai<br />
bastante atenção.<br />
Banksy fomenta o mito, o perfil <strong>de</strong> <strong>lenda</strong> <strong>urba<strong>na</strong></strong>, pela especulação sobre uma<br />
possível ence<strong>na</strong>ção autobiográfica, <strong>na</strong> criação <strong>de</strong> um enigma que revaloriza o interesse pela<br />
autoria ao tor<strong>na</strong>r o a<strong>no</strong>nimato a própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, substituindo a perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> pelo<br />
perso<strong>na</strong>gem. Brinca com sua própria unida<strong>de</strong> fictícia, através da exploração virtual dos<br />
limites entre o que é verda<strong>de</strong>iro e o que é inventado, questio<strong>na</strong>ndo essas pressuposições <strong>de</strong><br />
atribuição e <strong>de</strong> validação. Faz pensar, portanto, se a autoria tange à convenção, origi<strong>na</strong>l à<br />
estruturação da arte (pela auctoritas 9 subordi<strong>na</strong>dora <strong>de</strong> uma homogeneizante repetição<br />
produtiva) ou o quanto a obscurida<strong>de</strong> se abre ao furto autoral – e se a assi<strong>na</strong>tura garante<br />
mesmo a autoria. Talvez não para os muros, certamente não para Banksy, que,<br />
prenunciando (e incentivando) <strong>no</strong>vos tempos para a imagem, ainda espetaculares mas<br />
me<strong>no</strong>s vitimizadores frente à informação que <strong>de</strong>sce às ruas, disponibiliza em seu livro a<br />
cópia, substituindo, <strong>na</strong> ficha catalográfica, os "direitos reservados" por "direitos são para<br />
otários". Banksy:<br />
Eu não tenho qualquer interesse em vir a me revelar. Penso que há<br />
suficientes idiotas egocêntricos tentando pôr em frente a você suas<br />
peque<strong>na</strong>s caras feias do jeito que são. Você pergunta a um monte <strong>de</strong><br />
9<br />
Termo lati<strong>no</strong> que principia os conceitos <strong>de</strong> autor, autorida<strong>de</strong> e autorização, atestando a indissociabilida<strong>de</strong><br />
primária.<br />
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4. CONCLUSÃO<br />
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SCHNEEDORF, José<br />
garotos o que eles querem ser quando crescerem, e eles dizem, “Eu quero<br />
ser famoso”. Você pergunta a razão e eles não sabem nem se importam. Eu<br />
penso que Andy Warhol captou errado: <strong>no</strong> futuro, tantas pessoas estarão se<br />
tor<strong>na</strong>ndo famosas que um dia todo mundo acabará sendo anônimo por<br />
quinze minutos. Eu ape<strong>na</strong>s estou tentando fazer as obras terem boa<br />
aparência. Eu não estou nessa <strong>de</strong> tentar fazer eu mesmo ter boa aparência.<br />
Eu não estou <strong>de</strong>ntro da moda. As obras geralmente têm melhor aparência<br />
que eu quando estamos juntos <strong>na</strong> rua. Mais, eu obviamente tenho questões<br />
com os policiais. E além disso, é uma aposta bastante segura que a<br />
realida<strong>de</strong> sobre mim seria um esmagador <strong>de</strong>sapontamento para um par <strong>de</strong><br />
garotos <strong>de</strong> quinze a<strong>no</strong>s por aí (BANKSY, 2006, não pagi<strong>na</strong>do, tradução do<br />
autor 10 ).<br />
A incompatibilida<strong>de</strong> entre as instâncias ditas oficiais e paralelas ce<strong>de</strong>u a vez<br />
anteriormente a uma compatibilida<strong>de</strong> polêmica. Segue-se a compatibilida<strong>de</strong> polêmica a<br />
ce<strong>de</strong>r a vez a uma compatibilida<strong>de</strong> <strong>no</strong>rmativa. Os artistas po<strong>de</strong>m alter<strong>na</strong>r-se livremente<br />
entre tais instâncias, em favor da necessida<strong>de</strong> das obras. Po<strong>de</strong>m alter<strong>na</strong>r-se, inclusive,<br />
regio<strong>na</strong>lmente ao redor do globo. Cambalhota da dissensão para a coextensão. O que antes<br />
po<strong>de</strong>ria ser entendido como incoerência autoral, i<strong>de</strong>ológica, agora é recebido como<br />
coerência produtiva, que privilegia a criação ao criador e privilegia a especificida<strong>de</strong> do sítio.<br />
De mais a mais, ambos os espaços são espaços da arte. Mais que estratificada, a<br />
contemporaneida<strong>de</strong> da arte é pluralista e funda-se mesmo <strong>na</strong> diversida<strong>de</strong>. Amplia os<br />
conceitos que lhe cabem, aceita incorporar e ser incorporada, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser evi<strong>de</strong>nte, corteja<br />
seus limites, <strong>no</strong> <strong>de</strong>slocamento radial <strong>de</strong> sua atuação – seus <strong>no</strong>vos rumos – em direção às<br />
fronteiras <strong>de</strong> seus territórios – seus velhos muros –, sem contudo abandoná-los em<br />
<strong>de</strong>finitivo. A exposição se abre, amplifica-se. Experimenta. Pesquisa continuamente e se<br />
autoa<strong>na</strong>lisa continuamente – e apresenta essa pesquisa e essa autoanálise com atribuição<br />
<strong>de</strong> resultado fi<strong>na</strong>l. Admite e toma partido da ação, do acaso e da impermanência,<br />
<strong>de</strong>sobrigando-se do objeto artístico. A arte contemporânea fala alto. Ri <strong>de</strong> si mesma.<br />
Celebra seu mais <strong>no</strong>vo <strong>de</strong>scompromisso e o professa indo a público.<br />
Nesse ir a público, ela alarga o espaço que a abriga e a <strong>de</strong>tém. Expan<strong>de</strong> a<br />
comunida<strong>de</strong> que a abriga e a <strong>de</strong>tém. Amplifica as interpretações que a abrigam e a <strong>de</strong>têm.<br />
Nesse ir a público, a exposição contemporânea<br />
confere a esse último um reposicio<strong>na</strong>mento,<br />
dando-lhe participação ativa, seja literalmente<br />
(como parte da ação ou como vivente <strong>no</strong><br />
10 Entrevista a Shepard Fairey.<br />
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SCHNEEDORF, José<br />
espaço positivo ou negativo da obra), seja <strong>na</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um esforço interpretativo, ou<br />
<strong>de</strong> uma reconstrução, ou <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> fi<strong>na</strong>lização, ou <strong>de</strong> uma resposta – posturas<br />
bem distantes <strong>de</strong> meramente contemplativas ou absorventes; posturas que incluem<br />
interativida<strong>de</strong>, interação, além <strong>de</strong> doxa. Nesse ir a público, o lugar <strong>no</strong> qual se mostra passa<br />
a ser-lhe constitutivo, mais que contíguo. Até mesmo o local em que se executa. A obra não<br />
é posta em um lugar: ela é esse lugar.<br />
De Banksy, importa me<strong>no</strong>s a pessoalida<strong>de</strong>; sua <strong>de</strong>scrição é sua localização; ele é<br />
sua localida<strong>de</strong>. Em Banksy, o lugar <strong>de</strong> exibição é a totalida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong> – intramuros<br />
circunscrito, corpo misto <strong>de</strong>ssa totalida<strong>de</strong>. Depois a totalida<strong>de</strong> do mundo, potencialmente<br />
(ou artisticamente) igualável. O lugar não só físico ou geográfico, mas estrutura cultural<br />
exposta. E hipótese <strong>de</strong> valores hierárquicos. O lugar <strong>de</strong> Banksy é qualquer lugar. O lugar<br />
on<strong>de</strong> se vê o invisível Banksy é sua representativida<strong>de</strong>; é a mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua arte e a<br />
dinâmica da realida<strong>de</strong> e da imediaticida<strong>de</strong> que a causa e impele. É um peque<strong>no</strong> pa<strong>no</strong>rama<br />
das janelas expositivas e dispositivas <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssos tempos, através dos sintomas políticos e<br />
das suspensões espaciais da arte <strong>urba<strong>na</strong></strong> atual.<br />
A convergência do lugar que ocupam as duas faces do muro se encontra <strong>na</strong> potência<br />
do conceito <strong>de</strong> exposição. Banksy fi<strong>na</strong>liza:<br />
REFERÊNCIAS<br />
Eu amo grafite. Eu amo o termo. Algumas pessoas o apartam, mas eu<br />
penso que estão lutando uma batalha perdida. Para mim o grafite tem<br />
capacida<strong>de</strong>s surpreen<strong>de</strong>ntes. [...] Se você opera <strong>na</strong> exclusão do grafite,<br />
você opera num nível inferior. [...] Eu faço pinturas <strong>no</strong>rmais se tenho idéias<br />
que são muito complexas ou ofensivas para estarem <strong>na</strong> rua, mas se em<br />
algum momento <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> ser grafiteiro eu estaria acabado (BANKSY,<br />
2006, não pagi<strong>na</strong>do, tradução do autor 11 ).<br />
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11 Entrevista a Shepard Fairey.<br />
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