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Dissertação em pdf - ppgav - Udesc

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC<br />

CENTRO DE ARTES - CEART<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS - PPGAV<br />

ANA MATILDE PELLARIN DE HMELJEVSKI<br />

FUNDAMENTAÇÕES E PRÁTICA DE PROCESSOS ARTÍSTICOS<br />

CONTEMPORÂNEOS EM ARTE PÚBLICA<br />

FLORIANÓPOLIS – SC<br />

2009


ANA MATILDE PELLARIN DE HMELJEVSKI<br />

FUNDAMENTAÇÕES E PRÁTICA DE PROCESSOS ARTÍSTICOS<br />

CONTEMPORÂNEOS EM ARTE PÚBLICA<br />

<strong>Dissertação</strong> de Mestrado apresentada<br />

junto ao Programa de Pós Graduação <strong>em</strong><br />

Artes Visuais CEART/UDESC, como<br />

requisito parcial para obtenção do grau de<br />

Mestre <strong>em</strong> Artes Visuais.<br />

Orientador: Dr. José Luiz Kinceler<br />

FLORIANÓPOLIS - SC<br />

2009


ANA MATILDE PELLARIN DE HMELJEVSKI<br />

FUNDAMENTAÇÕES E PRÁTICA DE PROCESSOS ARTÍSTICOS<br />

CONTEMPORÂNEOS EM ARTE PÚBLICA<br />

<strong>Dissertação</strong> de Mestrado aprovada junto ao Programa de Pós-Graduação <strong>em</strong> Artes<br />

Visuais do Centro de Artes – CEART- da Universidade do Estado de Santa Catarina<br />

– UDESC – como requisito parcial para obtenção do título de Mestre <strong>em</strong> Artes<br />

Visuais, na linha de pesquisa Processos Artísticos Cont<strong>em</strong>porâneos.<br />

Banca Examinadora:<br />

Florianópolis - SC, 07/08/2009.


A meus netos Matias e Nicole que estão<br />

iniciando seu caminhar na vida.


AGRADECIMENTOS<br />

Ao professor Dr. José Luiz Kinceler pela orientação deste trabalho e pela<br />

preocupação <strong>em</strong> compartilhar seus conhecimentos.<br />

À Dra. Maria Lúcia Batezat Duarte e ao Dr. Luiz Sérgio da Cruz de Oliveira<br />

pela compreensão e contribuição nesta <strong>Dissertação</strong>.<br />

Aos professores que durante o curso de Pós-graduação contribuíram com seu<br />

conhecimento e vontade na minha formação acadêmica.<br />

A meu amado marido Jorge, muito especialmente, pelo amor, “paciência” e<br />

compreensão.<br />

A minha “grande família” (filhos, genros, nora, netos) pelo incentivo constante<br />

ao meu trabalho e pelo apoio nas horas difíceis.<br />

Aos colegas e amigos da jornada acadêmica.<br />

Aos colegas e amigos do Grupo de Pesquisa “Arte e Vida nos limites da<br />

representação” pela amizade e pela oportunidade de compartilhar caminhos na vida<br />

e na arte.<br />

Aos amigos da vida e de s<strong>em</strong>pre.


Comunidade não significa entender tudo<br />

sobre todo mundo e resolver todas as<br />

diferenças; significa aprender a trabalhar<br />

dentro das diferenças enquanto estas<br />

mudam e se desenvolv<strong>em</strong>.<br />

Lucy Lippard


RESUMO<br />

As práticas artísticas denominadas Arte Pública caracterizam, de forma imediata,<br />

uma noção de arte associada a um espaço comum, com circulação de pessoas (o<br />

público) de acesso fácil e <strong>em</strong> áreas abertas. Porém, esta acepção torna-se frágil<br />

quando investigamos que estamos ante uma trama de fundamentações que<br />

sustentam significações, relações e ações várias acerca do que chamamos Arte<br />

Pública. Fundamentações que decorr<strong>em</strong> dos modos de ver, sentir e fazer. Nosso<br />

olhar/experiência, que se processa <strong>em</strong> espaços t<strong>em</strong>pos determinados por meio de<br />

fluxos-sociais e territoriais, potencialmente conformados pela fricção de sentidos,<br />

seja tanto pelo questionamento de valores, como pela subversão ou a negação dos<br />

já instituídos quão cristalizações do pensamento e do fazer. Um olhar/experiência<br />

que se consolida nesses espaços-t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> pequenas ecologias culturais das quais<br />

<strong>em</strong>erg<strong>em</strong> processos artísticos comprometidos com seu t<strong>em</strong>po e sua realidade.<br />

Esta investigação se propôs um melhor entendimento das fundamentações da Arte<br />

Pública tais como mobilidade, especificidade (relacional, crítica, espacial, éticopolítica,<br />

discursiva) multiplicidade e <strong>em</strong>ergência, as quais, derivando diretamente de<br />

nosso olhar/experiência no espaço-t<strong>em</strong>po sócio-cultural <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>os, <strong>em</strong>anam<br />

de um passado relativamente recente. Fundamentações que jogam com o saber da<br />

experiência e a produção de subjetividades e inter-subjetividades resultantes numa<br />

prática artística condizente com dito saber. Considerando esta condição, deste saber<br />

arte pública, o desenvolvimento da pesquisa se realizou e foi perpassada pela teoria<br />

lacaniana, apreendida como sist<strong>em</strong>a de pensamento constituído a partir da<br />

afirmativa de que o hom<strong>em</strong> só se constitui como sujeito através de uma relação<br />

social mediada pelo Outro. A partir deste ponto, duas concepções, como<br />

especificadas por Lacan, se priorizaram e se constituíram no substrato principal da<br />

pesquisa. Uma, referente a articulação dos registros referenciais humanos – Real,<br />

Imaginário e Simbólico (RIS)- através da figura topológica do nó-borromiano. A<br />

outra, referente à concepção do olhar que parte de pr<strong>em</strong>issa da existência de um<br />

dado-a-ver aquele que vê, e de como, o desenvolvimento do campo chamado<br />

escópico é resultante da dialética entre o sujeito e o Outro. A matriz conceitual para<br />

articular metodologicamente a pesquisa foi pautada, analogicamente, segundo a<br />

lógica do nó-borromiano. Deste modo <strong>em</strong> cada parte <strong>em</strong> que está dividido o trabalho<br />

os conteúdos se desenvolveram através de três elos t<strong>em</strong>áticos básicos, articuláveis<br />

entre si, e sustentados por um quarto elo que permitiu a visibilidade da reflexão e a<br />

não homogeneização assuntiva. Este recurso metodológico permitiu uma reflexão<br />

investigativa capaz de consolidar assuntos relacionados entre si e que autosustentam<br />

uma circularidade t<strong>em</strong>ática dinâmica. Neste contexto da investigação,<br />

esta teoria-sist<strong>em</strong>a, proporcionou por um lado, compreender como a Arte refaz<br />

constant<strong>em</strong>ente o jogo representacional na medida <strong>em</strong> que re-significamos o mundo<br />

<strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>os; a cogitar sobre como e quanto estamos cientes das mudanças que<br />

lhe dão fundamentação e, do mesmo modo, a conscientizar-nos de nossa<br />

participação, com responsabilidade ético-política, na sociedade <strong>em</strong> que estamos<br />

inseridos.<br />

Palavras-chave: Arte Pública – Fundamentações e prática – Teoria lacaniana.


ABSTRACT<br />

The artistic practice called Public Art is usually associated with art that appears in a<br />

communal space, with the circulation of people (the public), with easy access, and<br />

with open areas. This conception, however, becomes unstable when challenged by<br />

the actual significations, relations, and varied actions surrounding Public Art: with the<br />

actualities of seeing, feeling, and doing. Our gaze/experience, which unfolds in<br />

space-time, is determined by social flux and territories, is potentially formed out of<br />

confusions of the senses, as well as contests of values, and also by the subversion<br />

and negation of already instituted reifications of thought and of practice. In fact,<br />

Public Art is surrounded by a gaze/experience that consolidates these space-times in<br />

small, cultural ecosyst<strong>em</strong>s, whose <strong>em</strong>erging artistic processes are imbued with their<br />

own time and reality. This investigation proposes a better understanding of Public Art<br />

in the context of mov<strong>em</strong>ent, specificity (relational, critical, spatial, ethical, political,<br />

discursive), multiplicity deriving directly from our gaze/experience in the socio-cultural<br />

space-time in which we live, which <strong>em</strong>anates from the recent past. Its inquiry st<strong>em</strong>s<br />

from the knowledge understood as the play of experience, understood within the<br />

context of subjectivities and inter-subjectivities, and the resulting reversals of<br />

knowledge. Considering this understanding of public art, this research was<br />

developed, created and filtered through Lacania n theory, conceived as a syst<strong>em</strong> of<br />

thought based on the notion that the human is only constituted as a subject through a<br />

social relation mediated by the Other. Two Lacanian concepts constitute the principal<br />

basis of this investigation. The first is the articulation of human referential registers—<br />

Real, Imaginary, and Symbolic (RIS)—through the topological figure of the<br />

Borromean knot. The other is the conception of the gaze that gives birth to the<br />

pr<strong>em</strong>ise of existence as a given-to-see, he who sees, and therefore, the development<br />

of the field known as the scopic and the resulting dialectic between the subject and<br />

the Other. The conceptual matrix that articulates the methodology was based,<br />

analogically, according to the logic of the Borromean knot. Consequently, in each<br />

part of the work the contents develop through three basic links, articulated between<br />

th<strong>em</strong>, and sustained by a fourth link that permits the visibility of reflexivity and not the<br />

homogenization of the work. This methodological recourse permitted an investigative<br />

reflexivity capable of consolidating interrelated issues that sustain th<strong>em</strong>selves in a<br />

circular, dynamic th<strong>em</strong>atic. This theory-syst<strong>em</strong>, understood as the art of constantly<br />

repeating the game of representation, of resignifying the world in which we live, leads<br />

us to think about how and how much we are aware of fundamental changes and, in<br />

the same way, to make us aware of our participation, with ethical-political<br />

responsibility, in the society to which we belong.<br />

Keywords: Public Art - Theory and practice - Lacanian Theory


LISTA DE ILUSTRAÇÕES<br />

Figura 1. Robert Morris – S<strong>em</strong> Título, 1965.............................................................. 34<br />

Figura 2. Michael Heizer - Duplo Negativo - Deserto de Nevada, 1968-7 ............... 35<br />

Figura 3. Robert Smithson – Quebra-mar espiral, 1970 .......................................... 36<br />

Figura 4. Richard Serra – Desvio, 1970 ................................................................... 38<br />

Figura 5. Daniel Buren – Galleria Apollinaire Milan, 1968 …………………………... 40<br />

Figura 6. Ives Klein – O Vazio (Le Vide), 1958 ........................................................ 42<br />

Figura 7. Arman - O Pleno (o cheio), 1960 .............................................................. 42<br />

Figura 8. Cindy Sherman - Unititled Film Still #14, 1978 …………………………..... 44<br />

Figura 9. Barbara Kruger - You deligt in the loss others (Você goza com a perda<br />

alheia), 1981 …………………………………………………………………………….... 45<br />

Figura 10. Sherrie Levine - After Egon Schiele:2, 1982 ……………………………... 45<br />

Figura 11. Wodiczko - Homeless Vehicle, NY, 1988-93 ……………………………... 70<br />

Figura 12. Cildo Meireles - Inserções <strong>em</strong> Circuitos Ideológicos – Projeto Coca-<br />

Cola, a partir de 1970 ............................................................................................... 71<br />

Figura 13. Casa de artista: Tiravanija ...................................................................... 85<br />

Figura 14. Plantação de arroz .................................................................................. 85<br />

Figura 15. Casa de descanso: MIT Jai-Inn .............................................................. 85<br />

Figura 16. Festival de Pintura .................................................................................. 85<br />

Figura 17. Usina – François Roche/Philippe Parreno .............................................. 85<br />

Figura 18. Instalação de biogás _ Superfex ............................................................. 85<br />

Figura 19. Leitura coletiva ........................................................................................ 86<br />

Figura 20. Encontro aberto a outras comunidades .................................................. 86<br />

Figura 21. Festa (Noeway ridge beam party) ………………………………………..... 86<br />

Figura 22. Festa (Noeway ridge beam party) ………………………………………..... 86<br />

Figura 23. Cerâmicas ............................................................................................... 86<br />

Figura 24. Centro de Saúde Alternativa ................................................................... 86<br />

Figura 25. Judi Werthein - Brinco [Pulo] .................................................................. 88<br />

Figura 26. Itzel Martínez - Ciudad Recuperación ..................................................... 88<br />

Figura 27. Paul Ramírez-Jonas - Mi Casa, Su Casa ............................................... 88<br />

Figura 28. Josep M.Martín- Un prototipo para la “Buena Emigración ...................... 89<br />

Figura 29. Simparch: coletivo estadunidense - Iniciativa del Agua Sucia ................ 89<br />

Figura 30. Fig. 30 Maurycy Gomulicki - Puente Aéreo............................................. 89<br />

Figura 31. Fig. 31 Bulbo: coletivo tijuanense - Tienda de Ropa .............................. 90<br />

Figura 32. Fig. 32 Rubens Mano – Visible ............................................................... 90<br />

Figura 33. Vista geral do parque e do cais .............................................................. 91


Figura 34. Área de descanso com palmeiras artificiais ............................................ 91<br />

Figura 35. Banco tapete-voador ............................................................................... 92<br />

Figura 36. Stand d<strong>em</strong>onstrativo do projeto e seus processos ................................. 92<br />

Figura 37. Vistas aéreas do cais e do parque .......................................................... 92<br />

Figura 38. Arquivos abertos ao público .................................................................... 92<br />

Figura 39. Exposição interativa ................................................................................ 92<br />

Figura 40. Encontro onde se realizou a troca de livros por uma garrafa <strong>em</strong><br />

cerâmica contendo vinho artesanal ......................................................................... 93<br />

Figura 41. Encontro onde se realizou a troca de livros por uma garrafa <strong>em</strong><br />

cerâmica contendo vinho artesanal ......................................................................... 93<br />

Figura 42. Fazendo vinho artesanal ......................................................................... 94<br />

Figura 43. Fazendo vinho artesanal ......................................................................... 94<br />

Figura 44. Livro à deriva .......................................................................................... 94<br />

Figura 45. Livro à deriva .......................................................................................... 94<br />

Figura 46. Distribuindo livros-saberes na Barra da Lagoa (ação: Livro à Deriva) ... 94<br />

Figura 47. Distribuindo livros-saberes na Barra da Lagoa (ação: Livro à Deriva) ... 94<br />

Figura 48. Distribuindo livros-saberes na Barra da Lagoa (ação: Livro à Deriva) ... 94<br />

Figura 49. Ação de retirada da baleeira Farravento ................................................ 95<br />

Figura 50. Baleeira assombrada .............................................................................. 96<br />

Figura 51. Retirada da baleeira ................................................................................ 96<br />

Figura 52. Curso de atabaque ................................................................................. 96<br />

Figura 53. Oficina de madeira .................................................................................. 96<br />

Figura 54. Oficina de tarrafas ................................................................................... 96<br />

Figura 55. Região do Rio de La Plata onde atua o coletivo Ala Plástica ................. 100<br />

Figura 56. Canalização de água na Índia, onde atua o coletivo Ala Plástica,<br />

proposta do trabalho feita por Altaf .......................................................................... 100<br />

Figura 57. Recorte de página da revista Caras ....................................................... 148<br />

Figura 58. Guerrilha Girls - Don´t stereotype me!, 2003……………………………… 175<br />

Figura 59. Robert Barry na Yvon Lambert, 2009……………………………………… 175<br />

Figura 60. Bárbara Kruger - Untitled (Questions), 1991……………………………… 175<br />

Figura 61. Jenny Holzer - Válogatott írások, Solomon R. Guggenheim Museum,<br />

1990 ......................................................................................................................... 175<br />

Figura 62 Robert Gober – S<strong>em</strong> título, 1990 ............................................................. 178<br />

Figura 63 Cindy Shernan – S<strong>em</strong> título #153, 1985 .................................................. 178<br />

Figura 64 Andy Warhol – Automóvel branco <strong>em</strong> chamas III, 1963 .......................... 179<br />

Figura 65 Kiki Smith - S<strong>em</strong> título, 1992 .................................................................... 179


LISTA DE GRÁFICOS<br />

Gráfico 1. Esqu<strong>em</strong>a conceitual da pesquisa ................................. 16<br />

Gráfico 2. Articulação lacaniana ..................................................................... 17<br />

Gráfico 3. Trama com possibilidades de juntura aleatória .............................. 17<br />

Gráfico 4. Gráfico usual renascentista ............................................................ 48<br />

Gráfico 5. Esqu<strong>em</strong>a visual lacaniano – o cone da visão ................................. 49<br />

Gráfico 6. Esqu<strong>em</strong>a visual lacaniano .............................................................. 50<br />

Gráfico 7. Disposição de significado e significante ......................................... 144<br />

Gráfico 8. Algoritmo de Saussure ................................................................... 145<br />

Gráfico 9. Algoritmo de Lacan ......................................................................... 145<br />

Gráfico 10. Constituição do sujeito segundo Lacan ........................................ 150<br />

Gráfico 11. Esqu<strong>em</strong>a de modalidades da Falta de Cazau .............................. 159<br />

Gráfico 12. Esqu<strong>em</strong>a mn<strong>em</strong>o-técnico da Falta de Jean Oury ........................ 163<br />

Gráfico 13. O nó borromeano ......................................................................... 165<br />

Gráfico 14. O nó de perfil ................................................................................ 166<br />

Gráfico 15. Os três elos separados e depois unidos pelo sinthoma ............... 167


SUMÁRIO<br />

1 INTRODUÇÃO......................................................................................... 13<br />

PRIMEIRA PARTE..................................................................................... 22<br />

2 O SUJEITO E A ARTICULAÇÃO DO OLHAR/EXPERIÊNCIA.............. 22<br />

2.1 SOBRE O SUJEITO. ALGUMAS CONCEPÇÕES E SUA<br />

DESCENTRALIZAÇÃO............................................................................... 23<br />

2.2 UM PERAMBULAR NO ESPACO-TEMPO DA ARTE. DO SÓLIDO<br />

AO LÍQUIDO............................................................................................... 32<br />

2.3 SOBRE O OLHAR/EXPERIÊNCIA E A VISUALIDADE........................ 47<br />

2.4 A MIRADA DO OUTRO NOS TEMPOS DO CHAMADO<br />

PÓS-MODERNISMO.................................................................................. 54<br />

2.5 DO RETORNO AO REAL..................................................................... 68<br />

SEGUNDA PARTE..................................................................................... 75<br />

3 O OLHAR/EXPERIÊNCIA NA ARTE PÚBLICA ATUAL........................ 75<br />

3.1 OS NOVOS OLHARES/EXPERIÊNCIA................................................ 75<br />

3.2 ARTE PÚBLICA COMO PROCESSO. UM RECORTE ESPECÍFICO.. 83<br />

3.3 SOBRE ALGUMAS BASES PARA A MUDANÇA................................. 97<br />

3.4 UMA ESTÉTICA DE PARTILHA-COMUNITÁRIA................................. 106<br />

3.5 SOBRE A PRÁTICA DO ESPAÇO-TEMPO......................................... 109<br />

3.6 SOBRE MEIOS E FORMAS DE FAZER.............................................. 114<br />

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 123<br />

REFERÊNCIAS....................................................................................... 130<br />

APÊNDICES................................................................................................. 139


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

Pensar teoricamente os processos criativos cont<strong>em</strong>porâneos como “sist<strong>em</strong>a<br />

de pensamento”, especificamente como um sist<strong>em</strong>a quaternário, cujos el<strong>em</strong>entos<br />

principais são: o Sujeito; o Olhar/experiência; a Arte Pública e as Fundamentações<br />

(que sustentam as relações entre os três primeiros el<strong>em</strong>entos) nos permite articular<br />

uma reflexão que adquire um valor significativo no contexto da pesquisa.<br />

Reflexão com valor significativo porque nos proporciona um enfoque<br />

bastante útil para compreender como a reorientação da Arte refaz<br />

constant<strong>em</strong>ente as regras do jogo representacional na medida <strong>em</strong> que<br />

re-significamos o mundo que nos cabe viver. Do mesmo modo, nos ajuda<br />

a refletir sobre como e quanto estamos cientes das mudanças que lhes<br />

dão fundamentação.<br />

Sist<strong>em</strong>a de pensamento perpassado por conceitos básicos da teoria<br />

lacaniana que, através da conceitualização do Sujeito fendido ($) e da articulação<br />

dos registros Real, Imaginário e Simbólico (RIS), por meio dos quais se desenvolve<br />

a experiência humana, nos fornece os meios que nos permit<strong>em</strong> a compreensão do<br />

hom<strong>em</strong> enquanto sujeito constituído através do olhar/experiência. Compreendê-lo<br />

tanto na sua realidade interior, o que interessa mais à psicologia analítica, como, na<br />

sua relação com a realidade exterior, o que parece interessar mais a outras áreas,<br />

seja antropológica, sociopolítica, artística e outras. 1<br />

Deve-se sublinhar como Lacan se tornou um interlocutor<br />

privilegiado <strong>em</strong> reflexões cont<strong>em</strong>porâneas sobre filosofia,<br />

teoria literária, crítica de arte, política e teoria social, o<br />

que implica <strong>em</strong> reconhecer que suas preocupações<br />

diz<strong>em</strong> respeito a um amplo campo de produções<br />

socioculturais vinculadas aos modos de autocompreensão<br />

do presente com suas expectativas e<br />

impasses 2 .<br />

1 A realidade interna é constituída pelo Sujeito do Inconsciente (portador dos significantes<br />

fundamentais e da estrutura do discurso do Outro) e pelo Sujeito da Consciência (portador do saber<br />

organizado, da busca do sentido). A realidade externa é constituída pelo Sujeito <strong>em</strong> contato com o<br />

mundo através da articulação do seu Imaginário e o Simbólico.<br />

2 SAFATLE (2007, p. 9).<br />

13


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

A teoria lacaniana instaurou uma forte modificação nas idéias tradicionais<br />

que faziam do Sujeito o el<strong>em</strong>ento indispensável para pensar os outros (por ex<strong>em</strong>plo,<br />

o Sujeito Cartesiano e algumas de suas “derivações” como as que aparec<strong>em</strong><br />

analisadas no texto principal) porque Lacan procurava constituir uma teoria na qual<br />

clínica, reflexão social e t<strong>em</strong>atização da produção estética se articulam de maneira<br />

orgânica. 3<br />

Estamos <strong>em</strong> presença de uma teoria multidisciplinar, que não exclui o<br />

Sujeito cartesiano e seus derivados, n<strong>em</strong> a forma deles ver<strong>em</strong> o mundo. Ela não os<br />

infirma, mas os permeia, os perpassa e consente desta forma, outra compreensão<br />

do momento sócio-histórico no qual alguns teóricos os determinaram. Do mesmo<br />

modo, não exclui o pensamento manifesto por pensadores cont<strong>em</strong>porâneos a Lacan<br />

ou mais atuais, n<strong>em</strong> qualquer pensador ao longo dos t<strong>em</strong>pos visto que, uns e outros,<br />

articulam constant<strong>em</strong>ente seus RIS´s criando novos sentidos 4 à realidade. Foster 5<br />

assevera que Lacan não especifica sua teoria do Sujeito como histórica e, portanto<br />

não se limita a um período.<br />

O desenvolvimento da pesquisa t<strong>em</strong> <strong>em</strong> conta duas pr<strong>em</strong>issas importantes: a<br />

primeira, de que o hom<strong>em</strong> só se constitui como ser humano através de uma relação<br />

social mediada pelo Outro. A segunda, referente à concepção do olhar que parte da<br />

afirmação da existência de um dado-a-ver àquele que vê, e de como, o<br />

desenvolvimento do campo chamado escópico é resultante da dialética entre o<br />

Sujeito e o Outro. Estas concepções, como especificadas por Lacan, se constitu<strong>em</strong><br />

no substrato principal da pesquisa.<br />

O termo composto “olhar/experiência” significa, neste contexto, a constituição<br />

do “olhar” na nossa relação com o mundo como resultado do exercício da<br />

experiência e que se processa <strong>em</strong> espaços-t<strong>em</strong>pos determinados por meio de<br />

fluxos-sociais e territoriais. Consideramos importante determinar a diferença entre<br />

“ver” e “olhar” 6 como aqui considerado. O ver diz respeito à função do olho (órgão)<br />

3 SAFATLE (2007, p.15).<br />

4 Vale l<strong>em</strong>brar alguns nomes, que a partir de Lacan, desenvolv<strong>em</strong> reflexões sobre o político, o<br />

artístico e/ou filosofia cont<strong>em</strong>porânea tais como Slavoj Zizek, Luis Brea, Alain Badiou, Ernesto Laclau;<br />

sobre estética Rosalind Krauss, Hal Foster, George Didi-Huberman, Bourriaud, entre outros.<br />

5 FOSTER (2001, p. 214).<br />

6 Se <strong>em</strong> português aparent<strong>em</strong>ente estes dois termos se casam, <strong>em</strong> outras línguas a distinção se faz<br />

clara ajudando ao pensamento a manter as diferenças, Em espanhol: ojo é o órgão, mas o ato de<br />

olhar é mirada. Em francês: oeil é olho; mas o ato é regard/regarder. Em inglês eye não está <strong>em</strong> look.<br />

Em italiano, uma coisa é o occhio e outra é o sguardo. Ver BOSI (2003) in: NOVAES (org; 2003, p.<br />

66).<br />

14


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

como receptor externo, tanto recebe estímulos luminosos quanto se move à procura<br />

de alguma coisa, há um ver-por-ver s<strong>em</strong> ato intencional. Ver-por-ver não é o mesmo<br />

que ver-depois-de-olhar 7 (a este “ver” nos referimos neste texto quando falamos de<br />

“modos de ver, de pensar e de sentir”). Sendo assim, o que é o “olhar”? Em principio<br />

dir<strong>em</strong>os que é o movimento interno do ser que se põe <strong>em</strong> busca de informações e<br />

de significações. Há uma relação intersubjetiva entre o sujeito e o objeto que está no<br />

mundo. Algo passa através dos olhos como uma mão passaria através da uma<br />

grade. 8<br />

Mas a dicotomia sujeito-objeto não compõe o referencial último e definitivo da<br />

experiência humana, n<strong>em</strong> mesmo no que respeita à intersubjetividades. De acordo<br />

com Gérard Bornheim, 9 essa relação é função especifica do olhar que se enraíza no<br />

corpo próprio e suas extensões (o corpo dos outros e o corpo cultural) como<br />

Merleau-Ponty 10 colocava; portanto, o olhar t<strong>em</strong> um endereço natural: a situação do<br />

hom<strong>em</strong> enquanto debruçado sobre o mundo e a história, deste modo o olhar adquire<br />

seu estatuto mundano. 11 Pod<strong>em</strong>os concordar com Bornheim que ver é da ord<strong>em</strong> do<br />

visível, talhado no tangível, e olhar é da ord<strong>em</strong> do invisível. O olhar, pelo seu<br />

estatuto mundano, está “fora” do sujeito e se faz possível através da dialética que se<br />

instaura entre o ver, o olhar e a experiência do sensível. 12<br />

A matriz conceitual para articular metodologicamente este trabalho<br />

está pautada numa analogia ao uso do nó de quatro elos feito por Lacan,<br />

o qual lhe possibilitou a articulação dos Registros Referenciais Humanos<br />

(o Real, o Imaginário e o Simbólico – RIS) e da sua sustentação através<br />

do “encaixe” pelo Sinthoma (o Nome do Pai na sua função de Letra).<br />

Esta articulação permite a movimentação de fluxos diversos na relação<br />

heterogênea do Sujeito com o Outro e com os outros.<br />

A abertura de um dos elos no libera os outros totalmente. Cortando-se um<br />

deles, não qualquer um, mas o último, cada um dos outros se libertará do seu<br />

7 BOSI (2003) in: NOVAES (org) (2003, p. 66).<br />

8 JOYCE, 1922 apud DIDI-HUBERMAN (2005, p. 29).<br />

9 BORNHEIM (2003) in: NOVAES (org) (2003, p. 95).<br />

10 MERLEAU-PONTY apud BORNHEIM (2003, p. 99).<br />

11 Lacan a partir destes conceitos vai definir o esqu<strong>em</strong>a da Visualidade que tratamos nesta<br />

dissertação na Primeira Parte, it<strong>em</strong> 3. Sobre o olhar/experiência e a visualidade.<br />

12 O sensível que, segundo Merleau-Ponty, não é feito somente de coisas. È feito também de tudo o<br />

que nelas se desenha, mesmo no oco dos intervalos, tudo o que nelas deixa vestígio, tudo o que<br />

nelas figura mesmo a título de distância e como uma certa ausência: o que pode ser apreendido pela<br />

experiência no sentido originário do termo, o ser que pode dar-se <strong>em</strong> presença originária não é todo o<br />

ser, e n<strong>em</strong> todo ser de que se t<strong>em</strong> experiência. NOVAES (org) (2003, p. 14).<br />

15


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

seguinte, até o primeiro. Eles não se liberarão juntos, liberar-se-ão um após outro,<br />

segundo Lacan 13 deste modo, é o último que mantêm toda a cadeia, ao suprimi-lo<br />

não há mais cadeia, não haverá mais série. Com quatro elos há uma resistência à<br />

homogeneização. Três deles obedec<strong>em</strong>, mas há um que resiste, é o nó da banana,<br />

que teima <strong>em</strong> escorregar.<br />

Do mesmo modo, a utilização do nó de quatro elos na pesquisa<br />

(Sujeito – Olhar/experiência – Arte Pública – Fundamentações), também<br />

coloca <strong>em</strong> evidência os fluxos ou relações heterogêneas decorrentes de<br />

dito movimento. Assim considerada a matriz investigativa, os conteúdos<br />

da mesma se organizam por meio de um esqu<strong>em</strong>a conceitual básico<br />

integrado por elos t<strong>em</strong>áticos articuláveis que, deste modo, permit<strong>em</strong><br />

uma reflexão investigativa capaz de consolidar assuntos relacionados<br />

entre si e que se auto-sustentam, mas que permit<strong>em</strong> uma abertura a<br />

reflexões externas do leitor.<br />

Fundamentações<br />

Projetos/pro<br />

cessos<br />

Gráfico 1 Esqu<strong>em</strong>a conceitual da pesquisa 14<br />

13 LACAN (1974-75) apud GOMES VICTORA, L. Oficina de topologia – o nó borromeano de<br />

Lacan 2006. Disponível <strong>em</strong>: . Último<br />

acesso <strong>em</strong>: 12 de ago. de 2008.<br />

14 Gráfico desenvolvido pela autora.<br />

16<br />

Sujeito<br />

RIS<br />

Inter-<br />

Subjetivi-<br />

dades<br />

ArtePública Significações<br />

Olhar/experiência


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

O Sinthoma<br />

Gráfico 2 Articulação lacaniana 15 .<br />

Nesta dinâmica metodológica estamos <strong>em</strong> presença de dois<br />

movimentos possíveis. Um movimento diz respeito aos t<strong>em</strong>as<br />

constitutivos de cada elo e suas articulações. Outro movimento, baseado<br />

na mesma lógica, se desenvolve pelas articulações reflexivas feitas<br />

durante a compreensão do t<strong>em</strong>a da pesquisa por parte do leitor.<br />

Ao se quebrar a articulação origina-se, por sua vez, um novo<br />

movimento de articulações possíveis; uma nova associação aleatória<br />

(juntura aleatória). Assim sucessivamente,<br />

Gráfico 3 Trama com possibilidades de juntura aleatória.<br />

15 LACAN (2007, p. 21)<br />

Elo: área<br />

t<strong>em</strong>ática<br />

R I<br />

Área de interseção<br />

t<strong>em</strong>ática<br />

S<br />

17


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

As práticas artísticas denominadas Arte Pública caracterizam, de forma<br />

imediata, uma noção de arte associada a um espaço comum, com circulação de<br />

pessoas (o público) de acesso fácil e <strong>em</strong> áreas abertas. Assim sendo,<br />

antagônico ao que se considera “privado”, como pessoal, íntimo,<br />

familiar, fechado e protegido. Entretanto, este sentido não satisfaz quando<br />

comprovamos que existe um tecido de fundamentações que sustenta significações,<br />

relações e ações várias acerca do que chamamos Arte Pública. Fundamentações<br />

que decorr<strong>em</strong> dos modos de ver, de fazer e de sentir numa época determinada por<br />

fatores sócio-históricos específicos.<br />

Os espaços-t<strong>em</strong>pos, nos quais o sujeito se constitui, são potencialmente<br />

conformados pelo atrito de sentidos, seja tanto, pelo questionamento de valores<br />

como pela subversão ou a negação dos já instituídos enquanto cristalizações do<br />

pensamento e do fazer. Processo hoje que <strong>em</strong>ana de um passado relativamente<br />

recente; mas principalmente pela consolidação, nesses espaços-t<strong>em</strong>pos,<br />

de pequenas ecologias culturais (Laddaga) das quais <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> práticas<br />

artísticas por meio de projetos/processos comprometidos com seu t<strong>em</strong>po<br />

e sua realidade.<br />

Os projetos/processos, que ating<strong>em</strong> a representação <strong>em</strong> arte, resultam na<br />

articulação de três campos que se interpolam: o da representação e suas<br />

significações, o do artista, e o do público. Três campos que atuam <strong>em</strong> um<br />

determinado espaço e t<strong>em</strong>po. Definir <strong>em</strong> que medida e como interag<strong>em</strong> entre si<br />

estes campos num espaço-t<strong>em</strong>po específico, é uma probl<strong>em</strong>ática que preocupa aos<br />

teóricos, críticos, artistas, professores, pessoas comuns que, de uma forma ou de<br />

outra, se perguntam sobre arte, representação, arte-educação, processos artísticos,<br />

cultura.<br />

Na procura de fundamentações para o entendimento da articulação destes<br />

campos, compreend<strong>em</strong>os que as especificidades, que os caracterizavam até pouco<br />

t<strong>em</strong>po e que nos faziam falar de campos facilmente d<strong>em</strong>arcáveis, atualmente<br />

desbordaram seus limites constitutivos.<br />

O termo escolhido fundamentações diz respeito ao que sustenta, ao âmago,<br />

(Foster diria o quid) tanto das probl<strong>em</strong>áticas artísticas cont<strong>em</strong>porâneas quanto ao<br />

modo <strong>em</strong> que se sustenta a discussão nesta pesquisa. Num primeiro momento,<br />

pensamos <strong>em</strong> utilizar o termo fundamentos, mas ficaríamos limitados a conjuntos de<br />

regras ou princípios pra “instituir” sentidos, que não é o objetivo desta investigação.<br />

18


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

O interesse pelo t<strong>em</strong>a aqui desenvolvido decorre de uma procura de<br />

entendimento a respeito de como hoje a arte, ante a diluição de suas fronteiras<br />

tradicionais, <strong>em</strong>erge ou se apresenta através dos processos de práticas<br />

cont<strong>em</strong>porâneas de artistas atuantes, principalmente no âmbito público.<br />

Como conseqüência é necessário nos fazer certas interrogações: Porque<br />

falamos de processo artístico e qual nosso comprometimento crítico, ético e<br />

ecológico frente à realidade cultural? Qual o paradigma que permeia a produção<br />

artística atual? Como desenvolv<strong>em</strong>os subjetividades através da representação <strong>em</strong><br />

arte? Quanto e como as inter-subjetividades contribu<strong>em</strong> para a criação de mundos<br />

possíveis? Em que espaços as relações inter-subjetivas se estabelec<strong>em</strong>?<br />

Tendo como base a concepção lacaniana da constituição do Sujeito, do<br />

Olhar, do Outro/outros e da articulação do RIS, esta investigação se encaminha,<br />

conjuntamente à reflexão “filosófica”, para o entendimento das “fundamentações”<br />

que se manifestam nos processos artísticos tais como mobilidade, materialidade,<br />

formatividade, especificidade (relacional, crítica, espacial, ético/política, discursiva,<br />

entre outras), multiplicidade, <strong>em</strong>ergência.<br />

Atualmente nosso olhar/experiência se organiza numa hiper-realidade, num<br />

amplo e paradoxal espaço-t<strong>em</strong>po. Amplo <strong>em</strong> comunicações, amplo <strong>em</strong> informações,<br />

amplo <strong>em</strong> opiniões, amplo <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po acelerado, amplo <strong>em</strong> “aceitação” de outras<br />

culturas; mas paradoxalmente, pobre <strong>em</strong> relacionamentos, pobre <strong>em</strong> vivências,<br />

pobre na prática da alteridade, pobre no “cuidado” do outro e do espaço <strong>em</strong> que<br />

viv<strong>em</strong>os.<br />

Artistas cientes destes aspectos que se instauram no socius, direcionam suas<br />

práticas para favorecer “encontros”, reunir pessoas, construir dispositivos-habitat<br />

(Bourriaud), posicionando-se ecosoficamente (Guattari) frente à sua realidade.<br />

Práticas “públicas” onde pod<strong>em</strong>os exercer a alteridade gerando intersubjetividades<br />

que se produz<strong>em</strong> no estar junto com.<br />

Na primeira parte, “O sujeito e a articulação do olhar/experiência”, tratamos do<br />

Sujeito que se constitui mediado pelo seu olhar/experiência resultante de sua<br />

relação com o Mundo e com o Outro/outro. Através da análise de características<br />

desse olhar/experiência no sujeito do Pós-modernismo, discutimos algumas<br />

mudanças que apareceram nesse período e que formaram o substrato de práticas<br />

artísticas.<br />

19


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Na segunda parte, “O olhar/experiência na Arte Pública Atual”, levamos <strong>em</strong><br />

consideração, principalmente, de qual forma a prática artística de projetos/processos<br />

(relacionados com modos de ver, de fazer e de sentir) se constitui <strong>em</strong> manifestações<br />

na Arte Pública Atual <strong>em</strong> espaços-t<strong>em</strong>pos fluídos caracterizados por uma dinâmica<br />

de partilha-comunitária na qual a colaboração é seu alicerce principal.<br />

Nas considerações finais destacamos apreciações, que resultaram da<br />

reflexão realizada nesta pesquisa, destacando algumas das fundamentações das<br />

práticas do processo cont<strong>em</strong>porâneo <strong>em</strong> Arte Pública.<br />

O apêndice contém a pesquisa, feita <strong>em</strong> paralelo, sobre t<strong>em</strong>as da teoria lacaniana<br />

que deram <strong>em</strong>basamento à compreensão de um Sujeito pensado e falado pelo<br />

Outro, mas que no jogo da experiência com outros tece seu próprio Véu<br />

através do olhar/experiência, o lugar no qual articula seu Imaginário e<br />

Simbólico no Real. Sugerimos uma “leitura inicial” deste apêndice para melhor<br />

<strong>em</strong>basamento e compreensão do corpo principal desta dissertação.<br />

Consideramos que este Sujeito tece experiência e subjetividade, produzindo e<br />

articulando acordos sociais numa troca de reconhecimento. Um tecer onde é<br />

possível produzir inter-subjetividades por estarmos na presença de um Sujeito<br />

deslocado para o “outro”, não mais centrado <strong>em</strong> si mesmo como, tampouco, dono da<br />

Mirada. Um Sujeito que é capaz de pensar seu t<strong>em</strong>po e seu fazer e de conceitualizar<br />

novas lógicas. Capaz de cair nos Mundos da Vida para neles, e a partir deles, se<br />

constituir como pessoa que se manifesta no campo da Arte-Vida com a concepção<br />

de que ambas faz<strong>em</strong> parte de um mesmo sentido e significado.<br />

Os artistas não mais “faz<strong>em</strong> a arte”, não mais são os donos do<br />

olhar, não mais são d<strong>em</strong>iurgos senhores da verdade e a criação. O<br />

“outro”, meu s<strong>em</strong>elhante, passa a se “integrar” ao campo da arte.<br />

Passamos a falar, a partir de um passado próximo, de uma lógica da<br />

externalidade como sugere Rosalind Krauss. Joseph Beyus falava de<br />

escultura social.<br />

Reinaldo Laddaga fala hoje de ecologias culturais; de uma estética<br />

da <strong>em</strong>ergência que “<strong>em</strong>erge” <strong>em</strong> projetos/processos nos quais os<br />

artistas compromet<strong>em</strong> <strong>em</strong> comunidades um número amplo de pessoas<br />

num fazer chamado de Arte Pública. Miwon Kwon, neste sentido, fala de<br />

site-oriented-art (como práticas artísticas orientadas para um “site”).<br />

Nicolas Bourriaud fala de uma estética relacional. Ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />

20


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

escutamos falar, de conmunity-based-arte. Nós falamos de arte relacional<br />

complexa.<br />

Independente destes nomes-significantes, bastante específicos,<br />

dev<strong>em</strong>os perceber que vivenciamos um processo que se constitui por<br />

meio do que sugerimos denominar, a partir desta pesquisa, como “lógica<br />

relacional do encontro e da sociabilização da experiência” da qual procuramos<br />

algumas possíveis fundamentações.<br />

Nosso olhar/experiência como dispositivo para compreender processos de<br />

arte cont<strong>em</strong>porânea nos induze a cogitar sobre, como e quanto estamos cientes das<br />

mudanças que lhe dão fundamentação; do mesmo modo, a nos conscientizar de<br />

nossa participação, com responsabilidade ético-política, na sociedade <strong>em</strong> que<br />

estamos inseridos.<br />

Quando v<strong>em</strong>os o que está ‘diante’ de nós, por que uma<br />

outra coisa s<strong>em</strong>pre nos olha, impondo um ‘<strong>em</strong>’, um ‘dentro’?<br />

21<br />

Georges Didi-Huberman


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

PRIMEIRA PARTE<br />

2 O SUJEITO E A ARTICULAÇÃO DO OLHAR/EXPERIÊNCIA<br />

22<br />

Tudo muda quando ampliamos nossa perspectiva<br />

para incluir o real e a significância do significante.<br />

Bruce Fink<br />

A probl<strong>em</strong>ática do olhar perspassa o ato de pensar quando se trata de nos<br />

posicionar frente a nosso t<strong>em</strong>po e a nossa realidade o que, por sua vez, nos r<strong>em</strong>ete<br />

ao campo da experiência. Muitas são as metáforas utilizadas para descrever essa<br />

relação olhar/experiência, como o das figuras míticas greco-romanas que, através<br />

das narrativas sobre Ciclope, Ulisses, Édipo, Tirésias e Argus, 16 nos permit<strong>em</strong><br />

compreender o constante devir das relações humanas, suas inferências no campo<br />

social possibilitando “novos modos de ver, de fazer e de sentir” dentro dos padrões<br />

pré-existentes, após intervalos relativos de t<strong>em</strong>po.<br />

Nossa cont<strong>em</strong>poraneidade v<strong>em</strong> contaminada de modo predominante pelo<br />

olhar modernista de Ulisses. Olhar privilegiador do saber racionalizado e escravizado<br />

dentro de uma lógica figurativa: a representação do real. É o olhar paralisante da<br />

Medusa que inibe a experiência como Erfahrung (descobrir novos horizontes,<br />

percorrer caminhos novos) ou seguindo o conceito benjaminiano da mesma, como<br />

experiência acompanhada de uma nova forma de narratividade 17 . Implica esta nova<br />

forma que existe uma narratividade anterior a ela e que deve ser transmitida pelo<br />

relato, deve ser comum ao narrador e ao ouvinte, pressupondo assim uma<br />

comunidade de vida e de discurso. Mas no ato de transmissão (no qual, o desejo e a<br />

experiência de qu<strong>em</strong> relata estão incluídos no coração do relato) e a recepção da<br />

mesma, se instaura um novo sentido experiencial, um novo saber, um novo<br />

movimento interno se manifesta. Movimento que <strong>em</strong>erge justamente da não<br />

16 Ver: BAVCAR (2001, p.17-23).<br />

17 O conceito interno se manifesta <strong>em</strong>ergindo justamente da não existência de um acabamento<br />

essencial da mesma. O conceito de Experiência atravessa toda a obra de Benjamin. J.M Gagnebin<br />

explicita este conceito no Prefácio de BENJAMIN, W. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense,<br />

1996, v.1, p.17-19.


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

existência de um acabamento essencial da recepção, por ser esta alterada pela<br />

passag<strong>em</strong> do t<strong>em</strong>po experiencial de ambos.<br />

Qual sujeito se constitui como tal, através desse olhar/experiência?<br />

Pod<strong>em</strong>os falar hoje de Sujeito? Como a constituição desse olhar/experiência<br />

favorece a formação de saberes? Como esses saberes interag<strong>em</strong> no campo da Arte<br />

Pública hoje?<br />

2.1 SOBRE O SUJEITO. ALGUMAS CONCEPÇÕES E SUA DESCENTRALIZAÇÃO<br />

Sujeito hoje? Neste t<strong>em</strong>po de multiplicidades falando de Sujeito? Será que,<br />

ainda o subjetivismo da tradição ocidental, originado com o cogito cartesiano, desliza<br />

através pergunta “Sujeito hoje?” O que deveríamos tentar é uma compreensão<br />

melhor da idéia de Sujeito nos dias atuais. Hoje já é concreta a desmontag<strong>em</strong> da<br />

razão positivista e da noção de progresso, na qual um depois pudesse ser explicado<br />

por um antes. 18 Hoje, também, se pretende a primazia de uma racionalidade-afetiva<br />

e intersubjetiva, logo estamos ante uma idéia de Sujeito como facilitador da<br />

formação de mundos possíveis através de; da formação de micro mundos de<br />

convivência; de cotidianos possíveis de ser tecidos junto com. Conseqüent<strong>em</strong>ente,<br />

achamos importante explanar alguns conceitos que assimilamos, introjetamos e<br />

projetamos <strong>em</strong> nosso encontro constante com a alteridade. É complexo o conceito<br />

de Sujeito e sua interpretação sócio-histórico-filosófica nos diferentes olhares<br />

epocais (cartesiano; fenomenológico, sociológico, realista, entre outros) nos mostra<br />

constant<strong>em</strong>ente o esforço humano por compreender-se e compreender seu t<strong>em</strong>po.<br />

O sujeito suspeito, aquele contido na pergunta Sujeito hoje? , certamente faz<br />

referência a um sujeito filho do Iluminismo, o Sujeito Cartesiano, o sujeito do cogito,<br />

do pensar – Cogito, ergo sum – Penso, logo sou. 19 Um sujeito capaz de controlar seu<br />

pensamento e portador de uma identidade que traz no seu cerne o princípio<br />

identitário. Princípio que, por sua vez, fundamenta a subjetividade considerada como<br />

18 AUGÉ (2007, p. 27).<br />

19 Costumeiramente traduzida como Penso, logo existo. A forma latina é sum- o verbo é ser; na língua<br />

de Descartes, o francês é: Je pense donc je suis e não Jê pense donc j´existe. Pela razão filosófica<br />

de que a questão do ser ainda seria pensada como exterioridade ao pensamento que pensa, do exsistir<br />

(subsistir fora –ex- como uma entidade) não era garantida pelo Cogito que só garantia o ser do<br />

pensar (uma res cogitans: substância pensante). Sobre o t<strong>em</strong>a ver ELIA (2007, p.12).<br />

23


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

relativamente estável, uma subjetividade como identidade, como consciência que<br />

organiza e compreende o mundo através do “seu” pensamento. Como sab<strong>em</strong>os nos<br />

séculos XVII e XVIII o <strong>em</strong>basamento filosófico da idéia de mundo foi feito a partir da<br />

idéia de um sujeito capaz de “pensar” esse mundo. Isto como resultado do advento<br />

da ciência moderna e sua separação da filosofia.<br />

Dizer que a ciência surge como moderna quer dizer que ela é o resultado de<br />

um corte discursivo que rompe com o que se chama epist<strong>em</strong>e antiga (para opor<br />

justamente ao moderno). Através deste corte, passamos do mundo fechado para o<br />

mundo infinito. 20 Perd<strong>em</strong>-se deste modo as certezas ontológicas e metafísicas para<br />

situar os seres, e instaura-se a “dúvida” colocando <strong>em</strong> questão o próprio pensar<br />

sobre o ser, que se faz ele próprio pensável.<br />

Não é anódino que o sujeito apareça <strong>em</strong> um momento<br />

que poderíamos qualificar de momento de angústia na<br />

história do pensamento. A aparição do sujeito no<br />

cenário do pensamento se faz através da angústia e<br />

da incerteza <strong>em</strong> relação ao que se dera até então<br />

como um mundo mais ou menos compreensível para o<br />

entendimento do hom<strong>em</strong>. Não se trata de dizer que<br />

não tenha havido crises no pensamento até esse<br />

momento, mas de saber discernir a magnitude dessa<br />

crise <strong>em</strong> particular- o advento da ciência moderna e<br />

sua separação da filosofia- e fazer a verificação<br />

precisa de seu valor de corte maior 21 .<br />

Dev<strong>em</strong>os salientar que o Sujeito não é uma pessoa humana ou um indivíduo,<br />

tampouco é um referente <strong>em</strong>pírico e homônimo que existe na realidade. Na teoria do<br />

conhecimento a partir de Descartes, é o espírito, a mente, a consciência, aquilo que<br />

conhece por meio do cogito opondo-se ao objeto como aquilo que é conhecido,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, se relaciona só com as idéias, como eventos de sua própria<br />

interioridade. Sendo assim, o cogito se firma como princípio filosófico inaugurando<br />

uma subversão que consiste <strong>em</strong> partir da presença do pensamento e não da<br />

presença do mundo.<br />

A Modernidade, sab<strong>em</strong>os, foi pautada pelo conceito desse Sujeito Cartesiano<br />

que, de acordo com Stuart Hall 22 , devia ser um “Sujeito Centrado”. O que significava<br />

unificado, dotado de capacidades de razão, de consciência e de ação. Seu “centro”<br />

consistia num núcleo interior que <strong>em</strong>ergia, pela primeira vez, quando o Sujeito nascia<br />

20 ELIA (2007, p.11).<br />

21 ELIA (loc. cit. p. 13).<br />

22 HALL (2002, p.10).<br />

24


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

e com ele se desenvolvia, permanecendo mais ou menos contínuo ou idêntico a ele,<br />

ao longo da existência do indivíduo (Um-divídium). Esse “centro essencial” do Eu era<br />

a identidade de uma pessoa, “dele”, já que este sujeito era usualmente descrito como<br />

masculino. Este pensamento cartesiano vai conjugar a unidade da razão com a<br />

unidade do saber e com a unidade do método (evidência, divisão, ord<strong>em</strong> e<br />

enumeração) é por isto se caracteriza como racionalista.<br />

Esta filosofia será instaurada por Kant através de um racionalismo crítico no<br />

qual investiga os limites do <strong>em</strong>prego da razão no conhecimento. Determina para<br />

tanto que,<br />

São duas as fontes de conhecimento humano: a<br />

sensibilidade e o entendimento. Através da primeira,<br />

os objetos nos são dados; através do segundo, são<br />

pensados. Só pela conjugação desses dois<br />

el<strong>em</strong>entos é possível a experiência do real. [...] só<br />

conhec<strong>em</strong>os realmente o mundo dos fenômenos, da<br />

experiência, dos objetos enquanto se relacionam a<br />

nós sujeitos, e não há realidade <strong>em</strong> si 23 .<br />

V<strong>em</strong>os assim, que a concepção de Sujeito feita por Descartes, começa a<br />

sofrer algumas derivações, modificações ou modulações, ao longo do t<strong>em</strong>po, ainda<br />

na Modernidade. Perante a crescente complexidade do mundo moderno, surge a<br />

noção de um sujeito não totalmente autônomo e auto-suficiente, de acordo com Hall,<br />

mas formado com outras pessoas importantes para ele, que mediavam os valores,<br />

sentidos e símbolos -a cultura -dos mundos que ele(a) habitava.<br />

O séc. XIX reduz este sujeito da categoria de “fato” para colocá-lo ao lado do<br />

mundo objetivo, <strong>em</strong>bora este positivismo destaque que a objetividade do mundo é<br />

resultado da apropriação subjetiva do mesmo e deste modo, esta modifica a primazia<br />

do mundo objetivo (O Sujeito ainda t<strong>em</strong> “um” núcleo ou essência interior que é o<br />

verdadeiro Eu).<br />

Surge o conceito de um “Sujeito Sociológico” cuja identidade preenche o<br />

espaço interior e o exterior entre um mundo privado e público, costurando ou<br />

suturando o sujeito à “estrutura” cultural. Ou seja, nesta acepção, na Modernidade o<br />

indivíduo soberano era Sujeito <strong>em</strong> dois sentidos: num primeiro sentido, o Sujeito da<br />

razão ou da orig<strong>em</strong> do conhecimento e da prática; num segundo sentido, como<br />

aquele que sofria as conseqüências dessas práticas (aquele que estava assujeitado a<br />

23 JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. (2001, p. 47).<br />

25


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

elas) as quais acabaram por tentar estabilizar tanto os sujeitos quanto os mundos<br />

culturais que eles habitavam, tornando ambos mais unificados e previsíveis.<br />

Era o que se ambicionava, mas as mudanças sócio-culturais e histórico-<br />

políticas, recorrentes destas práticas da experiência, resultaram numa série de<br />

fraturas e fragmentações no seu próprio interior 24 . As novas identidades sociológicas,<br />

que surg<strong>em</strong> no seio deste “Sujeito Centrado da Modernidade”, questionam o “projeto<br />

utópico” da Modernidade recorrente do Iluminismo no qual, as artes e as ciências<br />

iriam promover o controle das forças naturais, como também, a compreensão do<br />

mundo e do Eu; o progresso moral; a justiça das instituições e até a felicidade<br />

humana 25 . Veneravam quimeras permanecendo crentes; não por rezar<strong>em</strong> a Deus,<br />

mas por acreditar que alguns valores são superiores à vida 26 .<br />

Entretanto, este “Sujeito Sociológico” foi capaz de organizar campos de<br />

concentração, esquadrões da morte, duas Guerras Mundiais, as experiências de<br />

aniquilação de Hiroshima e Nagasaki, velado por uma lógica de dominação e<br />

opressão, oculta detrás da racionalidade iluminista, na qual a ânsia por dominar a<br />

natureza envolvia o domínio dos seres humanos 27 . Lyotard, fazendo eco a Adorno,<br />

sobre a impossibilidade da poesia depois de Auschwitz, questionou se qualquer<br />

pensamento poderia negar Auschwitz num processo geral para a <strong>em</strong>ancipação<br />

universal 28 . Como aprendiz de feiticeiro, este sujeito, desencadeou forças que<br />

fugiram do “seu” controle.<br />

Outra corrente de pensamento filosófico percorre os ares da Modernidade: a<br />

Fenomenologia. Edmund Hurssel <strong>em</strong>preendeu, com a fenomenologia, a última<br />

grande tentativa de fundação total do conhecimento. No Sujeito, tal como o<br />

considerava Descartes, Hurssel vai vislumbrar uma “atividade” da consciência: a<br />

24<br />

Segundo S. Hall (2002, p. 32), neste período onde o indivíduo soberano passou a ser mais visto,<br />

definido e localizado dentro das estruturas de poder - Estados-nação – um quadro mais perturbador do<br />

sujeito estava começando a <strong>em</strong>ergir dos movimentos estéticos e intelectuais: o indivíduo isolado,<br />

exilado ou alienado, colocado contra o pano de fundo da multidão ou da metrópole anônima e<br />

impessoal. O flaneur (ou o vagabundo), o turista, o dandy, as figuras alienadas da literatura ou da<br />

crítica social que visavam representar a experiência singular da modernidade. Baudelaire <strong>em</strong> Pintor da<br />

vida moderna faz uma clara descrição deste momento e destes indivíduos.<br />

25<br />

Sobre o t<strong>em</strong>a ler HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1989.<br />

26<br />

L. Ferry. (2007, p. 176) acreditava que “o real deve ser julgado <strong>em</strong> nome do ideal, que é necessário<br />

transformá-lo para moldá-lo aos ideais superiores: os direitos do hom<strong>em</strong>, a ciência, a razão, a<br />

d<strong>em</strong>ocracia, o socialismo, a igualdade de oportunidades, etc”.<br />

27<br />

T<strong>em</strong>a desenvolvido por Horkheimer e Adorno na tese The dialectic of Enlightenment, apresentada<br />

<strong>em</strong> 1944.<br />

28<br />

GUIUNSBURG, J; BARBOSA, A (orgs) (2005, p. 218).<br />

26


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

intencionalidade 29 que o faz determinar que, ter consciência é, por conseguinte, ter<br />

consciência de alguma coisa. A consciência só se constitui como tal a partir de sua<br />

relação com o objeto já constituído que a precede. Esse mundo só adquire sentido<br />

enquanto objeto da consciência, visado por ela. A inter-relação entre a consciência e<br />

a realidade definida pela intencionalidade, representa a tentativa da fenomenologia<br />

superar a oposição entre idealismo e realismo.<br />

A partir destas pr<strong>em</strong>issas constitui-se uma subjetividade nova: a do hom<strong>em</strong><br />

que está no Mundo da Vida e nele se conhece. O mundo é despojado de sua<br />

opacidade (de uma visão ou definição feita desde uma perspectiva determinada) por<br />

este “Sujeito Transcendental” cuja subjetividade será constituída pelas interações<br />

entre o Sujeito e os aprioris concretos que se dão no seu horizonte de vida, tais<br />

como: corporeidade, inter-subjetividade, historicidade, expressividade. A experiência<br />

inclui não só a percepção sensorial, mas todo objeto do pensamento. Mas, mesmo<br />

com esta abertura para as aparências e para o sentido, o Sujeito Transcendental<br />

ainda pensa o Outro a partir da própria reflexão, na vida de consciência pura ficando<br />

a Fenomenologia dentro da tradição que pretendia criticar 30 .<br />

Deste modo, o Sujeito Centrado, apesar das novas modulações de<br />

pensamento sobre ele, ainda é a condição para pensar os outros. A aparição<br />

autêntica dos outros será um projeto impossível para a filosofia moderna, já que o<br />

que prevalece é o ponto de vista e a reflexão deste Sujeito centrado, racional e de<br />

identidade fixa e estável 31 . Um sujeito como consciência solipsista e a-histórica.<br />

Consciência a partir da qual os outros “são” pensados.<br />

No Pós-modernismo se manifesta um processo de mudança nos discursos do<br />

conhecimento moderno e da “autoridade” do sujeito, através do pensamento de<br />

Lyotard; Althusser; Baudrillard; Barthes; Foucault; Bataille; Deleuze; Guattari; Derrida,<br />

entre outros. No discurso psicanalítico através de Lacan – via Freud. No campo da<br />

29 Intencionar é tender, através de um conteúdo dado à consciência, a outros conteúdos não dados<br />

s<strong>em</strong>pre que certa presença exprimir uma ausência. Daí que, ter consciência será ter consciência de, o<br />

que implica <strong>em</strong> que a consciência não é algo. Ao contrario é a consciência que se refere a algo, uma<br />

coisa que preexiste a todos os juízos que a determinam. Isto, segundo Sartre significa considerar a<br />

consciência como movimento <strong>em</strong> direção a esse algo concreto: o mundo. Sartre (1944) dirá: “O inferno<br />

são os outros”.<br />

30 Husserl declara que o sujeito, pela suspensão do juízo (epoché), apreende-se a si mesmo como Eu<br />

puro o transcendental, proporcionando-se, assim, “a vida de consciência pura”, vida na qual o mundo<br />

objetivo existe <strong>em</strong> mim. JAPIASSÚ, H; MARCONDES, D. (2001, p.47).<br />

31 MILOVIC, M. A utopia da diferença. Disponível <strong>em</strong>: <br />

Último acesso <strong>em</strong>: 7 de maio de 2008.<br />

27


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

arte se manifesta, especialmente, através do pensamento que origina o Cubismo e o<br />

Surrealismo. Esta mudança t<strong>em</strong> como <strong>em</strong>basamento importante a influência do<br />

pensamento de Nietzsche de maneira especial no que se refere a uma crítica à idéia<br />

de verdade e à recusa da possibilidade de uma interpretação unitária ou definitiva da<br />

realidade, que deixa uma marca não só no meio acadêmico, mas <strong>em</strong> toda a vida<br />

cont<strong>em</strong>porânea. Por conseguinte pod<strong>em</strong>os dizer que muito do que se pensou ao<br />

longo do século XX pode ser aí identificado: a crítica aos valores transcendentes; a<br />

recusa da idéia de verdade e a concepção da ciência como “ficção útil”; a<br />

impossibilidade de transcender a linguag<strong>em</strong> e a consciência para atingir o mundo<br />

“<strong>em</strong> si mesmo”; a crítica do sujeito da consciência. São sujeitos que se “zangam” e<br />

faz<strong>em</strong> uma tábula rasa do passado, como enfatiza Luc Ferry 32 desconstro<strong>em</strong>, é<br />

preciso quebrar tudo para desvendar diante do mundo o que se esconde por trás, no<br />

sentido de abrir espaço para pensamentos novos, radicais, que vão a construir uma<br />

filosofia de novo gênero. Este processo produz grande impacto sobre o conceito de<br />

Sujeito indivisível, entidade singular, distintiva e única, instaurando um deslocamento<br />

deste conceito. Os principais descentramentos possíveis de considerar, e aqui<br />

recorrendo a Stuart Hall 33 , são cinco.<br />

O primeiro descentramento refere-se às tradições do pensamento marxista<br />

através da afirmação de Marx de que os homens faz<strong>em</strong> a história, mas apenas sob<br />

as condições que lhes são dadas. Pensamento redescoberto e reinterpretado na<br />

década de sessenta. Os indivíduos, segundo as novas interpretações 34 , só pod<strong>em</strong><br />

agir apenas com base nas condições históricas criadas por outros, sob as quais<br />

nasceram. Significaria que não poderiam, de forma alguma, ser<strong>em</strong> os autores ou os<br />

agentes da história, porque só utilizariam os recursos materiais e da cultura que lhes<br />

foram fornecidos. Argumentava-se, assim, que o marxismo b<strong>em</strong> entendido, deslocara<br />

qualquer noção de agência individual. Louis Althusser 35 , um dos revisionistas de<br />

Marx, considera que este com seu posicionamento de rejeição da existência de uma<br />

32 FERRY (2007, p.180). A palavra “tábula” t<strong>em</strong> sido um acerto feliz de escolha feito por L. Ferry já<br />

que esta, convencionalmente, num sentido significa ficha, cada uma das peças para jogar damas e<br />

outros jogos; permitindo nos fazer uma analogia com possibilidades de desconstrução. Mas, também,<br />

significa tabuleiro que nos traz a idéia de algo liso, “raso”, onde nada fica retido e por onde pod<strong>em</strong>os<br />

deslizar.<br />

33 HALL (2002, p. 34-46).<br />

34 Interpretações de Althusser, Balibar, Establet, Rancière, entre outros.<br />

35 O ensaio filosófico inacabado de Althusser “Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre”<br />

foi escrito <strong>em</strong> sua maior parte <strong>em</strong> 1982, permaneceu inédito durante a vida do autor. Foi publicado<br />

apenas <strong>em</strong> 1994, graças ao trabalho de recuperação e de composição de François Matheron. Desde<br />

então t<strong>em</strong> alimentado muitas polêmicas.<br />

28


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

essência universal do hom<strong>em</strong> expulsou as categorias filosóficas do sujeito do<br />

<strong>em</strong>pirismo, da essência ideal, de todos os domínios <strong>em</strong> que elas tinham imperado. A<br />

teoria de Althusser procura identificar na história da filosofia uma longa tradição<br />

subterrânea, que ele chama materialismo aleatório, da chuva, do encontro, do “pegar”<br />

ou “dar liga”.<br />

Retomando do materialismo antigo a tese de que<br />

todas as configurações concretas da natureza<br />

resultam do encontro fortuito dos el<strong>em</strong>entos que as<br />

constitu<strong>em</strong>, ele a transpõe para os processos técnicos,<br />

culturais e históricos, que consistiriam na combinação,<br />

radicalmente contingente, de componentes<br />

heteróclitos 36 .<br />

Há combinações que “pegam” na natureza como, por ex<strong>em</strong>plo, a do cimento,<br />

ferro, areia, cal, pedra britada, etc. na produção do concreto. Nada predispõe cada<br />

um destes el<strong>em</strong>entos a sintetizar<strong>em</strong>-se, mas sintetizando-se, sua junção contingente<br />

gera efeitos necessários 37 .<br />

O segundo descentramento vêm da descoberta do Inconsciente por Freud. Um<br />

inconsciente que funciona com uma lógica, com base <strong>em</strong> Processos Psíquicos e<br />

Simbólicos (muito diferente daquela da Razão) e que nos coloca frente a um “Sujeito<br />

Dividido” entre Consciente e Inconsciente. Jacques Lacan fará, a partir disto, uma<br />

leitura na qual o Eu como inteiro e unificado é algo que se “pretende” apreender,<br />

pouco a pouco, parcialmente e com grande dificuldade. Esta busca se constituirá<br />

numa constante ao longo da vida. O Eu não se desenvolve naturalmente, mas é<br />

formado <strong>em</strong> relação com os outros 38 .<br />

Aqui se pode considerar porque há certa rejeição a falar de identidade, como<br />

coisa acabada e sim, falar de “identificação” como processo <strong>em</strong> andamento.<br />

Dev<strong>em</strong>os destacar que a partir de Freud se considera o Inconsciente, <strong>em</strong> relação à<br />

vida subjetiva e psíquica, como fato certo, assim sendo impossível de rejeitar,<br />

<strong>em</strong>bora se apresent<strong>em</strong> diferenças <strong>em</strong> quanto a questões específicas. Ou seja, a<br />

36 FONTANA, M. Apresentação. [Revista Crítica marxista. N o . 20 ; 2005 -UNICAMP]. Disponível <strong>em</strong>:<br />

Último acesso <strong>em</strong> 21 de jun. de 2006.<br />

37 ALTHUSSER, L. A corrente subterrânea do materialismo do encontro (1982). 2005. Disponível<br />

<strong>em</strong>: . Último acesso 21 de<br />

jun. de 2006 Nicolas Bourriaud recorre a este conceito de “encontro” quando teoriza sua Estética<br />

Relacional (2001).<br />

38 Ver no Apêndice as principais conceitualizações da teoria lacaniana que fiz<strong>em</strong>os com a finalidade<br />

de um <strong>em</strong>basamento conceitual específico nesta dissertação.<br />

29


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

descoberta do Inconsciente teve uma ação direta sobre o pensamento que vê o<br />

sujeito como racional e a identidade como fixa ou estável.<br />

O terceiro descentramento, continuando com Hall, está associado ao trabalho<br />

do lingüista Ferdinand de Saussure que argumentava que o idioma (língua) é um<br />

sist<strong>em</strong>a social e não individual. Ele preexiste a nós. Os significados das palavras não<br />

são fixos, numa relação um-a-um com os objetos ou eventos no mundo, exist<strong>em</strong> fora<br />

do idioma. O significado se dá nas relações de diferença e similitude que as palavras<br />

têm com outras palavras no interior do código do idioma. (A palavra “Arte”, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, modifica seu significado constant<strong>em</strong>ente, histórica ou filosoficamente. Além<br />

disto, esta palavra ocasiona outras conotações, outros ecos por similitude ou<br />

diferença: arte efêmera/arte póvera; arte objetual/arte conceitual). É o que modernos<br />

filósofos da linguag<strong>em</strong> argumentam, influenciados por Saussure e pela “virada<br />

lingüística” como, por ex<strong>em</strong>plo, Jacques Derrida que coloca,<br />

[...] que, a pesar de seus melhores esforços, o/a<br />

falante individual não pode, nunca, fixar o significado<br />

de uma forma final, incluindo o significado de sua<br />

identidade. As palavras são “multimoduladas”. Elas<br />

s<strong>em</strong>pre carregam ecos [marcas] de outros significados<br />

que elas colocam <strong>em</strong> movimento, apesar de nossos<br />

melhores esforços para fechar o significado 39 .<br />

Há um antes e um depois, uma marg<strong>em</strong> para a escrita de outros. O significado<br />

é instável, procura o fechamento (dar uma identidade), mas é perturbado<br />

constant<strong>em</strong>ente (pela diferença) além de que, haverá s<strong>em</strong>pre significados<br />

supl<strong>em</strong>entares sobre os quais não t<strong>em</strong>os controle que desestabilizam e subvert<strong>em</strong> as<br />

tentativas de criar mundos fixos e estáveis.<br />

O quarto descentramento decorre do pensamento de Michael Foucault. Diz<br />

respeito ao “poder disciplinar” que se instaura a partir do séc. XIX, atingindo o ponto<br />

máximo na Modernidade Tardia. Dito poder estaria preocupado <strong>em</strong> primeiro lugar,<br />

com a regulação, a vigilância e o governo da espécie humana ou de populações<br />

inteiras e, <strong>em</strong> segundo lugar, do indivíduo e do corpo. De acordo com esta teoria, os<br />

locais onde este poder é exercitado, como policiamento e disciplina, são as escolas,<br />

oficinas, quartéis, prisões, hospitais, clínicas, hospícios, entre outros. Sua base se<br />

sustenta no poder administrativo, no conhecimento especializado e no conhecimento<br />

fornecido pelas “disciplinas” das Ciências Sociais, para produzir um ser humano que<br />

39 HALL (2002, p. 41).<br />

30


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

possa ser tratado como um corpo, ou seja, fácil de ser disciplinado, de ser<br />

normatizado. Dito poder e institucionalização do saber vêm de “fora” do sujeito<br />

pensante, a ele se impõe. Foucault é um dos filósofos que mais refletiu sobre este<br />

processo e suas conseqüências sociais <strong>em</strong> seus escritos 40 .<br />

O quinto descentramento se relaciona com o f<strong>em</strong>inismo. Conceitualmente<br />

considerado tanto como crítica teórica, quanto como um movimento social<br />

relacionado com o grupo de novos movimentos sociais que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> na década de<br />

sessenta (como foram os movimentos revolucionários do terceiro mundo e as<br />

revoltas estudantis, de contracultura, de paz, que reivindicam direitos civis <strong>em</strong> relação<br />

à racismo, sexualidade e outros, pautados de certa forma com Maio do 68) 41 .<br />

Sociocultural e historicamente o f<strong>em</strong>inismo, <strong>em</strong> relação ao descentramento conceitual<br />

do sujeito cartesiano e sociológico, teve uma relação mais direta uma vez que<br />

questionou a distinção entre privado e público, dentro e fora. O slogan do f<strong>em</strong>inismo<br />

era: o pessoal é político que, deste modo, abre para a contestação política a família,<br />

a sexualidade, a divisão doméstica do trabalho, o cuidado dos filhos, por ex<strong>em</strong>plo.<br />

Politizando a subjetividade, a identidade e o próprio processo de identificação, o<br />

f<strong>em</strong>inismo d<strong>em</strong>onstra que, o que começou como contestação à posição social<br />

(público) das mulheres se expandiu para outras questões como as relativas a<br />

identidades sexuais e de gênero (privado).<br />

Se o sujeito cartesiano era compreendido como o<br />

sujeito da razão, da interioridade, da consciência, essa<br />

compreensão foi descentrada por meio de idéias<br />

“mutantes” que, <strong>em</strong>bora não confluindo para uma<br />

homogeneidade, contribuíram para uma noção de<br />

sujeito como uma figura histórico-discursiva produzida<br />

na e pela linguag<strong>em</strong> [...] não possui uma identidade<br />

fixa e estável, mas, identidades abertas, contraditórias,<br />

inacabadas e fragmentadas 42 .<br />

40 Esta aplicação do poder e do saber individualiza ainda mais o sujeito, não só no campo da<br />

observação, mas também no campo da escrita através do aparato documentário que, por sua vez,<br />

produz um ordenamento sistêmico, modelo de arquivo, mediador do controle, seja a nível individual,<br />

grupal ou global. Respeito a estes regimes disciplinares coletivos do poder administrativo, S. Hall.<br />

(2002, p. 43) coloca que contêm “o paradoxo de que, quanto mais coletiva e organizada a natureza<br />

das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito<br />

individual”.<br />

41 Embora estes movimentos historicamente importantes <strong>em</strong> relação à oposição aos regimes liberal<br />

capitalista de Ocidente e “estalinista” de Oriente, que suspeitavam das formas burocráticas de<br />

organização, refletiam o enfraquecimento ou o fim das organizações políticas de massa e sua<br />

fragmentação <strong>em</strong> vários e separados movimentos sociais. Se o f<strong>em</strong>inismo apelava às mulheres, a<br />

política sexual apelava aos gays e lésbicas; as lutas raciais aos negros e o movimento antibelicista aos<br />

pacifistas. Foi o que historicamente se chamou política de identidade. HALL (2002, p. 45).<br />

42 OLIVERA, F. B. Concepção de sujeito <strong>em</strong> saúde mental. 2005. Disponível <strong>em</strong>:<br />

http://www.polbr.med.br/arquivo/artigo0905.htm. Acesso <strong>em</strong>: 5 de ago. de 2008.<br />

31


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

2.2 UM PERAMBULAR NO ESPACO-TEMPO DA ARTE. DO SÓLIDO AO<br />

LÍQUIDO 43 .<br />

No campo da arte o olhar moderno levantando o estandarte da subjetividade<br />

(ou melhor, subjetivismo?) se manifestará através de uma lógica da representação<br />

que favorecerá a autonomia do objeto centrado <strong>em</strong> si próprio e da precisão de um<br />

modelo de significação legitimado por um Eu particular (o do artista) ou seja, a<br />

“lógica da forma autônoma” substitui a “lógica do lugar histórico” (do monumento de<br />

representação com<strong>em</strong>orativa–simbólica que determinava que normalmente foss<strong>em</strong><br />

esculturas figurativas e verticais como estátuas, fixas num pedestal).<br />

Esse novo olhar deflagra uma aparência de inter-subjetividade, captada<br />

principalmente no âmbito social pela necessidade de delimitação das chamadas<br />

Esfera pública e Esfera privada, ambas, resultantes da necessidade de organização<br />

abstrata dos fluxos sociais 44 . Aparência de inter-subjetividade, ou paradoxo, porque<br />

<strong>em</strong> nenhum momento durante a modernidade estas esferas interag<strong>em</strong>, mas sim se<br />

sustentam reciprocamente pela mesma causa que as justifica: o projeto das classes<br />

sociais; a igualdade; a liberdade e a fraternidade; conceitos estes que se<br />

impregnavam, desde períodos anteriores, na organização política da sociedade<br />

justificando modelos conceituais que, literalmente, se esfacelavam na experiência da<br />

produção, tanto mercantil quanto social.<br />

No campo artístico-cultural a obra de arte transformada <strong>em</strong> mercadoria/fetiche<br />

(duplamente: por meio de seu caráter autônomo e por sua reprodutibilidade) pela<br />

crescente esfera pública burguesa, banalizou seu valor mais tradicional, de culto,<br />

favorecendo um mercantilismo prioritário das instituições legitimadoras da arte.<br />

Tomando como base o pensamento benjaminiano sobre a narração, frente às<br />

tendências ”progressistas” da arte moderna (que recriava a experiência coletiva a<br />

partir de experiências individuais) novos modos de ver, de fazer e de sentir<br />

começaram a entranhar-se nos estatutos já devidamente estabelecidos e<br />

legitimados, abrindo espaço para novas incertezas, opacidades, perdas e novas<br />

43 Devido à amplitude de desdobramentos que pod<strong>em</strong> decorrer neste contexto, escolh<strong>em</strong>os<br />

pontualmente alguns trabalhos que se constituirão como fio condutor da reflexão.<br />

44 Sobre o t<strong>em</strong>a ver: KLUGE, A. e NEGT, O. Esfera pública y experiencia. Hacia un análisis de las<br />

esferas públicas burguesa y proletaria. 2001. In: BLANCO,P. et al. Modos de hacer. Salamanca,<br />

España: Ediciones Universidad de Salamanca, 2001, p. 227-271.<br />

32


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

probabilidades; resultantes do verdadeiro movimento da experiência: aquele<br />

formado por experiências outras recorrentes de diversas esferas que se instauram,<br />

de modo concomitante às duas citadas, numa forma fragmentária e plural,<br />

preocupada com a alteridade. Experiências que surgiam dos Mundos de Vida,<br />

instaurando novos ritmos espaço-t<strong>em</strong>po à própria experiência de produção da<br />

experiência 45 enriquecendo seu significado.<br />

Todo o debate sobre a externalização dos significados se manifestava, na<br />

Arte, como resultado de um processo sócio-cultural mais amplo. Este processo<br />

envolvia o conceito de público e se propunha de certa maneira a identificar o<br />

conceito de “público” como substantivo e o conceito de “público” como adjetivo.<br />

Processo que vinha se manifestando desde as práticas dadaístas, as<br />

duchampianas, Bauhaus, o Cubismo, a literatura de Doblin, Kafka, os filmes de<br />

Chaplin 46 .<br />

A partir dos anos 60 se manifestam, tanto no cenário europeu como no<br />

estadunidense, certas práticas artísticas chamadas de “arte desmaterializada” ou<br />

anti-forma – conceitualismo, site specificity, performance, instalação. O ponto<br />

comum nestas práticas era a crítica da pretendida “lógica moderna da autonomia do<br />

objeto” para uma lógica onde a experiência, seja perceptual, t<strong>em</strong>poral ou espacial,<br />

interferia no modo de ver, de fazer e de sentir, no olhar-experiência, no domínio<br />

social-público. Esta “lógica da externalidade” era, também, capaz de produzir um<br />

novo tipo de público de arte, real ou precursor, de um público mais amplo e<br />

participativo.<br />

Rosalind Kraus, ao especificar a cartografia do Campo ampliado da escultura<br />

- texto de 1979 - determina certas práticas que, quebrando com a lógica moderna da<br />

forma autônoma - o puro positivo, o objeto s<strong>em</strong> espaço próprio - levaram a escultura<br />

a um grau de pura negatividade. A escultura se definia deste modo, como aquilo que<br />

estando na arquitetura não era arquitetura e/ou estando na paisag<strong>em</strong> não era<br />

paisag<strong>em</strong>, como o trabalho de Robert Morris – s<strong>em</strong> Título de 1977.<br />

45 Aqui o conceito de produção designa um conceito compreensivo de produção social, como<br />

atividade socialmente necessária s<strong>em</strong> se constituir numa analogia com a produção material de bens.<br />

46 Enumeração <strong>em</strong> itálico referenciada por GAGNEBIN. In: BENJAMIN, W. Obras escolhidas. São<br />

Paulo: Brasiliense1996, v.1.<br />

33


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 1 Robert Morris – S<strong>em</strong> Título, 1965.<br />

[Um ex<strong>em</strong>plo] é a montag<strong>em</strong> ao ar livre das caixas<br />

especulares, formas que só se diferenciam do lugar<br />

<strong>em</strong> que se encontram por que, <strong>em</strong>bora se estabeleça<br />

uma continuidade visual com a grama e as árvores,<br />

não faz<strong>em</strong> realmente parte da paisag<strong>em</strong> 47 .<br />

Este conceito, de pura negatividade, lhe permitiu desdobrar o conceito de<br />

dupla-negatividade 48 , tratado no texto sobre O duplo negativo... de 1977. Conceito<br />

47 KRAUSS (2002, p. 295).<br />

48 Conceitos desenvolvidos através da análise das práticas artísticas de artistas como: Robert<br />

Smithson; Robert Morris, Michael Haizer, Christo, Carl André; Richard Long, Richard Serra; Mary<br />

Miss; Bruce Neuman, entre outros.<br />

34


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

este que identifica a obra como “ex-centrada” (<strong>em</strong> relação a si própria e <strong>em</strong> relação<br />

ao público-observador) já que manifestava uma posição ocupada relativamente a<br />

nossos centros físicos e psicológicos. Iniciando-se assim a passag<strong>em</strong> de uma “lógica<br />

da forma autônoma” a “lógica da externalização” de que falávamos. Os trabalhos de<br />

Michael Heizer e Robert Smithson: Duplo Negativo e Quebra-mar espiral,<br />

respectivamente, se ajustam a esta lógica.<br />

De acordo com Krauss, no texto citado, o Duplo Negativo de Heizer - trabalho<br />

que consiste <strong>em</strong> duas fendas, cada uma de 12 m. de profundidade por 30 m. de<br />

comprimento, separadas por um desfiladeiro profundo - sugere uma alternativa para<br />

a imag<strong>em</strong> que t<strong>em</strong>os de nosso conhecimento de nós mesmos. [...] Conhecimento,<br />

formado pela atitude de olhar para fora <strong>em</strong> busca das respostas dos outros ao nos<br />

devolver<strong>em</strong> esse olhar.<br />

Constituindo-se a obra numa metáfora do eu tal como conhecido mediante<br />

sua aparência para o outro, precisamos entrar nela para habitá-la à maneira que<br />

habitamos nosso corpo. Mas a imag<strong>em</strong> que t<strong>em</strong>os de nosso corpo é a de estarmos<br />

centrados no seu interior (num núcleo absoluto sendo assim transparentes à nossa<br />

consciência) o que não ocorre com Duplo Negativo. Embora este seja simétrico,<br />

possuindo um centro real: o desfiladeiro é impossível ocuparmos esse centro físico.<br />

Só pod<strong>em</strong>os nos colocar <strong>em</strong> um dos espaços fendidos e olhar para frente, <strong>em</strong><br />

direção ao outro: o duplo. A imag<strong>em</strong> refletida do espaço que ocupamos é que<br />

ter<strong>em</strong>os como resposta.<br />

49 KRAUSS (2001, p. 335).<br />

Uma vez que é necessário olhar através do<br />

desfiladeiro para enxergarmos a imag<strong>em</strong> refletida do<br />

espaço que ocupamos, a extensão do desfiladeiro <strong>em</strong><br />

si deve ser incorporada ao recinto formado pela<br />

escultura. Por conseguinte, a imag<strong>em</strong> de Heizer<br />

reproduz a intervenção do espaço externo na<br />

existência interior do corpo, ali se alojando e<br />

formando suas motivações e seus significados 49 .<br />

35


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 2 Michael Heizer - Duplo Negativo - Deserto de Nevada, 1968-70.<br />

Quebra-mar espiral, de Smithson, segue a mesma lógica. Também de<br />

grandes dimensões (tendo 4.5 m. de largura, mais ou menos variável, por 45 m. de<br />

diâmetro e 500 m. de comprimento) a espiral foi feita com aterro de basalto e areia<br />

pelas águas do grande Lago Salgado, <strong>em</strong> Utah. Ao ser percorrido é fisicamente<br />

penetrado para poder apreciar a espiral que, por sua vez, vai se estreitando.<br />

Não pod<strong>em</strong>os como espectadores ocupar seu centro por ser uma espiral<br />

ocasionando, deste modo, a sensação de descentramento devido a um espaço<br />

giratório como um ciclone imóvel, dentro da vasta extensão de lago e céu<br />

circundante, produz uma sensação de vertig<strong>em</strong>. Smithson, citado por Krauss no<br />

mesmo texto, expressa nos seus escritos que, nenhuma idéia, conceito, sist<strong>em</strong>a,<br />

estrutura ou abstração podiam sustentar-se diante da realidade daquela prova<br />

fenomenológica. Foi esta “prova fenomenológica” que levou ao artista a uma<br />

ambientação mitológica da obra refletida nos termos “ciclone imóvel” e “espaço<br />

giratório”. Os habitantes do lugar têm vários mitos <strong>em</strong> relação à existência de um<br />

36


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

lago interior salgado que se ass<strong>em</strong>elha a uma excentricidade da natureza. Um<br />

desses mitos é de que um gigantesco curso de água subterrâneo liga o lago ao<br />

Oceano Pacífico, ocasionando no lugar gigantescos red<strong>em</strong>oinhos no centro do lago.<br />

Fig. 3 Robert Smithson – Quebra-mar espiral, 1970.<br />

Ao utilizar a forma de espiral para imitar os<br />

red<strong>em</strong>oinhos, Smithson incorpora a existência do mito<br />

ao espaço da obra [e] cria uma imag<strong>em</strong> de nossa<br />

reação psicológica ao t<strong>em</strong>po e do modo como<br />

estamos determinados a controlá-lo pela criação de<br />

fantasias históricas. [a obra] busca suplantar as<br />

fórmulas históricas com a experiência de uma<br />

passag<strong>em</strong> momento a momento através do espaço e<br />

do t<strong>em</strong>po 50 .<br />

Ainda seguindo o pensamento de Krauss, a imag<strong>em</strong> de passag<strong>em</strong> é o<br />

indicativo concreto de uma transformação na escultura, que leva de um meio<br />

estático e idealizado para um meio t<strong>em</strong>poral e material. Esta imag<strong>em</strong> serve para<br />

50 KRAUSS (2001 p. 341).<br />

37


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

colocar tanto o observador como o artista diante do trabalho e do mundo, a fim de<br />

encontrar<strong>em</strong> reciprocidade entre cada um deles e a obra, numa atitude menos<br />

soberba opondo-se, assim, à do artista “gênio” 51 .<br />

Estamos, de acordo com a autora citada, frente às noções de excentricidade<br />

e invasão e passag<strong>em</strong> que levam a considerar que o significado se externaliza na<br />

escultura como resultado de um <strong>em</strong>basamento na arte abstrata, manifestado nos<br />

escultores minimalistas da escola norte americana pelo seu comprometimento com o<br />

poder e significado dos trabalhos.<br />

Num primeiro nível se percebe que estes escultores reag<strong>em</strong> ao ilusionismo<br />

escultural do espaço metafórico e do centro intencional e privado, para a<br />

externalização do significado. Romp<strong>em</strong> com os estilos dominantes e seus trabalhos<br />

apresentam um caráter abstrato na sua concepção que dificulta o reconhecimento<br />

do corpo humano nos mesmos e, portanto, dificulta nossa projeção no espaço da<br />

escultura. Num segundo nível, o que se manifesta é uma recolocação, uma<br />

descentralização do ponto da orig<strong>em</strong> do significado: de um núcleo interno para a<br />

superfície, para o contexto. Significado, analogicamente dizendo, originário de um<br />

espaço público e não privado.<br />

Entretanto, nosso corpo e nossa experiência são o t<strong>em</strong>a destas esculturas.<br />

Deste modo, esta mudança para a lógica da externalização se constituía num<br />

desafio epist<strong>em</strong>ológico e de mudança de sensibilidade.<br />

O trabalho de Richard Serra, por ex<strong>em</strong>plo, Desvio de 1970, se desenvolve<br />

nessa lógica tendo como fundamento a noção de site-specific.<br />

Esta noção costumava, nos anos 60 e 70, estar diretamente relacionada a<br />

uma experiência presencial e a uma imobilidade a respeito da circulação da obra<br />

devido a seu pertencimento a um lugar específico caracterizando-se, deste modo e<br />

neste ponto, como uma reversão ao paradigma do objeto autônomo e móvil da<br />

modernidade. Só que, está impressão fica só como “leve impressão” devido a certas<br />

diferenças importantes que se apresentam.<br />

51 A dinâmica da passag<strong>em</strong> está manifesta <strong>em</strong> obras de Neumann (Corredor verde); de Morris<br />

(Labirinto); de Serra (Desvio); de Smithson (Quebra-mar espiral) de acordo com Krauss (2001). Mas<br />

também nas Passagens de Benjamin “inspiradas” nas galerias da Francia, como a Lafayette. (Que<br />

lugar é esse? Que t<strong>em</strong>po se manifesta aí?).<br />

38


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 4 Richard Serra – Desvio, 1970<br />

Se o reinado de esse objeto, segundo Miown Kwon 52 era o espaço idealizado,<br />

puro e incontaminado, o do site-specific será o lugar real, impuro e ordinário do<br />

cotidiano e sua materialidade a da paisag<strong>em</strong> natural através da qual se constitui. A<br />

experiência do objeto de arte, ou evento, dava-se no aqui-agora através da presença<br />

física do participante (experiência corporal vivenciada) com duração <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po real.<br />

Imediatez sensorial de extensão espacial e duração t<strong>em</strong>poral, como coloca<br />

Kiwon que determina esta prática como site-specific fenomenológico. Ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que esta prática t<strong>em</strong> como aspiração extrapolar as limitações das<br />

linguagens tradicionais (pintura, escultura e seu cenário institucional) leva <strong>em</strong> si, o<br />

desejo consciente de resistir à pressão da força capitalista de mercado decorrente<br />

da relação inextricável, indivisível entre o trabalho e o site.<br />

O que estava <strong>em</strong> jogo era uma nova produção de experiência que permitiu<br />

instaurar novas probabilidades. No que concerne às instalações dos trabalhos de<br />

Heizer, Smithson e Serra, aqui apresentados, há a instauração de um espaço<br />

52 KWON (1997).<br />

39


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

dialógico e vivencial dependente da experiência do espectador concebido <strong>em</strong> termos<br />

fenomenológicos, deixando de lado a reflexão ideológica ou política, que daria outra<br />

conotação ao trabalho, sobre a experiência e sobre o espaço expositivo.<br />

Entretanto, essas novidades e expectativas da sensibilidade também eram<br />

organizadas no interior de um novo mundo, parafresando Umberto Eco 53 , de formas<br />

assuntivas, que elegiam como valor preferencial o compl<strong>em</strong>ento à satisfação final da<br />

expectativa. Até porque, como este autor coloca, entre manter o sist<strong>em</strong>a de<br />

assunções <strong>em</strong> condições de organicidade, e mantê-lo absolutamente inalterado há<br />

certa diferença. E é nessa diferença que o artista processa seu olhar/experiência.<br />

Outros olhares se manifestam cont<strong>em</strong>poraneamente a estas práticas<br />

fenomenológicas introduzindo uma reflexão sobre o conteúdo simbólico e político do<br />

espaço público incluindo o da galeria ou da instituição artística <strong>em</strong> seu conjunto.<br />

Daniel Buren lacrou a Galleria Apollinaire, <strong>em</strong> Milão, 1968, durante todo o<br />

t<strong>em</strong>po que durou a exposição. Colocou faixas verdes e brancas na porta que<br />

‘neutralizam” a arte eliminando o conteúdo, as faixas se tornam símbolo de<br />

consciência: aqui houve arte, e o que diz a arte? 54 A galeria era vista como um<br />

sintoma de um corpo social doente, e as faixas fechavam a galeria a modo de como<br />

os funcionários de saúde fecham locais infectados: a substância tóxica isolada lá<br />

dentro é menos a arte do que aquilo que, <strong>em</strong> todos os sentidos, a contêm 33 .<br />

A Arte têm mudado suas tradições, seus<br />

acad<strong>em</strong>icismos, seus tabus, suas escolas, etc. C<strong>em</strong><br />

vezes pelo menos, porque a mudança s<strong>em</strong> fim está na<br />

vocação de aquilo que se encontra na superfície e,<br />

entanto não alcanc<strong>em</strong>os a base, obviamente nada<br />

fundamental muda. (...) se existe um desafio possível<br />

não pode ser no âmbito formal, senão na base, no<br />

nível da arte e não no nível das formas dadas à arte 55 .<br />

53 ECO (2005, p.142).<br />

54 “As listras [faixas] são a minha ferramenta visual [...] O aproveitamento de uma certa maneira num<br />

determinado lugar, faz com que elas possam ressaltar, mostrar, e se tornar parte integrante desse<br />

lugar” BUREN (1986) apud DUARTE (2001, p. 114).<br />

33 O’ DOHERTY (2002, p.112).<br />

55 BUREN (1968) apud CRIMP (2001, p.150, tradução nossa).<br />

40


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 5 Daniel Buren – Galleria Apollinaire Milan, 1968.<br />

A partir dos anos 60, mas principalmente nos 70, a atitude crítica dos artistas<br />

passou a questionar a função da obra de arte dentro da ideologia dominante, na qual<br />

o aparato institucional (galeria, colecionador, casa de leilões, museu) pela qual a arte<br />

transitava, dissimulava as múltiplas molduras que a continhan e nas quais o público<br />

parecia insensível a tudo, menos ao conhecimento especial sobre ela. Assim, artista<br />

e público cumpriam seus papéis sociais.<br />

Isto provocou na opinião de O`Doherty (2002) uma série de práticas com teor<br />

crítico-institucional as quais se direcionavam a inviabilizar o sist<strong>em</strong>a comercial,<br />

frustrando a pretensão burguesa de ter-<strong>em</strong>-casa como, também, a surpreender o<br />

público com um tipo de trabalho que passou a requerer do mesmo uma recepção<br />

reflexiva sobre leituras contextuais e/ou uma recepção colaborativa frente às obras.<br />

Os artistas passam a se ‘instalar’ na instituição, trabalham com instalações <strong>em</strong><br />

diferentes modalidades: vídeo, environment, tableau, happenings, performances, que<br />

41


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

resultam numa nova consciência sobre questões relativas ao espaço (onde) e a<br />

percepção (como) 56 .<br />

A intervenção de Ives Klein, O Vazio (Le Vide) 1958, na Galerie Íris Clert,<br />

confrontou os visitantes com um espaço vazio, branco, incluindo a vitrine,<br />

insinuando, de acordo com o autor citado, que a arte colocada ´entre aspas´ na<br />

galeria se transforma num produto de vitrine, nada contém a não ser o espectador<br />

transformado <strong>em</strong> obra de arte 57 .<br />

O “vazio” de Klein foi preenchido <strong>em</strong> 1960 com O Pleno, o “cheio” de Arman<br />

na mesma galeria: um amontoado de lixo, sucatas, detritos deixa o visitante fora<br />

dela, excluído, espiando os restos pela janela, reconhece na sua própria raiva a raiva<br />

do artista. Obrigado a cont<strong>em</strong>plar não a arte, mas a galeria, o visitante tornasse um<br />

t<strong>em</strong>a, escreve O`Doherty.<br />

Fig. 6 Ives Klein – O Vazio (Le Vide), 1958 Fig. 7 Arman - O Pleno (o cheio), 1960.<br />

56 Começam a aparecer novas convenções para estas práticas expositivas onde o expectador ora era<br />

partícipe, ora ficava fora delas. Vale citar as instalações de Joseph Kosuth, Carlin Jeffrey, Duane<br />

Hanson, Allan Kaprow; John de Andréa; Hélio Oiticica, Ligya Clark; os tableau de Kienholz (um bar,<br />

um hospital), de Segal (posto de gasolina, uma sala de estar); Oldelburg e Samaras (quartos de<br />

dormir).<br />

57 Pintar de branco todo o interior da Galerie Iris Clert (retirando-lhe o mobiliário, inclusive o telefone);<br />

pintar as janelas de azul ultramarino (impedindo que da rua se visse o que lá dentro acontecia) e<br />

bebendo cocktails que tinham a particularidade de tingir de azul a urina dos visitantes, acaba<br />

chamando o espectador a completar, a participar na obra, e destacando, assim, a dependência que<br />

esta carrega do meio circundante.<br />

42


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Nesta linha de debates sobre espaço, percepção e sist<strong>em</strong>a de valores (tanto<br />

ético-sociais como econômicos) 58 estão Visão Branca de Lês Levine, Cavalos de<br />

Jannis Kounellis, Earth, Air, Fire, Water de Newton Harrinson e Richard Feynman,<br />

Earth Room de Walter de Maria; Corredor verde de Luz de Bruce Nauman. Seguindo<br />

esse sentido Christo e Jeanne Claude <strong>em</strong>pacotaram os museus, como o MAC de<br />

Chicago, por dentro e por fora, e o Reichstang <strong>em</strong> Berlim.<br />

O posicionamento de Kwon é da ord<strong>em</strong> do de O`Doherty <strong>em</strong> relação a estas<br />

práticas que as determina como site crítico-institucional. Sua especificidade se<br />

conformava ao decodificar e recodificar as convenções institucionais, de forma a<br />

expor suas operações ocultas (revelando as formas pelas quais as<br />

instituições moldam o significado da arte para modular o seu valor econômico e<br />

cultural). Mas também, ao evidenciar que, nessas instituições, o espaço da arte<br />

estava dissociado do mundo externo potencializando, assim, o imperativo idealista<br />

da instituição como contentora de valores verdadeiros, desinteressados e objetivos.<br />

Especificidade que objetiva, de igual forma, boicotar a falácia da arte e da autonomia<br />

de ditas instituições ao tornar aparente sua imbricada relação com processos sócio-<br />

econômicos mais amplos 59 . Slice, 1980, de Richard Serra é outro bom ex<strong>em</strong>plo 60 .<br />

Além das práticas diretas à instituição arte como as citadas, artistas valendo-<br />

se da mesma, pretend<strong>em</strong> redefinir o espaço “público” da arte como um espaço<br />

político. Manifestavam sua crítica aos fundamentos de realidades que se<br />

<strong>em</strong>basavam <strong>em</strong> teorias sociais fundacionistas, como a que mostrava um modelo<br />

absoluto de “visão pública” compatível com o ideal moderno de cont<strong>em</strong>plação<br />

desinteressada que respondia a uma estética unitária. Haveria, neste caso, um<br />

“espectador” imparcial às convenções sociais imperantes, submetido à repressão da<br />

divisão social num discurso totalitário e impessoal. As práticas artísticas f<strong>em</strong>inistas<br />

trouxeram está questão à relevância: através da crítica a representação da imag<strong>em</strong> e<br />

do espectador (ambos considerados, sob o olhar modernista, como espaços dados,<br />

prontos, colocados frente à imag<strong>em</strong> ou ao espectador). Como ex<strong>em</strong>plo, pod<strong>em</strong>os<br />

referendar a exposição Public Vision, 1982, que rompe com a “clausura” mostrando a<br />

visão como um processo que constitui, simultaneamente, à imag<strong>em</strong> e ao sujeito.<br />

58 Marcel Duchamp já tinha transformado o espaço de exposição com a instalação “1.200 Sacos de<br />

Carvão”, 1938 e “Milha de Fio”, 1942, ambas <strong>em</strong> Nova York.<br />

59 KWON (1997).<br />

60 Ver HMELJEVSKI (2006, p. 470).<br />

43


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Public Vision, 1982, foi uma coletiva de varias mulheres artistas organizada<br />

por Geetchen Bender, Nancy Dwyer e Cindy Sherman no White Colunns, um<br />

pequeno espaço alternativo do Soho, NY, EUA. As obras que foram expostas se<br />

aproximavam aos sujeitos-espectadores de vários modos rompendo a recepção<br />

estética habitual, por fazer<strong>em</strong> que estes deslocass<strong>em</strong> sua atenção da obra para sua<br />

relação com a imag<strong>em</strong>, promovendo uma disrupção e reconfiguração do espaço<br />

tradicional da visão estética.<br />

Rosalyn Deutsche 61 dirá que a exposição supunha uma intervenção site-<br />

specific no âmbito artístico predominante já que, Public Vision foi identificada como a<br />

crítica f<strong>em</strong>inina da representação visual. Anunciava a nova política f<strong>em</strong>inina da<br />

imag<strong>em</strong> destinada a desestabilizar os paradigmas estéticos estabelecidos e até o<br />

próprio discurso pós-modernista já que, ainda nos 80, as teorias pós-modernistas<br />

permaneciam indiferentes à sexualidade e o gênero. Isto r<strong>em</strong>ete ao pensamento<br />

marxista de que não é suficiente que o pensamento pressione a realidade, mas<br />

também, que a realidade também deve fazer pressão sobre o pensamento.<br />

Uma aproximação a três trabalhos expostos <strong>em</strong> Public Vision nos clarifica<br />

esta conceitualização. Para isto recorr<strong>em</strong>os às análises de Deutsche 62 .<br />

Fig. 8 Cindy Sherman –<br />

Unititled Film Still #14, 1978<br />

61 DEUTSCHE (2001).<br />

62 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 319-328)<br />

44<br />

Sherman se fotografa como<br />

modelo personificando diversos tipos<br />

f<strong>em</strong>ininos de imagens dos meios de<br />

comunicação: filmes, revistas, TV.<br />

Explorava as identidades como efeitos<br />

produzidos por significantes visuais –<br />

luz, distância, foco, etc. – atraindo a<br />

atenção para o processo de formação<br />

da identidade que t<strong>em</strong> lugar nas<br />

imagens culturalmente codificadas. O<br />

sujeito-espectador não encontra uma<br />

verdade interna escondida,<br />

enclausurada de uma personag<strong>em</strong> ou<br />

de uma identidade essencial.


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 9 Barbara Kruger - You deligt in the loss others<br />

(Você goza com a perda alheia), 1981.<br />

Fig. 10 Sherry Levine - After Egon Schiele: 2,<br />

1982.<br />

45<br />

Kruger se vale da estratégia do<br />

texto e interpela de forma direta ao<br />

sujeito espectador. As palavras<br />

invocam o prazer sádico do olhar<br />

vouyerístico, masculino, que f<strong>em</strong>iniza<br />

tudo o que vê; que <strong>em</strong>oldura os<br />

objetos como imagens, distanciando-<br />

os, fechando-os num espaço<br />

separado; e situando o sujeito<br />

observador <strong>em</strong> situação de controle. O<br />

texto de Kruger fala com uma voz<br />

f<strong>em</strong>inina que quebra a estabilidade<br />

desta disposição através do You<br />

(Você). A imag<strong>em</strong> vê ao sujeito-<br />

espectador e colapsa a distancia entre<br />

ambos.<br />

Levine recontextualiza os<br />

desenhos de Schiele e os apresenta<br />

como socialmente codificados, como<br />

formas reprodutíveis da cultura visual no<br />

lugar de expressões pictóricas<br />

espontâneas. Levine gera um momento<br />

de estranhamento no sujeito espectador<br />

ao irromper sua identificação com a<br />

imag<strong>em</strong> anteriormente tida como natural.<br />

Este sujeito observador e a imag<strong>em</strong> são<br />

deslocados.<br />

O Eu expressionista aparece<br />

desestabilizado da idéia de algo<br />

acabado e complexo.


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Nos dias atuais esta exposição t<strong>em</strong> adquirido o valor de um manifesto. O<br />

adjetivo public, neste caso, descreve um espaço <strong>em</strong> que o significado das imagens e<br />

a identidade dos sujeitos estão “radicalmente abertos, são contingentes, estão<br />

incompletas”. É um espaço que nos ajuda a compreender por que o eu se mostra<br />

como algo ao que se chega, algo que se pretende definir através do<br />

olhar/experiência.<br />

Origina-se deste modo, um espaço de conflito que geralmente chamamos de<br />

“espaço-público” já que, tanto o significado quanto o olhar/experiência, se<br />

conformam e modificam por estruturas sociais e históricas, culturalmente, no espaço<br />

da sociabilidade.<br />

O significado de uma obra de arte não é meramente<br />

algo prévio a descobrir, mas que se produz. Os<br />

artistas e as artistas, comprometidos com o que eu<br />

chamo de “crítica institucional” investigavam este tipo<br />

de produção, fazendo do contexto da exposição de<br />

arte o t<strong>em</strong>a de sua obra, mostrando desse modo que<br />

a obra de arte e suas condições de existência são<br />

inseparáveis. Intervirão nos lugares de exposição e<br />

no aparato museológico por meio dos quais se<br />

constrói a ilusão da separação estética entre a obra e<br />

o sujeito que a olha [...] chamarão a atenção acerca<br />

dos interesses sociais e econômicos aos que tal<br />

“separação” t<strong>em</strong> servido historicamente 63 .<br />

As conseqüências diretas do site crítico-institucional foram: a<br />

desmaterialização do site (lugar) e a progressiva desestetização (devido ao recuo do<br />

prazer visual, pelo uso de estratégias antivisuais: informativas, textuais, expositivas,<br />

didáticas) como também, a desmaterialização do trabalho de arte (através de<br />

estratégias que utilizavam gestos, eventos, performances limitadas pelo t<strong>em</strong>po).<br />

Além dos artistas já referenciados neste contexto, dev<strong>em</strong>os citar Hans<br />

Haacke, Marta Rosler, Adrian Piper, Marcel Broodthaers que d<strong>em</strong>onstraram que o<br />

significado da obra de arte não se encontra s<strong>em</strong>pre na mesma, mas se constitui<br />

através de sua relação com um exterior, na qual o modo como a obra se apresenta<br />

muda com as circunstâncias. Fazendo do contexto da exposição o t<strong>em</strong>a de sua obra,<br />

igual como foi <strong>em</strong> Public Vision, mostravam que a obra de arte e suas condições de<br />

existência são inseparáveis. Intervinham diretamente no que se constitui como uma<br />

ilusão: a separação estética entre a obra e o sujeito que a observa e o faziam através<br />

63 DEUTSCHE (2001, p. 318).<br />

46


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

das próprias instituições “legitimadoras” da arte. 64 Para Kwon 65 estes artistas<br />

conceberam o lugar não somente <strong>em</strong> termos físicos e espaciais, mas como uma<br />

estrutura cultural definida pelas instituições de arte.<br />

Se a ênfase é dada no processo, na opinião de Umberto Eco 66 , a recepção<br />

de uma mensag<strong>em</strong> de modo aberto faz com que a expectativa <strong>em</strong> relação a..., não<br />

implique tanto uma previsão do esperado quanto uma expectativa do imprevisto, pelo<br />

que o valor da experiência tende a <strong>em</strong>ergir quando imergimos <strong>em</strong> crises contínuas.<br />

Num processo onde domina a improbabilidade, exerc<strong>em</strong>os uma liberdade de<br />

escolha. (“Vaca profana põe teus cornos, para fora e acima da manada”) 67 .<br />

2.3 SOBRE O OLHAR/EXPERIÊNCIA E A VISUALIDADE<br />

No decorrer do texto t<strong>em</strong>os usado o termo composto olhar/experiência e<br />

ex<strong>em</strong>plificado, indiretamente, com alguns ex<strong>em</strong>plos no campo da arte. No entanto<br />

será necessária uma melhor compreensão do que significa “olhar” para apreender<br />

este termo. Se como prescrito, a opacidade, a perda, nos traz a possibilidade de<br />

novos modelos conceituais que favorec<strong>em</strong> o movimento experencial é porque ela se<br />

ass<strong>em</strong>elha ao olhar de Édipo e de Tirésias que, <strong>em</strong>bora cegos, consegu<strong>em</strong><br />

vislumbrar o passado e o futuro no presente. O olhar se estende para o invisível,<br />

para os olhares limites que jamais aceitam o mundo tal qual é, mas como poderia<br />

ser, onde se questionam os limites entre o eu e o outro; entre interior e exterior.<br />

Dev<strong>em</strong>os pergunta-nos de que modo esse olhar pode se constituir que permita um<br />

acoplamento direto da experiência.<br />

64 DEUTSCHE (Ibid, p. 318).<br />

65 KWON (1997).<br />

66 ECO (2005, p. 136-148).<br />

67 Trecho da música Vaca profana, do cantor brasileiro Caetano Veloso.<br />

Vocês verão que as vias pelas quais ele [Merleau-<br />

Ponty] nos levará não são apenas da ord<strong>em</strong> da<br />

fenomenologia visual, pois elas chegam a reencontrar<br />

– aí está o ponto essencial – a dependência do visível<br />

<strong>em</strong> relação àquilo que nos põe sob o olho de que vê.<br />

Ainda é dizer de mais, pois esse olho é apenas a<br />

metáfora de algo que melhor chamarei de o <strong>em</strong>puxo<br />

daquele que vê – algo de anterior a seu olho. [...] é a<br />

47


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

preexistência de um olhar – eu vejo de um ponto, mas<br />

<strong>em</strong> minha existência sou olhado de toda parte 68 .<br />

Na opinião de Antonio Quinet 69 há, como Lacan definiu, a pré-existência de<br />

um dado-a-ver, o que significa que, na relação inicial com o mundo algo é dado-a-<br />

ver àquele que vê. A contribuição de Lacan a questão do olhar é decorrente de seu<br />

pensamento: se “sou” constituído pelo Outro, o lugar do Simbólico, que já existe<br />

antes do “meu” nascimento é porque existe uma relação dialética entre ambos e é<br />

justamente nesse campo, o campo escópico, que o olhar se desenvolve, instaurando<br />

dita relação entre ambos.<br />

Em nossa relação às coisas, tal como constituída pela<br />

via da visão e ordenada nas figuras da<br />

representação, algo escorrega, passa, se transmite,<br />

de piso para piso, para ser s<strong>em</strong>pre nisso <strong>em</strong> certo<br />

grau elidido – é isso que se chama olhar 70 .<br />

A partir do gráfico usual renascentista Lacan 71 desenvolveu um esqu<strong>em</strong>a<br />

representativo da Visualidade segundo os conceitos por ele desenvolvidos.<br />

Deste modo ter<strong>em</strong>os: primeiro o esqu<strong>em</strong>a visual - o “cone da visão” - da<br />

perspectiva que representa o olhar renascentista, de janela, de ponto de vista do<br />

sujeito que vê a cena; perspectiva como desenhada por Brunelleschi, Dürer e<br />

Alberti 72 e predominante na modernidade:<br />

OBJETO<br />

Parte do<br />

Mundo<br />

Gráfico 4 – Gráfico usual renascentista<br />

68 LACAN (1985, p. 73).<br />

69 QUINET (1997).<br />

70 LACAN (op. cit. p. 74).<br />

71 Ver LACAN (Ibid<strong>em</strong>, p. 90-115); LACAN (1973) apud FOSTER (2001, p.142).<br />

72 VANIER (2005, p. 46).<br />

IMAGEM<br />

48<br />

SUJEITO<br />

Ponto Geometral: o<br />

lugar da visão do<br />

sujeito


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Quando Lacan, ao se referir que o sujeito é olhado pelo mundo, coloca este<br />

sujeito na situação de objeto (como se fosse um quadro, cumprindo a função<br />

quadro, função puntiforme, evanescente). Ou seja, num sentido contrário ao “cone<br />

da visão”, surge outro cone com o vértice do lado de lá, do lado da cena, e a base<br />

voltada para os olhos. Neste vértice <strong>em</strong>ana um ponto de luz (objeto, uma “parte” do<br />

mundo) ou seja, aquilo que me atrai e me permite vê-lo; o que Lacan chama de A<br />

Mirada. Este segundo cone organiza, estrutura a cena e chama-se “cone do olhar”.<br />

PONTO DE<br />

LUZ<br />

Desde onde<br />

A Mirada, no<br />

mundo, me<br />

olha<br />

Gráfico 5 – Esqu<strong>em</strong>a visual lacaniano – o cone da visão<br />

No “cone do ver” o plano da Imag<strong>em</strong> situa-se entre o olho e o objeto. No<br />

“cone do olhar” é a Tela o intermediário.<br />

Lacan superpõe ambos os cones, representado com o esqu<strong>em</strong>a seguinte<br />

que, com algumas indicações elucidativas, permite uma boa compreensão desta<br />

conceitualização.<br />

TELA<br />

Acervo cultural das<br />

imagens, códigos,<br />

convenções.<br />

49<br />

SUJEITO/IMAGEM<br />

Sujeito sendo olhado por<br />

A Mirada desde o Ponto<br />

de Luz


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

A MIRADA<br />

como Objeto<br />

Lugar do Real<br />

Gráfico 6 – Esqu<strong>em</strong>a visual lacaniano<br />

O significado de Tela se refere à reserva cultural de que cada imag<strong>em</strong> é um<br />

ex<strong>em</strong>plo. É o lugar das convenções da arte, dos esqu<strong>em</strong>as de representação, dos<br />

códigos da cultura visual.<br />

Esta Tela é mediadora entre A Mirada do objeto para<br />

o sujeito ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que protege este sujeito<br />

desse olhar, ou seja, capta o olhar pulsante,<br />

deslumbrante e espalhado e o domina até convertê-lo<br />

<strong>em</strong> imag<strong>em</strong> 73 .<br />

Para apreender este olhar/experiência, pod<strong>em</strong>os dizer que as mudanças que<br />

transcorr<strong>em</strong> nos campos sócio-históricos e lingüístico-simbólicos, resultam de uma<br />

série de novas conceitualizações desses espaços, que se apresentam diretamente<br />

ligadas às relações que, no exercício de nossa humanidade, se manifestam.<br />

Experiências que se constitu<strong>em</strong> e se revelam através do entre jogo do olhar.<br />

A mediação que o ser humano pode fazer entre ele e o mundo o diferencia<br />

dos animais (que estão no mundo mostrando-se capturados <strong>em</strong> A Mirada do<br />

73 FOSTER (2001, p. 143, tradução nossa).<br />

IMAGEM/TELA/VÉU<br />

Lugar de mediação.<br />

Espaço de ver e fazer imagens.<br />

Acesso ao Simbólico<br />

50<br />

SUJEITO<br />

como<br />

Imag<strong>em</strong>/quadro<br />

Lugar do<br />

Imaginário<br />

Campo escópico<br />

Constituído a partir do<br />

lugar onde localizo o<br />

ponto <strong>em</strong> que se mira,<br />

o alvo-objeto. Espaço<br />

ou oportunidade para<br />

um movimento<br />

(atividade ou<br />

pensamento<br />

desimpedido).


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

mesmo) por ter a capacidade da reflexão 74 . Reflexão considerada como uma função<br />

intelectual que lhe permite o acesso ao Simbólico (Tela) por meio do Véu 75 , onde<br />

pode manipular e dominar a Mirada, negociar uma deposição, uma desistência.<br />

Ver s<strong>em</strong> a Tela e o Véu seria estar cegado por A Mirada e tocado pelo Real.<br />

Ver através deles, é formar uma imag<strong>em</strong> atropopeica 76 , que afasta e protege. Esta<br />

detenção de A Mirada, segundo Lacan 77 quando é apolínea forma uma imag<strong>em</strong><br />

[moderadora], que aplaca e relaxa o espectador de seu desejo de tocar o Real que,<br />

neste caso, resultaria na formação de uma imag<strong>em</strong> dionisíaca [dominadora] que se<br />

sustenta na ord<strong>em</strong> imaginária quando “parece” que a asseguramos.<br />

Para Didi-Huberman 78 , aluno de Lacan, a “imag<strong>em</strong>” não é a imitação das<br />

coisas, icônica, mas sim um “intervalo” traduzido de forma visível, a linha de fratura<br />

entre as coisas. É o lugar da cisão, da esquize, do solo fértil da heurística, das<br />

aproximações e s<strong>em</strong>elhanças, onde à medida que novas tensões se instauram a<br />

imag<strong>em</strong>-obra se transforma <strong>em</strong> outra. O modelo dialético coloca o saber <strong>em</strong><br />

movimento e recusa a idéia de continuidade. Faz-se de sobrevôos, de<br />

deslocamentos fundamentando-se na análise dos rastros. Um movimento onde tudo<br />

é anacrônico, um exercício de resignificar o mundo onde o leque do t<strong>em</strong>po se abre,<br />

se expande dando novos sentidos ao que v<strong>em</strong>os, não para cristalizar este sentido,<br />

mas para reconduzir a cisão, despertar o desejo e estimular a experiência.<br />

O espaço onde se encontram “o agora” e o “não mais agora” representa a<br />

imag<strong>em</strong> e está s<strong>em</strong>pre impregnada de tensões que o observador desperta a partir<br />

de seu presente. Imagens como um real-possível, um entre-dois.<br />

Segundo Alberto Manguel<br />

As imagens que formam nosso mundo são símbolos,<br />

sinais, mensagens, alegorias. Ou talvez sejam<br />

apenas presenças vazias que completamos com o<br />

nosso desejo, experiência, questionamento e<br />

r<strong>em</strong>orso. Qualquer que seja o caso, as imagens,<br />

assim como as palavras, são a matéria de que somos<br />

feitos 79 .<br />

74<br />

“Husserl considera o ato reflexivo como a mais importante capacidade do ser humano e atua de<br />

maneira diferente nas diversas culturas” (ALES BELLO, 2004, p. 56-57).<br />

75<br />

“Esta tela-véu também é chamada de peneira justamente porque lhe permite ao sujeito desde o<br />

ponto da imag<strong>em</strong> cont<strong>em</strong>plar o objeto no ponto da luz” (FOSTER, 2001, p.143).<br />

76<br />

Atropopéico: que t<strong>em</strong> poder de afastar (uma influência maléfica, uma desgraça etc.) In: Dicionário<br />

Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 1.0.<br />

77<br />

LACAN (1973) apud FOSTER (2001, p. 144, tradução nossa).<br />

78<br />

Ver: DIDI-HUBERMAN (2005).<br />

79 MANGUEL (2001, p. 21).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

No campo escópico, tudo se articula entre dois<br />

termos que funcionam de maneira antimônica – do<br />

lado das coisas há o olhar, quer dizer, as coisas têm<br />

a ver comigo, elas me olham, e com tudo eu as vejo.<br />

Neste sentido é que é preciso entender a palavra<br />

martelada no Evangelho – Eles têm olhos para não<br />

ver. Para não ver o quê? – justamente que as coisas<br />

têm a ver com eles, que elas os olham 80 .<br />

Essas imagens se apresentam a nossa consciência instantaneamente, como<br />

um lampejo que destrói nossas certezas num instante nos deixando de frente com o<br />

que faz enigma. Há aqui uma referencia a Lacan 81 quando conceitualiza que num<br />

quadro pod<strong>em</strong>os notar a ausência que nos faz perceber que o olhar não é visto, e<br />

sim imaginado por mim no campo do Outro.<br />

Cada um de nós trama seu Véu (nossa realidade) com os fios do Imaginário e<br />

do Simbólico. Imaginário formado pelo conjunto de imagens ideais que guiam tanto<br />

nossa relação de indivíduo com nosso ambiente próprio, quanto o desenvolvimento<br />

de nossa personalidade. Simbólico (que “nos pertence”: o dos significantes –<br />

aqueles que un<strong>em</strong> um conceito a uma imag<strong>em</strong> acústica - adquiridos num t<strong>em</strong>po<br />

sócio-cultural determinado) para inserir uma descontinuidade, um novo sentido, na<br />

Tela do Simbólico instituído (o da Cultura, da Lei, da Ord<strong>em</strong> que determina os<br />

lugares que cada um pode ocupar na vida social no mundo).<br />

A navete, utilizada para tramar, será o jogo da experiência desenvolvido como<br />

um anteparo de proteção para não sermos atingidos livr<strong>em</strong>ente pelo Real, que não é<br />

a dimensão da experiência imediata e sim uma imediatez inalcançável.<br />

É deste jogo, do visível-indizível-dizível, que nosso olhar/experiência ira se<br />

reconstituindo continuamente.<br />

80 LACAN (1985, p.106)<br />

81 LACAN (op. cit.).<br />

Você está numa tenda. Do lado de fora, é uma grande<br />

imensidão gelada. É uma desolação urrante [...] Há<br />

ruínas também, muitas ruínas [...] Há arbustos<br />

espinhosos, árvores retorcidas, muito vento. Mas você<br />

t<strong>em</strong> uma pequena vela <strong>em</strong> sua tenda. Você pode se<br />

manter aquecido. Muitas coisas estão urrando lá fora<br />

na desolação urrante. Muitas pessoas estão urrando.<br />

[...] O barulho é ensurdecedor. Também é assustador.<br />

Os urros estão se aproximando de você, de sua tenda,<br />

onde você está agachado <strong>em</strong> silêncio, torcendo para<br />

52


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

82 ATWOOT (2006, p. 155-158, passim).<br />

não ser visto. Você está assustado por si mesmo, mas<br />

especialmente por aqueles que ama. Você quer<br />

protegê-los, quer juntá-los dentro de sua tenda como<br />

medida de proteção.<br />

O probl<strong>em</strong>a é que sua tenda é feita de papel.<br />

Papel não irá impedir a entrada de nada. Você sabe<br />

que precisa escrever nas paredes, nas paredes de<br />

papel, na parte interior da tenda. Você precisa<br />

escrever de baixo para cima e de trás para frente,<br />

precisa cobrir todo o espaço disponível t<strong>em</strong> de<br />

descrever os urros que soam do lado de fora no papel.<br />

Parte da escrita t<strong>em</strong> que descrever os urros que soam<br />

do lado de fora [...] é difícil porque você não consegue<br />

ver através das paredes do papel e, portanto, não<br />

pode ser exato acerca da verdade, e não pode ir lá<br />

fora, no meio da desolação, para ver por si mesmo.<br />

Parte da escrita t<strong>em</strong> que ser sobre as pessoas que<br />

você ama e a necessidade que sente de protegê-las, e<br />

isso é difícil porque n<strong>em</strong> todas elas consegu<strong>em</strong> ouvir<br />

os urros do mesmo jeito que você, elas não quer<strong>em</strong><br />

ficar presas num espaço apertado com você e sua<br />

pequena vela e seu medo e sua irritante obsessão<br />

com caligrafia, uma obsessão que não faz sentido<br />

para elas, e fica tentando escapar por baixo das<br />

paredes da tenda.<br />

Isso não o impede de escrever. Você escreve<br />

como se sua vida dependesse disso, a sua vida e a<br />

vida delas. Você imprime <strong>em</strong> taquigrafias suas<br />

personalidades, suas feições, seus hábitos, suas<br />

histórias; você muda os nomes, é claro, porque não<br />

quer criar evidencias, não quer atrair o tipo errado de<br />

atenção para essas pessoas que você ama, algumas<br />

das quais - você está descobrindo agora – não são<br />

pessoas, e sim cidades e passagens, lagos e roupas<br />

[...] você não quer atrair os urradores, mas eles são<br />

atraídos assim mesmo, como que pelo faro: as<br />

paredes da tenda de papel são tão finas que eles<br />

pod<strong>em</strong> ver a luz de sua vela, pod<strong>em</strong> ver sua silhueta<br />

e, naturalmente, ficam curiosos porque você pode ser<br />

sua presa [...] Você é muito visível, você se traiu.<br />

Porque você acha que essa sua escrita, essa<br />

grafomania numa caverna frágil esses rabiscos de um<br />

lado a outro e de cima abaixo das paredes do que está<br />

começando a parecer uma prisão, é capaz de proteger<br />

alguém? Isso é ilusão [....] O vento entra, a sua vela<br />

cai e lança uma labareda, e uma aba solta da tenda se<br />

incendeia, e pela abertura enegrecida você pode ver<br />

os olhos dos urradores [...] mas você continua<br />

escrevendo porque o que mais você pode fazer? 82<br />

53


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

2.4 A MIRADA DO OUTRO NOS TEMPOS DO CHAMADO PÓS-MODERNISMO 83 .<br />

Dev<strong>em</strong>os nos perguntar que tipo de mundo se “deu-a-ver” a partir do que<br />

convencionalmente chamamos de Pós-modernismo e como, nesse mundo, os<br />

sujeitos articulam e produz<strong>em</strong> seu olhar/experiência.<br />

O Pós-modernismo gosta de termos que implicam abertura, multiplicidade,<br />

pluralidade, heterodoxia, contingência, hibridismo. Jameson 84 dirá, paradoxalmente,<br />

que é uma teoria unificada de diferenciação vendo-se deste modo, dilacerado entre o<br />

impulso de unificar seus campos com asserções totalizadoras e o impulso<br />

contraditório de proliferar diferenças. Uma das condições principais da Pós-<br />

modernidade é o fato de ninguém pode ou deve discutir-la como condição histórico-<br />

geográfica 85 .<br />

Ao se desfazer o “subjetivismo”, típico da tradição ocidental que lhe atribuiu a<br />

fonte da verdade ao Sujeito do cogito, nos encontramos frente a um Sujeito da Pós-<br />

modernidade cujo cenário é justamente o lugar da visualidade do Outro. Visualidade<br />

mostrada por meio de uma crítica-reflexiva e de imag<strong>em</strong> (vídeos, fotografia,<br />

documentários, exposições, livros) que, principalmente, diziam respeito às<br />

diferenças.<br />

Um cenário polifônico, caleidoscópico, onde as muitas vozes e as muitas<br />

imagens facilitam a formação de múltiplas e diferentes “identificações”. Uma<br />

multiplicidade que permite repensar a subjetividade como possibilidade de vir-a-ser.<br />

Dev<strong>em</strong>os l<strong>em</strong>brar que Joseph Beuys 86 <strong>em</strong> seu conceito ampliado de arte já<br />

falava da união do mundo interior do artista com o exterior, de modo que a arte<br />

passava a ser agente ativo na vida social, abandonando o círculo restrito e<br />

culturalista das belas-artes, da música e da literatura: A arte há de sair da acad<strong>em</strong>ia,<br />

da exclusividade de um meio concreto. Deve explorar outros terrenos. A partir de<br />

1964, Beuys passou a designar seu método de trabalho pela expressão Vehicle-Art<br />

(Arte Veículo) como forma de afastar a Arte de uma probl<strong>em</strong>ática meramente<br />

83<br />

Nesta dissertação, o conceito de arte cont<strong>em</strong>porânea será referendado como a arte que se<br />

manifesta a partir da década dos 60 até os dias atuais. Será enfocada <strong>em</strong> duas etapas: uma <strong>em</strong><br />

relação a trabalhos de arte até a década dos 90, para o qual utilizar<strong>em</strong>os o conceito e a nominação<br />

de Pós-modernismo como condutor das manifestações artísticas. Envolvendo os processos artísticos<br />

de 90 até a atualidade, usar<strong>em</strong>os o conceito e a nominação de Arte Atual.<br />

84<br />

JAMESON (1997) apud STAND (2005. p. 217).<br />

85<br />

HARVEY (2008, p. 301).<br />

86<br />

BEUYS (196-?) apud BERNÁRDEZ SANCHÍS (1999, p. 80-81).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

estética e acentuar a idéia de um deslocamento nômade pela realidade, que chamou<br />

de escultura social.<br />

Geralmente, a subjetividade é entendida como um espaço íntimo do hom<strong>em</strong><br />

(seu mundo interno) com o qual ele se relaciona com o espaço externo (mundo<br />

social). A partir de Lacan, via Freud, não poder<strong>em</strong>os considerar um separado do<br />

outro. Isto porque o mundo interno, como já foi colocado, está formado por<br />

Inconsciente e Consciente. Um Inconsciente que “fala” a voz do Outro através da<br />

estrutura significante. Um Consciente angustiado que tenta unificar: por um lado,<br />

consciente e inconsciente deste Sujeito dividido ($), e por outro lado, unificar mundo<br />

interno com mundo externo, através da articulação do Simbólico instituído<br />

(significantes “Outros” do campo da normatividade) com seu Imaginário (mais<br />

significantes “outros” idealizados) e, da mesma forma, com seus s<strong>em</strong>elhantes.<br />

A teorização lacaniana 87 , <strong>em</strong> relação ao signo, ao sujeito e a articulação dos<br />

registros referenciais, desenvolvida no âmago desta mudança de paradigma não<br />

podia ser mais adequada para compreender esse Sujeito Pós-moderno que<br />

aproxima a Arte à Vida. Este Sujeito, (parafraseando a Heráclito) nunca se banha no<br />

mesmo rio, precipita-se nos Mundos de Vida de Heggel e Heidegger, na<br />

Comunidade de Comunicação de Habermas, nos Mundos Possíveis de Guattari e<br />

Bourriaud. Compreende a frase nietzscheana “Deus está morto” como o fim da<br />

metafísica e se espalha rizomaticamente pelo Solo, pela Terra. Torna o espaço um<br />

lugar praticado desde o cotidiano, como coloca Certeau. Levanta a bandeira de “É<br />

proibido proibir”. Busca transgredir os limites que tocam ao sofrimento e a morte <strong>em</strong><br />

busca do Gozo. Procura rever seus vínculos com a ord<strong>em</strong> simbólica para dar vazão<br />

a novos vínculos. Ao final, como Lacan já tinha colocado, uma língua entre outras<br />

não é nada mais do que a integral dos equívocos que a sua história deixou<br />

persistir 88 .<br />

Perceb<strong>em</strong>os, deste modo, que a subjetividade só pode advir de relações com<br />

e <strong>em</strong>, que decorr<strong>em</strong> de dois modos originais constitutivos. Um modo advindo das<br />

relações com o “Outro” como estrutura significante do Simbólico - o Tesouro de<br />

significantes - no Inconsciente (Lacan, a respeito, dirá que estas são as relações<br />

autenticamente intersubjetivas). Concomitantes a estas, outro modo recorrente das<br />

87 Ver <strong>em</strong> Apêndice.<br />

88 SCHÃFFER, M. Psicanálise, subjetividade e enunciação. Disponível <strong>em</strong>:<br />

Último acesso<br />

<strong>em</strong>: 12 de jun. de 2008.<br />

55


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

relações com o “outro” meu s<strong>em</strong>elhante (neste caso Lacan chamará de “inter-<br />

subjetividade imaginária” própria à relação entre sujeito e o outro) das quais resultam<br />

as formações da linguag<strong>em</strong> simbólica que me permit<strong>em</strong> desenvolver<br />

subjetividades 89 .<br />

Si pensarmos que o Simbólico, se relaciona com esse sujeito-outro a partir de<br />

“outros”, estar<strong>em</strong>os ante a possibilidade de uma leitura dos processos humanos<br />

(sejam eles éticos, filosóficos, religiosos, políticos, artísticos e mais alguns) e suas<br />

representações (sejam estas objetuais, conceituais, contextuais e afins) como<br />

recorrentes das articulações de mundos <strong>em</strong> espaços e t<strong>em</strong>pos que se atravessam. A<br />

realidade <strong>em</strong> sua complexidade é um texto que os artistas dev<strong>em</strong> articular através de<br />

redes relacionais inventadas. Para Bourriaud 90<br />

A essência da prática artística radica na invenção de<br />

relações entre sujeitos; cada obra de arte encarnaria a<br />

proposição de habitar um mundo <strong>em</strong> comum, e o<br />

trabalho de cada artista, um feixe de relações com o<br />

mundo que, por sua vez, gera novas relações, e assim<br />

até o infinito.<br />

Indo ao encontro deste pensamento, Luiz Brea 91 afirma que, o modo de<br />

trabalho que chamamos artístico deve, a partir, de agora se consagrar a um produzir<br />

similar na esfera do acontecimento, da presença: nunca mais só no da representação<br />

[objetual-formal].<br />

De um modo particular, as análises feitas por diferentes teóricos e através de<br />

diversos “ângulos de visão” que é o mesmo que dizer: muitos “outros” se<br />

relacionando e vivenciando experiências <strong>em</strong> processos de subjetivação, comprovam<br />

como certos tipos de subjetividades (recorrentes dessas ações) determinam<br />

mudanças paradigmáticas que desencadeiam representações específicas, possíveis<br />

de ser<strong>em</strong>, posteriormente, “cartografadas”, como as feitas nos textos de Rosalind<br />

Krauss, Escultura <strong>em</strong> campo ampliado de 1979; de Luiz Brea, Ornamento e Utopia<br />

de1997; de Miwon Kwon, Um lugar após outro: anotações sobre Site Specificity, de<br />

1997; de Paloma Blanco, Mapeando o território, de 2001 ou de Rubens mano Um<br />

lugar dentro do lugar, de 2003.<br />

89<br />

Ver SAFATLE (2007, p. 44).<br />

90<br />

BOURRIAUD (2001).<br />

91<br />

BREA (2001) apud GOLVANO, F. Arte cont<strong>em</strong>poránea: aperturas liminares. Euskonews &<br />

Media 118.zbk. 2001. Disponível <strong>em</strong>:<br />

Último acesso <strong>em</strong>: 3 de jul. de 2004.<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

De “repente” (um milionésimo de segundo, todos os t<strong>em</strong>pos humanos,<br />

cinqüenta, trinta ou vinte anos?) estamos inseridos num “labirinto multicursal” de<br />

muitas entradas e com uma vasta capacidade de amplitude e possibilidade dos<br />

caminhos se cruzar<strong>em</strong> <strong>em</strong> e com os muitos “outros”.<br />

O mundo das artes e das representações simbólicas<br />

viu-se diante da necessidade de refugar meios e<br />

formas de expressão consagrados ou obsoletos que<br />

não mais serviam à assimilação e ao relacionamento<br />

com essa realidade. Com o solapamento das bases já<br />

caducas herdadas do romantismo e reformuladas<br />

pelo modernismo, o pós-modernismo traz à baila a<br />

saída útil <strong>em</strong>butida na nova visão pragmática: tudo é<br />

permitido, inclusive negar às origens, desde que um<br />

objetivo supostamente válido seja instaurado. Ou<br />

quando levado ao estr<strong>em</strong>o, conforme rezava o l<strong>em</strong>a<br />

da Revolução Estudantil de maio de 1968: “É proibido<br />

proibir” 92 .<br />

Nesta amplitude nada mais nos resta senão caminhar, jogar, modular,<br />

relacionar. Só que esse “resta” é o sentido para dar sentido a nossa tessitura do<br />

Véu. Tessitura, assim, com “ss” como uma composição, uma construção, que se<br />

insere na tecedura desse Véu (“nossa” – <strong>em</strong> plural- escrita na Tenda de Atwoot?).<br />

Esse “resta” também faz com que possamos aproximar pensamentos<br />

anacrônicos. Porque s<strong>em</strong>pre estamos lendo com novos olhares, por ex<strong>em</strong>plo, pré-<br />

socrático, socráticos, platônicos ou especificamente como acontece no pós-<br />

modernismo Nietzsche, Marx, Kant, Spinoza? Também nos faz sair, através da falta,<br />

do lugar da opacidade, da viscosidade, <strong>em</strong> que a sociedade totêmica, como dizia<br />

Lacan, nos coloca. S<strong>em</strong> a falta o Sujeito nunca pode vir-a-ser, nunca pode vir a se<br />

reinventar como sujeito sendo assim, a dialética do desejo seria esmagada. Quando<br />

não há nenhuma possibilidade de falta, quando tudo nos é dado, a angustia passa a<br />

nos perturbar, no entanto, quando nossos desejos são induzidos (ou produzidos?)<br />

por qualquer dispositivo de subjetivação dominante, nossa dialética do desejo fica<br />

comprometida.<br />

92 GIUMSBURG, J; FERNANDES, N. (2005, p. 14).<br />

Por fim, amamos o desejo, e não o desejado. A frase<br />

é de Nietzsche, mas cabe <strong>em</strong> Lacan. Núcleo do ser<br />

do sujeito lacaniano, a característica principal do<br />

desejo é não ter objeto naturalmente dado. Ele é<br />

manifestação de um vazio, [falta] de uma pura<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

negatividade que quer consumir os objetos nomeados<br />

pela linguag<strong>em</strong>, passar por eles, mas que não se<br />

satisfaz com nenhum. "O desejo é s<strong>em</strong>pre o desejo<br />

de Outra coisa." Até porque o hom<strong>em</strong> é o único<br />

animal que não deseja exatamente coisas. Ele deseja<br />

desejos. Para Lacan, um objeto só se torna desejável<br />

a partir do momento <strong>em</strong> que ele é objeto de desejo do<br />

Outro. Daí a frase: "O desejo do hom<strong>em</strong> é o desejo<br />

do Outro” 93 .<br />

Sociedade “totêmica” porque s<strong>em</strong>pre, por trás dos el<strong>em</strong>entos do Simbólico, se<br />

encontra um significante fálico (de falhus, falta) como sentido ligado a<br />

representações de potência e força. Um significante encarregado de designar como<br />

“um” todos os efeitos de um significado; s<strong>em</strong>pre que este significante os condicione<br />

com sua presença como significante 94 . Vários são os significantes nesta sociedade<br />

do espetáculo, da cultura visual, do simulacro. Por ex<strong>em</strong>plo: o Capitalismo, a<br />

Globalização, o Aquecimento Global, a Fome do Mundo, o Desarmamento, a Água<br />

do Mundo, o Fundamentalismo Islâmico, a queda do “Império” americano; as Novas<br />

Diásporas, a Bolsa de Valores, a Gripe A, por citar alguns, ao redor dos quais giram<br />

vários e variados sub-significantes. Significantes, estes que, ao conter o princípio<br />

masculino e princípio f<strong>em</strong>inino (a “lei” e o “desejo”), passam a determinar fluxos de<br />

subjetivação através das cadeias de significantes, atuando como operadores<br />

capazes de transmitir sentido.<br />

Por que se deu na Pós-modernidade a necessidade de buscar outros meios e<br />

formas de expressão? A doutrina modernista, de acordo com Deutsche 95 , se<br />

fundamenta a partir de que a “visão”, t<strong>em</strong> um lugar de destaque como modo superior<br />

de acesso às verdades universais e autênticas, por causa da suposta distância<br />

frente a seus objetos analisados. A idéia deste distanciamento visual e outras<br />

noções a ele relacionadas, como a do juízo desinteressado e a cont<strong>em</strong>plação<br />

imparcial, se sustentam sobre a crença de que existe uma ord<strong>em</strong> do significado <strong>em</strong><br />

si, nas coisas mesmas, como uma presença.<br />

Dentro deste panorama de uma visão estética desinteressada, o sujeito<br />

espectador auto-suficiente cont<strong>em</strong>plaria um objeto igualmente autônomo, possuidor<br />

de significados independentes das condições particulares de produção ou recepção.<br />

De acordo com a idéia de pureza visual (Greenberg seria um dos mais influentes<br />

93 SAFATLE apud ZIZEK (2001).<br />

94 LINKER (2001, p. 404).<br />

95 DEUTSCHE (2001, p. 318).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

defensores deste conceito) as instituições de arte, galerias e museus, teriam a<br />

função de, simplesmente, descobrir e mostrar os valores int<strong>em</strong>porais e<br />

transcendentes das obras de arte. Paradigmas que derivavam do processo de<br />

mudança que tinha se instaurado no início da Modernidade.<br />

A grande mudança epist<strong>em</strong>ológica no campo geral do conhecimento, do<br />

pensamento clássico para o moderno, não teve até hoje, nada à altura que justifique<br />

uma cisão s<strong>em</strong>elhante capaz de substituir uma forma de pensar o conhecimento por<br />

outra; tampouco <strong>em</strong> relação a sua característica fundamental: a ruptura de qualquer<br />

condição histórica precedente e o desenvolvimento da ciência para alcançar fins<br />

maiores como progresso, igualdade e fraternidade. Mas, o paradigma estético na<br />

Pós-modernidade apresenta, s<strong>em</strong> dúvida, uma ruptura com a ord<strong>em</strong> estética da<br />

modernidade. A respeito Jameson coloca,<br />

A estética pós-estruturalista cont<strong>em</strong>porânea [...]<br />

marca a dissolução do paradigma moderno – que<br />

privilegia o mito e o símbolo, a t<strong>em</strong>poralidade, a forma<br />

orgânica e o universal concreto, a identidade do<br />

sujeito e a continuidade da expressão lingüística – e<br />

prognostica a <strong>em</strong>ergência de uma nova concepção<br />

propriamente pós-moderna ou esquizofrênica da<br />

cultura – que se reformula estrategicamente como<br />

”texto” ou “écriture”. [...] que acentua a<br />

descontinuidade, a alegoria, o mecânico, a brecha<br />

entre significante e significado, a desaparição do<br />

significado, a sincopa na experiência do sujeito” 96 .<br />

A partir da década de sessenta, “pós-modernismo”, segundo David Harvey 97<br />

tornou-se um conceito com o qual lidar, e um campo de opiniões e forças políticas<br />

conflitantes que já não pode ser ignorado. Os editores da revista de arquitetura<br />

Precis 6 (1987), segundo este autor, anunciam que a cultura na sociedade<br />

capitalista avançada passou por uma profunda mudança na ‘estrutura do<br />

sentimento’.<br />

A este respeito Huyssens coloca,<br />

96 JAMESON (1979) apud FOSTER (2001, p. 194).<br />

97 HARVEY (2008).<br />

A natureza e profundidade dessa transformação são<br />

discutíveis, mas transformação ela é. Não quero ser<br />

entendido erroneamente como se afirmasse haver<br />

uma mudança global de paradigma nas ordens<br />

cultural, social e econômica [...] Mas, num importante<br />

setor de nossa cultura há uma notável mutação na<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

sensibilidade, nas práticas e nas formações<br />

discursivas que distingue um conjunto pós-moderno<br />

de pressupostos, experiências e proposições do de<br />

um período precedente 98 .<br />

Esta “mutação de sensibilidade” parece estar validada por um modo particular<br />

de ver, de fazer e de sentir, que leva a mais probl<strong>em</strong>ática faceta do pós-<br />

modernismo: a alteração nos seus pressupostos psicológicos quanto à<br />

personalidade, à motivação e ao comportamento 99 .<br />

As formações discursivas que ajudam a compreensão desta probl<strong>em</strong>ática<br />

parec<strong>em</strong> vir de um âmbito composto por variantes que o determinam como<br />

sociológico, filosófico, antropológico, político, teológico, no entanto com substrato<br />

formado por instâncias que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> da Lingüística, da Psicanálise e da<br />

Ideologia 100 . Três instâncias que se entrecruzam e vão constituir o sujeito no<br />

desenvolver da experiência.<br />

De acordo com Leandro Ferreira 101 , o sujeito é afetado por três ordens a da<br />

Linguag<strong>em</strong>, a Ideologia e a Psicanálise que deixam <strong>em</strong> cada uma delas um furo,<br />

como é próprio da estrutura de um ser-<strong>em</strong>-falta: o furo da linguag<strong>em</strong> representado<br />

pelo equívoco, o furo da ideologia expresso pela contradição, o furo da psicanálise<br />

manifestado pelo inconsciente. Decorrendo daí o fato da incompletude ser tão<br />

marcante, e que faz que essa falta, ou melhor, o que falta nesse buraco, se torne o<br />

lugar do possível para o sujeito. Sujeito constituído na linguag<strong>em</strong> a nível simbólico,<br />

na qual faz sua morada, por ela marcado por ser “efeito da linguag<strong>em</strong>” 102 . Possível,<br />

também, para o sujeito “desejante” do inconsciente, descontínuo por excelência e<br />

que se ordena por irrupções pontuais. Possível, assim mesmo, para o sujeito<br />

interpelado ideologicamente através do discurso, o sujeito “assujeitado”. Se não<br />

houvesse a falta, se o sujeito fosse pleno, se a língua fosse estável e fechada, se o<br />

discurso fosse homogêneo e completo, não haveria espaço para o sentido<br />

transbordar, deslizar, desviar, ficar à deriva.<br />

98 HUYSSENS (1984) apud HARVEY (1989. p. 45).<br />

99 HARVEY (op. cit, p. 56).<br />

100 Para este conceito de ideologia, apelamos à definição de Leandro Ferreira (2007) entendida como<br />

uma tomada de consciência da realidade, como pensamento historicamente situado, é ou, como um<br />

reflexo da realidade.<br />

101 FERREIRA (2007).<br />

102 Já tínhamos prescrito que o Sujeito se constitui desde o outro, desde algo exterior a ele: desde a<br />

linguag<strong>em</strong> a nível simbólico [Outro] e desde a imag<strong>em</strong> especular a nível imaginário [outro].<br />

60


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Pod<strong>em</strong>os dizer neste sentido que a falta não é um negativo, porém a própria<br />

“mola” da relação do sujeito com o Outro. A falta não se produz por si mesma, e<br />

mais, só há falta no nível do ser se houver sujeito, mas <strong>em</strong> contrapartida, requer o<br />

ato do sujeito para se fundar como falta 103 . O que quer dizer que o sujeito é o<br />

correlato ativo da falta e esta é o que nos faz sujeitos na cultura, não da cultura, pois<br />

não somos meros efeitos da cultura 104 .<br />

A morada do sujeito [que ele encontra na linguag<strong>em</strong>]<br />

fica tomada [...] pela inscrição ideológica que se<br />

marca no desejo, o qual opera por deslizamento <strong>em</strong><br />

um plano de contigüidade e r<strong>em</strong>ete s<strong>em</strong>pre a uma<br />

falta. E o campo comum onde essas relações se<br />

travam e onde esses conceitos se forjam é o campo<br />

da linguag<strong>em</strong> [enquanto forma material]. É importante<br />

ressaltar: o lugar do assujeitamento, representado<br />

pela ideologia e o lugar do desejo, representado pelo<br />

inconsciente, se encontram e se constitu<strong>em</strong> na<br />

linguag<strong>em</strong> 105 .<br />

O entre jogo da experiência, a navete com que tec<strong>em</strong>os o Véu, é plasmado<br />

no campo escópico, o lugar do Olhar, o lugar possível de articulação do Simbólico e<br />

o Imaginário, lugar de recriar a Linguag<strong>em</strong> através da experiência. Ante a pergunta o<br />

que é a experiência? como coloca Jorge Bondía 106 dir<strong>em</strong>os: é o que nos passa, o<br />

que nos acontece, o que nos toca. Sab<strong>em</strong>os que há, num primeiro momento, uma<br />

experiência imediata que se dá no nível do saber sensível, ou nível da sensibilidade<br />

e das impressões deixadas pelos sentidos, é a etapa <strong>em</strong> que recolh<strong>em</strong>os os fluxos<br />

dos sons, os significantes. Logo se transforma <strong>em</strong> aprendizado mais amplo num<br />

processo ao longo do t<strong>em</strong>po que, junto com os saberes adquiridos <strong>em</strong> curto prazo,<br />

vai construindo através do próprio jogo da experiência, a personalidade do ser<br />

humano.<br />

Este ritmo de aprendizado, que determina a estrutura da organização da<br />

experiência não é arbitrário, assim sendo não se pode modificar a vontade por ser<br />

resultado de um social coletivo 107 no qual experiência, subjetividade e inter-<br />

subjetividade se relacionam de forma integrada.<br />

103 ELIAS (2007, p. 48).<br />

104 ELIAS, loc. cit.<br />

105 FERREIRA (2007, p. 104).<br />

106 BONDÍA (2002).<br />

107 KLUGE, A. & NEGT,O. (2001, p. 254).<br />

61


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

O funcionamento do sujeito acontece quando algo se<br />

lhe opõe, um bloco, uma coisa <strong>em</strong> si (Ding an sich) à<br />

que deve vencer e que é inseparável do mecanismo<br />

funcional da experiência produzida por este sujeito.<br />

Este material da experiência individual não se deixa<br />

apropriar nunca completamente. Tudo o que é<br />

experiência real, que pode ser verificada e repetida<br />

por outros sujeitos racionais, é expressão de um<br />

processo de produção que está fundado, não <strong>em</strong><br />

indivíduos isolados, senão que caracteriza a atividade<br />

de um sujeito total, social e coletivo dentro do qual<br />

concentram-se todas as atividades que resultam da<br />

confrontação com a natureza exterior e interior.<br />

Experiência que é, simultaneamente, um processo de<br />

produção e de recepção de acordos sociais que<br />

pertenc<strong>em</strong> as manifestações fenomenológicas dos<br />

objetos ou de sua conformidade, as leis. [...].<br />

Certamente o movimento real da experiência só<br />

pode ser recordado, modificado e castrado na mente<br />

dos seres humanos, mas sua produção e organização<br />

é um processo social cooperativo que só pode ser<br />

compreendido quando se abandona a ficção do<br />

conhecimento individual 108 .<br />

Falar de experiência é, portanto, falar apreensão, de saber. Não o saber<br />

entendido como resultado de acúmulo de informação, porém como exercício da<br />

experiência através de uma inquietação. De acordo com Bondía, o t<strong>em</strong>po atual se<br />

caracteriza como o t<strong>em</strong>po da opinião, precisa-se saber de tudo um pouco para opinar<br />

rapidamente, geralmente só a favor ou contra, s<strong>em</strong> saber muito b<strong>em</strong> sobre o quê<br />

estamos opinando. Um t<strong>em</strong>po acelerado (tomando esta palavra mais do campo do<br />

fazer mecânico que do fazer humano) que possibilita a rapidez da informação-<br />

opinião ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que impossibilita a experiência e facilita a manipulação<br />

do sujeito.<br />

Um t<strong>em</strong>po rápido d<strong>em</strong>ais e com excesso de trabalho, no qual o sujeito<br />

moderno, atualizado, crê que pode fazer tudo o que se propõe, s<strong>em</strong>pre está se<br />

perguntando sobre o que pode fazer, s<strong>em</strong>pre está desejando fazer algo, produzir<br />

algo, regular algo. S<strong>em</strong>pre esta destruindo a experiência, a possibilidade de<br />

manifestação do olhar/experiência. Um t<strong>em</strong>po rápido d<strong>em</strong>ais onde um acontecimento<br />

é substituído imediatamente por outro, tão fugaz quanto, se tornando uma vivência<br />

instantânea e fragmentada que impede a conexão significativa entre os<br />

acontecimentos, o silêncio e a m<strong>em</strong>ória.<br />

108 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 227, tradução nossa).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Quando Benjamin 109 coloca o conceito de experiência na probl<strong>em</strong>ática da<br />

necessidade de sua reconstrução dentro uma narratividade que comporte narrador e<br />

ouvinte no mesmo fluxo narrativo (garantindo a m<strong>em</strong>ória e a palavra comuns)<br />

estamos ante a mesma preocupação de Bondía <strong>em</strong> relação à destruição da<br />

experiência: a necessidade de um gesto de interrupção, de corte, de cisão que<br />

permita a “receptividade” e a “disponibilidade”. Interrupção fundamental como<br />

abertura essencial para fazer desta experiência uma paixão, por ser um território de<br />

passag<strong>em</strong> para que “algo aconteça”, para dar sentido. Uma relação intrínseca entre<br />

vida e morte, um saber constituído no e pelo padecer, um saber humano entendido<br />

como páthei máthos 110 . Ainda assim, não pod<strong>em</strong>os esquecer que,<br />

Toda produção do campo do sentido é da ord<strong>em</strong><br />

simbólica, seja ela falada ou não. Um gesto, uma<br />

expressão no rosto, do corpo, uma dança, um<br />

desenho, tanto quanto uma narrativa oral, serão<br />

produções simbólicas, regidas pelo significante, e<br />

assim, ditas verbais, por estar<strong>em</strong> na dependência do<br />

verbo significante, e não por ser<strong>em</strong> expressas por via<br />

oral 111 .<br />

É no jogo da experiência, e através dela, que esse sujeito, que não<br />

encontramos na realidade, se constitui como “operador” que atua impondo-se a nós<br />

<strong>em</strong> determinado lugar a partir do qual possamos interrogar-nos sobre a experiência<br />

humana. Porque, como Lacan coloca <strong>em</strong> seus textos: quando reconhec<strong>em</strong>os que o<br />

significante é um átomo do simbólico, vazio de significado que se impõe a nós, exige<br />

a resposta, no ser vivo, do que chamamos Sujeito 112 .<br />

Se a experiência funda uma ord<strong>em</strong> epist<strong>em</strong>ológica, funda também uma ord<strong>em</strong><br />

ética. Dev<strong>em</strong>os compreender que uma conscientização ética, no sentido de<br />

promover um rompimento com padrões cristalizados que, por sua vez, possibilite ou<br />

favoreça prováveis mudanças paradigmáticas, implica <strong>em</strong> falarmos de experiência<br />

que se organiza e constitui através de “modos de fazer” que preced<strong>em</strong> ao<br />

estabelecimento dos diferentes “modos de ver” e “modos de sentir”, de aprender e<br />

apreender, resultantes da dialética estabelecida entre o Sujeito e o Outro/outros.<br />

109<br />

BENJAMIN (1996).<br />

110<br />

Sobre o t<strong>em</strong>a ver: BONDÍA (2005) e BENJAMIN (1996).<br />

111<br />

ELIA (2007, p. 21).<br />

112<br />

Ver no Apêndice sobre a constituição do Sujeito.<br />

63


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

O que perceb<strong>em</strong>os, através de alguns trabalhos aqui analisados<br />

(correspondentes a um passado recente, das décadas de 60, 70 até 80), é que os<br />

artistas estavam procurando uma sintaxe que respondese às novas expectativas<br />

decorrentes da inadequação de valores que se manifestavam como incapazes de<br />

conter as propostas que surgiam do Mundo da Vida no exercicio do<br />

olhar/experiência. Essa experiência social 113 , num sentido estrito, é simultaneamente<br />

um processo de produção e recepção de acordos sociais, entre o público e o<br />

privado, no qual cada um apresenta um ritmo t<strong>em</strong>poral específico (isto não significa<br />

que este ritmo esteja isolado de outros ritmos da vida). Neste movimento há uma<br />

unidade dialética suposta e constituída como um signo de confiabilidade que permite<br />

pensar o que consideramos público e o que consideramos privado (como íntimo).<br />

“Se acredito que posso me fazer entender num coletivo, então isso é público. Se<br />

acredito que não possa fazer compreensível para outras pessoas, meus sentimentos<br />

e experiências, isso é íntimo” 114 .<br />

À medida que se transformam as relações no espaço da comunicabilidade e<br />

vivências, reforma-se o lugar da arte, por conseguinte, também o papel do artista se<br />

transforma; os valores que até agora sustentavam a arte se impugnam e a<br />

significação estética se alarga 115 . Ao se começar a ver a obra como um texto os<br />

trabalhos passam a ser de índole textual, como um espaço multidimensional no qual<br />

concorr<strong>em</strong> e se contrastam diversas “escrituras” nenhuma das quais é original.<br />

Nenhuma linguag<strong>em</strong> domina outra, o que consente a pluralidade de sentidos.<br />

Essa textualidade, segundo Foster 116 , apresenta uma nuance pós-<br />

estruturalista já que o signo se compreende como algo instável, não é uma unidade<br />

fechada que se manifesta com a dependência do significado com o significante,<br />

como se compreendido na lingüística moderna de Saussure. Lacan já tinha teorizado<br />

como resultado de suas pesquisas que não existe unidade e correspondência direta<br />

entre significado (a mensag<strong>em</strong>, os fluxos de pensamento) e significante (uma<br />

imag<strong>em</strong> acústica, os fluxos de sons) por não estar estes numa relação fixa, o que<br />

determina que a relação entre ambos seja s<strong>em</strong>pre fluída, prestes a se desfazer.<br />

113 Sobre o t<strong>em</strong>a ver KLUGE, A. & NEGT,O. Esfera pública y experiencia. Hacia un análisis de las<br />

esferas públicas burguesa y proletaria. (1972, p. 227-271). In: BLANCO, P. et al. Modos de hacer.<br />

Salamanca, España: Ediciones Universidad de Salamanca, 2001.<br />

114 Id<strong>em</strong>, p. 228.<br />

115 FOSTER (2001, p. 194).<br />

116 FOSTER (loc. cit.).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Estas colocações permit<strong>em</strong> o entendimento de por que os pós-modernistas<br />

tend<strong>em</strong> a aceitar uma teoria diferente dos modernistas, <strong>em</strong> se tratando da natureza<br />

da linguag<strong>em</strong> e da comunicação. Para os modernistas a unidade lingüística<br />

pressupunha uma relação rígida e idenficável entre o dito, o significado ou<br />

mensag<strong>em</strong>, e a forma como estava dito, o significante ou meio; o pensamento pós-<br />

modernista os vê separando-se e reunindo-se <strong>em</strong> novas combinações<br />

constant<strong>em</strong>ente 117 . Esta descontinuidade, no âmbito cultural geral, é a que procura<br />

evitar que “o significado seja produzido e reproduzido s<strong>em</strong> alterações” através de<br />

várias práticas, fenômenos e atividades que serv<strong>em</strong> como sist<strong>em</strong>as de significação<br />

culturais (rituais, comidas, jogos, textos, etc.)<br />

As obras não apresentam, neste contexto, um sentido definitivo e único,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, como texto, cumpr<strong>em</strong> a própria pluralidade do sentido. Do<br />

mesmo modo não respond<strong>em</strong> a um autor original já que se realizam por meio de<br />

uma combinatória de participantes que nos r<strong>em</strong>ete à idéia de jogo, onde vários ecos,<br />

referências, sons, se constitu<strong>em</strong> como linguagens culturais, como um tecido<br />

polissêmico de códigos. O texto como analisado por Barthes 118 t<strong>em</strong> surgido do<br />

deslocamento ou inversão das anteriores categorias que caracterizavam o que seria<br />

uma obra de arte.<br />

Neste sentido, a arte por não fechar o significado não procura a orig<strong>em</strong> ou as<br />

fontes, e sim, estruturas de significação, estratos de representação que se possam<br />

transpor. Os signos, os tipos genéricos, se chocam de forma que transgrid<strong>em</strong> os<br />

limites estéticos que se ampliam como códigos culturais 119 . O artista manipula signos<br />

antigos mediante uma lógica nova. Owens 120 falará de impulso alegórico já que não<br />

só os meios colidiram, mas também o faz<strong>em</strong> os distintos níveis de leitura e<br />

representação e sendo assim desconstrói o paradigma anterior. A natureza da arte<br />

torna-se alegórica porque falta justamente o significado transcendental; deste modo<br />

os “níveis” se confrontam e não é possível uma leitura total já que na estrutura<br />

alegórica um texto se lê através de outro, por fragmentação, por mais intermitente ou<br />

caótica que possa ser sua relação.<br />

No trabalho de Matthew Barney, na série The Cr<strong>em</strong>aster Cycle realizada <strong>em</strong><br />

cinco etapas de 1994 a 2002, se manifesta com claridade a conceitualização aqui<br />

117 HARVEY (2008, p. 49). Ver <strong>em</strong> Apêndice sobre estruturalismo e atitude estruturalista <strong>em</strong> Lacan.<br />

118 BARTHES (2001, p. 169).<br />

119 FOSTER (2001, p.195).<br />

120 OWENS (2001).<br />

65


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

especificada. É um trabalho textual e alegórico que deixa transparecer camadas de<br />

imagens possíveis de ter<strong>em</strong> um sentido dinâmico, mutável, através do jogo dialógico<br />

já que, qualquer sentido se constrói por uma relação entre dois sujeitos “falantes”,<br />

capazes de se comunicar por meio da linguag<strong>em</strong>-simbólica. Não há neste trabalho<br />

uma ord<strong>em</strong> ou uma estrutura lógica, há sim, uma intertextualidade explícita através<br />

da dinâmica dos espaços, dos figurinos, do aparato escultórico, das personagens;<br />

como também uma intertextualidade tácita que se manifestará somente na<br />

descoberta posterior do sentido.<br />

Zygmunt Bauman 121 enfatiza que as “normas” pelas quais a obra pós-<br />

moderna foi construída só pod<strong>em</strong> ser encontradas, caso possível, só ex post fato, ou<br />

no fim da leitura ou exame. As regras estão perpetuamente se fazendo, sendo<br />

buscadas e encontradas de maneira analogamente única, tanto como forma e como<br />

evento. Sendo assim, a obra pós-moderna não se refere a quaisquer antecedentes<br />

porque arranca as citações de sua situação original arruinando <strong>em</strong> vez de reafirmar<br />

seu significado numa d<strong>em</strong>onstração de que é possível mais de uma forma ou voz.<br />

Alerta para a polifonia de significados que se dão no espaço aberto s<strong>em</strong> reafirmar a<br />

realidade e sim, desconstruindo o significado.<br />

Seguindo o pensamento do autor citado, a arte cont<strong>em</strong>porânea já não t<strong>em</strong><br />

nada a ver com a “representação”, com uma verdade que deve ser captada por estar<br />

oculta esperando receber expressão artística; liberada da “autoridade da realidade”,<br />

como juiz genuíno e putativo, mas s<strong>em</strong>pre supr<strong>em</strong>o do valor da verdade, reclama e<br />

desfruta da elaboração do significado no mesmo status que o resto do mundo<br />

humano de modo que, a liberdade toma o lugar da ord<strong>em</strong> e do consenso; <strong>em</strong> vez de<br />

refletir a vida se soma a seus conteúdos.<br />

Essa polifonia de significados se dá como impulso desconstrutivista (no<br />

sentido de procurar dentro de um texto por outro, dissolver um texto <strong>em</strong> outro ou<br />

<strong>em</strong>butir um texto <strong>em</strong> outro quebrando a narrativa contínua imposta pelo autor).<br />

Denota a preocupação com o fragmento, a instabilidade da linguag<strong>em</strong> e dos<br />

discursos. De acordo com Harvey 122 , isto leva a certa concepção esquizofrênica<br />

(como vários autores destacaram <strong>em</strong> analogia com o conceito lacaniano de<br />

esquizofrenia, de uma ruptura na cadeia significativa de sentido que cria uma frase<br />

121 BAUMAN (1997).<br />

122 HARVEY (2008).<br />

66


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

simples) que se manifesta na preocupação pós-moderna com o significante e não<br />

com o significado; com a participação <strong>em</strong> vez do objeto acabado e autoritário.<br />

O efeito desse colapso seria restringir a experiência a uma série de presentes<br />

puros e não relacionados no t<strong>em</strong>po, o que implica, de acordo com Jameson 123 , que<br />

a experiência do presente se torna poderosamente vivida e material, o mundo surge<br />

diante do esquizofrênico com uma intensidade aumentada, trazendo a carga<br />

misteriosa e opressiva do afeto borbulhando de energia alucinatória.<br />

O significado da arte pós-moderna de acordo com Bauman 124 é abrir<br />

amplamente o portão às artes do significado. V<strong>em</strong>os nesta afirmativa uma<br />

aproximação à opinião de Harvey 125 quando coloca que, a descontinuidade do<br />

sentido e a perda da m<strong>em</strong>ória histórica mais a redução da obra a um texto<br />

ocasionam uma perda, tanto da t<strong>em</strong>poralidade como da busca de impacto<br />

instantâneo, que se manifesta paralelamente a uma perda de profundidade<br />

planejada.<br />

No primeiro caso, ainda Harvey, coloca que transparece una cacofonia<br />

cultural de conversas cruzadas que não permite definir um quadro epist<strong>em</strong>ológico<br />

permanente, depreciando ter uma visão ou mesmo ter uma visão sobre ter visões 126 .<br />

Já no segundo caso, a falta de profundidade de boa parte da produção<br />

cont<strong>em</strong>porânea se mostra por meio de uma fixação nas aparências, nas superfícies,<br />

nos impactos imediatos que não se sustentam no t<strong>em</strong>po.<br />

Estas mudanças que surgiram foram, <strong>em</strong> parte, decorrentes da ênfase<br />

cont<strong>em</strong>porânea no campo da produção cultural, seja de eventos, espetáculos,<br />

happenings ou mídia, que permitiu uma celebração às qualidades transitórias da<br />

vida e uma aproximação à cultura popular. Dev<strong>em</strong>os destacar que no Pós-<br />

modernismo a vida cultural, não só o trabalho artístico, é vista como uma intersecção<br />

com outros textos produzindo mais textos, num entrelaçamento intertextual <strong>em</strong><br />

analogia a cadeia de significantes.<br />

Será esta aproximação à vida, ao cotidiano, que ocasionou o que se deu por<br />

chamar de “o retorno ao real”.<br />

Estas cogitações colaboraram (como já prescrito e segundo Oliveira, 2005),<br />

para uma noção de sujeito como uma figura histórico-discursiva produzida na e pela<br />

123<br />

JAMESON apud HARVEY (1989, p. 57).<br />

124<br />

BAUMAN (1997).<br />

125<br />

HARVEY (op. cit; loc. cit.).<br />

126<br />

RORTY (1979) apud HARVEY (op. cit, p. 58).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

linguag<strong>em</strong> e que não possui uma identidade fixa e estável. Para o Sujeito Pós-<br />

moderno, após mudanças no saber 127 ocorridas no século precedente que tornam<br />

esse saber socialmente compartido, é comum e aceitável a idéia de incerteza, de<br />

incompletude, de possibilidades e probabilidades, que caracterizam as bases da<br />

Nova Ciência.<br />

Neste panorama o sujeito pós-moderno seria um sujeito s<strong>em</strong> paradigmas de<br />

consenso, sofrendo a ausência de ideais maiores pré-estabelecidos 128 , resultante<br />

<strong>em</strong>, mais que identidades, identificações fragmentadas (sab<strong>em</strong>os reconhecer nossas<br />

máscaras?). Transparece aqui uma aproximação direta entre os discursos sócio-<br />

histórico e psicanalítico-lingüístico.<br />

2.5 DO RETORNO AO REAL<br />

O artista/sujeito do Pós-modernismo percebe, politiza, participa. Deixa-se<br />

contaminar com os muitos “outros”. Inventa num espaço dinâmico relações entre<br />

sujeitos 129 . Minimal; Anti-forma; Land Art; Work Art; Pop Art; Art Povera; Art-Vehiculo<br />

e Escultura social; Body Art; Ativismo; Acionismo; Arte Conceitual; Intervenções;<br />

Performances; Nova Objetividade; Transvanguarda; entre tantas outras, são<br />

expressões resultantes de faltas político-sociais ou de ruptura institucional “iniciada”<br />

por Duchamp, que possibilitam e impulsionam a movimentação do Simbólico<br />

artístico no real, enquanto realidade.<br />

Duchamp compreendia perfeitamente esta mudança e, no seu escrito O Ato<br />

Criador (1957) coloca,<br />

[...] o ato criador não é executado pelo artista sozinho;<br />

o público estabelece o contato entre a obra de arte e<br />

o mundo exterior, decifrando e interpretando suas<br />

qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua<br />

contribuição ao ato criador 130 .<br />

127 Mudanças no saber como: a da Teoria da Relatividade de Einstein; a Teoria Quântica; a da<br />

Incompletude de qualquer sist<strong>em</strong>a feita por Godel; a do método do Pensamento complexo de Morin;<br />

a da Teoria dos Transfinitos de Cantor; a da Teoria das Catástrofes de Reneé Thom, a da Lógica<br />

paraconsistente de Newton Costa, entre outras. Ver SOUZA LEITE, M. In: www.geocites.com/polascalzo/Marcio.htm.<br />

128 SOUZA LEITE (op. cit).<br />

129 Sujeito se apresenta, aqui, derivado do francês com dois sentidos: Sujets é: sujeitos-pessoas- e,<br />

também, t<strong>em</strong>as ou assuntos. (BOURRIAUD, 2001, p. 437).<br />

130 DUCHAMP (2004, p. 74).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

O artista ao sair de sua célula-ateliê, sai ou repensa o “cubo branco”, invade<br />

os Mundos da Vida, o espaço público, o tecido urbano e seu dia a dia, compromete<br />

o outro-cidadão. Paul Ardenne chamará de Arte Contextual. Este artista dá<br />

visibilidade às faltas, que por sua vez são indicadoras da “localização” do Sujeito no<br />

Esqu<strong>em</strong>a da Visualidade lacaniano. Sou a Mirada que mira? Sou a mira da Mirada?<br />

Faltas que ajudam no extravio dos limites na arte 131 .<br />

Neste contexto a partir do cotidiano, a arte do retorno ao real contém um<br />

imenso desejo de tornar reais as coisas, de fazer coisas reais 132 . Seus referentes<br />

principais são: o sist<strong>em</strong>a econômico que favorece o consumo; a pobreza; a violência<br />

e o crime; a exclusão social e racial com as reivindicações e conflitos conseqüentes<br />

(a reivindicação das minorias, os conflitos étnicos, a defesa da natureza, o sexismo, a<br />

AIDS e suas vítimas); e outros t<strong>em</strong>as s<strong>em</strong>elhantes que poderíamos, <strong>em</strong> algumas<br />

décadas atrás, chamar de “práticas artísticas ativistas”.<br />

O trabalho de Wodiczko Homeless Vehicle, NY, 1988-93, se insere no<br />

contexto de arte pública como uma descontinuidade e como uma afirmação de um<br />

território que, nas grandes cidades para os s<strong>em</strong> teto, moradores de rua, torna-se uma<br />

impossibilidade. A desterritorialização que estes “cidadãos” vêm sofrendo, seja pela<br />

falta de moradia ou pela gentrificação decorrente da especulação imobiliária, faz com<br />

que sejam obrigados a ocupar espaços públicos marginais dos quais são<br />

constant<strong>em</strong>ente r<strong>em</strong>ovidos.<br />

O “carrinho” de Wodiczko faz referencia aos carrinhos de supermercado que<br />

os excluídos usavam para transportar seus objetos pessoais. Este “veículo-moradia”<br />

lhes permite carregar, no compartimento de baixo seus pertences, comida,<br />

cobertores, roupas e outros; objetos necessários para a sobrevivência. O<br />

compartimento superior, quando esticado, se converte num “quarto” para dormir. E o<br />

“nariz” quando abaixado serve para colocar água facilitando a mínima higiene<br />

pessoal. Desta forma o homeless-vehicle possibilita ao morador(a) de rua evitar sua<br />

r<strong>em</strong>oção por determinar um território que apaga sua marginalidade e o integra como<br />

cidadão legítimo acentuando sua identificação com o outro-cidadão.<br />

131 Sobre a perda dos limites na arte cont<strong>em</strong>porânea, ler: LOPEZ ANAYA, J. El extravio de los<br />

limites. Buenos Aires, Argentina: Emecé Ediciones, 2007.<br />

132 MENNNA BARRETO, J. Revista Urbânia3, 2008, p.83.<br />

69


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 11 Wodiczko - Homeless Vehicle, NY, 1988-93.<br />

Em Inserções <strong>em</strong> Circuitos Ideológicos – Projeto Coca-Cola, a partir de 1970,<br />

Cildo Meireles questionava a distribuição, os significados veiculados, e a<br />

onipresença econômica e cultural de uma bebida engarrafada industrialmente e<br />

distribuída aos milhares. Ao mesmo t<strong>em</strong>po o artista indagava-se sobre o sist<strong>em</strong>a de<br />

circulação que fazia isso possível. Meireles percebe que pode inserir outras<br />

informações nesse sist<strong>em</strong>a que seriam veiculadas pelo próprio sist<strong>em</strong>a.<br />

Para realizar o trabalho, o artista utilizava decalques impressos com tinta<br />

vitrificada <strong>em</strong> cor branca nos quais podia ler-se o nome do projeto; a proposta:<br />

“Gravar nas garrafas, opiniões críticas e devolvê-las à circulação”; as iniciais CM e a<br />

data. Estando a garrafa vazia não se percebia o texto, que só aparecia com a<br />

garrafa cheia com a bebida escura.<br />

Deste modo Meireles destaca que, os sist<strong>em</strong>as de distribuição de<br />

mercadorias ou informações carregam a propaganda ideológica do produtor e que<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

seria função da arte tornar o público consciente dessas práticas que sutilmente se<br />

inser<strong>em</strong> no real. As inserções só teriam sentido se foss<strong>em</strong> praticadas por um<br />

grande número de pessoas 133 .<br />

[...] Já não trabalhamos com metáforas<br />

(representações) de situações. Estava-se trabalhando<br />

com a situação mesma, real. [...] o tipo de trabalho<br />

que se estava fazendo tendia a se volatizar – e esta<br />

era outra característica. Era um trabalho que, na<br />

verdade, não tinha mais aquele culto ao objeto [...] as<br />

coisas existiam <strong>em</strong> função do que poderiam provocar<br />

no corpo social 134 .<br />

Fig. 12 Cildo Meireles - Inserções <strong>em</strong> Circuitos Ideológicos – Projeto Coca-Cola, a partir de 1970.<br />

Este tipo de trabalho, tanto o de Wodiczko quanto o de Meireles, pod<strong>em</strong> ser<br />

lidos através do conceito de “site discursivo” que Kwon utiliza que está delineado<br />

como um campo de conhecimento, troca intelectual ou debate cultural. Ele é gerado<br />

133 Ver FERVENZA (2005).<br />

134 MEIRELES (1981) apud FERVENZA (2005, p. 96).<br />

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pelo trabalho, freqüent<strong>em</strong>ente como conteúdo, e comprovado através de sua<br />

convergência com uma formação discursiva existente, caracterizando-se como site<br />

de efeito-recepção. Esta concepção de prática artística permite que, diferentes<br />

debates culturais (uma questão social, um conceito teórico, uma comunidade ou<br />

evento sazonal, uma condição histórica, mesmo formações particulares do desejo)<br />

sejão agora considerados como “sites” 135 . O que implica numa mobilidade do site<br />

que o desapega das condições físicas, literal e metaforicamente, pela mobilidade-<br />

discursiva que gera formas <strong>em</strong>ergentes de “sites” 136 .<br />

Outros artistas e grupos que pod<strong>em</strong>os nomear, entre muitos outros, que<br />

trabalham neste contexto são: Thomas Hirschhhon; Rafael Lozano Henner; Asier<br />

Pérez Gonzáles; Gabriel Orozco; Judith Baca; Florian Schneider; Alfredo Jaar; Uno-<br />

Mi Lê, Apolônia Sustersic. Grupos como: Guerrilha Girls; Material Group; Coletivo<br />

Simparch; Coletivo Superflex; Coletivo Bulbo; coletivo Ala Plástica; Coletivo<br />

Capacete.<br />

No contexto de posicionamento frente à realidade dev<strong>em</strong>os destacar a<br />

influência de “teóricos anarquistas” da escola francesa como: Foucault; Deleuze;<br />

Guattari; Lyotard; Guy Debord que propõ<strong>em</strong>: descentração; atuação local (micro-<br />

política); descobrir “o poder” <strong>em</strong> suas variadas facetas 137 . Não propõ<strong>em</strong> uma política<br />

geral, mais sim, análises específicas de situações concretas de opressão, para esta<br />

ser combatida sobre muitos registros ou <strong>em</strong> muitos nexos nos quais se descobre.<br />

Estes teóricos favorec<strong>em</strong> as lutas dos diversos grupos (alias, eles teorizam<br />

sobre comportamentos grupais) entre eles artistas e educadores, oferecendo<br />

analises, estratégias, crítica política e teórica das diferentes opressões. A decisão de<br />

como “liberar-se” é dos oprimidos (leia-se: “grupos” formados por sujeitos baixo<br />

“poder” normativo do Simbólico). Ditos teóricos acreditam que o intelectual (artistas e<br />

outros) não deve dar conselhos, por pertencer aos que “lutam”, aos que “debat<strong>em</strong>”<br />

135 KWON (1997).<br />

136 L<strong>em</strong>bramos que, segundo Kwon, <strong>em</strong> relação a “site” usa-se site-specific na concepção de site<br />

caracterizado como o pertencimento a um lugar específico como sustantivo-objeto; já o site-specificity<br />

indica aqueles trabalhos cujo enfoque prático-conceitual refere-se a um verbo-processo (Kwon) que<br />

provoca acuidade crítica (não somente física) no espectador no que concerne às condições<br />

ideológicas dessa experiência [site crítico-institucional; discursivo; práticas gerais de site-orient art].<br />

Ver KWON (1997).<br />

137 A pesar de que alguns destes teóricos, como Deleuze e Guattari, apresent<strong>em</strong> diferenças<br />

conceituais com Lacan, não invalidam que esta seja uma forma X de estar no mundo e de tecer o<br />

Véu. Enfocada a situação deste modo não contradiz a teorização sobre a visualidade de Lacan.<br />

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junto com eles situações, projetos e táticas necessárias para modificar situações e<br />

resistir.<br />

Ou seja, estes “teóricos anarquistas” dão os “instrumentos de análises”. Para<br />

estes fins, Foucault escreve Heterotopias; Vigiar e Punir; Crítica e Clínica; Deleuze e<br />

Guattari escrev<strong>em</strong> Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia; Guattari: Ecosofia e<br />

Caosmosis; Lyotard: Pós–capitalismo; Guy de Debord: Situacionismo. Lutam por uma<br />

sociedade na qual às pessoas não se lhes diga como dev<strong>em</strong> ser, o que dev<strong>em</strong><br />

querer ou como dev<strong>em</strong> viver.<br />

Talvez por isto, artistas cientes da realidade <strong>em</strong> que estão inseridos, e<br />

<strong>em</strong>basados nestes “instrumentos de análise”, estão engajados <strong>em</strong> práticas voltadas<br />

para uma arte que chamamos pública por se constituir através de inserções ou<br />

processos colaborativos que se dão <strong>em</strong> situações de limite entre arte e vida.<br />

Trabalham nos interstícios do sist<strong>em</strong>a, a partir dos quais pod<strong>em</strong> praticar a alteridade<br />

na realidade imediata, para viver uma sociedade social e politicamente mais justa,<br />

inventando o quotidiano como colocaria Certeau.<br />

Esta arte, com paixão pela realidade, arte de ação, interação, de participação,<br />

se manifestou inicialmente na realidade européia, norte-americana e latino-americana<br />

por meio de uma redefinição espacial do campo artístico que, por sua vez, se<br />

desdobra para um âmbito mais amplo e mais difuso da prática política com um viés<br />

de “ativismo político” bastante acentuado. Ativismo que se revela por meio de<br />

práticas <strong>em</strong> que a natureza pública e a intenção de seus realizadores e realizadoras,<br />

de ir al<strong>em</strong> da expressão individual, dá base para a formulação de estéticas críticas<br />

orientadas à busca consciente de efeitos sociais e políticos. 138<br />

Estas práticas favoreceram escritos e teorizações que são “básicos” para a<br />

compreensão de como estas mudanças se deram. Teóricos, críticos e artistas como:<br />

Hall Foster, Suzanne Lacy; Lucy Lippard, Douglas Crimp, Nina Felshin, Marta Rosler;<br />

Rosalyn Deutsche, entre outros, se preocuparam por especificar suas características<br />

fundamentais através da análise dos trabalhos dos artistas e do contexto sócio-<br />

político. Os vetores do espaço-t<strong>em</strong>po da representação artística perspassam os<br />

vetores espaço-t<strong>em</strong>po-social.<br />

Hoje se infiltram pela Tela o Capitalismo cultural; o Capitalismo <strong>em</strong><br />

abundância; o Consumismo alienante; o Panóptico como também, suas derivações, o<br />

138 BLANCO (2001, p.13).<br />

73


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que faz com que os artistas busqu<strong>em</strong> outras formas de “representação” <strong>em</strong> arte,<br />

outros olhares que comport<strong>em</strong> novos modos de fazer condizentes com a realidade. O<br />

ativismo tornou-se mais silencioso, no entanto mais extenso já que estas práticas<br />

envolv<strong>em</strong> um t<strong>em</strong>po duradouro, um t<strong>em</strong>po de acontecimentos e devires. Hoje<br />

acreditamos que estas práticas se estabelec<strong>em</strong> como “práticas relacionais de<br />

<strong>em</strong>ergência num real imediato”.<br />

74<br />

A realidade se mostra e o Real se d<strong>em</strong>onstra.<br />

Jacques Lacan


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SEGUNDA PARTE<br />

3 O OLHAR/EXPERIÊNCIA NA ARTE PÚBLICA ATUAL<br />

3.1 OS NOVOS OLHARES/EXPERIÊNCIA<br />

75<br />

Para ultrapassar o limite é preciso que ele exista.<br />

Michael Maffesoli.<br />

Se há uma função do artista hoje, esta será determinada <strong>em</strong> relação da<br />

situação sócio-política-cultural. Situação como “lugar” para desenvolver uma estética<br />

que possibilite a partilha-comunitária (Maffesoli); a construção de mundos possíveis<br />

(Bourriaud; Deleuze-Guattari); a <strong>em</strong>ergência de pequenas ecologias culturais<br />

(Laddaga) numa realidade que parece ter aberto vários “buracos” na Tela por onde<br />

penetra o Real (Tela que é o suporte de nossa realidade simbólica, já que esta Tela<br />

se constitui para nos “proteger” do Real). Perante esta situação os artistas deveriam<br />

“mirar” ao sesgo, obliquamente, como coloca Zizek 139 .<br />

Sesgo como um “deslocamento” do ponto de vista que nos permite sair do<br />

“meu centro”, deslocar “meus referentes”, ir pelas bordas ou pelos interstícios, para<br />

ficarmos atentos e praticar outros mundos dando atenção a vozes silenciadas que<br />

s<strong>em</strong>pre estiveram presentes. Mas sesgo é também um erro sist<strong>em</strong>ático que quando<br />

aparece na ord<strong>em</strong> social afeta nossas interações sociais. Permanecer atentos será<br />

por tanto, olhar duplamente “ao” sesgo e “o” sesgo.<br />

Para Zizek 140 confrontar as obscenidades [obs-cenidades] do capitalismo da<br />

abundância requer uma transformação da imaginação ético-política. Não elaborar<br />

diretrizes éticas, mas desenvolver e fazer uma politização da ética, um modo de<br />

conduzir-se, uma ética do real no aqui-agora próximo, o que significa uma<br />

transformação da “prática” ético-política. Como seres humanos, somos responsáveis<br />

por nossos atos, inclusive a construção do sist<strong>em</strong>a capitalista. Esta ética <strong>em</strong>erge<br />

s<strong>em</strong>pre que transgredimos as normas na descoberta de novas direções, que<br />

envolv<strong>em</strong> mudanças “traumáticas”; o real num autêntico desafio ético que se dispõe<br />

139 ZIZEK (2006).<br />

140 Id<strong>em</strong>, Ibid<strong>em</strong> (p. 28).


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a arriscar o impossível, no sentido de romper com posturas padronizadas,<br />

impositivas e aniquilantes.<br />

Interessante é destacar que, artistas atuais cientes desta condição, realizam<br />

suas práticas artísticas com ênfase na construção da realidade, seja esta Concreta<br />

ou Virtual (por meio das tecnologias). Ambas são relacionais e colaborativas, se<br />

realizam com a participação indispensável do outro. Por este motivo pod<strong>em</strong>os falar<br />

também, numa arte com visão de paralaxe, de co-existência de dois pontos de vista<br />

para designar o mesmo. Equivale a dizer que, entre o Eu e o Outro, uma zona<br />

dialógica se desencadeia capaz de dar um novo sentido à realidade. Os processos<br />

artísticos cont<strong>em</strong>porâneos buscam estr<strong>em</strong>ecer os conceitos antes aceitos como arte<br />

e através deles os artistas procuram esburacar as certezas do discurso instituído 141<br />

na tentativa de se ver<strong>em</strong> livres da especificação que faz da arte um “b<strong>em</strong>-produto”<br />

(um b<strong>em</strong> valorativo) que obedece às leis do mercado.<br />

Se a ética está para além da moral, não deve obedecer a imposições sociais<br />

super-egóicas e sim se “presentificar” como uma reflexão consciente sobre o modo<br />

de “fazer” no t<strong>em</strong>po vivido. Dev<strong>em</strong>os perguntar-nos “como” nos dias atuais pod<strong>em</strong>os<br />

fazer isto tendo <strong>em</strong> mente que, a ética do real (ou ética real) significa que não<br />

pod<strong>em</strong>os confiar <strong>em</strong> nenhuma forma de Outro simbólico que endosse nossas<br />

(in)decisões e (in)ações, de acordo com Zizek 142 , l<strong>em</strong>brando que Lacan considerava,<br />

como bom filósofo, que a realidade não é o que está fora, mas sim, o que cada um<br />

de nos aceita como realidade.<br />

O conceito de t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong>pregando o pensamento de Linker, que cinde e<br />

fragmenta o contexto real de vida, se experimenta como a verdadeira vida, como<br />

uma segunda natureza. Desta maneira nos possibilita ficarmos atentos para não<br />

sermos coptados pelo sist<strong>em</strong>a, para permanecermos cientes de nossa<br />

responsabilidade no coletivo, no “estar junto com”, no “estar <strong>em</strong> comum”, onde<br />

praticamos nossa alteridade, onde t<strong>em</strong> lugar a existência além de nós mesmos e<br />

onde viabilizamos os processos de mudança.<br />

A relação do artista com o t<strong>em</strong>po no qual ele se<br />

manifesta é s<strong>em</strong>pre contraditória. É s<strong>em</strong>pre contra as<br />

normas reinantes, normas políticas, por ex<strong>em</strong>plo, ou<br />

até mesmo esqu<strong>em</strong>as de pensamento, é s<strong>em</strong>pre<br />

141 Como o d<strong>em</strong>onstra a quantidade de textos de artistas escrevendo sobre o como, e os porquês de<br />

seus trabalhos e os escritos de teóricos tentando organizar numa série de estéticas estes modos de<br />

ver e fazer arte.<br />

142 ZIZEK (2006, p.19).<br />

76


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contra a corrente que a arte tenta operar novamente<br />

seu milagre. [...] Diante dessa espécie de seringa<br />

que, se eu divagasse, me pareceria um tipo de<br />

aparelho para tirar sangue do Graal é precisamente o<br />

que, no Graal, falta 143 .<br />

Sab<strong>em</strong>os que os valores se solidificam com o t<strong>em</strong>po, mas esses valores<br />

foram resultado de dinâmicas, de acordo com Laddaga 144 , que se orientam numa<br />

certa direção, através de idéias gerais que serviram para organizar e generalizar<br />

dados numa situação determinada e que tiveram a capacidade efetiva de<br />

reorganizá-la e, deste modo, induzir uma precipitação mais ou menos rápida num<br />

entorno; mas quando essas idéias se consolidam e “iluminam” um campo de<br />

instituições e de práticas estamos ante algum tipo de “cultura de”.No caso da Arte,<br />

não se institui mais como Esfera Cultural, mas sim como cultura da arte explicando<br />

desse modo o campo das próprias práticas e das instituições 145 .<br />

Certamente durante um t<strong>em</strong>po, esta “cultura da arte” responderá com êxito<br />

aos interesses do contexto, logo já normatizada, provocará tensões que levará a<br />

reiniciar o ciclo de novas idéias e práticas e assim sucessivamente. Na busca do<br />

sentido na Arte dev<strong>em</strong>os ter consciência de que a harmonia entre arte e sociedade<br />

só produz “obras” medíocres 146 .<br />

As características principais que ating<strong>em</strong> nossa época, entre outros fatores<br />

relacionados à nossa condição sócio-histórica-cultural, como: a Globalização; o<br />

Capitalismo Cultural (a nova centralização da informação e o conhecimento); a<br />

produção de mercadorias (objetos do desejo); as desterritorialidades (de<br />

identidades, gênero e afins); a legitimação do espaço de imagens-<strong>em</strong>-movimento; as<br />

Redes Virtuais; afetam o desenvolvimento dos processos das práticas artísticas<br />

cont<strong>em</strong>porâneas.<br />

143<br />

LACAN (1997, p. 177).<br />

144<br />

LADDAGA (2006).<br />

145<br />

Sobre o t<strong>em</strong>a ver LADDAGA (2006) e RANCIÈRE (2005).<br />

146<br />

GRÜNER (2006, p. 317).<br />

147<br />

MAFFESOLI (2005, p. 189).<br />

Assim como as cidades deram o tom aos modos de<br />

vida do conjunto dos países, a sinergia tecnologiamegalopoles<br />

faz do mundo inteiro uma “aldeia global”<br />

onde as modas, os costumes, os pensamentos, as<br />

músicas e os esportes são partilhados s<strong>em</strong> as<br />

diferenças de classe, as especificidades locais ou<br />

culturais determin<strong>em</strong> mudanças notáveis 147 .<br />

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O olhar de Argus multifocal, panóptico e s<strong>em</strong>pre vigilante, parece nos<br />

espreitar constant<strong>em</strong>ente, mas ele t<strong>em</strong> c<strong>em</strong> olhos dos quais cinqüenta permanec<strong>em</strong><br />

adormecidos e cinqüenta <strong>em</strong> vigília, alternadamente. É nesse lampejo de alternância<br />

que pod<strong>em</strong>os sabiamente nos desfocar. Um interstício-t<strong>em</strong>po que abre para novas<br />

possibilidades. Argus se esquece que vê, mas pode ser visto.<br />

A supermodernidade é um conceito que Augé 148 designa para caracterizar o<br />

momento atual. É interessante fazermos uma análise um pouco mais detalhada<br />

deste conceito, suas características e categorias seguindo o pensamento do autor<br />

citado. A cont<strong>em</strong>poraneidade é um mundo de transformações aceleradas que se<br />

caracteriza pelo excesso: uma superabundância factual, superabundância espacial e<br />

um retorno à individuação das referências. Características estas que traz<strong>em</strong> como<br />

conseqüência transformações nas categorias de t<strong>em</strong>po, espaço e indivíduo.<br />

Viv<strong>em</strong>os um t<strong>em</strong>po acelerado, que corresponde ao fato de uma multiplicação<br />

de acontecimentos (fatos) na maioria das vezes não previstos pelos economistas,<br />

historiadores ou sociólogos. Estamos com a história <strong>em</strong> nossos calcanhares, com<br />

uma grande multiplicação de acontecimentos e interdependências no chamado<br />

“sist<strong>em</strong>a-mundo” que visibilizam superabundância factual e a dificuldade de pensar o<br />

t<strong>em</strong>po. Precisamos, “exigimos”, encontrar um sentido ao presente, compreendê-lo, e<br />

disto recorre à dificuldade de dar um sentido ao passado próximo. Dar o espaço para<br />

a experiência pelo relato. Até porque, como Augé sugere, o aumento da expectativa<br />

de vida que permite a coexistência de três ou quatro gerações, provoca mudanças<br />

práticas na ord<strong>em</strong> social. Se por um lado somos cada vez mais solicitantes de<br />

sentido, paralelamente esses fatos estend<strong>em</strong> a m<strong>em</strong>ória coletiva genealógica e<br />

histórica e multiplicam para cada indivíduo as ocasiões <strong>em</strong> que pode ter a sensação<br />

de que sua história cruza a História e que esta se refere àquela. Suas exigências e<br />

decepções estão deste modo, ligadas ao reforço dessa sensação.<br />

A segunda transformação acelerada diz respeito ao espaço. O excesso de<br />

espaço resulta numa sensação de encolhimento. Tudo o que está longe parece<br />

próximo d<strong>em</strong>ais, seja pela questão de mudança de escala (no que diz respeito à<br />

conquista espacial ou à aceleração dos meios de transportes rápidos); mas também,<br />

pela multiplicação de referências energéticas e imagéticas que resultam das<br />

148 Ler AUGÉ (2007, p. 13-42).<br />

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distorções possíveis vindas das informações e suas imagens, ambas geralmente<br />

manipuladas, que nos ating<strong>em</strong> a todo instante, via meios de comunicação rápida.<br />

Tudo isto resulta <strong>em</strong> modificações físicas consideráveis tais como<br />

concentrações urbanas, transferências de população, gentrificação e multiplicação<br />

de não-lugares. Estes não-lugares são tanto as instalações necessárias à circulação<br />

acelerada das pessoas e bens -vias expressas, trevos, rodoviários, aeroportos-<br />

quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda<br />

os campos de trânsito prolongado onde são alojados os refugiados do planeta.<br />

No momento <strong>em</strong> que o espaço se torna pensável, acompanhando o<br />

pensamento de Augé, paradoxalmente muitos quer<strong>em</strong> ficar sozinhos <strong>em</strong> casa, e/ou<br />

outros, reencontrar uma pátria <strong>em</strong>bora se reforc<strong>em</strong> as redes multirraciais. O mundo<br />

da supermodernidade não t<strong>em</strong> as dimensões exatas daquele no qual pensamos<br />

viver, pois viv<strong>em</strong>os num mundo que ainda não aprend<strong>em</strong>os a olhar. T<strong>em</strong>os que<br />

reaprender a olhar o espaço.<br />

A terceira figura do excesso é a do ego, a do indivíduo. Nas sociedades<br />

ocidentais o indivíduo quer um mundo para ser um mundo. Ele pretende interpretar,<br />

por e para si, as informações que lhe são dadas numa busca individual de sentido,<br />

no que Augé chama de individualização das referências. Comparada a época atual<br />

com outras, nunca as histórias individuais foram tão explicitamente referidas pela<br />

história coletiva, mas nunca também os pontos de identificação coletiva foram tão<br />

flutuantes. Perante esta realidade como pensar <strong>em</strong> situar o indivíduo?<br />

Augé busca referências <strong>em</strong> Certeau, <strong>em</strong> “A invenção do cotidiano”, que fala<br />

das “manhas das artes de fazer” que permit<strong>em</strong> aos indivíduos submetidos às<br />

opressões globais da sociedade moderna, principalmente urbana, desviar-se delas,<br />

usá-las e, por uma espécie de elaboração diária, traçar aí seu cenário e seus<br />

itinerários particulares. Também recorre a Freud, quando, nos seus escritos<br />

sociológicos, usava a expressão hom<strong>em</strong> comum, o hom<strong>em</strong> que está alienado pelas<br />

instituições, mas que está <strong>em</strong> condições de observar <strong>em</strong> si mesmo os mecanismos e<br />

os efeitos da alienação. Alienação necessária, de acordo com Lévi-Strauss que é a<br />

do hom<strong>em</strong> que chamamos de saudável de espírito, porque é alienado, já que<br />

consente <strong>em</strong> existir num mundo definido pela relação com outr<strong>em</strong>.<br />

Além do peso maior dado à individuação das referências, estão outras<br />

singularidades nas quais se deveria prestar atenção, destaca Augé: singularidade<br />

dos objetos, singularidade dos grupos ou de pertinências, recomposição de lugares,<br />

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singularidades de toda ord<strong>em</strong> e que são o contraponto paradoxal dos processos de<br />

relacionamento, de aceleração e de deslocamento, reduzidas e resumidas por<br />

expressões como homogeneização- ou mundialização da cultura.<br />

O século XXI será antropológico, não só porque as<br />

três figuras do excesso não são senão a forma atual<br />

de uma matéria prima perene, que é a própria matéria<br />

da antropologia [a questão do outro e a organização<br />

do lugar], mas também porque, nas situações de<br />

supermodernidade [...] os componentes se somam<br />

s<strong>em</strong> se destruír<strong>em</strong> 149 .<br />

O coletivo La Société Anonyme 150 fazendo uma redefinição das práticas<br />

artísticas cont<strong>em</strong>porâneas para o século XXI coloca,<br />

Não somos artistas, tampouco somos críticos. Somos<br />

produtores [...] Não exist<strong>em</strong> obras de arte. Existe um<br />

trabalho e práticas que pod<strong>em</strong>os denominar<br />

artísticas. [...] O trabalho de arte que chamamos<br />

artístico deve, a partir de agora, se consagrar a<br />

produzir um similar – na esfera do acontecimento, da<br />

presença: nunca mais no da representação [objetual].<br />

O artista como produtor é: a) um gerador de<br />

narrativas de reconhecimento mútuo; b) um indutor de<br />

situações intensificadas de encontro e sociabilização<br />

da experiência; e c) um produtor de mediações para<br />

seu intercâmbio na Esfera Pública 151 .<br />

A época atual, despojada de missões messiânicas e certezas fundamentais,<br />

ressalta Ticio Escobar 152 , se mostra mais tolerante, o que é uma vantag<strong>em</strong>, mas<br />

também, é muito menos entusiasta e bastante mais tediosa decorrente, enfatiza este<br />

autor, do fato de não existir causas boas ou más, n<strong>em</strong> honras n<strong>em</strong> grandezas, n<strong>em</strong><br />

verdades privilegiadas e todas as opiniões ser<strong>em</strong> consideradas respeitáveis. Isto<br />

visto deste modo melancólico e apático é um inconveniente que requer certas<br />

negociações no entre-jogo do olhar/experiência.<br />

Essas “negociações” são as que permit<strong>em</strong> as redefinições manifestas pelo<br />

coletivo La Société Anonyme quando destaca a “função” do artista para gerar<br />

149 AUGE (loc. cit. p. 42).<br />

150 La Société Anonyme é um coletivo de artistas e teóricos de composição variável, fundado <strong>em</strong> 1990<br />

e dedicado especificamente a investigar e desenvolver, experimentalmente, as relações entre as<br />

práticas artísticas e o pensamento crítico. O “manifesto” se encontra disponível <strong>em</strong>: <br />

151 LA SOCIÉTÉ ANONYME; Manifesto on-line, 2001 (passim, tradução nossa).<br />

152 ESCOBAR (1997, p. 73).<br />

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narrativas de reconhecimento mútuo; produzir situações intensificadas de encontro e<br />

sociabilização da experiência que permitam mediações de intercâmbio na<br />

sociedade.<br />

Recodificações fatíveis de se efetivar através de uma arte onde o que está <strong>em</strong><br />

jogo é a produção de uma subjetividade que deriva de um conjunto de relações com<br />

o “Outro” e os “outros”. Subjetividade que se articula na forma de engate no mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se produz como resultado das afinidades entre o Sujeito (através da<br />

articulação de seu RIS) com o Mundo, e com Mundos Possíveis que derivam da<br />

articulação dos mesmos.<br />

Uma associação de formas assuntivas, composta de “dimensões<br />

significantes”, incluindo aqui, além do Sujeito, o Simbólico de maneira integral:<br />

cultura como contexto e produções/produtos decorrentes dessa cultura. Também<br />

dev<strong>em</strong>os incluir a Natureza como um todo inclusivo das duas formas anteriores.<br />

Dimensões significantes que se manifestam por meio de fluxos derivados do<br />

movimento dessas formas retentoras de significância.<br />

Fluxos estes vindos de contextos ou instâncias variadas dos Mundos da Vida,<br />

como os dos territórios existenciais e os dos universos sensíveis, cognitivo, afetivo,<br />

estético, ético-político. Fluxos que desenvolv<strong>em</strong> subjetividades e possibilitam<br />

manifestações individuais ou coletivas, que são articuladas através do Imaginário e<br />

Simbólico no Real. Dev<strong>em</strong>os destacar que Lacan a partir de sua topologia do nó<br />

borromiano (de três elos) e posteriormente do nó de quatro elos, produziu uma<br />

interessante articulação de el<strong>em</strong>entos fragmentários e heterogêneos, <strong>em</strong> um sist<strong>em</strong>a<br />

aberto a fluxos diversos 153 .<br />

Este movimento de fluxos introduz uma dinâmica que nos permite um olhar<br />

mais certeiro acerca da realidade. Mesmo ante a aparência de monotonia, de<br />

ânimos lânguidos, “algo” nessa ambiência borbulha possibilitando novos olhares.<br />

Maffesoli 154 enfatiza que a “viscosidade” tende à indistinção, à constituição de<br />

pequenos corpos específicos, de ‘tribos’ que viverão de forma mais ou menos<br />

explosiva o prazer de estar-junto através de diferentes mimetismos, cuja aparência é<br />

apenas o aspecto mais visível. Territórios existenciais capazes de nos possibilitar<br />

identificações no mundo <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>os.<br />

153 Destacando e para pensar, é interessante destacar que, segundo Oliveira Weimann, (2002, p. 6)<br />

“Este modelo topológico começou a ser utilizado por Lacan a partir de 1972 mesmo ano da<br />

publicação de ‘O anti-édipo’ de Deleuze e Guattari”.<br />

154 MAFESSOLI (2005, p.190).<br />

81


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

O pensamento de Guattari 155 <strong>em</strong> relação a territórios e sobre ecosofia,<br />

considerando esta como uma articulação ético-política entre os três registros<br />

ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade<br />

humana. Pensamento que se apresenta como uma possibilidade de prática que viria<br />

a tolher a falta de graça e a passividade ambiente.<br />

Hoje nos deparamos com práticas cont<strong>em</strong>porâneas que se processam<br />

integrando significantes <strong>em</strong> três âmbitos principais: práticas <strong>em</strong> territórios<br />

existenciais coletivos; práticas como se foss<strong>em</strong> ferramentas que permit<strong>em</strong><br />

desenvolver táticas diversas de viabilização de fazeres e práticas como dispositivos<br />

espaço-t<strong>em</strong>po. Mas também <strong>em</strong> territórios existenciais pessoais que permit<strong>em</strong><br />

inventar novas relações, de acordo com Guattari 156 , com o corpo, o fantasma<br />

[fantasia] o t<strong>em</strong>po que passa, os mistérios da vida e da morte. Nos reinventar.<br />

Práticas que sirvam também, segundo este autor, para resistir à uniformação<br />

dos pensamentos e dos comportamentos (considerando s<strong>em</strong>pre que dispositivos<br />

pod<strong>em</strong> existir na escala das megalópoles ou dos jogos dos significantes através da<br />

linguag<strong>em</strong> de um indivíduo) se articulando s<strong>em</strong>pre com uma postura eco-mental ou<br />

ecosófica, na qual prevaleça a ética nos campos do socius, da natureza e do<br />

tecnológico. Da mesma ord<strong>em</strong> é o pensamento de Mafessoli quando coloca que há<br />

uma reversibilidade constante que tende a estabelecer-se entre o indivíduo e o seu<br />

meio, onde este deve ser compreendido não só como meio natural mais também<br />

como social 157 .<br />

Quer se trate de uma viscosidade (Maffesoli), de ânimos lânguidos (Escobar)<br />

ou de uniformação nos modos de pensar e fazer (Guattari), do que t<strong>em</strong>os certeza é<br />

que este é nosso momento e nosso lugar. Qual é nossa “função simbólica” como<br />

significantes? Será conhecendo no possível o sitio da Mirada (a <strong>em</strong>ergência do<br />

discurso, o lugar a partir do qual se nos olha) que poder<strong>em</strong>os encontrar novos<br />

sentidos à realidade, que camuflada numa homogeneidade aparente, se apresenta<br />

como espelho deformante do real.<br />

Uma homogeneidade (metaforicamente uma anamorfose) que quando<br />

“mirada” ao sesgo, pod<strong>em</strong>os nela, simplesmente, nos refazer constant<strong>em</strong>ente e<br />

refazer essa nossa realidade. “Porque a única finalidade aceitável das atividades<br />

155 GUATTARI (2004).<br />

156 GUATTARI (2000), apud BOURRIAUD (2006, p. 115-117).<br />

157 MAFFESOLI (2005, p. 207).<br />

82


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

humanas, disse Guattari, é a produção de uma subjetividade que auto-enriquece de<br />

maneira contínua sua relação com o mundo” 158 .<br />

3.2 ARTE PÚBLICA COMO PROCESSO. UM RECORTE ESPECÍFICO<br />

A dinâmica “global” do presente, através de novas formas de subjetivação e<br />

associação que se manifestam há umas três décadas, como foi colocado, rompendo<br />

com as estruturas organizacionais que se Alastram desde a modernidade o Estado<br />

social e o Capital industrial; abre um novo ciclo de configuração das artes:<br />

“projetos/processos artísticos” que se constitu<strong>em</strong> como um modo de ver e fazer que<br />

privilegia o desenvolvimento de relações humanas e seu contexto social mais que o<br />

espaço autônomo e privativo (Bourriaud) e que <strong>em</strong>erge através do próprio<br />

desenvolvimento processual.<br />

Esta parece ser cada vez mais, uma opção de arte consciente dos devires de<br />

nossa cont<strong>em</strong>poraneidade, principalmente no que chamamos de Arte Atual com<br />

caráter público. Teóricos, historiadores, curadores e críticos de arte estão,<br />

constant<strong>em</strong>ente, acompanhando e refletindo através de seu olhar/experiência sobre<br />

estas práticas artísticas processuais, entre eles: Nicolas Bourriaud com Estética<br />

Relacional e Postproducción; Claire Bishop com Participation; Paul Ardenne com Un<br />

Arte Contextual; Reinaldo Laddaga com Estética de la <strong>em</strong>ergencia; Luis Brea com<br />

Ornamento y utopia e El tercer umbral; Michel Maffesoli com A transfiguração do<br />

político e Sobre o nomadismo:vagabundag<strong>em</strong> pós-moderna; Rosalind Krauss com A<br />

originalidade da vanguarda e outros mitos modernos e Antivisión; Ticio Escobar com<br />

El arte en los ti<strong>em</strong>pos globales; Jacques Rancière com A partilha do sensível:<br />

estética e política; Slavoj Zizek com Arriscar o impossível e Visión de Paralaxe;<br />

Miwon Kwon sobre Especificidade do Site e Arte Pública.<br />

Estes teóricos aportam para caminhos mais complexos nas práticas artísticas<br />

cont<strong>em</strong>porâneas. Escolh<strong>em</strong>os alguns ex<strong>em</strong>plos destas práticas como<br />

projeto/processo, a saber:<br />

158 BOURRIAUD (2006, p. 130, tradução nossa).<br />

83


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1 - The Land, iniciado <strong>em</strong> 1998, é um projeto/processo numa comunidade que<br />

está situada na Tailândia, perto da vila de Sanpatong, a vinte minutos da capital<br />

Chiang Mai.<br />

É numa região de fazendas de arroz que apresentam um grande êxodo rural<br />

por causa da falta de água. O governo oferece campos para desenvolvimento, a<br />

custo menor, para incentivar a produção local. Um grupo de artistas – Tiravanija;<br />

Parreno; Hausswolff; Nordanstad; Rehberg; Mit Jai-Inn, Superflex, entre outros –<br />

adquiriu uma área e viabiliza junto com os moradores locais, uma comunidade auto-<br />

sustentável: plantam arroz; constro<strong>em</strong> suas casas; têm sist<strong>em</strong>as de biogás e<br />

produção alternativa de energia elétrica; purificação e viabilização da água;<br />

comercialização e troca de produtos. Realizam atividades culturais e encontros<br />

artísticos abertos a outras comunidades.<br />

Em relação a este projeto/processo Tiravanija colocou que,<br />

[...] a Terra é sua própria entidade. Eu e<br />

muitos amigos meus nos v<strong>em</strong>os apenas como<br />

zeladores ou jardineiros. Não existe<br />

expectativa ou antecipação; faz<strong>em</strong>os coisas à<br />

medida que elas surg<strong>em</strong> e desaparec<strong>em</strong>. É<br />

um laboratório quando há pessoas<br />

trabalhando nela/sobre ela, e torna-se<br />

paisag<strong>em</strong> quando não há ninguém nela.<br />

Existe interesse considerável por esse<br />

projeto, talvez devido às personalidades que<br />

são as zeladoras (ou colaboradoras) do lugar<br />

e talvez também <strong>em</strong> função de sua distância<br />

do centro (Nova York, Londres, Paris, Berlim),<br />

mas esse é também o espaço ou a distância<br />

necessários para a curiosidade.<br />

[...] precisamos indagar no t<strong>em</strong>po de qu<strong>em</strong><br />

estamos. Em segundo lugar porque a idéia de<br />

lugar, local ou proximidade, onde o progresso<br />

aparece como não sincronizado, nos obriga a<br />

perguntar onde estamos. 159 .<br />

159 TIRAVANIJA, R. Contra a nostalgia. Entrevista a concedida a Lissete Lagnado. Paris, 2005.<br />

Entrevista. Disponível <strong>em</strong>: Último acesso <strong>em</strong>:<br />

26 out. de 2006. Em entrevista a Lisette Lagnado, 2006.<br />

84


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

The Land<br />

Fig. 13 Casa de artista: Tiravanija<br />

Fig. 15 Casa de descanso: MIT Jai-Inn<br />

Fig. 17 Usina – François Roche/Philippe Parreno<br />

85<br />

Fig. 14 Plantação de arroz<br />

Fig. 16 Festival de Pintura<br />

Fig. 18 Instalação de biogás _ Superfex


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 19 Leitura coletiva<br />

Fig. 21 Festa (Noeway ridge beam party)<br />

Fig. 23 Cerâmicas<br />

86<br />

Fig. 20 Encontro aberto a outras comunidades<br />

Fig. 22 Festa (Noeway ridge beam party)<br />

Fig. 24 Centro de Saúde Alternativa


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

2 – inSite_05 160 é a quinta edição do Projeto inSite/Prácticas artísticas en el<br />

domínio público Tijuana-San Diego, que se realiza na polêmica fronteira San Diego,<br />

EUA /Tijuana, Mx. Reuniu artistas e coletivos de artistas (num total de 25, entre eles:<br />

Judi Werthein; Itzel Martínez; Rubens Mano; Maurycy Gomulicki; Josep María<br />

Martín; coletivo americano Simparch; Paul Ramírez-Jonas; coletivo tijuanense Bulbo)<br />

e curadores interessados <strong>em</strong> inocular, desde a prática artística à gestação de novas<br />

territorialidades e dinâmicas associativas no cenário circunstancial e probl<strong>em</strong>ático da<br />

região fronteiriça. inSite é uma “rede de colaboração” entre instituições de arte e<br />

agentes culturais que conta com o apoio de mais de vinte cinco instituições públicas<br />

e privadas de México e Estados Unidos, segundo dados do site oficial. Esta<br />

colaboração binacional cobre todos os aspectos do projeto, desde o financiamento à<br />

administração, inclusive a implantação de um programa cultural <strong>em</strong> ambos os lados<br />

da fronteira que promove a participação do público no desenvolvimento do projetos<br />

específicos. inSite é operado através de residências de artistas e processos de<br />

colaboração e de co-autoria que resultam <strong>em</strong> projetos e ações <strong>em</strong> espaços públicos.<br />

160 Site oficial disponível <strong>em</strong>: http://insite05.org/index.php<br />

161 Site oficial disponível <strong>em</strong>: http://insite05.org/index.php<br />

O Projeto inSite_05 se organizou por eventos<br />

divididos <strong>em</strong>: Intervenções: mais ou menos 25<br />

projetos focados <strong>em</strong> criar experiências de domínio<br />

público, que se inseriram <strong>em</strong> distintos níveis de<br />

(in)visibilidade e co-participação no tecido social;<br />

Cenários: Dividido <strong>em</strong>: “Projecto Arte en Red”, evento<br />

que mostrou práticas artísticas <strong>em</strong> apresentações de<br />

imagens visuais e sonoras ao vivo; e “Projecto de<br />

arquivo” formado por arquivos coletivos do evento<br />

abertos para consulta. Cenários visou a desobjetualização<br />

dos suportes discursivos e da ênfase<br />

aos condicionantes de t<strong>em</strong>poralidade; envolveu as<br />

práticas que menos abarcam o domínio público no<br />

referente a um sítio específico de intervenção.<br />

Conversações: Foram debates e reflexões teóricas<br />

feitas através de um programa público de Oficinas,<br />

Palestras, Diálogos e Publicações que exploraram o<br />

potencial de inSite como uma arena intelectual.<br />

Exposição: inSite <strong>em</strong> colaboração com o Centro<br />

Cultural Tijuano e o San Diego Museum of Art<br />

organizaram a exposição “Sitios Distantes” que se<br />

expandiu além da faixa fronteiriça abarcando<br />

instituições e público de ambos os lados da fronteira,<br />

e de cinco países latino-americanos: Argentina<br />

(Buenos Aires); Brasil (São Paulo); Estados Unidos<br />

(Nova York); Venezuela (Caracas); México (Distrito<br />

Federa). (Informações do site-oficial) 161 .<br />

87


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Escolh<strong>em</strong>os oito trabalhos de artistas e coletivos, para ex<strong>em</strong>plificar.<br />

Fig. 25 Judi Werthein - Brinco [Pulo]<br />

Fig. 26 Itzel Martínez - Ciudad<br />

Recuperación<br />

Fig. 27 Paul Ramírez-Jonas - Mi Casa, Su<br />

Casa<br />

88<br />

Werthein faz um produto que relaciona<br />

o trânsito ilegal dos imigrantes com o<br />

crescente corporativismo global de<br />

mercadorias e dos fluxos do mercado laboral.<br />

Este produto é um tênis de design único, de<br />

marca Brinco [Pulo] contendo informações<br />

úteis de sobrevivência, como mapas e<br />

bússola para os que cruzam ilegalmente a<br />

fronteira. Produzido na China, foi vendido só<br />

nos EUA, durante dois meses.<br />

Martinez faz um vídeo com homens<br />

internos <strong>em</strong> uma clínica de recuperação de<br />

drogados carentes. Os internos filmam <strong>em</strong><br />

grupo, uma narrativa <strong>em</strong> torno à cidade ideal,<br />

onde eles imaginam um espaço próprio,<br />

digno, integrado: uma Tijuana possível, que<br />

se reinventa na medida dos desejos e dos<br />

ideais de seus habitantes ‘<strong>em</strong> recuperação’.<br />

Há intervenções de entrevistas a mulheres de<br />

classe média alta que também pensam sua<br />

Tijuana ideal integrada.<br />

Ramirez-Jonas realiza uma série de<br />

conversações-palestras <strong>em</strong> relação aos<br />

limites do público concebido como “aberto”, e<br />

do privado como “fechado”. O artista, munido<br />

de uma máquina de copiar chaves, propõe<br />

aos participantes fazer uma cópia da chave<br />

de sua casa e trocá-la com algum<br />

participante. Está estabelecida, assim, uma<br />

rede imaginária de “confiança e acesso”.


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 28 Josep M.Martín- Un prototipo para la<br />

“Buena Emigración<br />

Fig. 29 Simparch: coletivo estadunidense -<br />

Iniciativa del Agua Sucia<br />

Fig. 30 Maurycy Gomulicki - Puente Aéreo<br />

89<br />

Martín propõe a criação de um espaço<br />

que albergue os jovens adolescentes que,<br />

após uma imigração frustrada, são<br />

regressados ao México. Um espaço para se<br />

reunir, ouvir música, descansar, ler, fazer<br />

amizades, mas também, para participar <strong>em</strong><br />

programas abertos a outros jovens e tratar<br />

t<strong>em</strong>as relacionados com fluxos migratórios,<br />

direitos humanos e considerações a respeito<br />

da decisão tão relevante como é imigrar.<br />

O Coletivo Simparch propõe uma<br />

solução para o tratamento de água nas<br />

comunidades informais de Tijuana: construir<br />

uma estação de tratamento de água suja<br />

para ser instalada, a modo de fonte pública,<br />

no cruzamento de duas ruas e doada à<br />

comunidade. O projeto propõe fazer pensar<br />

o probl<strong>em</strong>a da água; buscar soluções<br />

ecológicas e alcançar um impacto direto na<br />

comunidade.<br />

Gomulicki relaciona m<strong>em</strong>bros de<br />

clubes de aeromodelismo de San Diego e<br />

Tijuana e os involucra na construção de<br />

novos modelos de aviões, assim como num<br />

vôo-espetáculo sobre o leito de concreto do<br />

Rio Tijuana - a linha divisória. Puente aéreo<br />

produz relações além dos padrões culturais<br />

e dos limites territoriais. Uma experiência<br />

que inclui o árduo exercício prévio que exige<br />

este espetáculo no céu aberto da fronteira.


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 31 Bulbo: coletivo tijuanense -<br />

Tienda de Ropa<br />

Fig. 32 Rubens Mano - Visible<br />

O Coletivo Bulbo propõe uma experiência<br />

de criação coletiva <strong>em</strong> torno ao vestuário da<br />

região fronteiriça de Tijuana e San Diego. O<br />

projeto inclui uma oficina de produção durante<br />

dois meses, com a participação de pessoas de<br />

diferente formação profissional e econômica.<br />

Tienda de ropa intervêm nos circuitos<br />

comerciais formais e informais, assim como na<br />

venda de atacado e varejo de ambas as<br />

cidades.<br />

Rubens Mano desenvolve uma ação<br />

inserida nos fluxos da fronteira. Seu projeto<br />

Visible, consiste na criação e inserção de uma<br />

senha gratuita na corrente dos commuters<br />

[viajeiros]. Cada pessoa que a recebe ou<br />

distribui se torna um agente constitutivo de uma<br />

aliança oculta, que se conforma como rede,<br />

entre os portadores e os distribuidores da<br />

senha. A finalidade é revelar a presença de<br />

outras narrativas existentes, não muito visíveis,<br />

dentro dos fluxos fronteiriços.<br />

3 – Park Fiction, é um projeto/processo que se iniciou <strong>em</strong> 1987 quando o<br />

governo de Hamburgo, na Al<strong>em</strong>anha, previa a construção de edifícios onde se<br />

encontrava o bairro pobre Saint Pauli localizado à beira do cais, favorecendo a<br />

iniciativa privada. Perante o processo de gentrificação que seria iniciado, os<br />

moradores conseguiram criar pressão suficiente sobre as autoridades da cidade<br />

para transformar o lugar num parque público. Detalhe, no bairro esse local era o<br />

único com acesso direto ao cais. Tal pressão foi realizada por meio de ações de<br />

protesto que articulavam processos complexos de conversações, eventos de música<br />

e arte.<br />

90


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

A iniciativa permitiu uma aliança da comunidade formada nos protestos com<br />

os vizinhos, a escola, a igreja, músicos e artistas entre eles Cristopph Schaefer e<br />

Cathy Skene, que se mudaram para o bairro. Estes artistas vêm se interessando por<br />

questões de arte <strong>em</strong> espaços públicos desde 1980. Foram eles que propuseram o<br />

nome de Park Fiction, que era o nome de uma rave que se realizara <strong>em</strong> Hamburgo<br />

no início da década.<br />

Arquivos documentais do processo foram expostos <strong>em</strong> outros locais como na<br />

Documenta 11 de Kasel; <strong>em</strong> Viena; e na Itália, <strong>em</strong> pequenas arquiteturas<br />

disponibilizando vídeos e impressos informativos.<br />

Este nome, Park Fiction, revela a característica “ficcionária” do projeto, mas<br />

uma ficção possível de se concretizar na realidade e que vinha ao encontro das<br />

expectativas de realização dos desejos manifestos pelos participantes. Os artistas<br />

que trabalham no projeto cunharam alguns slogans como: “O desejo vai sair de casa<br />

e do reino do tédio, aproximando a administração da miséria a um fim”; “Arte e<br />

política tornam-se mutuamente mais interessantes”, destacando que, como “Uma<br />

produção colaborativa de desejos” definia Park Fiction seu objetivo.<br />

Fig. 33 Vista geral do parque e do cais<br />

91<br />

Fig. 34 Área de descanso com palmeiras artificiais


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 35 Banco tapete-voador<br />

Fig. 37 Vistas aéreas do cais e do parque<br />

Fig. 38 Arquivos abertos ao público<br />

92<br />

Fig. 36 Stand d<strong>em</strong>onstrativo do projeto e seus<br />

processos (Documenta 11-Kassel)<br />

Fig. 39 Exposição Interativa


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

4 – Vinho-Saber é um projeto/processo desenvolvido <strong>em</strong> Florianópolis, Santa<br />

Catarina, Brasil. Iniciou <strong>em</strong> 2005, por iniciativa do artista propositor do projeto, José<br />

L. Kinceler, a partir de táticas criativas estruturadas para ativar o encontro entre<br />

realidades aparent<strong>em</strong>ente distantes. O dispositivo-proposta “troca de saberes”<br />

permeou os encontros e atividades realizadas durante o processo. O desejo de levar<br />

para casa uma cerâmica artística contendo vinho, elaborado artesanalmente,<br />

deixando <strong>em</strong> troca um livro pessoal que pudesse ser significativo a uma criança, foi<br />

o dispositivo-relacional que conformou o processo. Na contra capa do livro a ser<br />

trocado, cada doador escreveu uma mensag<strong>em</strong> dedicada a uma criança contando<br />

sobre a importância daquele livro <strong>em</strong> sua própria vida. A proposta, deste modo,<br />

provocou “nosso contexto” a instaurar espaços de convivência, que faz<strong>em</strong> com que<br />

a especificidade da arte se dilua <strong>em</strong> outros saberes.<br />

A partir deste acontecimento varios delizamentos deram novos sentidos as<br />

experiêriencias de fazeres: a plantação e cuidado das videiras; os encontros<br />

colaborativos na feitura do vinho; as histórias compartilhadas; a mini-biblioteca<br />

ambulante; a distribuição de livros nas vilas de pescadores; unindo deste modo<br />

comunidades diferentes e produzindo-se, ao mesmo t<strong>em</strong>po, uma troca de saberes<br />

(não só o dos livros) entre os grupos comunitários participantes.<br />

Vinho-Saber teceu situações, provocou encontros e facilitou acontecimentos<br />

<strong>em</strong> favor de táticas que tramass<strong>em</strong> novas formas de fazer este mundo mais digno de<br />

ser vivido de acordo com Kinceler.<br />

Fig. 40, Fig. 41 Encontro onde se realizou a troca de livros por uma garrafa <strong>em</strong> cerâmica contendo<br />

vinho artesanal.<br />

Transmitindo Saberes<br />

93


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 42 Fazendo vinho artesanal<br />

Fig. 44 – Livro à deriva<br />

94<br />

Fig. 43 Fazendo vinho artesanal<br />

Fig. 45 – Livro à deriva<br />

Figs. 46, 47, 48 – Distribuindo livros-saberes na Barra da Lagoa (ação: Livro à Deriva)<br />

5 – A Baleeira. Uma tessitura relacional, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil,<br />

se iniciou <strong>em</strong> 2003 a partir da proposta da autora desta dissertação, e reúne, por


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

t<strong>em</strong>pos mais ou menos longos, grupos de pessoas de diferentes lugares da região,<br />

com diferentes atividades e com diferentes profissões. O dispositivo “baleeira” é uma<br />

articulador real e, paradoxalmente, tácito do projeto. Mesmo s<strong>em</strong> navegar, ela põe a<br />

bordo e <strong>em</strong> movimento os desejos de seus participantes. No recorrer do processo se<br />

fizeram desde atabaques e tarrafas até imagens <strong>em</strong> movimento para vídeo-<br />

animação; atividades aglutinadas <strong>em</strong> pequenas micro-esferas públicas<br />

experimentais (valendo a redundância na escala). As propostas, os objetivos e as<br />

atividades vão se constituindo no recorrer do processo.<br />

Fig. 49 Ação de retirada da baleeira Farravento da praia de Pântano do Sul, Florianópolis, 2005,<br />

doada ao Grupo de Pesquisa: Arte e Vida nos limites da representação, pelo Sr. Pier Palumbo.<br />

95


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 50 Baleeira assombrada, # 2 ; vídeo-animação, 2009.<br />

Fig.51 Retirada da baleeira.<br />

Fig. 53 Oficina de Madeira<br />

96<br />

Fig. 52 Curso de Atabaque<br />

Fig.54 Oficina de Tarrafas


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Não dev<strong>em</strong>os deixar passar desapercebido que, este modo de ver e fazer<br />

cont<strong>em</strong>porâneo, como projetos/processos que envolv<strong>em</strong> comunidades diferentes,<br />

t<strong>em</strong> <strong>em</strong> comum que só se realizam se constituindo s<strong>em</strong>pre como práticas<br />

colaborativas. Pod<strong>em</strong>os falar já de “lógica relacional do encontro e da sociabilizarão<br />

da experiência” que <strong>em</strong>erge do próprio fazer coletivo. Pod<strong>em</strong>os falar de “Arte<br />

Relacional Complexa” sendo compreendida como,<br />

3.3 SOBRE ALGUMAS BASES PARA A MUDANÇA<br />

Uma atitude ético-estética capaz de, ao identificar<br />

oportunidades no contexto social, provocar<br />

descontinuidades crítico-reflexivas no cotidiano que<br />

permitam desenvolver subjetividades, sejam da ord<strong>em</strong><br />

do singular ou do coletivo. Modela, através de<br />

estratégias e táticas relacionais, processos de<br />

convívio, de diálogo e contaminação, nos quais o<br />

conteúdo humano atua como fator determinante da<br />

prática artística 162 .<br />

As mudanças de paradigmas, ou de modos de nos posicionarmos no mundo,<br />

são resultantes de processos que se articulam, inicialmente, a partir dos “modos de<br />

fazer” (práticas) e suas conseqüências nas relações sócio-políticas, sócio-<br />

econômicas e sócio-ambientais. Assim sendo, passam a gerar modelizações que se<br />

reflet<strong>em</strong> diretamente <strong>em</strong> novos modos de ver, de fazer e de sentir do ser humano,<br />

de forma geral, que exercita sua alteridade por meio de diversas práticas. Os<br />

componentes que geram estas modelizações por tanto, farão sentido por um t<strong>em</strong>po<br />

determinado, após o qual se somam s<strong>em</strong> ser destruídos, como coloca Augé 163 , às<br />

novas práticas que virão a fazer sentido novamente num mundo “diferente” cujas<br />

razões e desrazões serão buscadas por teóricos do amanhã.<br />

Modos de fazer, de ver e de sentir, são assim, modos comportamentais, se<br />

mostram renovadores na sociedade quando a passag<strong>em</strong> de um sist<strong>em</strong>a<br />

organizacional para outro d<strong>em</strong>onstra que esses modos, de uma forma ou de outra, já<br />

162 Conceito que está sendo desenvolvido através de reflexões feitas durante o processo de estudo e<br />

prática da Arte Pública Atual pelo Grupo de Pesquisa: Arte e Vida nos limites da representação<br />

pertencente ao Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, Campus Florianópolis<br />

coordenado pelo professor Dr. Luiz Kinceler e do qual a autora desta dissertação é participante.<br />

163 AUGÉ (2007, p. 42).<br />

97


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

não se mostram eficientes para as necessidades que foram surgindo num t<strong>em</strong>po<br />

determinado. E este “d<strong>em</strong>onstra” está diretamente ligado à experiência, às coisas<br />

que se defin<strong>em</strong> num recorte de t<strong>em</strong>pos e espaços, suturados pelo ver, sentir, ouvir e<br />

falar; que é o lugar do olhar/experiência.<br />

Essa passag<strong>em</strong>, que permite as modificações, pode ser realizada<br />

bruscamente quando motivos de ord<strong>em</strong> maior detonam a mudança, como por<br />

ex<strong>em</strong>plo, as duas guerras mundiais do século passado que possibilitaram<br />

questionamentos resultantes <strong>em</strong> novos fazeres e novos saberes <strong>em</strong> diferentes<br />

ordens, inclusive no campo artístico como foi o caso do movimento Dadá e das<br />

vanguardas <strong>em</strong> geral.<br />

Por outro lado, pode haver passagens menos traumáticas, mas igualmente<br />

eficientes que vão se especificando, adquirindo visibilidade, de forma mais ou menos<br />

rápida ou concomitante e se inserindo constant<strong>em</strong>ente no sist<strong>em</strong>a facilitando do<br />

mesmo modo, sua transformação; este caso nos parece ser o dos movimentos<br />

artísticos cont<strong>em</strong>porâneos na Arte Atual. Segundo Augé 164 a supermodernidade é<br />

como o lado “cara” de uma moeda da qual a pós- modernidade só se apresenta<br />

como o lado “coroa” – o positivo de um negativo.<br />

Consideramos que o hom<strong>em</strong>, através da capacidade de reflexão, pode<br />

questionar mudanças, reposicionando-se frente à polivalência de estímulos, de<br />

normas e valores com os que se depara procurando novas identificações no<br />

exercício de sua alteridade. Nosso momento atual, de supermodernidade, está<br />

penetrado pelo domínio do Capitalismo de consumo que favorece o lucro, a<br />

ganância, a oferta e a d<strong>em</strong>anda de bens econômicos; fato que ultrapassa os limites<br />

de respeito e solidariedade humana. Projetos como The Land, que se desenvolve<br />

numa comunidade com probl<strong>em</strong>as de sobrevivência; ou Park Fiction que desconstrói<br />

o objetivo de lucro imobiliário; ou inSite que “transparece” os probl<strong>em</strong>as de uma<br />

fronteira complicada <strong>em</strong> termos sociais, políticos e econômicos, <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> como<br />

alicerce de novas formas do “possível” e transparec<strong>em</strong> a capacidade humana de<br />

reflexão e ação.<br />

A superposição de mundos, uns vindos dos contendores do poder sócio-<br />

econômico-político, outros que insurg<strong>em</strong> dos mundos aos que aqueles se dirig<strong>em</strong>,<br />

tornam a alteridade incomunicável no espaço de convivência. Nele várias “tribos”<br />

164 AUGÉ (2007, p. 32).<br />

98


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

estão imersas na “viscosidade” que tende a indistinção, de que Maffesoli 165 fala;<br />

tribos que se manifestam por meio de identificações sucessivas, numa espécie de<br />

mimetismo, onde o importante é “participar” com os outros. Daí, sob nomes diversos,<br />

o ressurgimento do fenômeno comunitário que funciona essencialmente sobre a<br />

identificação <strong>em</strong>ocional que pode ir de encontro ao que se costuma chamar de<br />

verdadeira realidade ou de princípio de realidade, segundo o autor citado. Estes<br />

projetos/processos da Arte Pública Atual se constitu<strong>em</strong> como “tribos”, como lugar de<br />

processo vital, como lugares-comuns que partilhamos com outros, num t<strong>em</strong>po<br />

sincrônico, para o exercício de uma solidariedade orgânica.<br />

Nesta supermodernidade t<strong>em</strong>os, do mesmo modo, uma relação conflitiva com<br />

a natureza, de abuso e destruição, de desgaste com conseqüências imediatas e<br />

mediatas, mas que precisam ser levadas <strong>em</strong> consideração desde “ont<strong>em</strong>”, por se<br />

constituír<strong>em</strong> numa ameaça à vida humana <strong>em</strong> particular, e a vida natural como um<br />

todo. Os projetos/processos desenvolvidos pelo coletivo Ala Plástica de Argentina,<br />

voltado a probl<strong>em</strong>as sócio-ambientais, a ex<strong>em</strong>plo do Projeto AA, situado na bacia do<br />

Rio de La Plata, perto de Buenos Aires, que mobilizou novas formas de ação coletiva<br />

e criatividade junto com a população local na região ribeirinha, de modo a desafiar<br />

os interesses políticos e econômicos por trás do desenvolvimento de larga escala da<br />

região 166 .<br />

Do mesmo modo, a proposta da artista Navajot Altaf que produziu desenhos<br />

de bombas de água e t<strong>em</strong>plos infantis que foram implantados na Índia, <strong>em</strong><br />

colaboração com um grupo de artistas locais e do povo nativo Adivasi, resultou <strong>em</strong><br />

importantes trocas inter-culturais que, de acordo com Altaf, levou os jovens a<br />

pensar<strong>em</strong> sobre diferentes formas de saber e modos de trabalhar, capacitando-os a<br />

alimentar-se e encontrar sustento nessas diferenças e similaridade 167 .<br />

Estes projetos/processos dev<strong>em</strong> ser considerados como novas formas<br />

<strong>em</strong>ergentes de praticar a alteridade com responsabilidade dentro de uma prática<br />

ecológica consciente.<br />

165 MAFFESOLI (2005, p. 190).<br />

166 KESTER (200_?).<br />

167 KESTER (loc. cit.).<br />

99


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 55 Região do Rio de La Plata onde atua<br />

o coletivo Ala Plástica<br />

100<br />

Fig. 56 Canalização de água na Índia;<br />

proposta do trabalho feita por Altaf<br />

Não pod<strong>em</strong>os desconsiderar o argumento de Augé 168 de que, perante a<br />

modificação de novas formas de família, a identidade da pessoa que antes era<br />

definida por seu pertencimento a uma família, sua inscrição numa comunidade ou<br />

sua profissão, nesta nossa supermodernidade se vê, s<strong>em</strong> dúvidas, atingida por uma<br />

opacidade que não permite defini-la dentro desses domínios. Mas talvez, dentro do<br />

que Ton Nairn 169 , falando da transformação das mentalidades como resultado da<br />

globalização, sugere que a consider<strong>em</strong>os como uma mudança de clima, nos<br />

permitindo pensar numa consciência globalizante que t<strong>em</strong> a ver com estar no<br />

mesmo barco, não importando as ondas que ele enfrente. Mas o que parece contar<br />

mais é um peculiar e incômodo reconhecimento de uma “sorte <strong>em</strong> comum”<br />

irreversível. Os projetos desenvolvidos através do Grupo de pesquisa Arte e Vida<br />

nos limites da representação (do Centro de Artes da Universidade do Estado de<br />

Santa Catarina) tais como, Vinho-Saber, Orocongo-Saber, e a Baleeira, são projetos<br />

que de fato navegam. Procuram através do “estar-junto-com” desenvolver<br />

identificações “possíveis de ser” e consciência de que esse estar juntos, numa sorte<br />

168 AUGÉ (2007).<br />

169 TON NAIRN (2005) apud LADDAGA (2006, p. 49).


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

<strong>em</strong> comum, é um meio de desenvolver subjetividades que facilitam o jogo da<br />

alteridade e o reconhecimento de si.<br />

Seja por uma ou outra causa, ou todas, estes projetos/processos se<br />

desenvolv<strong>em</strong> tendo como mola propulsora a conscientização das faltas e abusos do<br />

sist<strong>em</strong>a. A frase de Thomas Hirschhorn pronunciada durante a 27º Bienal de São<br />

Paulo faz aqui suficiente sentido: O que eu quero é que o engajamento e o vazio –<br />

postos juntos- cri<strong>em</strong> um novo sentido.<br />

Mas não só a reflexão e o desejo de fazer coisas, de mudar coisas, de<br />

reinventar coisas são válidos. Há na passag<strong>em</strong> de um modo de comportamento<br />

sócio-cultural para outro, um processo de mudança que se inicia b<strong>em</strong> antes, a nível<br />

do socius, de substrato social, geralmente s<strong>em</strong> que percebamos as possíveis<br />

ligações com comportamentos posteriores. Por ex<strong>em</strong>plo, não dev<strong>em</strong>os esquecer, de<br />

acordo com Laddaga 170 , que a grande mudança nos conceitos <strong>em</strong>presariais no<br />

período chamado de pós-fordismo, nos anos 70, trouxe uma flexibilidade <strong>em</strong>presarial<br />

na qual, a solidez burocrática foi substituída por redes mais flexíveis e fluídas<br />

conectadas por todo o mundo.<br />

Estas <strong>em</strong>presas trabalham <strong>em</strong> rede, com um amplo número de participantes e<br />

a organização do trabalho se desenvolve <strong>em</strong> equipes e por projetos, o que ocasiona<br />

maior mutabilidade e indeterminação. Estas características lhes permit<strong>em</strong> estar mais<br />

b<strong>em</strong> preparadas, para navegar nas ondas de uma realidade, que se supõe<br />

infinitamente variável e fundamentalmente incerta, seguindo o pensamento do autor<br />

citado. Substitu<strong>em</strong> também, o sist<strong>em</strong>a de cargos e funções por uma série de<br />

vínculos contratuais mais ou menos duradouros. O trabalho dos <strong>em</strong>pregados<br />

apresenta-se com menor quantidade de atividades repetitivas e maior participação<br />

nos projetos de curto prazo, de conteúdos que mudam e se modificam no fazer e<br />

que estão além do “controle” dos indivíduos ou grupos.<br />

Outra característica importante a destacar é que, devido a este modo de se<br />

constituir uma <strong>em</strong>presa se exig<strong>em</strong> novas competências aos <strong>em</strong>pregados como:<br />

comunicabilidade, mobilidade, plasticidade, reatividade. Estas competências<br />

facilitam a adaptabilidade às circunstâncias que estão <strong>em</strong> contínua mudança as<br />

quais eram secundárias no modelo disciplinário de trabalho e disciplina de salário do<br />

regime <strong>em</strong>presarial do taylorismo/fordismo. Dev<strong>em</strong>os considerar que estas<br />

170 LADDAGA (2007, p.129-156). Ver também sobre o t<strong>em</strong>a HARVEY (2008).<br />

101


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

competências são qualidades das pessoas enquanto pessoas, que revelam a<br />

capacidade de comprometer-se, de comunicar-se. São, por conseguinte, qualidades<br />

relacionais que revelam que o “Saber-ser”, não é igual ao “Saber” e ao “Saber-fazer”.<br />

A <strong>em</strong>presa promete no lugar de segurança e estabilidade de carreira, a oportunidade<br />

do desenvolvimento pessoal deste modo, cada trabalhador estaria ocupado tanto na<br />

produção de objetos ou prestação de serviços como, <strong>em</strong> uníssono, na modificação<br />

(na educação, no desenvolvimento) de si.<br />

Se o modernismo foi correlativo ao taylorismo/fordismo. Que lógica<br />

corresponderia à nova situação? Pergunta-se Laddaga. Nos respond<strong>em</strong>os, como já<br />

colocamos, que se trata de uma “lógica relacional do encontro e da sociabilização da<br />

experiência”. Um exercício aprendizado que infere desenvolver, intensificar e<br />

reformular constant<strong>em</strong>ente a colaboração direta na experiência processual, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se promove a participação e a colaboração social do entorno,<br />

do contexto próximo. Estamos assim, num eco direto da mudança iniciada no âmbito<br />

<strong>em</strong>presarial sócio-econômico.<br />

A eficácia, de acordo com Laddaga, no desenvolvimento dos<br />

projetos/processos artísticos, da mesma maneira que nos projetos das <strong>em</strong>presas<br />

pós-fordistas, não depende de um domínio de técnicas, mas sim da ação eficaz de<br />

seus participantes. Este “participante”, por meio de suas atitudes e de sua presença<br />

constante no projeto/processo, desenvolve junto com outros estratégias <strong>em</strong><br />

dispositivos que permit<strong>em</strong> jogar com as incertezas, as causalidades, os afetos e<br />

desafetos, onde a autoria individual se permuta pelo contentamento do fazer<br />

juntos 171 e da produção de novas subjetividades decorrentes das ações<br />

<strong>em</strong>preendidas no exercício do olhar/experiência, perante a presença constante dos<br />

muitos outros.<br />

Várias analogias se manifestam neste modo de fazer <strong>em</strong> arte pública com o<br />

modo de fazer das <strong>em</strong>presas atualmente, por ex<strong>em</strong>plo, IBM, Linux, Google entre as<br />

maiores e que decorr<strong>em</strong> diretamente do sist<strong>em</strong>a pós-fordista. Isto v<strong>em</strong> a confirmar o<br />

fato de que modos de fazer atuais “modelam” modos de fazer futuros, derivando<br />

desta asserção nossa responsabilidade sobre qual tipo de subjetividades<br />

desenvolv<strong>em</strong>os para gerações futuras.<br />

171 LADDAGA (2007, loc. cit, passim).<br />

102


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Estes projetos/processos têm seus antepassados, de acordo com Laddaga,<br />

<strong>em</strong> algum momento da genealogia de práticas que comungam com as vanguardas a<br />

propensão a desenfatizar o momento de produção de objetos estáveis e definidos,<br />

(que era o propósito principal da prática estética modernista) para ser substituído ao<br />

passar do t<strong>em</strong>po por práticas que se preocupam com a “substância da comunidade”.<br />

As práticas, neste sentido, se manifestaram por duas estratégias diferentes <strong>em</strong><br />

diferentes épocas.<br />

A primeira [estratégia]– dominante [...] no momento<br />

mais inquieto nas artes, o dos anos 80 e começo dos<br />

90 – era a que apostava na apresentação, <strong>em</strong><br />

público, de uma privacidade - prática do abjeto ou do<br />

informe, que se propunha estabelecer no espaço<br />

público aquilo que nenhuma mídia integraria-; recorria<br />

à figura da representação negativa, à elaboração de<br />

imagens ou textos que mostraram, apresentaram,<br />

fizeram sentir aquilo que se postulava como excesso<br />

<strong>em</strong> relação ao domínio da representação.<br />

Esta classe de estratégia difere da – mais lúcida e<br />

quixotesca – dos projetos [...] nos quais um número<br />

de artistas e não-artistas se dedica a realizar<br />

iniciativas que provocam a mobilização de uma série<br />

de recursos disponíveis para o desenvolvimento de<br />

conversações criativas através das quais se<br />

constitu<strong>em</strong> discursos e imagens, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que se estabelec<strong>em</strong> micro-esferas públicas<br />

experimentais 172 .<br />

As práticas cont<strong>em</strong>porâneas de Arte Atual <strong>em</strong> Arte Pública sejam<br />

projetos/processos, ações ou intervenções, se afastam do idealismo artístico. Jogam<br />

com a paixão pela realidade, e interag<strong>em</strong> com o mundo como algo já criado no qual<br />

há que atuar, intervir, observar. Isto vai ao encontro do pensamento de Nicolas<br />

Bourriaud: num mundo que tudo está dado só t<strong>em</strong>os que manipulá-lo, o probl<strong>em</strong>a<br />

não é produzir novas formas, mas inventar dispositivos-habitat que facilit<strong>em</strong> as<br />

relações humanas e seu contexto social. Faz coro também ao pensamento de Paul<br />

Ardenne, qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> definido essa paixão pela realidade como arte contextual –<br />

estratégias, práticas e experiências artísticas que pretend<strong>em</strong> aproximar a arte à<br />

realidade – fora do museu, do mercantilismo, do idealismo, da criação individual - se<br />

colocando a respeito dela <strong>em</strong> situação de ação, interação e participação. 173<br />

172 LADDAGA (op. cit, p. 285, tradução nossa).<br />

173 Ver sobre o t<strong>em</strong>a HERNÁNDEZ-NAVARRO: El arte cont<strong>em</strong>poráneo entre la experiencia, lo<br />

antivisual y lo siniestro. Revista de Occidente. No. 297. España. fev. 2006.<br />

103


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Esses interesses coincid<strong>em</strong> com desenvolvimentos na arte pública, que<br />

reprogramou a arte site-specific para ser sinônimo com community-based art 174 .<br />

referenciada por projetos que visam a interação com as comunidades e a promoção<br />

de um melhor nível de conscientização social e política 175 .<br />

Os trabalhos de Arte Pública, neste sentido, ocupam hotéis, ruas urbanas,<br />

projetos de moradia, prisões, escolas, hospitais, igrejas, zoológicos, supermercados,<br />

fronteiras, etc. Como, também se infiltram nos espaços da mídia: rádio, jornal, TV,<br />

Internet. Como por ex<strong>em</strong>plo, o projeto/processo que implantou uma Rádio<br />

Comunitária na favela de Monte Cristo, Florianópolis, por iniciativa do artista Marcelo<br />

Wassen e que se desenvolveu num t<strong>em</strong>po mais o menos prolongado, com a<br />

participação colaborativa de jovens da região transmitindo notícias, entrevistas,<br />

eventos de interesse comum. Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que outras atividades se<br />

desenvolviam <strong>em</strong> forma paralela como, por ex<strong>em</strong>plo, a confecção de cartazes para<br />

eventos que resultaram do interagir <strong>em</strong> comum, com técnicas de design gráfico<br />

transmitidas aos jovens. Atividades estas recorrentes e intermediadas no próprio<br />

processo.<br />

Conseqüent<strong>em</strong>ente, esta prática de Arte Pública Atual é informada<br />

transversalmente por uma multidisciplinaridade de áreas (antropologia, sociologia,<br />

crítica literária, psicologia, história, etc.) sintonizada com discursos populares (moda,<br />

música, propaganda, cin<strong>em</strong>a, TV). Arte como um site de exploração das<br />

insuficiências e potencialidades da vida comum num mundo histórico determinado,<br />

de acordo com Laddaga fazendo eco ao pensamento de Kwon.<br />

V<strong>em</strong>os atualmente artistas, escritores, músicos, trabalhando com<br />

projetos/processos que implantam diferentes formas de colaboração que se<br />

constitu<strong>em</strong> como fundamento e imperativo principal destas práticas. Formas de<br />

colaboração que adquir<strong>em</strong> “visualidade” através de uma associação por t<strong>em</strong>pos<br />

prolongados, meses, até anos; envolv<strong>em</strong> um número relativamente grande de<br />

pessoas de diferentes lugares, ou de um mesmo lugar; diferentes idades, profissões,<br />

classes sociais.<br />

174 KWON (1997) -nota de rodapé- Conforme explicitado <strong>em</strong> projetos tais “Culture in Action” <strong>em</strong><br />

Chicago (1992-93) e “ Points of Entry” <strong>em</strong> Pittburgh (1996), a arte ´site-specific´ pública na década de<br />

90, marca uma convergência entre práticas enraizadas <strong>em</strong> ativismos políticos esquerdistas, tradições<br />

estéticas baseadas na comunidade, arte conceitual nascida da abordag<strong>em</strong> crítica institucional e<br />

políticas de identidade. Por causa dessa convergência muitas das questões que concern<strong>em</strong> as<br />

práticas cont<strong>em</strong>porâneas de ´site specific´ se aplicam a arte pública também e vice-versa (KWON,<br />

loc. cit).<br />

175 OLIVEIRA (2007).<br />

104


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

“Inventam”, enfatiza Laddaga 176 , mecanismos para articular, desde processos<br />

de modificação da condição de coisas locais até a produção de ficções, fabulações,<br />

imagens, como do mesmo modo, o desenvolvimento de dispositivos de publicação<br />

ou exibição abertos a leitores potenciais. Estes dispositivos passam a atuar como<br />

arquivos/registro tornando-se acessíveis à comunidade que os origina e<br />

constituindo-se <strong>em</strong> material de interrogação constante.<br />

Mecanismos que geram representatividade e <strong>em</strong>poderamento.<br />

São projetos/processos construtivistas capazes de desenvolver comunidades<br />

experimentais que se reorganizam de maneira imprevisível e que part<strong>em</strong> de um<br />

voluntariado que fará com que,<br />

[...] nos encontrar<strong>em</strong>os, cada vez com maior<br />

freqüência com indivíduos que, <strong>em</strong> nome da vontade<br />

de explorar as relações entre a produção de textos ou<br />

de imagens e a vida das comunidades, se obstinam<br />

<strong>em</strong> participar da geração de pequenas e amplas<br />

ecologias culturais nas quais é cada vez mais<br />

reduzida a instância da observação silenciosa e a<br />

distinção estrita entre produtores e receptores 177 .<br />

Outros ex<strong>em</strong>plos são: A Quietude da Terra (Internacional); Venus (Ar),<br />

JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) (Br); Musée Precaire Albinet (Fr); Projeto AA<br />

(Ar); Projeto Espécies Emergentes (AR). No Ceart/UDESC/SC (BR) o Grupo de<br />

Pesquisa Arte e Vida nos limites da representação vêm desenvolvendo esta<br />

modalidade de Arte Pública. São alguns desses projetos: Vinho-Saber; A Baleeira;<br />

Criação de uma Rádio Comunitária; Projeto Navegar; Projeto Vídeo-Garag<strong>em</strong>;<br />

Catadores na Costeira do Pirajubaé; Orocongo-Saber, entre outros.<br />

Projetos/processos como práticas artísticas atuais desenvolvidas <strong>em</strong> comunidades<br />

extinguindo os limites do público-privado com um caráter ecosófico, contextual e<br />

crítico.<br />

O que não sab<strong>em</strong>os, segundo Laddaga 178 é de quantas maneiras é possível<br />

associar de forma duradoura as pessoas. Na modernidade figuras como o sindicato,<br />

o partido político, inclusive a burocracia <strong>em</strong> sentido estrito, contribuíram como<br />

inovações criativas de associação. A universidade, como lugar de distribuição de<br />

posições e funções, é outra. No universo das artes o museu é uma forma<br />

176 LADDAGA (2006, p. 9).<br />

177 Id<strong>em</strong>, Ibid<strong>em</strong> (p. 42, tradução nossa).<br />

178 Id<strong>em</strong>, Ibid<strong>em</strong> (p. 2, tradução nossa).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

inteiramente original de associar pessoas, objetos, espaços e t<strong>em</strong>pos. Dev<strong>em</strong>os<br />

estar cientes de que, estas formas de associações que conhec<strong>em</strong>os tend<strong>em</strong> a ser<br />

hoje transbordadas por multidões de probl<strong>em</strong>as e maiores multidões de desejos.<br />

Maffesoli 179 dirá que existe s<strong>em</strong>pre um alicerce comunitário que se pode<br />

querer superar, corrigir, reformar, conforme as perspectivas ou as tendências<br />

teóricas, mas se reconhece como uma realidade absolutamente incontrolável.<br />

Laddaga 180 falará, a este respeito, de uma estética que “<strong>em</strong>erge” das novas<br />

ecologias culturais que se formam no meio sócio-cultural, propondo modos pós-<br />

disciplinários de operar, através de projetos/processos como os aqui apresentados,<br />

que favorec<strong>em</strong> a exploração, por parte de coletividades numerosas, de nebulosas<br />

sociais nunca condensadas, de seus meios, moradas e mundos comuns.<br />

3.4. UMA ESTÉTICA DE PARTILHA-COMUNITÁRIA.<br />

As coisas dev<strong>em</strong> acontecer de maneira<br />

simples. Intervir na sociedade. Viver <strong>em</strong> voz<br />

alta. Perseguir a perfeição da beleza, da<br />

<strong>em</strong>issão de sentido... pode ser um erro<br />

catastrófico. [...] Colocar coisas novas na<br />

cabeça é fácil, retirar as velhas é difícil.<br />

Esquecer as dúvidas, o profissionalismo, o<br />

consumo, as regras. Esquecer o correto e o<br />

incorreto 181 .<br />

Nestes projetos/processos transparece um olhar/experiência no qual um<br />

sentido de vinculação, seguindo o pensamento de Maffesoli 182 , de partilha-<br />

comunitária que permite garantir, reforçar ou r<strong>em</strong><strong>em</strong>orar a força dos sentimentos ou<br />

das razões que justifiqu<strong>em</strong> o estar-junto, numa acepção que aceita ilustrar o aspecto<br />

antropológico da prevalência do “nós”, do grupo, sobre o indivíduo. Prevalência que<br />

se trata de uma “perda”, de uma despesa; o indivíduo vale menos por si mesmo de<br />

que pelo conjunto onde se situa. Emerge uma cultura do sentimento onde a estética<br />

enfatiza a força coletiva da <strong>em</strong>oção <strong>em</strong> todos os domínios, uma atração <strong>em</strong> torno<br />

179 MAFFESOLI (2005, p. 181).<br />

180 LADDAGA (op. cit).<br />

181 ASIER PÉREZ apud GOLVANO (2001).<br />

182 MAFFESOLI (2005, p. 153-167).<br />

106


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

disso que se experimenta <strong>em</strong> comum e faz sociedade, e se constitui um bom<br />

indicador antropológico da comunidade, <strong>em</strong> especial por ressaltar a coerência, a<br />

solidariedade das diversas pequenas partes constitutivas do todo.<br />

O horror social, impulsionado pelo pragmatismo<br />

econômico, só não esmaga definitivamente as<br />

populações porque, nos subterrâneos do dia a dia,<br />

surg<strong>em</strong> microscópicas construções sociais capazes<br />

de reinventar o querer viver e garantir um lugar para a<br />

imaginação 183 .<br />

A atração <strong>em</strong>ocional e a estética <strong>em</strong>ocional (chamadas de “<strong>em</strong>ocionais”<br />

porque funcionam essencialmente sobre a identificação na ord<strong>em</strong> do pathos, do<br />

sentimento, <strong>em</strong>oção onde o importante é “participar” com outros e vivenciar as<br />

diferenças) 184 predominam neste tipo de relações que se desenvolv<strong>em</strong> nos lugares-<br />

comuns onde o desafio está na instalação progressiva de uma solidariedade<br />

orgânica ou “substância da comunidade”.<br />

Uma estética ampla que não se limita às “belas artes”, mas que contamina o<br />

conjunto da vida cotidiana e torna-se uma parte nada desconsiderável do imaginário<br />

cont<strong>em</strong>porâneo. Este estar-junto comunitário esta atravessado pela dimensão<br />

estética. Maffesoli entende por estética, de acordo com a etimologia do termo, o fato<br />

de experimentar <strong>em</strong>oções, sentimentos, paixões comum, nos mais diversos<br />

domínios da vida social 185 .<br />

Este olhar/experiência ganha um relevo especial <strong>em</strong> nossos dias, permite<br />

falar da transfiguração do político ou do social numa figura diferente da<br />

predominante durante a modernidade (o contrato social) que permite o<br />

reconhecimento ao insistir na t<strong>em</strong>ática da comunidade onde nada importa além da<br />

relação, do relacionismo, o tropismo que me <strong>em</strong>purra para o outro e faz com que,<br />

reconhecendo-o (mesmo como meu inimigo) eu me reconheça.<br />

Foster 186 dirá que hoje o outro é retomado, processado <strong>em</strong> sua própria<br />

diferença por meio da ord<strong>em</strong> de reconhecimento ou simplesmente reduzido ao<br />

mesmo. Foster se r<strong>em</strong>ete a Barthes 187 para esclarecer esta questão. Barthes coloca<br />

que há duas formas características desta recuperação: a inoculação e a<br />

183 MACHADO DA SILVA (2005) In: MAFESSOLI. A transformação do político. (2005, contracapa).<br />

184 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p.191).<br />

185 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 188).<br />

186 FOSTER (1985, p. 113).<br />

187 BARTHES apud FOSTER (1985, p.113).<br />

107


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

incorporação. Na inoculação o outro é absorvido só na medida necessária para fazê-<br />

lo “inócuo”, ou seja, incapaz de produzir algum tipo de dano ou efeito <strong>em</strong> qualquer<br />

ord<strong>em</strong> estabelecida, favorecendo o campo propício para a produção de<br />

subjetividades “lixo” e “luxo” (Rolnik) 188 . Na incorporação o outro torna-se<br />

“incorpóreo” por meio de sua representação por ex<strong>em</strong>plo, através de fotos, músicas,<br />

vestidos, que entram “comercialmente” <strong>em</strong> circulação no sist<strong>em</strong>a, ou com uma<br />

redefinição da “conduta desviada”. Ambos os modos são aplicáveis no caso de sub-<br />

culturas e grupos minoritários ou periféricos, ou seja, <strong>em</strong> qualquer um dos fatos, o<br />

sist<strong>em</strong>a coopta as diferenças e as faz trabalhar <strong>em</strong> seu favor.<br />

Ao buscar a produção de outras subjetividades, os artistas desejam incluir o<br />

outro no processo de criação. A arte cont<strong>em</strong>porânea atual desenvolve deste modo,<br />

segundo Bourriaud 189 , um processo com uma atitude política, já que assume uma<br />

função relacional e a probl<strong>em</strong>atiza; o artista habita as circunstâncias que o presente<br />

lhe oferece, e através da forma relacional modela e orienta o sentido, e o repercute<br />

na vida cotidiana com a finalidade de transformar o contexto a que pertence. Torna-<br />

se assim, um nômade, um novo guerreiro, um peão do Go 190 .<br />

Mas será por meio do plural comunitário, de uma ambiência estética<br />

<strong>em</strong>ocional, que pod<strong>em</strong>os achar interstícios para uma dialética não mais contraditória<br />

no sentido de combater e superar, mas sim, contraditorial (S. Lupasco) que vê os<br />

el<strong>em</strong>entos heterogêneos decompor<strong>em</strong>-se para fazer uma realidade tensional<br />

adaptada à alteridade 191 .<br />

188 Segundo ROLNIK (2003), <strong>em</strong> nosso modelo de sociedade capitalista a formação de subjetividades<br />

cegas às forças de alteridade do mundo, se constitu<strong>em</strong> como subjetividades-luxo que respond<strong>em</strong> a<br />

identidades ”prêt-à-porte” de fácil assimilação, resultado de uma poderosa operação de marketing<br />

que viabiliza a identificação do poder de consumo como medida para a aquisição do território do<br />

poder e, assim, ser incluída ou reconhecida pelo sist<strong>em</strong>a dominante. Fora desse território, e como<br />

conseqüência forma-se as subjetividades-lixo, território da humilhação, da existência s<strong>em</strong> valor, gente<br />

“s<strong>em</strong>”: s<strong>em</strong> teto, s<strong>em</strong> casa, s<strong>em</strong> comida, s<strong>em</strong> camisa, s<strong>em</strong> escola, da favela, do tráfico, da fila do<br />

hospital.<br />

189 BOURRIAUD (2001, p. 432).<br />

190 O Go é um jogo que t<strong>em</strong> como característica principal o fato de seus peões não possuír<strong>em</strong><br />

qualquer relação extrínseca necessária, não tendo também qualquer qualidade intrínseca que lhes<br />

impeça de se movimentar<strong>em</strong> livr<strong>em</strong>ente. Os seus movimentos, portanto, são dirigidos pela situação e<br />

não por códigos preestabelecidos.<br />

191 MAFESSOLI (2005, p. 195).<br />

108


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

3.5 SOBRE A PRÁTICA DO ESPAÇO-TEMPO<br />

A imersão real no mundo depende de uma<br />

familiaridade com o lugar e com sua história, o que é<br />

muito raro na atualidade. A cultura, como dizia um<br />

artista cont<strong>em</strong>porâneo, não é de onde somos, é de<br />

onde vi<strong>em</strong>os. Se nos olhamos [...] com um olhar<br />

crítico, como parte de um contexto social, seja como<br />

habitantes, consumidores, espectadores ou turistas,<br />

pod<strong>em</strong>os chegar a entender nosso papel nos<br />

processos naturais que determinam nosso futuro. De<br />

igual maneira, o estudo do lugar nos dá acesso a uma<br />

experiência direta do território (o que chamamos<br />

“natureza”) do mesmo jeito, a uma consciência da<br />

política ecológica e a uma toma de responsabilidade<br />

<strong>em</strong> relação ao futuro 192 .<br />

Quais são os possíveis lugares que habitamos? Como os identificamos como<br />

possíveis de uma diferenciabilidade que nos permita vivenciá-los como arte? Porque<br />

falamos especificamente de Arte Pública? O quê faz com que “arte” possa ser<br />

considerada pública? Quando falamos Arte Pública nos r<strong>em</strong>et<strong>em</strong>os, quase que<br />

invariavelmente, a uma arte que acontece fora do espaço privado, geralmente este<br />

considerado como íntimo: o lar, o espaço familiar; uma arte que acontece,<br />

literalmente, no espaço da cidade, na rua. Mas há uma grande nuance de sentidos,<br />

e suas especificidades, contidos na palavra “público”. Tanto na noção de espaço<br />

público, quanto na noção de público <strong>em</strong> relação às pessoas.<br />

O fato de falarmos de Arte “Pública” já corrobora que essa especificidade<br />

existe. Também t<strong>em</strong>os falado de Esfera Pública e Esfera Privada e de outras esferas<br />

que se constitu<strong>em</strong> entre estas. Pod<strong>em</strong>os fazer uma análise um pouco além de uma<br />

idéia que parece muito clássica como é esta divisão entre Esfera Pública e Esfera<br />

Privada que, no debate político-acadêmico, é freqüent<strong>em</strong>ente discutida.<br />

Uma análise de um espaço público fluído, como algo acessível a todos, onde<br />

seja possível haver uma coincidência do que consideramos como “comum e<br />

unânime”, o instituinte, com o “visível ou manifesto”, o instituído (seja <strong>em</strong> termos<br />

material-espacial por meio de instituições governamentais <strong>em</strong> geral; das mídias; ou<br />

como espaço “criado” para um fluir comunicativo e argumentativo <strong>em</strong> princípio, aberto<br />

como praças, escolas, etc.) parece fazer referência a um desejo “nostálgico” de<br />

busca de um lugar perdido. Uma dimensão espacial coletiva, comum, real e aberta,<br />

192 LIPPARD (2002, p. 54)<br />

109


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

no qual seja possível recolher muitas das tensões de quase todas as camadas<br />

relevantes de pensamento sociopolítico 193 .<br />

Este desejo do lugar perdido r<strong>em</strong>ete a uma comunidade fundadora, fraterna,<br />

de partilha-comunitária, detentora de uma unicidade imanente, para além de toda<br />

racionalização ou consciência explícita, segundo Maffesoli,<br />

[...] onde o ideal comunitário é uma constante à qual<br />

se faz referência quando se trata de garantir, de<br />

reforçar ou de r<strong>em</strong><strong>em</strong>orar a força dos sentimentos ou<br />

das razões que justificam o estar-junto. [...]<br />

Reencontra-se aqui a dialética entre o instituinte e o<br />

instituído 194 .<br />

Comunidade não significa compreender tudo sobre todos e resolver todas as<br />

diferenças. Comunidade é um espaço de por si tensionado, mas plausível de ser<br />

praticado pelo idealismo que o funda. Significa aprender a trabalhar dentro das<br />

diferenças enquanto estas mudam e se desenvolv<strong>em</strong>, onde <strong>em</strong>patia e intercâmbio<br />

são palavras chave 195 . Significa encontrarmos, dentro das coordenadas espaciais,<br />

“espaços outros” que nos permit<strong>em</strong> pensar <strong>em</strong> localizações que se defin<strong>em</strong> pelas<br />

relações de proximidade entre pontos ou el<strong>em</strong>entos, como coloca Foucault 196 .<br />

Seguindo o pensamento deste autor, pod<strong>em</strong>os pensar esta “comunidade”<br />

como uma heterotopia, como lugar real, que se delineia efetivamente dentro da<br />

sociedade como uma espécie de contra-localização, como utopia realizada, como<br />

lugar que está fora dos outros lugares, <strong>em</strong>bora localizável. Lugar no interior da<br />

cultura que questiona, inverte, renova localizações reais da mesma.<br />

Pensar Arte Pública Atual como uma heterotopia é pensá-la como um espaço<br />

propriamente topológico a qual pode funcionar de forma diferente a outras<br />

heterotopias que exist<strong>em</strong> <strong>em</strong> forma concomitante a ela. Este espaço capaz de<br />

justapor outras ”localizações” sejam estas da ord<strong>em</strong> dos afetos, das práticas, das<br />

idéias, se constitui deste modo, como um desvio, um possível paradoxalmente e<br />

absolutamente crônico. Arte Pública como uma heterotopia de compensação, como o<br />

nosso barco, a baleeira, capaz de “navegar” <strong>em</strong>bora ancorada no mar real e ríspido<br />

193 Ver: RABINIKOF (1997).<br />

194 MAFFESOLI (op. cit, p. 180-181).<br />

195 LIPPARD (2001, p. 51-71).<br />

196 VIGIL, P. Michel Foucault: “De los espacios otros”; 1967. Disponível <strong>em</strong>:<br />

2006. Último acesso <strong>em</strong>: 2 de jun. de 2008.<br />

110


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

de um pátio institucional. É preciso navegar, atuar, se comprometer, participar<br />

simplesmente e <strong>em</strong> coisas simples da vida, como propõe Asier Perez Gonzalez.<br />

Esta capacidade de comprometer-se, de comunicar-se, sobre as qualidades<br />

relacionais, é a porta de entrada a um estado comunal que propicia a<br />

conscientização necessária para exercitar o saber-ser da arte pública hoje.<br />

Os projetos/processos de uma arte que <strong>em</strong>erge comunitariamente iniciam ou<br />

intensificam, segundo Laddaga 197 , processos abertos de conversação (de<br />

improvisação). Projetos que compromet<strong>em</strong> a artistas e não-artistas durante t<strong>em</strong>pos<br />

extensos ou espaços definidos. Projetos onde a produção estética se associe à<br />

constituição de atividades destinadas a modificar estados de coisas, <strong>em</strong> tal ou qual<br />

espaço, e indiqu<strong>em</strong> “formas artificiais de vida social”, como modos experienciais de<br />

coexistência.<br />

Os projetos que me interessam [...] se propõ<strong>em</strong> a<br />

generalização de “modos de vida social artificial” o<br />

qual não significa que não se realiz<strong>em</strong> através da<br />

interação de pessoas reais: significa que seus pontos<br />

de partida são acordos <strong>em</strong> aparência – e a partir da<br />

perspectiva dos saberes comuns na situação <strong>em</strong> que<br />

se manifestam – ‘improváveis’. Dando lugar à<br />

implantação de comunidades experimentais, entanto<br />

[estes projetos] t<strong>em</strong> ações voluntárias como ponto de<br />

partida que reorganizam os dados da situação na que<br />

acontec<strong>em</strong> de forma imprevisível e também, através<br />

de sua implantação se pretende averiguar coisas mais<br />

gerais a respeito das condições da vida social no<br />

presente 198 .<br />

S<strong>em</strong> dúvida, no espaço abstrato do modernismo e do capital que tende à<br />

homogeneidade, na eliminação das diferenças existentes ou peculiaridades, de<br />

acordo com Lefebvre 199 um novo espaço não pode nascer (ser produzido) a não ser<br />

que ele acentue as diferenças e as acolha como parte da diversidade humana e<br />

cultural. Há uma nova conexão, que se torna indispensável, com a singularidade do<br />

lugar por meio do estabelecimento de uma autenticidade no significado, na m<strong>em</strong>ória,<br />

nas histórias e identidades como função diferencial dos lugares.<br />

Esta função diferencial viria, assim, a se constituir como um atrator oculto da<br />

especificidade do lugar (Kwon) ou na atração <strong>em</strong>ocional (Maffesoli) dos<br />

197 Op.cit, passim.<br />

198 LADDAGA (2006, p.15. tradução nossa).<br />

199 LEFEBVRE apud KWON (1997).<br />

111


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

projetos/processos de site-oriented-art, de community-based art. O que v<strong>em</strong> a<br />

confirmar cada vez mais que Arte e Vida faz<strong>em</strong> parte de um mesmo sentido e<br />

significado.<br />

Este espaço “produzido” se funda como lugar praticado, no dizer de Certeau. É<br />

o lugar destes projetos/processos, caracterizados pela busca do lugar comum, e que<br />

se estabelec<strong>em</strong> num espaço que consideramos público 200 , que se conforma através<br />

de formas de comunicação, de organização, de identificações, de produção de<br />

subjetividades, que não se resolv<strong>em</strong> com uma pura exaltação das diferenças ou com<br />

uma fácil celebração do bom censo. Porém, se desenvolv<strong>em</strong> no cotidiano no qual as<br />

contexturas de sociabilidade e lealdade são forjadas e conferidas e onde os hábitos<br />

são compartilhados e suas reciprocidades faz<strong>em</strong> sentido. Ou seja, a cultura é<br />

espacialmente vivida e socialmente situada onde, literalmente, as significações são<br />

encarnadas e seu valor cultural é tecido, e nervurado, nas relações sociais que lhe<br />

dão sentido 201 .<br />

Se a Arte Relacional propõe uma forma modelizante, as manifestações<br />

artísticas no espaço público são como uma modulação dessa trama já que, os<br />

espaços do cotidiano nos quais ocorr<strong>em</strong> as manifestações artísticas, são plenos de<br />

articulações, segregações e rupturas cujos significados solicitam aproximações<br />

específicas. Nos limites sócio-físicos desses espaços de constituição da experiência<br />

(o lugar dos relatos como prática dos mesmos) se configuram uma série de<br />

descontinuidades e processos que derivam do agenciamento coletivo de estratégias<br />

e de interesses e que se estabelec<strong>em</strong> como algumas das bases das esferas de<br />

territorialidade que neles se instauram 202 .<br />

A noção de descontinuidade <strong>em</strong> arte, segundo Kinceler 203 , deve ser<br />

compreendida por meio do fato de que receb<strong>em</strong>os uma cultura <strong>em</strong> movimento, que<br />

cabe a nós, no espaço t<strong>em</strong>po que nos cabe vivenciar, articular junto com nossos<br />

desejos e percepções outras possibilidades de habitar o mundo. Instalar outro<br />

imaginário a partir de práticas artísticas que desestabilizam retificações pautadas <strong>em</strong><br />

agências de saber e poder. Dev<strong>em</strong>os, portanto, estar atentos, sintonizados com<br />

nossa cultura o que não significa “receber” informação, alimentada por um simbólico<br />

200 A modo de reflexão compl<strong>em</strong>entar: “El espacio público es el medio en el qual la humanidade se<br />

entrega a si misma en el espectáculo” Jean Marc Ferry- Juan Luis Moraza.<br />

201 Ver PELLAMIN (2000, p. 29).<br />

202 Sobre o t<strong>em</strong>a ler PELLAMIN, V. (2000).<br />

203 KINCELER (2008).<br />

112


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

já filtrado enquanto o real não é saboreado; mas sim, estarmos informados pelo<br />

exercício da experiência. Este autor também faz uma referência a Bondía quando<br />

fala que a experiência é “algo que nos toca, que nos passa”.<br />

Uma descontinuidade <strong>em</strong> arte consegue materializar<br />

um compl<strong>em</strong>ento imaginário capaz de gerar uma<br />

forma diferente de praticar o cotidiano. Quando<br />

materializada a partir de relações com o outro, num<br />

plano mais crítico e participativo, gera vivências<br />

capazes de promover contaminação. Ou seja, uma<br />

descontinuidade altera, manipula e cria significâncias.<br />

É um processo no qual público t<strong>em</strong> a condição de ver<br />

refletido questionamentos, incertezas e diferenças de<br />

toda ord<strong>em</strong> o qual provoca novos modos de fazer este<br />

mundo mais interessante de ser experimentado 204 .<br />

Kinceler utiliza o conceito de “contaminação” definido por Suely Rolny 205 no<br />

qual, contaminar-se pelo outro não é confraternizar-se, mas sim deixar que a<br />

aproximação aconteça e que as tensões se apresent<strong>em</strong>. O encontro se constrói<br />

(quando de fato se constrói) a partir dos conflitos e estranhamentos e não de sua<br />

denegação humanista.<br />

Entre as práticas de arte pública que “praticam” o espaço como um lugar<br />

comum, achamos interessante relacioná-las às modalidades de Arte Relacional<br />

Complexa 206 , nas suas três figuras como: a) descontinuidades no cotidiano, por<br />

ex<strong>em</strong>plo Kissarama, 2003 (Espanha) mediada por Assier Perez Gonzalez; Vinho-<br />

Saber; mediada por José Luiz Kinceler; A Baleeira, mediada por Ana Hmeljevski SC-<br />

Brasil); b) como processos de convívio, por ex<strong>em</strong>plo The Land (Tailândia); c) como<br />

formas híbridas, por ex<strong>em</strong>plo: Park Fiction (Al<strong>em</strong>anha); JAMAC, no Jardim Miriam,<br />

mediada por Mônica Nador (SP-Brasil); Eloíza Cartonera (Argentina); Quietude da<br />

Terra (Internacional) mediada por France Morim.<br />

Incluímos também, práticas com atividades expositivas (melhor não-<br />

expositivas) e ações que geram certa estranheza no público menos atento às<br />

mudanças dos modos atuais de ver e fazer arte.<br />

Entre as atividades “não expositivas” os trabalhos apresentados na exposição<br />

I/legítimo: dentro e fora do circuito (atualmente acontecendo <strong>em</strong> paralelo à 28º Bienal<br />

de São Paulo, no espaço Paço das Artes e o MIS) é um sinal, um índice da infiltração<br />

204 Id<strong>em</strong>, Ibid<strong>em</strong> (p.1793).<br />

205 ROLNIK (2003) apud KINCELER (op. cit, p. 1799).<br />

206 Ver sobre este t<strong>em</strong>a HMELJEVSKI (2006).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

do território mediático no campo institucionalizado do circuito de arte. A tevê; o<br />

videoclipe, a animação, a música eletrônica; as câmeras de vigilância; a tatuag<strong>em</strong>; o<br />

grafite, a performance de skate e o hacker-ativismo interag<strong>em</strong> no espaço expositivo.<br />

Entre as “ações”, por ex<strong>em</strong>plo, as decorrentes do “acontecimento Bienal<br />

2008”, pichações a instituições artísticas (entre elas a própria Bienal) e a becos de<br />

grafite da cidade dev<strong>em</strong> trazer questionamentos e debates sobre fronteiras e<br />

territorieidades no campo sócio-cultural.<br />

3.6 SOBRE MEIOS E FORMAS DE FAZER<br />

Certeau (1994) falará que as diferentes formas de operar práticas sociais<br />

d<strong>em</strong>andam uma série de modos que permit<strong>em</strong> re-inventar o cotidiano social (lugar<br />

das trajetórias indeterminadas) formando a contrapartida dos sist<strong>em</strong>as instituídos.<br />

Para isto dev<strong>em</strong>os ter consciência de duas lógicas de ação: estratégias e táticas 207 .<br />

Em relação a estas Certeau coloca,<br />

Chamo de “estratégia” o cálculo (ou a manipulação)<br />

das relações de forças que se torna possível a partir<br />

do momento <strong>em</strong> que um sujeito de querer e poder<br />

(uma <strong>em</strong>presa, um exército, uma cidade, uma<br />

instituição científica) pode ser isolado. A estratégia<br />

postula um “lugar” [...] como “algo próprio” e ser a base<br />

de onde se pod<strong>em</strong> gerir as relações com “uma<br />

exterioridade” de alvos ou ameaças (os clientes ou os<br />

concorrentes, os inimigos, o campo entorno à cidade,<br />

os objetivos e objetos da pesquisa, etc.) [...] Gesto<br />

cartesiano, qu<strong>em</strong> sabe: circunscrever um próprio num<br />

mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro.<br />

Gesto da modernidade científica, política ou militar 208 .<br />

Chamo de “tática” a ação calculada que é determinada<br />

pela ausência de um próprio [próprio: por ex<strong>em</strong>plo,<br />

uma prática panóptica; um campo próprio: instituições,<br />

laboratórios de pesquisa, um exército; próprio como a<br />

vitória do lugar sobre o t<strong>em</strong>po]. Então nenhuma<br />

delimitação de fora lhe fornece a condição de<br />

autonomia. A tática não t<strong>em</strong> por lugar senão o do<br />

outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é<br />

207 Sobre o t<strong>em</strong>a ver CERTEAU (2003, CAP. III: 91-106) e CERTEAU (1980). In: BLANCO, P. et al.<br />

(2001, p. 391-425).<br />

208 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p.99).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

imposto tal como o organiza a lei de uma força<br />

estranha. [...] ela opera golpe por golpe, lance por<br />

lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, s<strong>em</strong><br />

base para estocar benefícios, aumentar a propriedade<br />

e prever (sic) saídas. O que ela ganha não se<br />

conserva. Este não-lugar lhe permite s<strong>em</strong> dúvida<br />

mobilidade, mas numa docilidade aos azares do<br />

t<strong>em</strong>po, para captar no vôo as possibilidades oferecidas<br />

por um instante [...] É astúcia. Em suma, a tática é a<br />

arte do fraco. “Quanto mais fracas as forças<br />

submetidas à direção estratégica, tanto mais esta<br />

estará sujeita à astúcia” 209 .<br />

Dentro destes modos de operar certamente os artistas se val<strong>em</strong> de táticas,<br />

enquanto que o sist<strong>em</strong>a institucional da arte se vale de estratégias. Um ex<strong>em</strong>plo: na<br />

28º. Bienal de São Paulo, 2008, foi deixado vazio o segundo andar do edifício onde<br />

acontece o evento. Artistas-pichadores “inconformes” com tal decisão decidiram<br />

invadir (tática) o espaço e “praticá-lo” por meio de pichações. A instituição,<br />

simplesmente, “decidiu” a realização de performances (estratégia) para evitar<br />

“confusões”.<br />

Atualmente a reorientação da arte, adquire um sentido que se afasta das<br />

grandes utopias transformadoras através de um <strong>em</strong>preendimento individual. De<br />

acordo com Escobar,<br />

[A arte] já não pretende redimir a história n<strong>em</strong><br />

constituir-se, portanto, <strong>em</strong> discurso questionador, <strong>em</strong><br />

instrumento de denúncia social ou protesto político [a<br />

modo do ativismo dos anos 60]. Supõe, talvez, outras<br />

formas de contestação e de crítica que não alcançarão<br />

n<strong>em</strong> a revolução, n<strong>em</strong> a conciliação do sujeito com o<br />

objeto, n<strong>em</strong> a eclosão total a ideia, mas que ajudarão,<br />

mais uma vez, a mobilizar os significados sociais, a<br />

r<strong>em</strong>over as incógnitas, a nomear de sesgo [erro] o<br />

outro lado. A arte atual parece mais interessada <strong>em</strong><br />

renovar interrogantes que <strong>em</strong> provar transformações<br />

radicais ou oferecer fundamentos, explicações<br />

incondicionais e soluções definitivas. Hoje, os<br />

mecanismos da representação procuram [...] revelar<br />

<strong>em</strong> forma oblíqua e momentânea a intensidade, inútil<br />

quiçá, de uma mirada que faça estr<strong>em</strong>ecer a<br />

percepção do real s<strong>em</strong> esperar mudá-lo d<strong>em</strong>asiado 210 .<br />

Como pod<strong>em</strong>os nos movimentar neste espaço sócio-cultural? A quais táticas<br />

pod<strong>em</strong>os, <strong>em</strong> princípio, recorrer? Como nos inserimos nas novas práticas? A própria<br />

dinâmica destas práticas colaborativas permit<strong>em</strong> que, já de início, as consider<strong>em</strong>os<br />

209 Id<strong>em</strong>, Ibid<strong>em</strong> (p. 100-101).<br />

210 ESCOBAR (1997, p. 79, tradução nossa).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

como sendo dispositivos e aqui nos r<strong>em</strong>eter<strong>em</strong>os ao conceito que Foucault<br />

desenvolveu nos seus escritos, e que Deleuze 211 definiu como “dispositivo”:<br />

Uma espécie de novelo ou meada, um conjunto<br />

multilinear, cujas linhas segu<strong>em</strong> direções diferentes<br />

formando processos s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> desequilíbrio. Está<br />

composto por linhas de diferente natureza, que tanto<br />

se aproximam umas às outras quanto se afastam<br />

umas das outras. Cada linha está quebrada e<br />

submetida a derivações, sujeita a mudanças de<br />

direção. São linhas de visibilidade, de enunciação, de<br />

forças, de subjetivação, mas também por sua vez de<br />

rupturas, de fissuras, de fraturas, de crack, que se<br />

atravessam e se misturam enquanto umas suscitam<br />

outras por meio de variações ou até mutações de<br />

disposição. ‘Em todo dispositivo dev<strong>em</strong>os<br />

des<strong>em</strong>baraçar e distinguir as linhas do passado<br />

recente e às do atual, a parte da história e a parte do<br />

acontecer, a parte do analítico e a parte do<br />

diagnóstico’<br />

Dev<strong>em</strong>os de início considerar o dispositivo, no conceito foucaultiano, como<br />

sendo uma rede que estabelece certo tipo de relação entre os el<strong>em</strong>entos do mesmo,<br />

discursivos ou não; como um jogo de mudanças e posições, de modificações de<br />

funções que pod<strong>em</strong> também ser diferentes. Um jogo de forças, como estratégia de<br />

relações suportando tipos de saber, e suportadas por eles. Isto faz que<br />

compreendamos que contêm a idéia de algo organizado de determinada maneira.<br />

Até porque o termo “dispositivo” deriva do termo grego oikonomia que significa a<br />

organização da casa, do habitat 212 .<br />

Uma breve história neste momento não nos incomoda. Este termo foi usado na<br />

tradição teológica cristã ocidental para explicar a questão da Trindade (Pai, Filho e<br />

Espírito Santo) frente ao protesto do lado conservador da Igreja partidário da unidade<br />

que pensavam, com espanto, que se corria o risco de introduzir o politeísmo e o<br />

paganismo na fé cristã. Sendo assim, a explicação foi mais o menos a seguinte:<br />

Deus enquanto ser e substância é único, mas enquanto sua oikonomia, enquanto o<br />

modo como organiza sua casa, sua vida, e o mundo por ele criado, ele é triplo. Deus<br />

confia a seu Filho a “economia”, a administração e o governo da história dos homens<br />

(o termo oikonomia <strong>em</strong> forma particular significa a encarnação do Filho, a economia<br />

211 DELEUZE (1990).<br />

212 AGAMBEN, G. Qué es um dispositivo? Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Último acesso <strong>em</strong> 11 de nov. de 2008.<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

da redenção e a salvação; o Espírito Santo 213 ). Deste modo, a oikonomia se<br />

converteu no dispositivo através do qual foi introduzido o dogma tripartite na fé cristã.<br />

Mas a tradução, do termo grego oikonomia foi realizada pelos padres latinos<br />

utilizando a palavra “dispositio” derivado de dis-poner , dis-positio, dis-ponere<br />

(dispor).<br />

Hegel, segundo Agamben 214 , utilizará o conceito traduzindo-o para<br />

“positividade” e Heiddeger para “dis-positio”. Jean Hyppolite estuda Hegel e utiliza o<br />

termo positividade; Foucault, aluno de Hyppolite, utiliza a palavra dispositivo para<br />

estudar a relação entre os seres viventes e a história, <strong>em</strong>bora no início de seus<br />

estudos tenha utilizado o termo positividade como seu mestre.<br />

Agamben conhece esta genealogia do dispositivo e generaliza um pouco mais<br />

que Foucault,<br />

Nomearei literalmente dispositivo qualquer coisa que<br />

tenha de certo modo a capacidade de capturar,<br />

orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e<br />

assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os<br />

discursos dos seres viventes. Não somente [..] as<br />

prisões, os hospícios, o panóptico, as escolas, a<br />

confecção, as fábricas, as disciplinas, as regras<br />

jurídicas [...] também a lapiseira, a escrita, a literatura,<br />

a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os<br />

computadores, os celulares e –por que não?- a<br />

linguag<strong>em</strong> mesma, que é qu<strong>em</strong> sabe o mais antigo<br />

dos dispositivos 215 .<br />

Nos “inserindo” nessa genealogia, estamos também, utilizando o termo<br />

dispositivo e seu conceito básico de organização, para compreender pelo tratado até<br />

aqui, que projetos/processos <strong>em</strong> Arte Pública Atual se constitu<strong>em</strong> <strong>em</strong> dispositivos<br />

eficazes para desenvolver “plataformas de desejos”, apropriados para abrir canais de<br />

comunicação, ação e resultados diretos e imediatos num real possível.<br />

Canais de comunicação, segundo Laddaga 216 , facilitam a construção de<br />

“objetos fronteiriços” resultantes das ligações que surg<strong>em</strong> entre os<br />

projetos/processos e seu entorno. Objetos que, por sua vez, são objetos de<br />

exposições: <strong>em</strong> espetáculos postos à vista geral das pessoas e <strong>em</strong> sites, ao mesmo<br />

213 Lacan, <strong>em</strong> analogia, dirá: O Espírito Santo é a entrada do significante no mundo. LACAN (1995, p.<br />

45).<br />

214 AGAMBEN (op. cit, loc cit).<br />

215 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong>.(tradução nossa).<br />

216 LADDAGA (2007, p. 280).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong> cujo redor se manifestam diferentes níveis de comunicação. Poderíamos<br />

também colocar os que chamar<strong>em</strong>os de “objetos aglutinantes”, objetos como o<br />

Orocongo (instrumento musical regional) que se constitui como um dispositivo dentro<br />

do projeto/processo Orocongo-Saber por circular nos meandros das atividades, como<br />

gatilho de associações de fazeres, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se viabiliza o desejo<br />

chefe do processo: “Tocar o orocongo no Machu Pichu”. Um desejo possível entre<br />

tantos outros que vão surgindo e que faz com que consider<strong>em</strong>os Orocongo-Saber<br />

(SC-Brasil) uma “plataforma” de desejos. No projeto A Baleeira, o objeto baleeira se<br />

constitui também como dispositivo gatilho, como objeto aglutinante.<br />

Por que falar de plataformas? Uma das definições de plataforma nos<br />

dicionários diz que ela é “uma parte plana das estações ferroviárias para <strong>em</strong>barque e<br />

des<strong>em</strong>barque dos passageiros”, que é o mesmo que dizer: um dispositivo que nos<br />

facilita realizar alguma coisa, que nos coloca no movimento, nos envolve na ação e<br />

nos incentiva a realizar ações. L<strong>em</strong>bramos que, no sentido foucaultiano, dispositivo<br />

corresponde a uma série de práticas e mecanismos com o objetivo de fazer frente a<br />

uma urgência e de conseguir um efeito.<br />

Por analogia pensamos os projetos/processos, também, como dispositivos-<br />

plataformas que nos faz<strong>em</strong> pensar <strong>em</strong> possibilidades outras tendo como raiz o<br />

desejo. Agamben diz que, na raiz de cada dispositivo está um desejo de felicidade. E<br />

a captura e subjetivação desse desejo, numa atmosfera separada, constitu<strong>em</strong> a<br />

potência específica do dispositivo 217 .<br />

Os dispositivos precisam “cumprir” com algumas condições para se<br />

constituír<strong>em</strong> como tais, e para especificá-las nos r<strong>em</strong>eter<strong>em</strong>os à análise que<br />

Deleuze 218 fez através da teoria de Foucault. Estes dispositivos dev<strong>em</strong> ter duas<br />

dimensões: de “visibilidade” e de “enunciação”. Dentro da primeira função<br />

encontramos as linhas curvas de visibilidade (curvas como meandros) cuja função é<br />

fazer ver, fazer visível. Sendo assim, cada dispositivo t<strong>em</strong> seu próprio regime de luz.<br />

Lacan via Merlau Ponty, diz que o olhar está diretamente ligado à função da luz. E<br />

nesta dimensão de visibilidade que iniciamos, pelo dispositivo, o exercício da<br />

experiência. As enunciações, por sua vez, r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> para linhas curvas de<br />

enunciação, nas quais se distribu<strong>em</strong> as diferenças de seus el<strong>em</strong>entos. Sua função é<br />

a de fazer falar através de um regime de enunciação concreto; estas linhas<br />

217 AGAMBEN (ibid<strong>em</strong>).<br />

218 DELEUZE (1990, p. 155-165).<br />

118


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

determinam deste modo, o espaço do que pode ser dito no campo de um dispositivo<br />

dado.<br />

Em relação às linhas de força, estas se situam a partir das outras duas, de um<br />

ponto singular a outro, tentam retificar as anteriores, traçam tangentes, envolv<strong>em</strong> os<br />

trajetos de uma linha para outra, operam idas e vindas entre o ver e o dizer,<br />

penetram nas coisas e nas palavras. Estas linhas de força acrescentam a terceira<br />

dimensão que permite ocupar um determinado lugar num espaço específico,<br />

adotando uma forma concreta, invadindo a interioridade desse espaço, ou seja, o<br />

atravessam regulando, deste modo, o tipo de relações que pod<strong>em</strong> se produzir.<br />

Finalmente, nos deparamos com linhas de subjetivação a nível individual que<br />

descrev<strong>em</strong> as condições <strong>em</strong> que se converte <strong>em</strong> sujeito/objeto de conhecimento.<br />

Defin<strong>em</strong> processos e funcionam como linhas de fuga: se evade às linhas anteriores,<br />

foge. O “si-mesmo” não é n<strong>em</strong> um saber n<strong>em</strong> um poder. É um processo de<br />

individuação que diz respeito a grupos ou pessoas, e escapa às forças<br />

estabelecidas como a dos saberes instituídos.<br />

Não é verdade que todo dispositivo disponha de um processo s<strong>em</strong>elhante, o<br />

próprio Deleuze coloca 219 . Sendo assim dev<strong>em</strong>os nos perguntar, como já o fiz<strong>em</strong>os<br />

outras vezes neste texto: que modo de fazeres realizamos? Que subjetividades<br />

produzimos com eles? Como nos compromet<strong>em</strong>os no aqui-agora? A leitura de<br />

escritos de participantes <strong>em</strong> projetos/processos <strong>em</strong> Arte Pública que relatam suas<br />

experiências nos mesmos, como um bom celeiro, é uma forma apropriada para,<br />

através dela, encontrar respostas, puxar fios da meada, <strong>em</strong>aranhar e des<strong>em</strong>aranhar<br />

linhas e iniciar caminhos novos, com novas formas de exercitar o olhar/experiência.<br />

A forma de desenvolvimento das atividades, de modo geral nestes<br />

projetos/processos se realiza a s<strong>em</strong>elhança das programações <strong>em</strong> fonte aberta, a<br />

ex<strong>em</strong>plo do sist<strong>em</strong>a Linux, onde a produção entre colegas está baseada <strong>em</strong> retornar<br />

um conjunto não limitado de recursos disponíveis para um conjunto limitado de<br />

agentes, que pod<strong>em</strong> dedicar-se a um conjunto não limitado de projetos. Desenfatiza-<br />

se deste modo, a figura da profissão. As pessoas que ingressam no circuito não o<br />

faz<strong>em</strong> tanto como especialistas que dedicam todo o t<strong>em</strong>po ao projeto. Isto é facilitado<br />

por uma diversidade de níveis aceitáveis de participação que determinam um sist<strong>em</strong>a<br />

complexo de relações sociais, valores, expectativas e procedimentos.<br />

219 DELEUZE (1990).<br />

119


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Os projetos/processos Vinho-Saber, A Baleeira e Orocongo-Saber, são<br />

representantes diretos deste sist<strong>em</strong>a. Aglutinando pessoas de diferente locais (da<br />

cidade, das vilas de pescadores, das favelas, de escolas; da universidade); como de<br />

diferentes áreas “profissionais” (pescadores, estudantes, vídeos-animadores,<br />

artesãos, engenheiros, professores, professoras, músicos, técnicos, designers,<br />

artistas e não-artistas, entre outros) participam <strong>em</strong> grupos que se articulam segundo<br />

as atividades a desenvolver para dinamizar as proposições locais que logo se<br />

estabilizam como pequenas ou breves ecologias culturais, justamente por trabalhar<br />

num sist<strong>em</strong>a multilinear de práticas.<br />

As ecologias culturais, por apresentar<strong>em</strong> uma abordag<strong>em</strong> ecológica no que diz<br />

respeito ao próprio processo que concebe as transformações sócio-culturais pelo<br />

“evolucionismo multilinear” (Steward) e não linear, n<strong>em</strong> tampouco sistêmico, reforçam<br />

a concepção “ecológica” da cultura como um referencial dinâmico, muito sensível a<br />

mudanças extra culturais, que as caracterizam como sist<strong>em</strong>as “abertos” 220 que se<br />

manifestam diretamente pelo modo de trabalhar, de fazer.<br />

Este modo de trabalhar que vamos chamar-lo aqui também, <strong>em</strong> “fonte aberta”<br />

(open source), viabiliza a reflexão constante entre os participantes e, de acordo com<br />

Laddaga, é aqui onde se ensaia a gestão do comum, que não depende de modelos<br />

de coletivização disciplinarios. Mas, depende de como as linhas constitutivas dos<br />

dispositivos vão se deslizando dentro um espaço-t<strong>em</strong>po possível e permitindo que<br />

desejos e subjetividades concebam novos sentidos ecológicos à realidade.<br />

Por que ecológicos? Não faz mal l<strong>em</strong>brar que a palavra ecologia deriva da<br />

palavra grega oikos que significa morada, casa, habitação. Logo a palavra ecologia é<br />

oikos (habitação) + logos (conhecimento) = o estudo das habitações, do habitat. Se<br />

deduz disto que, sendo a ecologia cultural o estudo da rede de relações que exist<strong>em</strong><br />

entre as comunidades ou sociedades humanas e os seus ambientes humanos, 221 os<br />

projetos/processos aqui referendados como Arte Pública Atual se constitu<strong>em</strong><br />

também, como ecologias culturais ou dispositivos-habitat.<br />

A diferença de sentidos dada à realidade torna-se uma questão ético-política,<br />

como atitude política, que possibilita olhar o mundo de uma ou outra forma. Pod<strong>em</strong>os<br />

compreender as diferenças de sentidos como teorizações parciais, dentro de uma<br />

compreensão maior do pensamento do hom<strong>em</strong> e de suas atitudes quando estas não<br />

220 Sobre Ecologia Cultural ler: VIERTLER (1998).<br />

221 VIERTLER (1998, p. 22).<br />

120


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

só se articulam a partir de si, mas <strong>em</strong> relação com, numa comunhão de destinos<br />

humanos favorecida pela experiência solidária que se pratica no anonimato dos<br />

lugares não instituídos.<br />

“Não há mais análise social que possa fazer economia de indivíduos, n<strong>em</strong><br />

análise dos indivíduos que possa ignorar os espaços por onde eles andam” 222 . Isto<br />

leva a concordar com Brenson 223 a respeito de que as provações e dramas vividos<br />

por artistas que trabalham na Esfera Pública não são externos, mas participam de<br />

uma interioridade inerente às provações e dramas de nossas vidas individuais e<br />

coletivas. Mais ainda, que o êxito ou fracasso desse tipo de projetos é um probl<strong>em</strong>a<br />

humano, não só da arte e onde os fracassos pod<strong>em</strong> ser instrutivos, tanto quanto os<br />

êxitos, se os consideramos como indicadores de qu<strong>em</strong> somos e dos mundos <strong>em</strong> que<br />

viv<strong>em</strong>os.<br />

Esta atitude ético-política permite pensar a individualidade por meio de<br />

diferentes determinantes e não mais autônoma; ocorrência que Lacan compreendia e<br />

revelava através de sua teoria do Sujeito, como coloca Valladares de Oliveira 224 ,<br />

Há <strong>em</strong> Lacan uma reflexão filosófica, uma teoria do<br />

Sujeito, uma teoria da liberdade que mostra que não<br />

somos submetidos a comportamentos. Mesmo sendo<br />

determinados pelo inconsciente, t<strong>em</strong>os acesso a algo<br />

da ord<strong>em</strong> inconsciente por meio da linguag<strong>em</strong>, somos<br />

livres de escolha e não reduzidos a tratamentos<br />

mecânicos [...] o hom<strong>em</strong> é produzido por sua história,<br />

por seu meio ambiente, por seu psiquismo, não existe<br />

apenas um determinante. (<br />

Os processos de mudanças se dão como um trocar de pele, como t<strong>em</strong>os dito<br />

outras vezes. Cada pele cultural é definida por vários motivos que, identificados, nos<br />

permit<strong>em</strong> analisar certos posicionamentos. Hoje parece que estamos trocando a<br />

pele onde os motivos são questões de vida. A realidade viva é relacional, composta<br />

de sist<strong>em</strong>as interligados e a mudança é seu ingrediente intrínseco; a incerteza<br />

resulta deste modo, inerente a seu funcionamento.<br />

T<strong>em</strong>os que nos conscientizar ficando atentos, como Argus, aos momentos no<br />

qual o sist<strong>em</strong>a instituído, não desinteressadamente, se apropria das subjetividades<br />

222 AUGÉ (2007, p.110).<br />

223 BRENSON (1998).<br />

224 VALLADARES DE OLIVEIRA (2005).<br />

121


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

manifestas e as utiliza <strong>em</strong> benefício próprio, já que estas se produz<strong>em</strong> por<br />

“reconhecimento”. É quando dev<strong>em</strong>os levantar ancora e navegar, provavelmente<br />

nos dias de hoje, não tanto contra a corrente, como Lacan colocava, mas “nela”, que<br />

não é outra coisa, senão, a constante articulação de nosso Simbólico, o Imaginário e<br />

o Real na realidade imediata.<br />

Nosso olhar/experiência momentaneamente cego, como Tirésias, desperta.<br />

122<br />

Olho o mundo, mas o mundo também me olha.<br />

Jacques Lacan


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Uma ecosofia de um tipo novo,<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po prática e especulativa, ético-política e estética,<br />

deve a meu ver substituir as antigas formas de engajamento religioso, político, associativo...<br />

123<br />

Félix Guattari<br />

E a Arte? É possível saber se “É”, se “Se Faz”, se “Está”, se “Nós Faz”? É<br />

Fio? É o fio de Trama, ou é fio de Urdume? É todo e tudo isso? Sab<strong>em</strong>os, quase<br />

naturalmente, que no jogo da articulação dos significantes manipulamos e<br />

desenvolv<strong>em</strong>os percepção, afeto, novos conceitos/significantes vindos do Outro<br />

como, também, muitas vivências/significantes que apreend<strong>em</strong>os <strong>em</strong> nosso cotidiano<br />

nesse jogo de interação.<br />

Zonas de intermediação e lugar possível da criação que abr<strong>em</strong> o caminho<br />

para pensar a subjetividade como “possibilidade de”. Impulsionada pelo desejo essa<br />

criação se apresenta organizando um vazio, uma falta (mola propulsora) deixada por<br />

um significante. Como mostrar um vazio? se perguntará Didi-Huberman.<br />

Existindo nessa criação uma conscientização criativa, a nível interpretativo,<br />

isto fez com que Lacan considerasse que a arte é da ord<strong>em</strong> do “não interpretável”<br />

porque já é uma interpretação a nível do articulável 225 . Existe arte,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, quando há conscientização. O grau dessa conscientização-<br />

intencionalidade é que pode ser diferente (por vezes tão mínimo ou oculto que<br />

pensamos na possibilidade de total ausência da mesma) o que faz que várias<br />

polêmicas se instaur<strong>em</strong> sobre possíveis especificações.<br />

Os novos olhares na Arte Pública Atual se fundamentam nas mudanças de<br />

paradigmas que se desenvolveram desde o Pós-modernismo. A busca<br />

”arqueológica”, como diria Foucault, que fiz<strong>em</strong>os neste texto pelos meandros das<br />

manifestações comportamentais, as motivações e mudanças do fazer dos sujeitos,<br />

teve como finalidade nos consentir certas reflexões sobre algumas causas e<br />

conseqüências das práxis, saberes e meios de “dispor” da realidade.<br />

Um novo protagonismo é dado hoje à cultura como conseqüência das novas<br />

economias do capitalismo pós-fordistas baseadas <strong>em</strong> formas de trabalho i(material),<br />

colaborativo e afetivo. A partir de então, além de nos depararmos com novas<br />

225 BROUSSE (2006). In: RECALCATI, M. et al (2006, p. 86).


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

modelizações do fazer, nos deparamos com que a própria subjetividade está imersa<br />

no processo capitalista. Aqui ela é colocada <strong>em</strong> ação, ela “faz” e “se faz” por meio de<br />

interações <strong>em</strong> “fonte aberta” (open source) coletivo-colaborativas. Ações e<br />

interações que ag<strong>em</strong> local e globalmente quando permit<strong>em</strong> que estas ações se<br />

articul<strong>em</strong> por meio das redes virtuais ou seus resultados se disponibiliz<strong>em</strong> através<br />

delas pela comunicação via sites, blogs, imagens e textos virtuais que, ao<br />

diss<strong>em</strong>iná-las, despertam desejos e ações novas. Existe, por conseguinte a<br />

presença de uma “potencialidade de ação”.<br />

Hoje é impossível ignorar este fato e não considerá-lo ao praticar nossa<br />

experiência. Quando agimos localmente, por meio dos projetos/processos como os<br />

de Arte Pública Atual, dev<strong>em</strong>os encontrar métodos significativos e relevantes que<br />

nos mostr<strong>em</strong> a possibilidade de encontrar novos sentidos à realidade e que, por sua<br />

vez, desencadei<strong>em</strong> mudanças significativas. Não dev<strong>em</strong>os esquecer que métodos<br />

<strong>em</strong> “fonte aberta” (open source) também são utilizados pelo sist<strong>em</strong>a para conseguir<br />

fins n<strong>em</strong> tão lícitos, n<strong>em</strong> que favoreçam a <strong>em</strong>ergência de subjetividades tais que<br />

venham a nos fazer perceber de onde estamos, do que faz<strong>em</strong>os e de qual nossa<br />

responsabilidade hoje e para um futuro próximo.<br />

A conscientização de uma visão ecológica ampla sobre o meio ambiente, o<br />

meio social que nos cabe viver, como também, sobre os modos de produção de<br />

subjetividades é um fator de maior importância. Ética, atitude política e ação direta<br />

são instâncias necessárias para caracterizar modos de ver, de fazer e de sentir,<br />

modos de constituir nosso olhar/experiência que é o substrato latente de nossa<br />

forma de viver.<br />

O desafio maior da Arte Pública Atual parece ser o de uma política do espaço<br />

como um lugar praticado, utilizando a expressão de Certeau, e de como legitimar<br />

espaços-outros, que se instauram como territoriedades que t<strong>em</strong> a ver com<br />

“consciência de localização” que, como diz Laddaga 226 , prescinde de toda<br />

dramaturgia do autóctone. Estes espaços se institu<strong>em</strong> pela irreversibilidade de um<br />

viver <strong>em</strong> comum, <strong>em</strong> laboratórios ao ar livre onde a experiência e experimentações<br />

têm lugar <strong>em</strong> público. Lugar no qual um coletivo concretiza fabulações e realidades,<br />

regula interdependências, descobre possibilidades de territorialização e entreabre o<br />

226 LADDAGA (2007, p. 285).<br />

124


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

território produzido, constituindo, assim, verdadeiras ecologias culturais, segundo o<br />

autor citado.<br />

Trabalhando com dispositivos espaço-t<strong>em</strong>po, com dispositivos-habitat,<br />

artistas e não-artistas, organizam novos modos de fazer, geralmente ocasionados<br />

pela imanência de “<strong>em</strong>ergências” realizadas por ações simples que quando se<br />

juntam <strong>em</strong> campos de atividade e impacto, que nenhum exame delas por separado<br />

tivesse permitido antecipar, ocasionam “turbulências” nos sist<strong>em</strong>as instituídos 227 . As<br />

atividades dos processos se desenvolv<strong>em</strong> a partir do que “<strong>em</strong>erge”, dando lugar a<br />

uma transformação do extr<strong>em</strong>amente improvável que é uma característica maior que<br />

exib<strong>em</strong> fenômenos <strong>em</strong>ergentes 228 .<br />

Se no Pós-modernismo começa a se manifestar uma arte como sintaxe, como<br />

texto, através do qual se viabiliza o inter-jogo entre artista e espectador-leitor, esta<br />

Arte Pública Atual, como projeto/processo, não está mais preocupada com um lugar<br />

após o outro (Kwon), mas sim com um lugar dentro do lugar ou de um lugar dentro<br />

de outro lugar (Rubens Mano). Não mais o exercício da leitura e sim, além disso, se<br />

deixar estar na <strong>em</strong>ergência que possibilita um espaço de performação 229 (Regina<br />

Melim) e experimentação no qual, artistas e não-artistas estamos “imersos” 230 .<br />

Mudou, portanto o critério de definir a especificidade da arte e do público, dois<br />

termos recorrentes no debate cultural, mas não por isto simples e de significado<br />

evidente. A especificidade pública da arte parece ser um fato aceito, já que s<strong>em</strong>pre<br />

se considerou a arte como uma atividade pública no sentido de confrontar, no<br />

debate cultural, diferentes discursos a respeito de sua especificidade artística. Já,<br />

<strong>em</strong> relação ao público perceb<strong>em</strong>os que, a respeito de seu significado, há quase a<br />

idéia central de que os públicos são formas de agrupação social que se organizam<br />

entorno a discursos específicos de forma a refletir sobre seus conteúdos. Artistas<br />

que teorizam sobre arte, por vezes, escreveram sobre “o público”, <strong>em</strong> relação à sua<br />

227 Ver mais sobre o conceito <strong>em</strong>ergências <strong>em</strong> LADDAGA (2007, p. 287).<br />

228 HOLLAND (1998) apud LADDAGA (2006, p. 288).<br />

229 Espaço de performação: uma situação que surge do encontro do espectador com a obraproposição,<br />

possibilitando a criação de um espaço relacional ou comunicacional [...] uma tentativa<br />

constante de vislumbrar uma obra como deflagradora de um movimento participativo e que existe não<br />

como obra pronta, fechada <strong>em</strong> si como materialidade silenciosa, mas como superfície aberta e<br />

distributiva (MELIN, 2008, p. 61).<br />

230 Ver KWON, M. Um lugar após o outro: anotações sobre site specificity. Revista October 80, 1997;<br />

RUBENS MANO. Um lugar dentro do lugar. Revista Urbânia 3, 2008; MELIM, R. Performance nas<br />

artes visuais. RJ:Zahar, 2008.<br />

125


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

orig<strong>em</strong> e seu grau de participação nas práticas artísticas; chegaram a fazer uma<br />

tipologia do mesmo, como fez Paloma Blanco <strong>em</strong> Explorando el terreno 231 .<br />

Atualmente não precisamos mais medir a especificidade da arte pela razão<br />

instrumental; a materialidade e formatividade não mais se limitam à matéria orgânica<br />

e ao formalismo. A primeira, a materialidade, beira os limites da significância do<br />

significante, é algo sensível, algo que escapa ao discurso direto, mas que se mostra<br />

como dispositivo, como potencialidade de algo-a-ser. A segunda, a formatividade,<br />

fala mais dos componentes estruturais, como figura-forma, como o lugar a partir do<br />

qual desfaz<strong>em</strong>os a matéria e dimensionamos as relações. Bourriaud <strong>em</strong> Estética<br />

Relacional 232 fala de Forma Relacional. No grupo de pesquisa Arte e Vida nos<br />

limites da representação falamos de Forma Relacional Complexa.<br />

Materialidade e formatividade estão num jogo constante de fazeres e<br />

desfazeres nos modos da Arte Pública Atual como projeto/processo. Por meio de<br />

dispositivos de ord<strong>em</strong> dialética é possível dar a conhecer as “qualidades”, ou seja,<br />

permitir a “visualidade” dos fundamentos e conseqüências da forma relacional<br />

através de processos desconstrutivos-construtivos, os quais <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> no exercício<br />

do olhar/experiência numa arte vivida e produzida ética e politicamente.<br />

O público, nestes projetos/processos, não é alguém que está por chegar, mas<br />

se constitui sobre o próprio processo discursivo e no ato da convocação. Não há a<br />

preocupação de “categorias”, há necessidades, procuras, desejos a ser<strong>em</strong><br />

efetivados, perante os quais as pessoas participantes se ader<strong>em</strong>, se identificam. O<br />

público é de uma mobilidade constante, mas é preferível uma multiplicidade de<br />

públicos que uma única esfera pública, já que no contexto dialógico de múltiplos<br />

públicos, um espaço autônomo <strong>em</strong>pobrece a experiência e banaliza a crítica, e toda<br />

experiência cultural é eliminada <strong>em</strong> favor de uma participação duvidosa que,<br />

facilmente é induzida nos modos de pensar, tornado o espaço heterogêneo.<br />

Em relação à especificidade pública dos projetos/processos <strong>em</strong> Arte Pública<br />

Atual e a dificuldade de identificar estes como “públicos”, Carla Zaccagnini 233 faz<br />

uma reflexão apropriada dizendo que,<br />

231 BLANCO (2001, p. 23-50).<br />

232 BOURRIAUD (2006).<br />

233 ZACCAGNINI (2005, p.6).<br />

126


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

[...] possam se chamar de públicos não por estar<strong>em</strong><br />

<strong>em</strong> lugares abertos de acesso a várias pessoas e de<br />

uso comum, mas por estabelecer<strong>em</strong> uma esfera de<br />

discussão que vá além de círculos limitados de<br />

relações pessoais ou por interesses e repertórios<br />

específicos do circuito de arte. Públicos por nos dizer<br />

respeito e para além do questionamento ou da<br />

afirmação de novos e tradicionais paradigmas<br />

artísticos. Públicos por ser<strong>em</strong> capazes de encontrar<br />

reflexos, ecos, possibilidades de encaixe para<br />

construção de sentido de experiências anteriores que<br />

os compl<strong>em</strong>ent<strong>em</strong> nas diferentes pessoas que<br />

cruzam uma mesma rua, cada qual <strong>em</strong> seu caminho.<br />

Públicos como as catástrofes naturais, talvez.<br />

Se o artista do Modernismo aparecia como artista possuidor de qualidades<br />

específicas que o intitularam como “gênio” e era indissolúvel de sua obra, o artista<br />

do Pós-modernismo, chamado “de papel” por Barthes, é um artista “tácito” já que<br />

s<strong>em</strong>pre está suposto <strong>em</strong>bora pouco visível; preocupava-se com uma sintaxe, e sua<br />

função supunha um modo de reunir textos e um modo de separá-los.<br />

Mas hoje, onde está o artista neste projetos/processos de Arte Pública Atual?<br />

Os artistas que iniciam e participam destes projetos/processos se propõ<strong>em</strong>, antes<br />

que mais nada, desenvolver, articular e intensificar a cooperação para dar<br />

visibilidade, para “materializar” um objetivo específico que varia e intensifica a<br />

cooperação social. A eficácia do “inicio de operação” requer presença constante do<br />

artista como um propositor-mediador no marco do qual se expõe como “pessoa”. Isto<br />

favorece a abertura necessária para que outros artistas e não-artistas comec<strong>em</strong> a se<br />

envolver com sua idéia e dar orig<strong>em</strong> ao processo de co-participação colaborativa. Na<br />

medida <strong>em</strong> que os participantes vão se integrando à proposição o sujeito/artista vai<br />

dando lugar ao, aqui denominado, de “sujeito/artista/pessoa” envolvido no processo<br />

de alterar e produzir subjetividades, como um “mediador e articulador” de situações<br />

de encontro e devires; como um “provocador” capaz de criar táticas atingindo ao<br />

grupo e ao individuo. Táticas capazes de gerar expectativas e ações.<br />

Se o artista do modernismo permanecia na “lateralidade” 234 da participação<br />

comunitária e inserido no sist<strong>em</strong>a legitimador da arte, o artista atual que trabalha<br />

hoje <strong>em</strong> projetos/processos está, s<strong>em</strong> dúvidas, incluído na comunidade, no comum<br />

ordinário do dia-a-dia, no fazer com e junto com outros onde se refaz<br />

234 O Dr. Luiz Sérgio de Oliveira enfatizou esta diferença de “posicionamento" do artista (exclusão da<br />

comunidade ou inclusão na mesma) na data de apresentação desta dissertação à Banca<br />

Examinadora.<br />

127


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

constant<strong>em</strong>ente como sujeito. Estamos, assim, ante a presença de um<br />

deslocamento do referente “objeto”, da arte mais tradicional, para um referente<br />

“sujeitos/pessoas”. Nos deslocamos de um âmbito objetual para nos localizar num<br />

âmbito relacional processo ao qual, nesta análise dissertativa, conceitualizamos<br />

como “[des]locamento referencial”.<br />

Porém, como o “sujeito/artista/pessoa” se legitima numa prática artística<br />

complexa? Os projetos/processos despertam uma consciência de gerar<br />

<strong>em</strong>poderamento, enfatiza Kinceler 235 , quando o sujeito/artista/pessoa se reconhece<br />

como detentor de um saber, ou de recursos que lhe permit<strong>em</strong> animar certas ações<br />

que colaboram para o desenvolvimento dos processos. Muito além de ser um<br />

retorno ao individualismo, este <strong>em</strong>poderamento é relacional na medida <strong>em</strong> que<br />

devêm da percepção que o sujeito/artista/pessoa t<strong>em</strong> de suas interações com os<br />

ambientes e as d<strong>em</strong>ais pessoas. Dita consciência resulta <strong>em</strong> articulações e<br />

processos criativos <strong>em</strong> sintonia com formas de pensar e existir, que ao estar<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

fluxo com o t<strong>em</strong>po vivido provocam descontinuidades na prática da realidade. Assim<br />

sendo, contaminam, já que uma descontinuidade altera, manipula e cria<br />

significâncias. Deve-se deixar que a aproximação aconteça e que as tensões se<br />

apresent<strong>em</strong>. A estas duas condições, <strong>em</strong>poderamento e contaminação, o autor<br />

citado, acrescenta o encantamento que nos baliza perante nosso próprio desejo e<br />

que afeta nossa subjetividade. Ele é uma pausa dinâmica na realidade capaz de<br />

provocar devires por acontecer quando os planos que conformam o jogo<br />

representacional têm desestabilizadas suas áreas, de conforto e saberes. Uma<br />

proposta quando encanta permite a seu mentor rever as formas de entender o<br />

mundo e reinventar o cotidiano. Estamos assim perante o lugar da “marca” deixada<br />

pelo que há de mais particular, de mais íntimo no ser humano. Marca como a<br />

“chuva”, ao dizer de Lacan 236 , que depende da universalidade do Outro, da qual<br />

chove significado e goce, mas sua existência material sobre a terra é um fato<br />

absolutamente singular; fruto de uma contingência inassimilável respeito a qualquer<br />

determinação significante. É o lugar do “ato de nomear”, o lugar do sinthoma, o lugar<br />

de fazer laço, o lugar do ser do sujeito.<br />

235<br />

KINCELER (2008). Este autor recorre ao conceito básico de Spreitzer sobre <strong>em</strong>poderamento<br />

individual.<br />

236<br />

Ver Apêndice I, sobre o conceito de Sinthoma (p. 149 -156) e de “chuva” (p.156) <strong>em</strong> Lacan.<br />

128


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Pod<strong>em</strong>os concordar, pelo visto nesta reflexão, com o pensamento de Grant<br />

Kester 237 , de que estes projetos/processos nos desafiam a reconhecer novos modos<br />

de experiência estética e novas grades para pensar a identidade por meio de trocas<br />

densamente texturizadas, hápticas e verbais que ocorr<strong>em</strong> nos processos de<br />

interação colaborativa. A prática artística através de projetos/processos não<br />

ambiciona mais explicar histórias 238 . Deseja, acreditamos, criar dispositivos-habitat,<br />

criar situações; possibilitar a imanência de formas duradouras de associação <strong>em</strong><br />

coletividades heterogêneas e nas quais possa “se fazer” a história. Criar<br />

narratividades que facilit<strong>em</strong> a experiência como Erfahrung (Benjamin), por estar<br />

situada no intervalo entre o coletivo e o singular, entre o que é do conhecimento<br />

estabelecido pela tradição e aquele que irrompe fazendo um furo no que se<br />

configura como perfeitamente estabelecido. Um intervalo que permite que algo nos<br />

aconteça. Um intervalo que favorece que algo se faça visível 239 .<br />

O conceito de pensamento alargado, como chama Luc Ferry 240 , parece vir ao<br />

encontro do aqui refletido. Este pensamento, afastando-se da escolha entre um<br />

pluralismo de fachada e a renúncia de suas próprias convicções, s<strong>em</strong>pre nos<br />

convida a resgatar o que uma visão de mundo diferente da sua pode ter de<br />

verdadeiro, aquilo que pode nos levar a compreendê-la, ou mesmo a assumi-la <strong>em</strong><br />

parte. Consideramos, pelo aqui refletido, que nestes projetos/processos da Arte<br />

Pública Atual a “arte se faz no tecido de um comum partilhado”.<br />

.<br />

129<br />

Ana Hmeljevski<br />

Inverno de 2009<br />

Comunidade’ é nos dias de hoje outro nome do paraíso perdido – mas a que esperamos ansiosamente<br />

retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos que pod<strong>em</strong> levar-nos até lá.<br />

Zygmunt Bauman.<br />

237 KESTER(2000_?).<br />

238 Dev<strong>em</strong>os levar <strong>em</strong> conta que a História da Arte (disciplina “recente”) s<strong>em</strong>pre legitimou a<br />

implantação de valores por meio da catalogação de obras de arte “monumentos” de ditos valores.<br />

239 Ver MELLO e SOUSA (2005).<br />

240 FERRY(2007, p. 299).


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

APÊNDICES<br />

APÊNDICE I – Conceitos básicos da teoria lacaniana <strong>em</strong> torno à noção de Sujeito<br />

produzido na e pela linguag<strong>em</strong>.<br />

APÊNDICE II – Dois breves recortes específicos.<br />

139


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

APÊNDICE I<br />

Porque somos fundamentalmente seres olhados no espetáculo do mundo<br />

S<strong>em</strong>pre há outro que desde algum lugar nos olha.<br />

140<br />

Gerard Wacjman<br />

1.1 EM TORNO 241 À NOÇÃO DE SUJEITO PRODUZIDO NA E PELA LINGUAGEM<br />

Para poder compreender o Sujeito que se constitui no âmbito da linguag<strong>em</strong> e,<br />

também, seus modos de ver, de fazer e de sentir, nos r<strong>em</strong>eter<strong>em</strong>os a algumas<br />

pautas prescritas <strong>em</strong> relação aos motivos de descentramento do sujeito unificado.<br />

A partir de Freud se considera o Inconsciente como ocorrência certa <strong>em</strong><br />

relação à vida subjetiva e psíquica do sujeito. Esta descoberta-conceitual age<br />

diretamente sobre o pensamento discursivo <strong>em</strong> diferentes áreas disciplinares.<br />

Jacques Lacan, médico e psicanalista francês, se colocou na linha da frente na<br />

reeleboração do pensamento freudiano quando, <strong>em</strong> 1953, “retorna a Freud” para<br />

retomar este conceito freudiano fundamental e integrá-lo a sua teoria.<br />

O probl<strong>em</strong>a central de Freud na sua vida parece ter sido provar a existência do<br />

Inconsciente, principalmente através do estudo dos sonhos. Já o de Lacan foi o<br />

estudo do Inconsciente da maneira como é constituído: estruturado como uma<br />

linguag<strong>em</strong>.<br />

[...] cumpre destacar que uma das preocupações<br />

constante de Lacan foi a de trabalhar no sentido da<br />

restauração da originalidade freudiana da experiência<br />

do inconsciente, sob a égide de uma hipótese tão<br />

audaciosa como esta: o inconsciente é estruturado<br />

como uma linguag<strong>em</strong>. Pode-se mesmo tomar esta<br />

hipótese como a mais fundamental para toda a<br />

elaboração teórica lacaniana, na medida <strong>em</strong> que esta<br />

preposição pressupõe e encarna o sentido do retorno<br />

241 Em torno significa neste subtítulo, que os t<strong>em</strong>as aqui tratados não fecham todas as considerações<br />

sobre os mesmos, por não ser a teoria lacaniana o t<strong>em</strong>a central desta pesquisa e sim, a que nos<br />

provê de fundamentos importantes, aqui recortados, para a compreensão do t<strong>em</strong>a principal desta<br />

dissertação.


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

a Freud que Lacan não cessou de indicar desde o<br />

início de seu ensino 242 .<br />

Deste objetivo principal surgiram outras derivações importantes como as que<br />

diz<strong>em</strong> respeito à constituição do sujeito; da formação do Eu no olhar do Outro; de<br />

suas identificações e do campo possível de experiências subjetivas e intersubjetivas;<br />

como também, do campo da articulação dos Registros Referenciais Humanos: Real,<br />

Imaginário e Simbólico (RIS).<br />

De forma paralela, Lacan se dedicou à procura de um modelo psicanalítico<br />

que não estivesse fechado dentro da peculiar oposição entre individual-coletivo;<br />

tampouco atrelado à dependência da família tradicional com sua ideologia de<br />

individualismo e suas categorias de sujeito; mas também, como no caso da literatura,<br />

à relação sujeito-personag<strong>em</strong>. Um modelo capaz de pensar estas descontinuidades<br />

de um modo radicalmente diferente. Para desenvolver sua teoria, Lacan recorreu,<br />

além de Freud, à Lingüística Moderna e ao conceito de estrutura que vinha se<br />

manifestando através das ciências sociais.<br />

A aproximação à Lingüística Moderna, como desenvolvida por Saussure, lhe<br />

permitiu resolver, por meio de analogias e reformulações, o reconhecimento do<br />

Sujeito que se constitui como um “operador de significantes”. Lacan realizou para<br />

esta finalidade um recorte particular sobre o “signo” e seus componentes, o<br />

significante e o significado. Recorreu ao conceito de “estrutura”, desenvolvido pelo<br />

Estruturalismo 243 , (um movimento intelectual homogêneo na França nas décadas 50<br />

e 60) para resolver probl<strong>em</strong>as específicos respeito ao Inconsciente. Probl<strong>em</strong>as que<br />

são de um interesse particular <strong>em</strong> relação à psicanálise e referenciais mais amplas<br />

para outras linhas de pesquisa.<br />

242 DOR (1989, p.12).<br />

243 Interessante é destacar que a escola francesa nunca falou de estruturalismo, n<strong>em</strong> de pósestruturalismo.<br />

Esta diferenciação foi feita pela escola al<strong>em</strong>ã anglo-saxônica. Daí a confusão de que<br />

Lacan, Foucault, Althusser, Derrida, entre outros, sejam chamados de estruturalistas por uns autores e<br />

de pós-estruturalistas por outros. Havia, sim, uma atitude estruturalista. É bom destacar que Saussure<br />

era suíço e Lévi-Strauss era belga; e que os dois utilizaram a noção de estrutura para explicar o<br />

funcionamento lingüístico e a sociedade humana, respectivamente. Ver: ZIZEK (2006, p. 60).<br />

141


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

1.2 UMA “ATITUDE ESTRUTURALISTA”<br />

Perante o conceito de estrutura, dir<strong>em</strong>os que Lacan se posiciona com uma<br />

“atitude estruturalista”, caracterizada como uma estratégia que deriva de uma<br />

“concepção estruturalista”. Concepção que promove uma nova inteligibilidade que<br />

desfaz com a forma de ver os objetos, porque coloca <strong>em</strong> evidência sist<strong>em</strong>as de<br />

relações entre os mesmos e seus el<strong>em</strong>entos que não aparec<strong>em</strong> de forma imediata,<br />

segundo Joel Dor 244 , dando-se assim a possibilidade de fazer advir relações<br />

aparent<strong>em</strong>ente dissimuladas que exist<strong>em</strong> entre eles.<br />

Este movimento permite que novos princípios surjam dessas relações que<br />

pod<strong>em</strong> ser de natureza diversa porque opõ<strong>em</strong> esses objetos, porque os distingu<strong>em</strong><br />

de outros, porque os transformam ou porque os animam, etc. 245 Princípios que, entre<br />

outros resultados, determinam uma estrutura particular associativa na qual a reunião<br />

dos el<strong>em</strong>entos é diferente da soma. A concepção estruturalista traz um novo<br />

interesse epist<strong>em</strong>ológico, com uma perspectiva heurística, que abre novos horizontes<br />

tanto nas ciências exatas como nas sociais.<br />

De acordo com Safatle 246 a filiação lacaniana ao estruturalismo é singular, pois<br />

Lacan procurará, através dela, resolver probl<strong>em</strong>as sobre o reconhecimento do sujeito<br />

que nada têm a ver com o quadro estruturalista. Destaca este autor que o<br />

fundamento do estruturalismo se preocupa <strong>em</strong> apontar que o objeto das ciências<br />

humanas não é o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> quanto centro intencional e produtor de sentido, mas as<br />

estruturas que o determinam. Como se estas estruturas foss<strong>em</strong> autônomas e<br />

inconscientes <strong>em</strong> relação à vontade individual.<br />

Culturalmente, por ex<strong>em</strong>plo, o estruturalismo procura as inter-relações a través<br />

das quais se produz o significado dentro de uma cultura. Compreend<strong>em</strong>os deste<br />

modo, que o significado é produzido e reproduzido através de várias práticas,<br />

244 DOR (1989, p. 22).<br />

245 Na lingüística, como desenvolvida por Saussure, de acordo com Jonathan Culler (1976) não se<br />

trata simplesmente do fato de que a língua é um sist<strong>em</strong>a de el<strong>em</strong>entos que são inteiramente definidos<br />

por suas mútuas relações no interior do sist<strong>em</strong>a, <strong>em</strong>bora isso seja verdade, mas do fato de que o<br />

sist<strong>em</strong>a lingüístico é constituído por diferentes níveis de estrutura; <strong>em</strong> cada nível, pod<strong>em</strong>-se identificar<br />

el<strong>em</strong>entos que contrastam e se combinam com outros el<strong>em</strong>entos para formar unidades de nível<br />

superior, mas os princípios estruturais <strong>em</strong> cada nível são fundamentalmente os mesmos. CULLER, J<br />

(1976, p. 49) apud PETERS (2000). Disponível <strong>em</strong>: http://www.rubedo.psc.br.<br />

246 SAFATLE (2007, p.42).<br />

142


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

fenômenos e atividades que serv<strong>em</strong> como sist<strong>em</strong>as de significação, por ex<strong>em</strong>plo<br />

rituais, comidas, jogos, textos, etc.<br />

Assim sendo, o estruturalismo, como coloca o autor acima mencionado, trouxe<br />

uma teoria da sociedade, como estrutura social, que transformava a linguag<strong>em</strong> no<br />

fato social central. De forma decorrente, todos os processos sociais e suas relações,<br />

de acordo com Safatle 247 , se estruturavam como uma linguag<strong>em</strong>, por ser esta, antes<br />

de mais nada, um modo de organização, de construção de relações, de identidades e<br />

de diferenças. A Linguag<strong>em</strong>, portanto, fornece a “condição de possibilidade” para a<br />

estruturação de toda e qualquer experiência social. Esse sist<strong>em</strong>a lingüístico, que<br />

estrutura o campo da experiência é exatamente o que Lacan chama de Simbólico. Ao<br />

que parece tudo passa como se as relações que se faz<strong>em</strong> com nosso s<strong>em</strong>elhante, as<br />

ações ordinárias, escondess<strong>em</strong> as mediações das estruturas sociolingüísticas que<br />

determinam a conduta e os processos de produção de sentido. Estamos assim frente<br />

à possibilidade de um melhor entendimento do prescrito na Parte I como “a cultura<br />

passou por uma profunda mudança na ‘estrutura do sentimento” (revista Precis 6,<br />

1986).<br />

A colocação de Dor 248 a respeito vai de encontro à de Saflate quando diz que,<br />

a noção de estrutura só é central na obra de Lacan na medida <strong>em</strong> que ela é<br />

constant<strong>em</strong>ente referenciada à estrutura da linguag<strong>em</strong>; como no caso da relação<br />

com o inconsciente já que este é estruturado “como” uma linguag<strong>em</strong> enquanto ord<strong>em</strong><br />

que organiza previamente toda experiência possível; mas também porque é o próprio<br />

ato da linguag<strong>em</strong> que faz advir o Inconsciente e o lugar onde ele se exprime.<br />

De acordo com Martins 249 quando Lacan fala do Sujeito constituído pelo Outro<br />

rompe com o conceito básico do estruturalismo, de completude do sist<strong>em</strong>a, já que o<br />

Sujeito ($) inscreve-se na estrutura lingüística-simbólica como uma descontinuidade<br />

na cadeia significante, causando uma discordância na relação entre significante e<br />

significado. No Simbólico instituído, que prima a Lei, é o nome próprio que legitima<br />

esta descontinuidade. No âmbito cultural, esta discordância será a que facilita as<br />

mudanças nos sist<strong>em</strong>as de significação ao longo de um espaço-t<strong>em</strong>po histórico, ou<br />

seja, a reprodução dos significados tradicionais é relativa, é factível de variantes.<br />

247 Como por ex<strong>em</strong>plo, trocas matrimoniais, modos de determinação de valor de mercadorias,<br />

organização do núcleo familiar, articulação de mitos socialmente partilhados.<br />

Ver SAFATLE (2007, p. 43).<br />

248 DOR (1989, p. 27).<br />

249 MARTINS (2004).<br />

143


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1.3 SOBRE O SIGNO E SUA ALTERAÇÃO<br />

O signo, segundo Dor 250 aparece na lingüística saussuriana como uma<br />

entidade psíquica de duas faces, tanto na linguag<strong>em</strong> como na língua-fala, 251 cujos<br />

el<strong>em</strong>entos são “instituídos” numa relação de associação. Ou seja, a relação<br />

aparent<strong>em</strong>ente fixa no sist<strong>em</strong>a da língua, é suscetível de modificações na dimensão<br />

da linguag<strong>em</strong>.<br />

O signo lingüístico une, não uma coisa e um nome,<br />

mas um conceito [significado] e uma imag<strong>em</strong> acústica<br />

[significante]. Esta última não é o som material, coisa<br />

puramente física, mas a marca física [o rasto] desse<br />

som, a representação que nos é dada por nossos<br />

sentidos; ela é sensorial, e se nos ocorre chamá-la<br />

“material”, é apenas neste sentido e por oposição ao<br />

outro termo da associação, o conceito, geralmente<br />

mais “abstrato 252 .<br />

Saussure utiliza o termo signo para exprimir “unidade” lingüística que se<br />

manifesta pela coerência entre a idéia e o significado. Conceitualização que,<br />

analogicamente falando, vai direto ao encontro do pensamento de “unidade” que<br />

transcende na modernidade através de conceitos como universalidade, verdades<br />

absolutas, padronização do conhecimento, metanarrativas, etc. Unidade<br />

representada, simbolicamente, pela elipse no algoritmo, o qual concebe a disposição<br />

do significado e do significante da seguinte maneira:<br />

conceito<br />

im ag<strong>em</strong> acústica<br />

Gráfico 7 Disposição de significado e significante.<br />

significado<br />

significante<br />

250 DOR (1989).<br />

251 “As unidades lingüísticas enquanto entidades psíquicas participam, assim, do registro da língua e<br />

não proced<strong>em</strong> da fala. É por esta razão que a linguag<strong>em</strong> deve ser considerada como a<br />

utilização/articulação de uma língua falada por um sujeito. E cabe a Saussure l<strong>em</strong>bra-nos que a<br />

língua é para nós a linguag<strong>em</strong> menos a fala.” DOR (1989, p. 28).<br />

252 SAUSSURE (1980) apud DOR (1989).<br />

144<br />

s<br />

S


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

O que faz Lacan?<br />

Da mais uma “virada à porca do parafuso”, utilizando a expressão de Pablo<br />

Cazau, e introduz modificações que diz<strong>em</strong> respeito à interpelação dos fluxos dos<br />

pensamentos e do fluxo dos sons como, fluxo de significados e fluxo dos<br />

significantes, respectivamente. Observando o algoritmo precedente,<br />

Assim ter<strong>em</strong>os,<br />

Gráfico 8 Algoritmo de Saussure<br />

Gráfico 9 Algoritmo de Lacan<br />

V<strong>em</strong>os que [Saussure] coloca encima o significado e<br />

<strong>em</strong>baixo o significante [...] pod<strong>em</strong>os supor que é<br />

porque primeiro t<strong>em</strong>os algo para dizer (significado) e<br />

logo buscamos a palavra para dizê-lo (significante).<br />

Ninguém diria: “tenho uma palavra, mas não encontro<br />

a idéia” senão “tenho uma idéia, mas não encontro a<br />

palavra”. Lacan, <strong>em</strong> cambio, inverte a relação<br />

saussuriana, colocando o significante encima e o<br />

significado <strong>em</strong>baixo.<br />

Nota-se a diferencia com Saussure: este último<br />

poderia ter dito que a criança ingressa no mundo dos<br />

objetos aos que há que nomear; a partir de Lacan a<br />

criança nasce no mundo dos significantes e depois<br />

desse “banho” de linguag<strong>em</strong>, e função simbólica<br />

mediante, poderá lhes assinar o significado 253 .<br />

S<br />

s<br />

145<br />

s<br />

S<br />

Segundo Vanier 254 , Lacan “desfaz” a unidade do signo que explorará no<br />

sentido de autonomia do significante <strong>em</strong> relação ao significado, por quanto estes não<br />

estão mais numa relação fixa. Ele “descompleta” a unificação no signo, ao suprimir a<br />

elipse e inverter a posição respectiva do significante e do significado. Lacan ainda<br />

253 CAZAU (2006, p. 67; tradução nossa).<br />

254 VANIER (2005, p. 63).<br />

s<br />

S


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

insiste na barra que separa significante e significado porque esta afeta ao sujeito no<br />

sentido que dá test<strong>em</strong>unho de que, “quando ele fala, não sabe o que diz”. Signo e<br />

significante não estão mais no mesmo registro.<br />

Lacan está se referindo a que o Sujeito não inventa o significante (S), este lhe<br />

é dado, se lhe apresenta e fica registrado no inconsciente como significante puro,<br />

isolado de seu significado (s) que se constitui como representação. Lacan 255<br />

compreende que,<br />

O significante é um sinal que não r<strong>em</strong>ete a um objeto,<br />

mesmo sob a forma de rastro, <strong>em</strong>bora o rastro<br />

anuncie, no entanto seu caráter essencial. Ele é<br />

também um sinal de ausência. Mas, na medida <strong>em</strong><br />

ele faz parte da linguag<strong>em</strong>, o significante é um sinal<br />

que r<strong>em</strong>ete a outro sinal, que é como tal estruturado<br />

para significar a ausência de outro sinal, <strong>em</strong> outros<br />

termos, para se opor a ele num par 256 .<br />

Isto significa que o significante deve ser compreendido a partir de sua<br />

instauração numa “cadeia de significantes” com certa coordenação dentro de suas<br />

próprias leis. Esta coordenação lhe permitirá que as transferências de significado<br />

possam se produzir. A articulação formal do significante é dominante <strong>em</strong> relação à<br />

transferência do significado 257 , por conseguinte, o significante deve ser concebido<br />

como distinto de sua significação. O que o distingue é o fato de ser <strong>em</strong> si mesmo<br />

s<strong>em</strong> significação própria 258 . Ou seja, a significação só se produz na correlação de<br />

significante para significante. Dev<strong>em</strong>os l<strong>em</strong>brar que, segundo a teoria lacaniana, a<br />

cadeia significante é o lugar que permanece permeável aos efeitos propriamente<br />

significantes da metáfora e a metonímia.<br />

Si, como colocamos, o sujeito não “inventa” o significado já que este é<br />

definido como um efeito do significante, quer dizer que, a seu devido t<strong>em</strong>po poderá<br />

apreendê-lo “externamente” através do inter-jogo com as pautas culturais o que<br />

prova que, a linguag<strong>em</strong> atua às costas do Sujeito. V<strong>em</strong>os assim que o Sujeito se<br />

constitui desde o Outro, desde algo exterior a ele: desde a linguag<strong>em</strong> a nível<br />

simbólico [Outro] e desde a imag<strong>em</strong> especular a nível imaginário [outro como Eu] 259 .<br />

255 LACAN (1988).<br />

256 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 192).<br />

257 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 261).<br />

258 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 227).<br />

259 CAZAU (2006, p.68).<br />

146


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

1.4 O “OUTRO” E O “OUTRO”<br />

A escritura do “Outro”, com maiúscula, foi adotada por Lacan, segundo<br />

Safatle 260 , para mostrar a relação entre o Sujeito, o “Outro” e o “outro”. Isto lhe<br />

permite ao Sujeito objetivar a estrutura que determina seu pensamento. Assim<br />

proposto, v<strong>em</strong>os que na teoria lacaniana, O “Outro” (grande Outro) representa por<br />

um lado, a “estrutura simbólica” localizada no inconsciente onde está o Tesouro de<br />

significantes, como chamada por Lacan; significantes puros por não conter<strong>em</strong> o<br />

significado definido. Por outro lado, representa o “Simbólico instituído”, a Lei, a<br />

Ord<strong>em</strong>. Assim sendo, O “Outro” se diferencia do Sujeito e da relação imaginaria do<br />

Eu, mas também, da relação com o “outro” com minúscula (pequeno outro). Este é o<br />

“outro” recíproco, simétrico ao “eu imaginário”; é o “outro” <strong>em</strong>pírico, meu s<strong>em</strong>elhante,<br />

que vejo diante de mim <strong>em</strong> todo o processo de interação social; é o “outro” do laço<br />

social. Por conseguinte, este “outro” diz respeito aos fenômenos e o “Outro” diz<br />

respeito à estrutura de leis e princípios que rege o inconsciente, mas que possibilita<br />

a organização de como o “Outro Simbólico” pode aparecer para mim.<br />

Ao respeito Elia 261 faz uma boa analogia colocando que a estrutura simbólica<br />

do Outro seria como o esqueleto material e simbólico, sua estrutura significante; e a<br />

ord<strong>em</strong> social e cultural (Simbólico instituído) seu revestimento muscular através do<br />

qual o sujeito se relaciona com seu eu imaginário e seus s<strong>em</strong>elhantes à procura do<br />

significado.<br />

[...] o sujeito só pode se constituir num ser que,<br />

pertencente à espécie humana, t<strong>em</strong> a vicissitude<br />

obrigatória e não eventual de entrar <strong>em</strong> uma ord<strong>em</strong><br />

social a partir da família ou de seus substitutos [...]<br />

S<strong>em</strong> isso ele não só não se tornará humano [...] como<br />

tampouco se manterá vivo; s<strong>em</strong> a ord<strong>em</strong> familiar e<br />

social, o ser da espécie humana morrerá 262 .<br />

Um ex<strong>em</strong>plo corriqueiro, extraído de uma revista de ampla circulação 263 nos<br />

permite compreender, singelamente, estas apreciações. No recorte pod<strong>em</strong>os “ver”<br />

certas considerações “ocultas” no texto.<br />

260 SAFATLE (2007, p. 44).<br />

261 ELIA (2007).<br />

262 ELIA (2007, p. 35).<br />

263 REVISTA CARAS, n. 20, 15 maio de 2009.<br />

147


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 57 Recorte de página da revista Caras.<br />

Por um lado, v<strong>em</strong>os como essa criança já nasce no Simbólico instituído<br />

quando se “lhe indica” as coordenadas a que estará submetido por pertencer a uma<br />

família de linhag<strong>em</strong> monárquica. Coordenadas tais como o lugar e importância nessa<br />

linha ao referendar a avó como sendo a rainha, o pai o príncipe, a mãe uma princesa,<br />

ele próprio e os irmãos como príncipes; b<strong>em</strong> como seu lugar de sucessão ao trono.<br />

De igual modo, perceb<strong>em</strong>os o caráter “público” de considerações privadas da<br />

família como: a “biografia amorosa do pai”; o local de nascimento; a participação do<br />

pai na hora de “separar” a mãe do filho pelo corte do cordão umbilical (fato concreto<br />

de castração edípica no real). Por outro lado, a nominação que o inscreverá no<br />

sist<strong>em</strong>a lingüístico-simbólico lhe será “outorgada” no ato de inserção no sist<strong>em</strong>a de<br />

crença através do batismo. E mais, parece absolutamente necessário ser “exibido<br />

aos súditos” certificando a posição social à qual pertence. O texto está carregado de<br />

significantes simbólicos, de fluxos de sons, que nos traz<strong>em</strong> a certeza do instituído e a<br />

incerteza do ver, do fazer e do sentir que decorrerá do novo sujeito humano a que o<br />

texto se refere.<br />

Saussure indica que na língua não há senão diferenças, ou seja, que um<br />

significante é o que os outros não são. Isso quer dizer que não pod<strong>em</strong>os admitir um<br />

148


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

significante S1 <strong>em</strong> si, só pod<strong>em</strong>os admiti-lo <strong>em</strong> sua diferença com outro: S2, e de<br />

maneira mais extr<strong>em</strong>a <strong>em</strong> sua diferença com todos os outros. Esse significante, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, o nome próprio, vai representar o sujeito, sujeito produzido por essa<br />

nominação, enquanto sujeito do significante, junto a esse conjunto de significantes,<br />

dessa bateria que se encontra no Outro 264 .<br />

Os símbolos envolv<strong>em</strong>, com efeito, a vida do hom<strong>em</strong>,<br />

com uma rede tão total que conjugam antes que ele<br />

venha ao mundo àqueles que vão engendrá-lo “pelo<br />

osso e pela carne”, que traz<strong>em</strong> no seu nascimento<br />

com os dons dos astros, senão com os dons das<br />

fadas, o desenho de seu destino, que dão as palavras<br />

que o farão fiel ou renegado, a lei dos atos que o<br />

seguirão mesmo até onde ele não está ainda e para<br />

além de sua morte mesma [...] servidão e grandeza<br />

onde se aniquilaria o vivente, se o desejo não<br />

preservasse sua parte nas interferências e batimentos<br />

que faz<strong>em</strong> convergir sobre ele os ciclos da linguag<strong>em</strong>,<br />

quando a confusão das línguas aí se mistura e quando<br />

as ordens se contrariam nos dilaceramentos da obra<br />

universal.<br />

Mas esse próprio desejo, para ser satisfeito no<br />

hom<strong>em</strong>, exige ser reconhecido, pelo acordo da fala ou<br />

pela luta de prestígio, no símbolo ou no imaginário 265 .<br />

Miller 266 fornece uma sinopse esclarecedora sobre o Outro, onde coloca que,<br />

264 VANIER (2005, p. 64).<br />

265 LACAN (1978, p. 143-144).<br />

266 MILLER, J.A. (1987) apud SANTAELLA, L; NOTH, W (2001, p.192).<br />

267 MILLER (1987) apud SANTAELLA, L; NOTH, W (2001, p.192).<br />

O Outro é o grande Outro (A) da linguag<strong>em</strong> que está<br />

s<strong>em</strong>pre aí. É o outro do discurso universal, de tudo o<br />

que foi dito, na medida <strong>em</strong> que é pensável. Diria<br />

também que é o Outro da biblioteca de Borges, da<br />

biblioteca total [Tesouro de significantes]. É também, o<br />

Outro da verdade [a Lei- a Ord<strong>em</strong>], esse Outro que é<br />

um terceiro <strong>em</strong> relação a todo diálogo, porque no<br />

diálogo de um com outros s<strong>em</strong>pre está o que funciona<br />

como referência tanto do acordo quanto do desacordo,<br />

o outro do pacto quanto o outro da controvérsia.<br />

Todo o mundo sabe que se deve estar de acordo <strong>em</strong><br />

alguns pontos fundamentais para poder-se escutar<br />

mutuamente. A esse respeito, esse Outro da boa fé<br />

suposta está presente a partir do momento <strong>em</strong> que se<br />

escuta alguém, suposto também a partir do momento<br />

<strong>em</strong> que se fala a alguém. É o Outro da palavra que é<br />

alocutário fundamental, a direção do discurso mais<br />

além daquele aquém se dirige.<br />

[Lacan dirá ministrando um s<strong>em</strong>inário] A qu<strong>em</strong> falo<br />

agora? Falo aos que estão aqui e falo também à<br />

coerência que tento manter 267 .<br />

149


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1.5 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO<br />

O Sujeito, como proposto na teoria lacaniana, não é um indivíduo pensante<br />

que “direciona” seu olhar para o mundo, dono da verdade como o Sujeito cartesiano,<br />

mas sim, um sujeito que está longe do pensamento de uma identidade fixa. É um<br />

sujeito dividido entre Sujeito do Inconsciente ou Sujeito do desejo e Sujeito da<br />

Consciência ou da busca do sentido. O símbolo que Lacan utilizará para representá-<br />

lo será $. Sujeito fendido, dividido, entre um discurso consciente e um discurso<br />

inconsciente. O diagrama seguinte nos ajuda na compreensão dos conceitos:<br />

Sujeito do<br />

Inconsciente<br />

Gráfico 10 Constituição do sujeito segundo Lacan 268 .<br />

Para Lacan 269 a Verdade “fala” desde o Inconsciente (construído pelo Outro,<br />

pelo discurso do Outro, que está situado na fala do Simbólico) E o Saber “fala” do<br />

Consciente, lugar do sujeito do enunciado lingüístico, do Eu real e imaginário,<br />

daquele que estabelece uma relação verbal com o outro, o laço social, na procura de<br />

entendimento e do sentido.<br />

Para uma breve apreciação do diagrama v<strong>em</strong>os que Lacan 270 coloca que o<br />

inconsciente é essa parte do discurso concreto, enquanto transindividual, que falta na<br />

268 Gráfico desenvolvido pela autora.<br />

269 LACAN (1978).<br />

270 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p.123).<br />

Situado na<br />

“fala” do<br />

discurso do<br />

Outro (o Outro<br />

da Verdade)<br />

Lugar da<br />

Verdade (Do<br />

sujeito)<br />

Sujeito do<br />

desejo.<br />

Lugar do<br />

Saber<br />

organizado;<br />

da busca de<br />

sentido.<br />

Sujeito<br />

do<br />

enunciado.<br />

Eu<br />

150<br />

Sujeito da<br />

Consciência<br />

Linguag<strong>em</strong>


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

disposição do sujeito para reestabelecer (sic) a continuidade de seu discurso<br />

consciente. Segundo Lacan 271 , este inconsciente participa das funções da idéia, e<br />

mesmo do pensamento, quando lhe envia uma mensag<strong>em</strong> à consciência através, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, dos atos falhos, dos sonhos, dos chistes, fazendo desse ato um ato de sua<br />

história [a do sujeito $] e que lhe dá sua verdade. V<strong>em</strong>os como a linguag<strong>em</strong> opera de<br />

maneira independente, fora de nosso controle, às costas do Sujeito.<br />

Que Verdade é essa que fala ao sujeito desde o inconsciente? O inconsciente,<br />

continuando com o pensamento lacaniano, é esse capítulo de minha história<br />

censurado [a verdade do sujeito], que é marcado por um branco ou ocupado por uma<br />

mentira [fala do Outro, do Outro da Verdade, como poder, conveniada no Simbólico].<br />

Mas a verdade pode ser encontrada; o mais das vezes ela já está escrita <strong>em</strong> algum<br />

lugar 272 , e se constitui como historização primária, sendo de tal modo, diferenciada<br />

da historização secundária, a história enquanto “ciência”, que decorre dos eventos e<br />

valores que cada época traz consigo e que atinge ao sujeito $. V<strong>em</strong>os aqui uma<br />

aparente circularidade de informações entre Sujeito da consciência e Sujeito do<br />

inconsciente. Como vimos que Lacan dizia um ciclo fechado de servidão e grandeza<br />

que aniquilaria o vivente, [...] se o desejo não preservasse sua parte frente às<br />

transversalidades que a linguag<strong>em</strong>-simbólica faz interferir <strong>em</strong> nós, frente à confusão<br />

das línguas aí [o desejo] se mistura e [igualmente] quando as ordens se contrariam<br />

nos dilaceramentos da obra universal.<br />

A definição consagrada de Sujeito por Lacan, no artigo escrito <strong>em</strong> 1960,<br />

Subversão do sujeito e a dialética do sujeito é: o Sujeito é aquilo que um significante<br />

representa para outro significante. Estamos ante um Sujeito tomado como<br />

significante, é por sua vez binário, tomado como lugar de ascensão “entre” dois<br />

significantes. Sendo assim é o Sujeito qu<strong>em</strong> “liga” os significantes uns com outros.<br />

Sendo assim, há nesta relação um processo interno da pessoa, uma elaboração de<br />

subjetividade, de vir-a-ser, de produção de novos sentidos e realidades através de<br />

modalidades subjetivas. Ali onde Eu estava, ali como Sujeito, devo vi-a-ser, dirá<br />

271 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 124).<br />

272 Entre eles: os monumentos (o núcleo histérico da neurose, onde o sintoma histérico mostra como<br />

uma inscrição a estrutura da linguag<strong>em</strong> que, se recolhida, pode ser perda grave, ser destruída); nos<br />

documentos de arquivos (que são as recordações da minha infância, quando eu não conheço a sua<br />

orig<strong>em</strong>); na evolução s<strong>em</strong>ântica: isso responde ao estoque e acepções do vocabulário que me é<br />

particular, como ao estilo de minha vida e à meu caráter); nas tradições e mesmo nas lendas que<br />

sobe uma forma heroicizada veiculam minha história); nos s (que conservam as distorções, das quais<br />

minha exegese restabelecerá o sentido). Ver LACAN (loc. cit).<br />

151


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Lacan 273 . Mas, do mesmo modo e simultaneamente, há uma relação processual com<br />

o exterior através do desejo e a busca de satisfação num movimento que determina<br />

que o Sujeito seja um Sujeito falta-a-ser.<br />

Sendo assim, o Sujeito é, s<strong>em</strong>pre, uma categoria que se impõe à experiência,<br />

é um ato de afirmação, de resposta, uma resposta dada <strong>em</strong> ato. Qu<strong>em</strong> permite essa<br />

possibilidade é o Es (do al<strong>em</strong>ão: isso-aquilo), uma instância que é como uma usina,<br />

por estar ligada as tendências, aos instintos, á libido. O Es é aquilo que no sujeito é<br />

suscetível, por intermédio da mensag<strong>em</strong> do Outro, de tornar-se Eu, segundo<br />

Lacan 274 . Existe, portanto, uma <strong>em</strong>ergência de “algo” que, sendo produzido por uma<br />

singularidade, é diferente, é descontínuo e lugar da produção de significados e<br />

subjetividade pelo Outro.<br />

Deste modo, o ser humano encontra um espaço para a construção do Eu no<br />

Sujeito através da produção da suas próprias cadeias de significantes resultantes da<br />

incompletude da linguag<strong>em</strong> e da sua relação com o t<strong>em</strong>po “histórico” que lhe toca<br />

viver. Esta será a função da fantasia, no Imaginário. 275 Através dela Lacan pode<br />

explicar como um sist<strong>em</strong>a de leis socialmente partilhado produz modos particulares<br />

de sociabilização e significação do desejo 276 .<br />

No campo da arte Beuys, Duchamp, Oiticica, só para citar alguns ex<strong>em</strong>plos,<br />

já d<strong>em</strong>onstravam esta particularidade da “fantasia”. Hoje, pod<strong>em</strong>os dizer o mesmo<br />

dos coletivos de arte e dos artistas comprometidos com a comunidade, numa arte<br />

conmunity-based-arte; <strong>em</strong> site-oriented-art ou arte relacional complexa. Assim<br />

sendo, pod<strong>em</strong>os dizer que, se para o artista modernista o Eu era o estandarte<br />

original na sua relação com o mundo, hoje não pod<strong>em</strong>os “negá-lo”, mas sim<br />

reconhecê-lo e compreendê-lo <strong>em</strong> relação a “outros”. Não chegar ao ponto de não<br />

dizer mais Eu, mais ao ponto <strong>em</strong> que já não têm importância dizer ou não dizer Eu,<br />

como diziam Deleuze e Guattari.<br />

Levando <strong>em</strong> consideração as relações do sujeito com o significante e a noção<br />

de constituição do movimento entre os mesmos (metáfora e metonímia, noções<br />

tomadas da lingüística-simbólica) Lacan, através de sua experiência clínica, segundo<br />

Dor 277 , nos mostra que a relação do significante com o significado é s<strong>em</strong>pre “fluída,<br />

273<br />

Este é o Sujeito que o psicanalista procura que “apareça” no seu analisado.<br />

274<br />

LACAN (1995, p. 45).<br />

275<br />

Em francês fantasme que alguns traduziriam por fantasma.<br />

276 SAFATLE (2007).<br />

277 DOR (1989, p. 39).<br />

152


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

s<strong>em</strong>pre prestes a se desfazer”. Mas também, que há um momento <strong>em</strong> que o<br />

deslocamento se detém numa operação que Lacan chama de “ponto de basta” ou<br />

“ponto de estofo” 278 . Não fosse isto, o deslocamento do significante permaneceria<br />

indeterminado e infinito; ou seja, é o ponto por meio do qual o significante se associa<br />

ao significado na cadeia discursiva. Na nossa fala coloquial, dir<strong>em</strong>os: tive um insight,<br />

caiu a ficha ou algo s<strong>em</strong>elhante.<br />

É neste inter-jogo de significantes, como enfatiza Elia 279 , nas relações que as<br />

materialidades simbólicas <strong>em</strong> que eles consist<strong>em</strong> estabelec<strong>em</strong> entre si, que os<br />

significados se produz<strong>em</strong>. Portanto, ao sujeito não se lhe encontra na realidade, é um<br />

operador que atua impondo-se a nós <strong>em</strong> determinado lugar a partir do qual<br />

possamos interrogar-nos sobre a experiência humana. É por isto, como Lacan falou,<br />

ele é s<strong>em</strong>pre suposto. Porque desde o momento <strong>em</strong> que reconhec<strong>em</strong>os a incidência<br />

do significante na experiência humana, esse átomo do simbólico que, por não conter<br />

<strong>em</strong> si mesmo significação alguma, requerer no ser vivo, quando ele é habitado pelo<br />

simbólico, a resposta que se chama Sujeito.<br />

Pod<strong>em</strong>os dizer que, a atividade do Inconsciente com a Consciência, via<br />

desejo, junto às relações articuladas com o “Outro” e os “outros”, nos certifica que<br />

s<strong>em</strong>pre haverá o Sujeito do Inconsciente guardando significantes puros vindos do<br />

Outro instituído como Simbólico. Desta forma somos induzidos a pensar <strong>em</strong> qual tipo<br />

de subjetividade se está produzindo nos dias atuais e <strong>em</strong> como nos posicionamos<br />

com consciência e ética frente à realidade que vivenciamos É justamente neste<br />

ponto, quando se instala incerteza e a dúvida, que o sujeito cartesiano, que de todo<br />

duvida se nos faz presente.<br />

Todavia pod<strong>em</strong>os colocar que s<strong>em</strong>pre existe a comunhão do sensível com a<br />

linguag<strong>em</strong> nas produções simbólicas, como lugar para desenvolver subjetividades<br />

no qual o Eu se reconhece como tal.<br />

Toda produção do campo do sentido é da ord<strong>em</strong><br />

simbólica, seja ela falada ou não. Um gesto, uma<br />

expressão no rosto, do corpo, uma dança, um<br />

desenho, tanto quanto uma narrativa oral, serão<br />

produções simbólicas, regidas pelo significante, e<br />

assim, ditas verbais, por estar<strong>em</strong> na dependência do<br />

verbo significante, e não por ser<strong>em</strong> expressas por via<br />

ora 280 .<br />

278 Do original Point de capiton referente ao ponto de amarração onde converg<strong>em</strong>, num estofamento,<br />

as linhas de costura.<br />

279 ELIA (2007, p. 22).<br />

280 ELIA (2007, p. 21).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

1.6 OS REGISTROS REFERENCIAIS HUMANOS. REAL, IMAGINÁRIO E<br />

SIMBÓLICO<br />

Mas, se os seres humanos se comunicam através do campo da linguag<strong>em</strong><br />

existe outro campo referente ao espaço habitado pelos seres humanos. É o lugar<br />

desde o qual qualquer experiência pode ser compreendida, o lugar “possível” de<br />

constituirmos como Sujeito. É nesse campo que se inclu<strong>em</strong> as dimensões das<br />

instâncias do Imaginário, Simbólico e Real (RIS) aos que Lacan chama de Registros<br />

Referenciais Humanos.<br />

Existe uma constante no discurso de Lacan, de acordo com Oscar<br />

Cessaroto 281 , que atravessa diversas épocas adotando <strong>em</strong> cada momento de sua<br />

teorização novas precisões s<strong>em</strong> nunca ter sido abandonada. Esta constante trata da<br />

referência onipresente, implícita ou explícita, aos registros do Real (R), do Imaginário<br />

(I) e do Simbólico (S).<br />

É através da compreensão das referências que encontramos nestes registros<br />

que é possível começar a entender qualquer experiência humana. Cada categoria,<br />

representada por Lacan como um elo, é autônoma e diferente das outras, <strong>em</strong>bora<br />

todas estejam amarradas de forma interdependentes e sustentadas através de um<br />

quarto elo, o sinthoma, como ver<strong>em</strong>os mais adiante.<br />

O Imaginário: se constitui através da ‘função imaginária’ que parte de uma<br />

lógica essencialmente visual, na qual sua dimensão inicial é “a imag<strong>em</strong>” passa a<br />

formar uma rede de imagens que fundam o Registro do Imaginário. Como registro,<br />

todos os dados são mantidos podendo ser “reorganizados” com os que<br />

posteriormente lhe são acrescentados modificando, deste modo, dito registro. Este<br />

registro se encontra situado no nível do sujeito consigo mesmo, com o Eu, num tipo<br />

de experiência situacional da alteridade como pura relação. Sendo assim, de acordo<br />

com Frederic Jameson 282 , o Imaginário é profundamente sedimentado <strong>em</strong> nossa<br />

própria experiência de vida, mais sepultado baixo a racionalidade adulta da vida<br />

cotidiana (e baixo o exercício do Simbólico); é deste modo, assumido dentro da<br />

Ord<strong>em</strong> Simbólica por meio de sua alienação no exercício da própria linguag<strong>em</strong>. Este<br />

estádio é por si uma alienação no sentido de que o sujeito é seduzido por uma<br />

281 CESAROTTO (2005).<br />

282 JAMESON (1995, p. 22-24).<br />

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<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

imag<strong>em</strong> especular, mas de acordo com Jameson, uma classe de alienação<br />

indistinguível de uma evolução mais positiva, e s<strong>em</strong> a qual esta é inconcebível.<br />

O Simbólico: é o lugar do código fundamental da Linguag<strong>em</strong>. Dev<strong>em</strong>os<br />

considerá-lo composto por duas fases: uma que representa a “estrutura lingüístico-<br />

simbólica” localizada no inconsciente onde está o Tesouro de significantes; a outra<br />

fase é a do “Simbólico instituído”; ou seja, a Linguag<strong>em</strong>; a Ord<strong>em</strong>; a Lei. Ambas as<br />

fases são constitutivas do Outro (grande Outro). O Simbólico é, conseqüent<strong>em</strong>ente,<br />

estrutura regrada e normativa, onde fala a cultura, a “voz” do Outro. Já a “função<br />

simbólica” é a capacidade de diferenciar o significado (o conceito da "coisa"), do<br />

significante (a representação da "coisa", a marca física da imag<strong>em</strong> acústica dada a<br />

nossos sentidos). Dev<strong>em</strong>os especificar que no Registro do Simbólico não há relação<br />

entre nomes e coisas mais simplesmente no postulado de que exist<strong>em</strong> nomes e de<br />

que, se eles exist<strong>em</strong>, é por valer<strong>em</strong> como um nome para outro nome. Nomes como<br />

significantes, unidades mínimas deste registro. O sujeito vale-se de estes<br />

significantes para interagir com o outro. O Simbólico é decorrência de uma tentativa<br />

do hom<strong>em</strong> para não sofrer d<strong>em</strong>ais com as pulsões, os desejos, a libido, o<br />

desconhecido, esse conjunto de forças ou instabilidades, que apavora e angustia, e<br />

que Lacan chamou de Real 283 .<br />

O Real: é aquela imediatez inalcançável, que ilude o controle do simbólico, da<br />

ord<strong>em</strong> da linguag<strong>em</strong> e da representação, e cujo retorno fica conjurado mediante a<br />

fantasia e a projeção ao imaginário 284 . Ele é aquilo que não pode ser representado<br />

por um significante n<strong>em</strong> pode ser formalizado por uma imag<strong>em</strong>, conseqüent<strong>em</strong>ente,<br />

implica e supõe uma continuidade, uma plenitude. O Real é misterioso e, por função<br />

da fantasia, s<strong>em</strong>pre esteve presente sob as espécies de diabos, do desconhecido,<br />

do mistério, do mal, de uma presença incomoda, de uma doença inexplicável, de<br />

uma anormalidade, do inconsciente freudiano, do impossível de dizer <strong>em</strong> Lacan 285 .<br />

O Real é diabólico, custoso de entender, intrincado. Como a morte, existe, mas não<br />

t<strong>em</strong>os como provar o que de fato ela é 286 . O Real não é a realidade mais pode ser. A<br />

283<br />

WILLEMART, P. O registro do Real na história, <strong>em</strong> Freud e Lacan. 1998. Disponível <strong>em</strong>:<br />


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

realidade é da ord<strong>em</strong> do Imaginário e do Simbólico que, de acordo com Etkin 287 , são<br />

as presenças; as afirmações que se apresentam para nós como objetos do desejo,<br />

de d<strong>em</strong>anda, como formas de identificação no discurso. Já o Real é impossível de<br />

ser formalizado, de ser escrito <strong>em</strong> termos lógicos, quando se pode escrever deixa de<br />

ser Real.<br />

Lacan insistirá cada vez mais que a experiência<br />

humana não é um campo de condutas guiadas por<br />

imagens ordenadoras (Imaginário) e por estruturas<br />

sociossimbólicas (Simbólico) que visam garantir e<br />

assegurar identidades, mas também por uma força de<br />

ruptura cujo nome correto é Real 288 .<br />

Slavoj Zizek, aluno de Lacan, apresenta uma interessante subdivisão dos<br />

registros que auxilia a compreensão dos mesmos:<br />

Ao Real pod<strong>em</strong>os compreendê-lo como Real-Real: uma coisa horrível, aquilo<br />

que transmite o sentido do terror nas películas de terror. Também como Real-<br />

Imaginário: algo insondável que permeia as coisas como um pedaço do sublime. E<br />

como: Real-Simbólico: o significante reduzido a uma fórmula s<strong>em</strong> sentido, como <strong>em</strong><br />

física quântica que parece arranhar o Real, mas só produz conceitos apenas<br />

compreensíveis.<br />

Do Imaginário t<strong>em</strong>os as categorias de Imaginário-Real: o fantasma (fantasia)<br />

que assume o lugar do Real. Imaginário-Imaginário: a imag<strong>em</strong>/espectral <strong>em</strong> si que<br />

serve como isca. E o Imaginário-Simbólico: os arquétipos de Jung e o pensamento<br />

New Age.<br />

Já o Simbólico se apresenta subdividido <strong>em</strong> Simbólico-Real: que é o<br />

significante reduzido a una fórmula s<strong>em</strong> sentido. Como Simbólico-Imaginário: qual<br />

símbolo jungiano. E como: Simbólico-Simbólico: como o falar e a linguag<strong>em</strong>, como<br />

sentido <strong>em</strong> si.<br />

anulam ou um suplanta totalmente o outro. Conviv<strong>em</strong> <strong>em</strong> equilíbrios difíceis, dando dinamismo à vida.<br />

(BOFF, L. O despertar da águia. RJ; Vozes, 2004, p. 13-15).<br />

287 ETKIN (1996) apud REIMÃO dos REIS (2002, p. 3).<br />

288 SAFATLE (2007, p.74).<br />

156


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1.7 SOBRE A FALTA<br />

A falta é uma idéia diretriz para se orientar no pensamento lacaniano e serve,<br />

por ex<strong>em</strong>plo, para articular o Real por um lado, com o Imaginário e o Simbólico por<br />

outro. Lacan 289 utiliza o conceito A Coisa (ou Das Ding) para referir-se ao que chama<br />

de Falta Originária que é diferente da falta de objeto a (uma coisa <strong>em</strong> si, Ding an<br />

sich) 290 . Das Ding escapa à significação, é irrepresentável, é o que de real padece o<br />

significante, é o “vazio” no centro do Real e “falta comum” <strong>em</strong> todos nós que se<br />

constitui como causa “fundadora do desejo”. A respeito destes conceitos precisamos<br />

de alguns esclarescimentos para melhor compreensão primordial.<br />

A “Falta originária”, “Vazio” ou “Coisa”, se manifesta através da sensação de<br />

incompletude permanente que sentimos como seres humanos. Incompletude<br />

originada no fato de termos sido separados de um estado de Nirvana alcanzado no<br />

período da gestação, na qual não há desejo porque não há faltas. Alimento, abrigo e<br />

amor nos é dado simultaneamente num ato simbiótico com nossa geradora. Não t<strong>em</strong><br />

sentido dizer aqui que o feto t<strong>em</strong> uma “experiência de satisfação” porque esta só t<strong>em</strong><br />

lugar quando há uma falta, uma carencia, uma insatizfação prévia, uma frustração,<br />

como coloca Pablo Cazau 291 .<br />

Na hora do nascimento, de acordo com o autor citado, se origina a falta<br />

quando se interrompe bruscamente esse suministro pelo corte do cordão umbilical<br />

sendo o feto separado da mãe (de aqui <strong>em</strong> diante se chamará neonato, bebê, etc.).<br />

Há, portanto, uma perda de “objeto” e, simultaneamente, se instaura uma tensão<br />

nova no bebê a nível de necessidade que origina a pulsão e exige ser satisfeita.Esta<br />

falta é, <strong>em</strong> parte, reduzida pelo choro e a sucção do peito. Por isto diz<strong>em</strong>os que essa<br />

falta, essa ausência, é a causa “fundadora” do desejo (conjunto de pulsões). Esta<br />

sução é o que habitualmente chamamos de “primeira experiência de satisfação” já<br />

que houve uma privação anterior. Uma vez vivenciada esta satisfação, virá outra<br />

privação, outro desejo e outra satisfação e assim sucessivamente. O desejo, portanto<br />

289 LACAN (1995).<br />

290 Lacan denominou o objeto causa do desejo, faltoso, perdido, de objeto a por dois motivos. Um<br />

motivo, por ser a letra inicial do alfabeto <strong>em</strong> analogia a ser este objeto a um objeto primordial. (objeto<br />

às vezes denominado objeto alfa <strong>em</strong> relação ao alfabeto grego). Outro motivo é por ele intervir na<br />

dialética das relações com o Outro, e com seu s<strong>em</strong>elhante, o outro; outro inicia <strong>em</strong> francês com a de<br />

autre.<br />

291 CAZAU (2006, p. 32).<br />

157


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é desvio; é excéntrico, está constant<strong>em</strong>ente forçado a se afastar de seu objetivo, a se<br />

deslocar, de acordo com Lacan 292 .<br />

Mas se novas “faltas” inevitavelmente virão pelo resto de nossas vidas,<br />

s<strong>em</strong>pre estar<strong>em</strong>os, enfatiza Cazau 293 , tentando reeditar a primeira experiência de<br />

satisfação que é como retraer-se ao estado de nirvana intrauterino pelo que nossas<br />

condutas posteriores, nossas buscas de sentido, a procura de nossas satisfações,<br />

terão como fim retornar ao estado paradisiaco de completude, de gozo, de estarmos<br />

simplesmente <strong>em</strong> estado de felicidade contínua.<br />

S<strong>em</strong> dúvidas não se pode reeditar tal qual a primeira<br />

experiência, mas o sujeito num primeiro momento se<br />

ilude de que efetivamente assim o tenha feito,<br />

aparecendo logo uma desilusão [...] “Realizar” o<br />

desejo significa voltar à experiência “real” de<br />

satisfação, coisa que intentará masturbando-se,<br />

buscando o parceiro ideal, viajando, sonhando,<br />

sonhando acordado, durmindo <strong>em</strong> posição fetal,<br />

produzindo uma obra artística, inventando uma teoria<br />

ou desenvolvendo um sintoma. Por todos estes<br />

objetos e situações circulará, de aqui <strong>em</strong> mais, o<br />

desejo..[...] Embora ao desejo nunca se renuncia, o<br />

principio da realidade vai localizando ao sujeito numa<br />

atitude mais objetiva 294 .<br />

O desejo t<strong>em</strong> força própria, pulsional, e s<strong>em</strong>pre “tende” a sua realização;<br />

<strong>em</strong>bora, como coloca Jean-Pierre Cléro 295 , não sabe quê deseja; não t<strong>em</strong> objeto ou,<br />

<strong>em</strong> todo caso, seu objeto é infinito e se localiza além de qualquer objeto limitado,<br />

imaginável ou concevível, já que t<strong>em</strong> A Coisa como polo de atração. Lacan dirá do<br />

desejo: ele é a essência do sujeito humano. Você quer o que você deseja? dirá<br />

Forbes, desestabilizandonos mais uma vez.<br />

Mas a falta t<strong>em</strong> um valor extr<strong>em</strong>amente importante para o Sujeito, por isto<br />

precisamos aprofundarnos brev<strong>em</strong>ente na sua compreensão. Esta importância, para<br />

o Sujeito, é correlativa aos intentos de prenchê-la, de recuperar o perdido, de<br />

alcançar completude. A falta se constitui concretamente quando ao Real lhe<br />

“acrescentamos” algo que não t<strong>em</strong>. Cazau 296 destaca que do Real s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong>os<br />

uma perspectiva imaginária ou simbólica e, nessa particular perspectiva, ao Real<br />

s<strong>em</strong>pre lhe faltará algo. Por que o ser humano haverá de acrescentar algo ao Real,<br />

292 LACAN apud LINKER (2001, p. 401).<br />

293 CAZAU (2006, loc cit).<br />

294 CAZAU (op. cit, p.33, tradução nossa).<br />

295 CLÉRO (2006, p.32).<br />

296 CAZAU (2006, p. 26).<br />

158


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seja desde o Imaginário individual ou desde o Simbólico cultural? Por que buscará<br />

incesant<strong>em</strong>ente prencher essa ausência, alcançar essa plenitude?<br />

Pod<strong>em</strong>os começar a compreender estos interrogantes, através dos conceitos<br />

aqui explicados sucintamente, de “necessidade”, “d<strong>em</strong>anda” e “desejo”, que são as<br />

três modalidades da falta por meio das quais a teoria freudiana-lacaniana procurou<br />

explicar as primeiras experiências de satisfação e sua relação com a essência do<br />

desejo e a natureza de seu processo como vimos no início deste it<strong>em</strong> 297 .<br />

[...] Que significa que estes três el<strong>em</strong>entos<br />

[Necessidade, D<strong>em</strong>anda e Desejo] são três<br />

modalidades da falta? Significa <strong>em</strong> primeiro lugar,<br />

que para que exista necessidade, d<strong>em</strong>anda ou desejo<br />

deve haver algo que falte: qu<strong>em</strong> experimenta uma<br />

necessidade é porque algo lhe falta, qu<strong>em</strong> d<strong>em</strong>anda<br />

algo é porque algo lhe falta, e qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> um desejo é<br />

porque algo lhe falta. A questão é estabelecer o que<br />

falta <strong>em</strong> cada caso, porque o que falta são três coisas<br />

diferentes 298 .<br />

Cazau 299 faz um esqu<strong>em</strong>a bastante explícito destas modalidades da Falta.<br />

NECESIDADE DEMANDA DESEJO<br />

Sua não satisfação traz a<br />

morte biológica.<br />

Deve ser s<strong>em</strong>pre<br />

satisfeito.<br />

Satisfaz-se mediante um<br />

objeto específico.<br />

Sua não satisfação não implica<br />

necessariamente a morte.<br />

Pode ou não ser satisfeito.<br />

Satisfaz-se mediante objetos inespecíficos,<br />

já que o se d<strong>em</strong>anda é amor.<br />

Gráfico 11 Esqu<strong>em</strong>a de modalidades da Falta de Cazau 300<br />

159<br />

Não se satisfaz<br />

realmente nunca.<br />

Satisfaz-se<br />

substitutivamente.<br />

Circula através de<br />

muitos objetos.<br />

T<strong>em</strong>os assim que, a Necessidade diz a respeito de nossas necessidades<br />

imediatas e vitais, da ord<strong>em</strong> do biológico. Por ex<strong>em</strong>plo, se o bebê está com fome,<br />

com sede ou doente precisa de comida, água ou r<strong>em</strong>édios, caso contrário morrerá.<br />

Ou seja, há uma situação de necessidade que “exige” ser satisfeita. O objeto que lhe<br />

é proposto para a satisfação lhe é proposto s<strong>em</strong> que ele o busque, mas o satisfaz.<br />

297 Para aprofundar estes conceitos ver CAZAU (op. cit, p. 26-37); DOR (1989, p. 139-147) e ELIA<br />

(2007, p. 44-62).<br />

298 CAZAU (op. cit, p. 27).<br />

299 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p.28, tradução nossa).<br />

300 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p.28, tradução nossa).


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Já a D<strong>em</strong>anda, no conceito lacaniano, se concretiza no campo das relações<br />

do sujeito com o Outro; neste nível, portanto, o sujeito não se move na direção do<br />

objeto, como na necessidade, mas do Outro capaz de trazê-lo. Ou seja, falamos do<br />

campo da alteridade, do Outro como capaz de atender à necessidade com um<br />

objeto; no caso do bebê, por ex<strong>em</strong>plo, ao solicitar o alimento espera o<br />

comparecimento da mãe. Assim sendo, estamos ante a presença da d<strong>em</strong>anda de<br />

“amor”, nome aqui que designa, de acordo com Elia 301 , o movimento do Outro <strong>em</strong><br />

atender por presença, ato e linguag<strong>em</strong>, ao bebê humano. O que significa que o bebê<br />

entra no Simbólico (Outro); entra <strong>em</strong> contato com os significantes que a mãe<br />

introduz no seu ato de cuidá-lo, pelo qual, a partir deste contato e através do desejo,<br />

se constitui como “sujeito”, como humano. A criança passa a querer a coisa trazida e<br />

aquele que a trouxe 302 . Porém, por força do efeito que a linguag<strong>em</strong> operou no plano<br />

da necessidade, o objeto que seria natural perde sua cara, sua identidade. O fato de<br />

que alguém o traga não é idêntico ao objeto trazido. É um desdobramento que não<br />

apenas é permitido como também, e principalmente, é exigido pelo fato da<br />

linguag<strong>em</strong> 303 . Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que d<strong>em</strong>anda amor, o sujeito é movido por uma<br />

força impelente e incoercível; movimento este chamado desejo, <strong>em</strong> direção a esse<br />

objeto perdido como tal, faltoso, que é s<strong>em</strong>-rosto, e que Lacan chamou de objeto a.<br />

O objeto a é o que caiu, do sujeito, na angústia 304 .<br />

Poderíamos dizer que a d<strong>em</strong>anda se instala no ponto<br />

meio entre a necessidade e o desejo: enquanto a<br />

necessidade s<strong>em</strong>pre deve ser satisfeita e o desejo<br />

nunca se satisfaz, a d<strong>em</strong>anda pode o não ser<br />

satisfeita. Também a diferença da necessidade, a<br />

d<strong>em</strong>anda não t<strong>em</strong> um objeto específico para se<br />

satisfazer. Aqui o objeto pode ser entendido de duas<br />

maneiras: como o objeto que ama (ex. uma mãe, um<br />

amigo, etc.) o como o objeto através do qual se<br />

manifesta o amor (um caramelo, uma flor, etc.) 305 .<br />

No filho do hom<strong>em</strong>, a necessidade, para satisfazerse,<br />

deve passar pelos significantes do Outro; isso<br />

significa que o sujeito deve poder articular uma<br />

d<strong>em</strong>anda dirigida a esse Outro a partir dos<br />

301 ELIA (2007, p. 54).<br />

302 Quando Lacan coloca que o desejo do hom<strong>em</strong> é o desejo do Outro, este Outro não é visto como<br />

seu s<strong>em</strong>elhante, senão como o lugar [um campo] simbólico da Lei a partir do qual, por uma<br />

determinação subjetiva, reconhece que é enquanto Outro como deseja - o qual da o verdadeiro<br />

alcance da paixão humana. Ver CLÉRO (2006, p. 34).<br />

303 ELIA (2007, p. 50).<br />

304 LACAN (2005, p. 60).<br />

305 CAZAU (2006, p.29, tradução nossa).<br />

160


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

significantes nele depositados. O que resta dessa<br />

operação é o que Lacan chama de desejo 306 .<br />

Dev<strong>em</strong>os mencionar que há uma diferença entre “objeto a” e “objeto do<br />

desejo”. O objeto a é o objeto causa do desejo, aquele que por incidir como faltoso<br />

na experiência causa o desejo do sujeito, seguindo com o pensamento de Elia 307 . e<br />

não significa a mesma coisa que objeto do desejo. Isto porque, quando o desejo se<br />

volta para objetos, o que faz incessant<strong>em</strong>ente, ele o faz revestindo o objeto faltoso<br />

[objeto a] que o causa, com alguma marca, algum atributo de significação que faz do<br />

objeto o alvo do desejo. Assim sendo, causa e alvo, no caso do desejo, jamais<br />

coincid<strong>em</strong> 308 . Estamos, portanto, <strong>em</strong> presença de relações mal sucedidas entre os<br />

Registros e a carência de objetos.<br />

Se o Real não é nenhuma espécie de realidade atrás da realidade, mas sim o<br />

vazio que deixa a própria realidade incompleta e inconsistente 309 , a sociedade <strong>em</strong><br />

que viv<strong>em</strong>os, ciente da angustia do Sujeito decorrente da Falta, se beneficia desta<br />

carência fabricando objetos de “b<strong>em</strong>-estar”, desde coisas a valores<br />

comportamentais, nos persuadindo e convencendo de que estes “objetos do desejo”<br />

são capazes de preencher o objeto a. Mas não é tão direta a relação falta-angustia-<br />

sociedade-objetos. Vejamos algumas considerações a respeito.<br />

Se na d<strong>em</strong>anda, como colocamos, o Sujeito se move na direção do objeto,<br />

mas do Outro capaz de trazê-lo, pod<strong>em</strong>os dizer que a sociedade de consumo, como<br />

está instituída atualmente através de nosso sist<strong>em</strong>a socioeconômico, depende para<br />

sua continuidade, de estimular o consumo <strong>em</strong> todas as esferas que a constitu<strong>em</strong>. No<br />

centro de dito sist<strong>em</strong>a está, analogicamente falando, o objeto a, desde onde a mídia<br />

t<strong>em</strong> por função adjudicar o olhar e a fala, até cada um de nós. Somos “induzidos” a<br />

ter nosso desejo orientado segundo lógicas de marketing, através das quais o<br />

mesmo é fabricado.<br />

Isto vai ao encontro direto com a colocação de Jameson de que nosso<br />

Imaginário é sepultado baixo o exercício do Simbólico; é deste modo, assumido<br />

dentro da Ord<strong>em</strong> Simbólica por meio de sua alienação no exercício da própria<br />

linguag<strong>em</strong>. Dentro desta dinâmica o Sujeito, como significante, passa a ser mais um<br />

306 VANIER (2005, p.82).<br />

307 ELIA (2007, p. 54).<br />

308 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 54-55).<br />

309 SAFATLE, W. Glossário de lacanês. Disponível <strong>em</strong>:<br />

Último acesso <strong>em</strong>: 2 de abr. de 2005.<br />

161


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

elo produtivo que termina visando a reprodução de uma mesma imag<strong>em</strong>, a imag<strong>em</strong><br />

especular/mimética por meio do objeto representado. E assim, nos persuad<strong>em</strong> e nos<br />

convenc<strong>em</strong> de que estes “objetos do desejo” são capazes de pré-encher o “objeto<br />

a”, causa do desejo.<br />

Na pulsão escópica, o sujeito encontre o mundo como<br />

espetáculo que o possui. Ele é aí a vítima de um<br />

logro, pelo qual o que sai dele e o enfrenta não é o<br />

verdadeiro a [objeto a], mas seu compl<strong>em</strong>ento, a<br />

imag<strong>em</strong> especular, (i)a. [...] O sujeito é arrebatado<br />

pelo espetáculo, regozija-se, esbalda-se 310 .<br />

Por ser o desejo impossível de ser satisfeito, nesta roda de consumo toda e<br />

qualquer imag<strong>em</strong> passa a ser apropriada, assim, deste modo continuamos<br />

d<strong>em</strong>andando, desejando e “consumindo”. Mas a esse “quadro” da realidade<br />

pod<strong>em</strong>os, se ficarmos atentos, adjudicar-lhe nossa mirada, nosso olhar, (não mais<br />

individual e sim comunal) como uma “mancha” criativa capaz de permitir novos<br />

olhares. Cada <strong>em</strong>ergência nesse modo de operar consiste s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> derrubar a<br />

operação ilusória para tornar a voltar para a finalidade primeira que é a de projetar<br />

uma realidade que não é absolutamente a do objeto representado 311 .<br />

Tanto no adulto, como na criança, a falta de objeto pode manifestar-se sob<br />

três formas diferentes, seguindo Lacan 312 : a Frustração (F), a Privação (P), e a<br />

Castração (C). Embora nos três casos trata-se de uma falta de objeto, a “natureza”<br />

dessa falta é qualitativamente diferente. O mesmo ocorre com o tipo de objeto que<br />

falta.<br />

A Frustração é o âmbito por excelência da reivindicação, com a ressalva de<br />

que nenhuma possibilidade de satisfação pode ser encontrada. Ela diz respeito a<br />

algo que é desejado e não obtido, mas que é desejado s<strong>em</strong> nenhuma referência a<br />

qualquer possibilidade de satisfação ou aquisição. A frustração é por si mesma o<br />

domínio das exigências desenfreadas e s<strong>em</strong> lei. Portanto, é um dano imaginário e<br />

sua falta é a de um objeto é real. Por ex<strong>em</strong>plo, a frustração decorrente da<br />

impossibilidade física numa mulher determinada que não lhe permita gerar um filho.<br />

Na Privação é a falta que é real, um buraco no real dirá Lacan, e sua falta é<br />

um objeto simbólico. A ausência de alguma coisa no real é puramente simbólica. É<br />

310 LACAN (2005, p.68).<br />

311 LACAN (1997, p. 176).<br />

312 LACAN (1995, p. 35-39).<br />

162


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

na medida <strong>em</strong> que definimos pela lei o que deveria estar ali que um objeto falta no<br />

lugar que é seu. Um ex<strong>em</strong>plo simples: quando falta um livro na estante da biblioteca<br />

porque foi <strong>em</strong>prestado, sab<strong>em</strong>os que ele pertence a esse lugar real e vazio, mas no<br />

momento não está ali, efetivamente falta.<br />

No nível da Castração, a falta que ela interpela é uma falta simbólica, uma<br />

dívida simbólica, a alguma coisa que sanciona a lei e que lhe dá seu suporte e seu<br />

inverso, o que é a punição, dirá Lacan, onde o objeto faltante é radicalmente<br />

imaginário, nunca pode ser real 313 . O ex<strong>em</strong>plo mais específico, neste caso, é o do<br />

incesto (que é a relação sexual ou marital entre parentes próximos) restrito e punido<br />

pela lei social ou religiosa dentro de determinada sociedade.<br />

do t<strong>em</strong>a :<br />

O esqu<strong>em</strong>a mn<strong>em</strong>o-técnico da Falta, de Jean Oury 314 , facilita a compreensão<br />

O objeto é<br />

Simbólico<br />

Privação<br />

R<br />

Falta<br />

Real<br />

O objeto é<br />

Real<br />

Obj.<br />

Gráfico 12 Esqu<strong>em</strong>a mn<strong>em</strong>o-técnico da Falta de Jean Oury.<br />

313 Ver DOR (1989, p. 83).<br />

314 OURY apud DOR (1989, p. 84).<br />

S<br />

Obj.<br />

Frustração<br />

163<br />

Falta<br />

Simbólica<br />

Obj.<br />

Falta<br />

Imaginá-<br />

ria<br />

Castração<br />

I<br />

O objeto é<br />

Imaginário<br />

RIS<br />

FALTAS


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

A identidade do Sujeito, pelo aqui tratado e segundo a teoria lacaniana, é<br />

s<strong>em</strong>pre deficiente ou deficitária, por causa da Falta como das Ding (o Vazio, a Falta<br />

Original, A Coisa) e/ou das faltas como Ding an sich (objeto a: objeto perdido, objeto<br />

ausente – estado de nirvana, completude com a geradora; ou o Outro como desejo)<br />

Esse déficit na identidade também é registrado na ord<strong>em</strong> simbólica externa através<br />

da qual o Sujeito é compreendido. O Sujeito busca reconhecimento de si através da<br />

interação de seu Imaginário e Simbólico, que implica na aproximação à experiência<br />

que trás consigo as “identificações”.<br />

No entanto, essa relação entre o Eu e a estrutura simbólica é ela mesma<br />

deficitária, já que ela é parte da realidade do Sujeito, mas não é todo, o que faz que<br />

o sujeito seja falta-a-ser. Esta falta-a-ser se caracteriza como uma condição do<br />

sujeito que precisa encontrar o significado, o ponto de estofo, mesmo perante o risco<br />

de ficar deslizando por uma rede de significantes, porque acredita que “algo” possa<br />

se produzir nesse jogo no qual deve perder-se para, deste modo, encontrar-se outro<br />

no Outro.<br />

1.8 SOBRE OS NÓS: O NÓ DE TRÊS ELOS E O NÓ DE QUATRO ELOS.<br />

Para Freud os três registros: Real, Imaginário e Simbólico estavam<br />

independentes e para sustentar sua construção teórica criou a idéia de “realidade<br />

psíquica” que corresponde ao Complexo de Édipo o qual fará que os três registros<br />

se mantenham unidos. Em Lacan, <strong>em</strong> princípio, isto acontecerá através da<br />

conceitualização do nó borromeano. Ou seja, para a articulação das instâncias do<br />

Real, do Imaginário e do Simbólico, Lacan se vale da “estrutura” que permite colocar<br />

<strong>em</strong> evidência sist<strong>em</strong>as de relações, através da estratégia de uma figura topológica: o<br />

“nó borromeano”, chamado assim <strong>em</strong> alusão a união fraterna das três famílias dos<br />

Borromeus, do norte da Itália; união representada no brasão através do nó. Este nó,<br />

dos Borromeus, consiste <strong>em</strong> três círculos estritamente equivalentes e enodados de<br />

tal forma que, basta cortar um deles para que os outros dois fiqu<strong>em</strong> livres 315 .<br />

315 LACAN (2007, p. 20).<br />

164


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Lacan utilizou, a partir do anos 60 e por muito t<strong>em</strong>po, esta topologia triádica,<br />

na qual identificava, analogicamente, cada círculo com um registro: o Real (R), o<br />

Imaginário (I) e o Simbólico (S) e os relacionava de modo interdependente contendo<br />

<strong>em</strong> seu centro o objeto a (objeto perdido, objeto ausente, objeto separado do<br />

Sujeito, objeto faltoso, ou objeto causa do desejo). Deste modo, desenvolveu<br />

conceitos decorrentes das relações que entre estes el<strong>em</strong>entos se manifestavam.<br />

Lacan também utilizou diferentes maneiras de representar este nó sendo, a<br />

seguinte, a mais utilizada:<br />

Gráfico 13 O nó borromeano. 316<br />

Dev<strong>em</strong>os ter <strong>em</strong> conta que este nó se caracteriza porque cada de seus elos<br />

se sustenta pela suposta consistência real de corda, já que, certa materialidade é<br />

necessária para que esta consistência aconteça. Lacan 317 argumenta que: o que<br />

prevalece é o fato de que as três rodinhas [elos] participam do Imaginário como<br />

consistência, do Simbólico como furo, e do Real como lhes sendo ex-sistente a eles.<br />

Portanto as três rodinhas [elos] se imitam. Não só se imitam, mas por causa disto, se<br />

compõ<strong>em</strong> <strong>em</strong> um nó de três. Logo, é o Imaginário que dá a consistência aos elos do<br />

nó e a consistência dos elos só se suporta pelo Real do nó. São três sentidos<br />

diferentes que cada palavra: Real, Imaginário e Simbólico t<strong>em</strong>, mas com uma<br />

medida <strong>em</strong> comum: a suposta consistência real da corda que homogeiniza os elos.<br />

Ou seja, o próprio fato de fazer o nó.<br />

316 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 21)<br />

317 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 55).<br />

165


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Gráfico 14 O nó de perfil e sua articulação 319<br />

Quanto a esses círculos, não há um que, ao ser<br />

envolvido por um outro, não acabe envolvendo o<br />

outro. É o que constitui a propriedade do nó<br />

borromeano, com a qual eu os familiarizei muitas<br />

vezes. Na terceira dimensão, se pod<strong>em</strong>os dizer<br />

assim, o nó borromeano consiste nessa relação que<br />

faz com que o que é envolvido com relação a um<br />

desses círculos acabe envolvendo o outro 318 .<br />

Esta articulação permite fazer uma rede, trama ou cadeia, na qual o<br />

rompimento de um dos elos, qualquer um, torna os outros dois livres, mas foi preciso<br />

que percebêss<strong>em</strong>os que isso estava escrito no brasão dos Borromeus [...] já estava<br />

lá s<strong>em</strong> que ninguém tratasse de tirar conseqüência disso. 320 Vejamos mais um pouco<br />

da reflexão de Lacan,<br />

É de fato aí que jaz o que incita ao erro de pensar que<br />

esse nó seja uma norma para a relação de três<br />

funções que só exist<strong>em</strong> uma para outra <strong>em</strong> seu<br />

exercício no ser que, ao fazer nó, julga ser hom<strong>em</strong>. A<br />

perversão 321 não é definida porque ao simbólico, o<br />

imaginário e o real estão rompidos, mas, sim, porque<br />

eles já são distintos, de modo que é preciso supor um<br />

quarto que, nessa ocasião é o sinthoma 322 .<br />

Lacan apresenta desta forma, no S<strong>em</strong>inário sobre Le Sinthome (O<br />

Sinthoma) 323 , <strong>em</strong> 1975, o acréscimo de um elo supl<strong>em</strong>entar á topologia do nó<br />

borromeano: o sinthoma, dando, deste modo, mais uma “virada à porca do<br />

318 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 34)<br />

319 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 36).<br />

320 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 20).<br />

321 Para Lacan, perversão quer dizer apenas versão <strong>em</strong> direção ao pai. Em nota de rodapé da pág. 21<br />

do S<strong>em</strong>inário citado, o sinthoma, o tradutor esclarece que: a palavra francesa perversion<br />

(“perversão”) admite homofonias com père (“pai”), vers (“<strong>em</strong> direção a”) e version (“versão”).<br />

322 LACAN (loc.cit).<br />

323 Para maior compreensão de este t<strong>em</strong>a ler: LACAN, J. O espírito dos nós. In: O S<strong>em</strong>inário, livro<br />

23. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p.11-55.<br />

166


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

parafuso”. A configuração seguinte, à esquerda, esqu<strong>em</strong>atiza o imaginário, o<br />

simbólico e o real como separados uns dos outros. Vocês têm a possibilidade de<br />

ligá-los. Com o quê? Com o sinthoma, o quarto 324 .<br />

R I<br />

S<br />

Grafico 15 Os três elos separados e depois unidos pelo sinthoma, o quarto elo. 325<br />

É preciso destacar, por ser<strong>em</strong> conceitualizações diferentes, a orig<strong>em</strong> do<br />

termo “sintoma” para diferenciá-lo do termo sinthoma utilizado por Lacan como<br />

quarto elo. Considerar<strong>em</strong>os as colocações de José L. Machado Gaglioanone 326 , para<br />

a significação de sintoma na medicina, <strong>em</strong> Freud e <strong>em</strong> Lacan; como, também, as de<br />

sinthoma <strong>em</strong> Lacan. Assim ter<strong>em</strong>os que, o sintoma t<strong>em</strong> sua orig<strong>em</strong> na clínica<br />

médica, no novo estatuto científico da medicina; anteriormente pertencia ao campo<br />

sagrado e filosófico. Sua raiz é grega: syn e toma, o que significa cair <strong>em</strong> ou<br />

coincidência. O sintoma é aquilo do que o sujeito se queixa, deve ser considerado<br />

como uma falha à qual o discurso científico tenta dar uma resposta, tenta curá-lo.<br />

Quando não é possível, o médico dirá que saímos do campo da ciência e entramos<br />

no da psicanálise. Já que, para o saber da ciência, a psicanálise está “fora” dela, é<br />

um saber além dela.<br />

Para Freud, o sintoma não é como na medicina, um signo que faz sinal para<br />

alguém, este será a expressão de uma verdade recalcada. Ou seja, há uma<br />

verdade, um saber no sintoma que deve ser decifrado e pode ser lido. Por este<br />

324 LACAN (op. cit, p. 21).<br />

325 Id<strong>em</strong>, loc.cit.<br />

326 MACHADO GAGLIANONE (2008).<br />

O Sinthoma<br />

167<br />

R I<br />

S


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

motivo, Freud determina o sintoma como uma das formações do inconsciente, junto<br />

com o sonho, o chiste e o ato falho.<br />

Para Lacan, o sintoma terá uma estrutura significante e se trata de uma<br />

mensag<strong>em</strong> enviada ao Outro, um significante do qual não conhec<strong>em</strong>os o significado;<br />

mas também, corresponderia a uma fantasia inconsciente. O sintoma inclui <strong>em</strong> si o<br />

gozo, razão pela qual persiste mesmo sendo orig<strong>em</strong> de sofrimento. Para<br />

transformar-se <strong>em</strong> sintoma analítico será preciso que o sintoma, enquanto queixa,<br />

seja formulado no campo do Outro.<br />

Depois de Lacan ter entrado <strong>em</strong> contato com a obra de Joyce desenvolve a<br />

conceitualização de sinthoma, etimologia que r<strong>em</strong>ete a Saint Thomas, propriamente<br />

ao tomismo. 327 No S<strong>em</strong>inário, Livro XXIII, Lacan apresentará sua teoria sobre “O<br />

Sinthoma”. Vejamos algumas considerações a respeito.<br />

O sinthoma, Le sinthome <strong>em</strong> francês, é determinado pela sua função de letra,<br />

pois o gozo deste é um gozo outro 328 , diferente do gozo do sintoma. Deste modo, o<br />

sinthoma como sentido e forma de gozo assinala a posição subjetiva do sujeito, sua<br />

inserção no social, de “como faz” laço. Por expressar o que é mais particular ao<br />

sujeito, o sinthoma t<strong>em</strong> função de distinção e nomeação. É um gozo positivo porque<br />

implica na manutenção de uma comunicação, na manutenção do laço social. Se a<br />

letra é o encontro contingente com o que s<strong>em</strong>pre há estado, com a essência do “já<br />

estado” 329 (a universalidade do significante no inconsciente) estabelece, deste<br />

modo, a forma “singular” de um sujeito manter juntas a nível inconsciente as três<br />

diferentes dimensões (RIS), é seu modo individual de fazer nó. É, portanto, o<br />

sinthoma o que estrutura, por compensar a própria estrutura, a vida psíquica do ser<br />

humano. Sendo assim, esta dimensão singular do ato é uma modalidade de<br />

separação do sujeito da sombra simbólica do Outro 330 . Mas, se sinthoma é esta<br />

maneira singular e pulsional de manter a relação das instâncias Real, Imaginário e<br />

Simbólico unidas ao fazer nó, certamente, está presente no sintoma da mesma<br />

maneira que a letra está presente no significante por ser, esta, considerada como o<br />

suporte material do significante, portanto, na sua essência, o sinthoma, é irreduzível<br />

ao significante.<br />

327 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong>, p 66.<br />

328 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong>, p 70.<br />

329 RECALTI et al. (2006, p. 27).<br />

330 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p. 28).<br />

168


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

A consistência do quarto elo, conseqüent<strong>em</strong>ente, é dada pelo que Lacan<br />

atribui ao Nome-do-Pai, <strong>em</strong> sua função de dar o nome às coisas e <strong>em</strong> sua<br />

simbolização pulsional. Embora <strong>em</strong> o nó de três elos (RIS) estejam as três<br />

consistências mínimas que o sustentam, há necessidade de um quarto elo, um<br />

el<strong>em</strong>ento incondicionado (O Sinthoma/Nome-do-Pai) s<strong>em</strong> o qual nada é posto <strong>em</strong><br />

evidência. Se através do ato de nomear, o pai encarna a lei que regula a aliança, o<br />

interdito, os laços sociais e as identificações, o Nome-do-Pai funciona de forma a<br />

integrar o Sujeito, promovendo uma amarração pulsional como “operador estrutural”.<br />

É nesta referência à estrutura que a função do pai é determinada como função de<br />

nó.<br />

O pai como nome e como aquele que nomeia, não é<br />

o mesmo. O pai é esse quarto el<strong>em</strong>ento [...] s<strong>em</strong> o<br />

qual nada é possível no nó do simbólico, do<br />

imaginário e do real. Mas há outro modo de chamá-lo.<br />

É nisso que o que diz respeito ao Nome-do-Pai, no<br />

grau <strong>em</strong> que Joyce 331 test<strong>em</strong>unha isso, eu o revisto<br />

hoje com o que é conveniente chamar de sinthoma.<br />

[...] Na medida <strong>em</strong> que o inconsciente se enoda ao<br />

sinthoma, que é o que há de mais singular <strong>em</strong> cada<br />

indivíduo [...] identifica-se com o individual 332 .<br />

Por se enodar ao corpo, isto é, ao imaginário, por se<br />

enodar também ao real e, como terceiro, ao<br />

inconsciente, [dev<strong>em</strong>os considerar que] o sinthoma<br />

tenha seus limites. Porque ele acha seus limites, é<br />

que se pode falar de nó.<br />

O nó, certamente, é alguma coisa que se amassa,<br />

que pode tomar a forma de um novelo, mas que, uma<br />

vez desdobrado, mantém sua forma de nó e, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po, sua ex-sistência 333 .<br />

Achamos importante fazer um breve recorte para explicar que, ao longo dos<br />

anos <strong>em</strong> que Lacan desenvolveu sua teoria, muitos de seus conceitos foram se<br />

modificando através da experiência analítica clínica, sendo assim, a noção de Pai<br />

ganhou varias modificações. A causa destas modificações se deve á procura de<br />

Lacan por encontrar outra via pela qual a psicanálise pudesse prescindir dos nomes<br />

do pai <strong>em</strong> seus pontos cruciais.<br />

331 Através da escrita de Joyce, na sua obra Ulisses, é que Lacan desenvolve a conceitualização de<br />

Sinthoma.<br />

332 LACAN (2007, p. 163).<br />

333 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p 164-165).<br />

169


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Lacan a partir do S<strong>em</strong>inário, Livro III, As psicoses, e como coloca Alfredo<br />

Zenoni 334 , conduz a noção do Nome-do-Pai no singular, como, sustentação da<br />

ord<strong>em</strong> simbólica, como significante da Lei. O laço paterno introduz a dimensão do<br />

que no se vê, a dimensão da ausência. Ele supõe a crença na palavra, é<br />

fundamento do laço social reduzido a um símbolo. É um pai que regula o interdito e<br />

as identificações, mais este pai, na condição de normatizante [castra e proíbe] deve<br />

ser anulado no plano da presença e da imag<strong>em</strong>. Deste modo ele só atinge o status<br />

simbólico de sua função, pela anulação de sua própria condição de ser vivo (Freud<br />

já falava de “pai morto” ou “pai assassinado”).<br />

A partir do S<strong>em</strong>inário, Livro 4, A relação de objeto e do S<strong>em</strong>inário, Livro V, As<br />

formações do inconsciente, assevera Zenoni que, o que será decisivo na abordag<strong>em</strong><br />

lacaniana sobre a questão diz respeito, principalmente, à instância simbólica do<br />

Nome-do-Pai, a metáfora do pai. Esta instância simbólica advém do pai real. Lacan<br />

acentua menos a noção de um pai que proíbe a relação mãe-filho <strong>em</strong> favor de um<br />

pai que permite, mas que, como presença causa impacto sobre essa relação. Há,<br />

portanto uma disjunção entre o pai que porta a lei (que intervém simbolicamente ou<br />

pai de direito) e o pai que, de fato, intervém como pai real na relação.<br />

O importante aqui é desprender-se de uma idéia do<br />

pai que o identifica à função do interdito, que o limita<br />

ao puro significante, que se mede baixo os<br />

parâmetros de uma perfeição simbólica, para permitir<br />

a abertura de uma perspectiva sobre a função do pai<br />

na qual a dimensão da lei seja menos oposta e mais<br />

articulada ao desejo 335 .<br />

Pelo que v<strong>em</strong>os, quando Lacan utiliza o termo Nome-do-Pai o faz como uma<br />

metáfora, um deslocamento relativo entre o Nome-do-Pai e o pai de família. Onde<br />

existia um único significante mestre (Pai) que dava garantia aos outros, agora ocorre<br />

a noção de “fundação” contingente encarnada na diversidade de significantes<br />

mestres, relativos, históricos. O Nome-do-Pai é uma função que está no âmbito do<br />

simbólico, no coração da organização simbólica, enquanto o pai de família vincula-se<br />

ao complexo familiar. É essa coordenação que permite pensar como pode haver<br />

Nome-do-Pai na ausência do pai de família 336 . A metáfora paterna funciona como<br />

princípio de estabilização, ela é o ponto de parada do deslocamento dos significados<br />

334 ZENONI (2007, p. 15-19).<br />

335 ZENONI (loc cit).<br />

336 Ver COELHO dos SANTOS (2006).<br />

170


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

sob os significantes e que Lacan chamou de ponto de estofo. Esta metáfora permite<br />

uma significação à questão do ser por dar conta de “algo a significar”, o que é<br />

denominado por Lacan de ser do sujeito, ser do ente ou ainda sua inefável e<br />

estúpida existência 337 .<br />

Em relação à função do Nome-do-Pai nos r<strong>em</strong>eter<strong>em</strong>os a Miller para a melhor<br />

compreensão de mesma:<br />

Entendamos: o Pai não t<strong>em</strong> Nome próprio. Não é<br />

uma figura, é uma função. O Pai t<strong>em</strong> tantos nomes<br />

quantos suportes t<strong>em</strong> a função. Sua função? A<br />

função religiosa por excelência, a de ligar. O quê? O<br />

significante ao significado, a Lei e o desejo, o<br />

pensamento e o corpo. Em suma, o simbólico e o<br />

imaginário. Com a ressalva de que, se esses dois se<br />

ligam a três com o real, o Nome-do-Pai vira um mero<br />

s<strong>em</strong>blante. Em contrapartida, s<strong>em</strong> ele tudo se desfaz,<br />

ele é o sintoma do no fracassado 338 .<br />

Como já especificado o sinthoma <strong>em</strong> sua função de letra, como Nome-do-Pai,<br />

t<strong>em</strong> a função de unir, de ligar, é um encontro: o encontro contingente com o que<br />

s<strong>em</strong>pre há estado, com a essência do “já estado”, com a universalidade do<br />

significante, no inconsciente, como já colocamos. Porém, que modalidade de<br />

“encontro” é este? Dev<strong>em</strong>os destacar que, para Lacan 339 no apólogo da chuva<br />

narrado <strong>em</strong> Lituraterra, texto de 1971, o “encontro” é um efeito da articulação original<br />

na composição das coisas (clinam<strong>em</strong>) 340 .<br />

O encontro da chuva que cai sobre a terra, liberada<br />

da nuv<strong>em</strong> do significante, produz uma erosão, deixa<br />

um traço, da marca singular [..] irredutível à<br />

universalidade do significante: marca única, signos<br />

irrepetíveis se desenham sobre a terra no limite – no<br />

litoral – entre significado e goze [...] a marca depende<br />

da universalidade da nuv<strong>em</strong> do Outro da qual chove<br />

significado e goce, mas sua existência material sobre<br />

a terra é um fato absolutamente singular; fruto de<br />

uma contingência inassimilável respeito a qualquer<br />

determinação significante 341 .<br />

A letra como traço, como marca singular, encontra-se no amplo litoral entre o<br />

lado do Real, pelo gozo pulsional, e o lado do Simbólico e Imaginário, pelo saber<br />

337 MACHADO GAGLIANONE (2008, p. 67).<br />

338 MILLER (2005) in: LACAN (2005, contracapa).<br />

339 LACAN apud RECALTI (2006, p. 28).<br />

340 Este conceito de encontro aproxima as teorias: sobre sinthoma de Lacan; sobre materialismo do<br />

encontro de Althusser, e sobre estética relacional de Bourriaud.<br />

341 RECALTTI (2006, p.28).<br />

171


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

significante. Assim t<strong>em</strong>os o “litoral” como o lugar de cumplicidade da letra com o Real<br />

que se torna “literal” quando algo do sentido passa a ser lido como significado,<br />

quando a letra transita pelo significante, o lugar do saber no inconsciente. Se o<br />

quarto elo cumpre sua função de letra, como Nome-do-Pai, é porque faz união, liga,<br />

faz nó, modificando os pontos de encontro dos registros e evitando o<br />

desencadeamento dos mesmos. Com quatro elos, há uma resistência natural dos<br />

nós à homogeneização. Três deles obedec<strong>em</strong>, mas há um que resiste, que fica<br />

entrelaçado no meio da cadeia. A este nó Lacan 342 o chamou de o nó da banana, que<br />

insiste <strong>em</strong> deslizar, já que, conforme sua amarração seja com o Real, o Imaginário ou<br />

o Simbólico seu efeito será diferente.<br />

Há, <strong>em</strong> Lacan, uma insistência <strong>em</strong> pôr a arte <strong>em</strong> relação determinante com o<br />

Real por ser esta, a arte, a que acompanha por meio da letra o trajeto da pulsão <strong>em</strong><br />

torno ao objeto, estabelecendo-se como uma passag<strong>em</strong> privilegiada com algo que é<br />

da ord<strong>em</strong> do vazio. Esta insistência de Lacan não só se manifesta através de uma<br />

estética da letra, mas também na estética do vazio e na estética anamórfica; três<br />

modos 343 que não se substitu<strong>em</strong>, mas conviv<strong>em</strong> <strong>em</strong> tensão constante. Mas este é<br />

outro exercício do pensar e da escrita.<br />

Seus pés estavam cansados - de qu<strong>em</strong> eram os sapatos que você estava usando?<br />

342 GOMES VICTORA, L. (2006, loc. cit).<br />

343 Ver RECALTTI (2006).<br />

172<br />

Margaret Atwood.


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

APÊNDICE II<br />

1 DOIS BREVES RECORTES ESPECÍFICOS:<br />

1.1 O DOMÍNIO DO VERBAL E O FALANTE<br />

Há apenas que dialetizar [...] a partir de seu ponto<br />

central, que é seu ponto de inquietude, de suspensão, de<br />

entr<strong>em</strong>eio.<br />

173<br />

Georges Didi-Huberman<br />

O domínio do verbal não é uma conquista do desenvolvimento cognitivo ou<br />

simbólico, mas uma condição inerente ao falante como tal. Como ser da linguag<strong>em</strong> o<br />

sujeito humano se constitui no domínio do verbal. Trata-se este domínio de um<br />

campo, um território, um universo que contém e subsume o sujeito, mas do que uma<br />

função é algo que o sujeito pode dominar ou não. Mesmo que não tenha a função da<br />

fala ainda assim estará no campo da linguag<strong>em</strong>, na medida <strong>em</strong> que é ser falante<br />

que se constitui no mundo da linguag<strong>em</strong>, do humano 344 .<br />

Especificamente <strong>em</strong> relação ao domínio da fala Bondía 345 coloca que, o<br />

hom<strong>em</strong> é palavra, é tecido pela palavra, seu modo de viver se dá pela palavra e<br />

como palavra. Elas produz<strong>em</strong> sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam<br />

como potentes mecanismos de subjetivação. As palavras têm poder, força, porque<br />

faz<strong>em</strong>os coisas com elas e elas faz<strong>em</strong> coisas conosco; determinam nosso<br />

pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras e a partir<br />

de palavras.<br />

E pensar, como o autor mencionado coloca, não é somente “raciocinar” ou<br />

“calcular” ou “argumentar” é dar sentido ao que somos e ao que nos acontece, onde<br />

o “sentido” ou o “não sentido” t<strong>em</strong> a ver com as palavras. T<strong>em</strong> a ver com as palavras<br />

o modo como nos colocamos diante de nós mesmos e diante do mundo <strong>em</strong> que<br />

viv<strong>em</strong>os, é o caso do sentido “simples” da escolha de palavras-chaves nos textos<br />

acadêmicos. Em Arte, por ex<strong>em</strong>plo, artistas como Robert Barry, Bárbara Kruger,<br />

344 ELIA (2007, p. 21-22).<br />

345 BONDÍA (2002).


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Jenny Holzer, o grupo ativista Guerrilha Girls, o grupo Arte & Linguag<strong>em</strong> entre<br />

outros, fizeram uso de palavras “significantes” para se posicionar ante a realidade.<br />

Fig. 58 Guerrilha Girls - Don´t stereotype me!,<br />

2003.<br />

Fig. 60 Bárbara Kruger - Untitled (Questions),<br />

1991.<br />

174<br />

Fig. 59 Robert Barry na Yvon Lambert,<br />

2009.<br />

Fig. 61 Jenny Holzer - Válogatott írások, Solomon<br />

R. Guggenheim Museum, 1990.<br />

O grupo “Arte & Lenguag<strong>em</strong>” -A&L (surgido na Inglaterra na década do 60 e<br />

formado por Michael Baldwin, Terry Atkison, Harold Hurrel e David Bainbrige) <strong>em</strong><br />

seus escritos e discussões que constituíam <strong>em</strong> si mesmos a “obra” de A&L


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

enfocavam, com olhar crítico, os acontecimentos recentes na arte e suas<br />

implicações para as teorias predominantes do modernismo 346 .<br />

A relação entre “arte” e “linguag<strong>em</strong>” nunca foi, para o<br />

grupo, uma relação direta de forma e material, prática<br />

e interpretação, e n<strong>em</strong>, certamente, de imag<strong>em</strong> e<br />

comentário. As duas estavam muito mais intimamente<br />

conectadas a um discurso trazido por um coletivo<br />

cujos m<strong>em</strong>bros individuais ‘não procuravam tanto ser<br />

os autores da [sua] obra quanto agentes dentro de<br />

uma prática que a produzia’ 347 .<br />

Estamos, por tanto, ante o âmbito do discurso que nos insere no domínio da<br />

ideologia ou, melhor, no sentido da ideologia. Ideologia, neste contexto e retomando<br />

a conceitualização dada por Leandro Ferreira 348 , é uma “tomada de consciência” da<br />

realidade, como “pensamento” historicamente situado e/ou como um “reflexo” da<br />

realidade. A ideologia, assim considerada, seria uma espécie de representação<br />

mental de uma situação determinada e fatível de ser comunicada, também, através<br />

das palavras.<br />

1.2. FOSTER: O RETORNO AO REAL-TRAUMÁTICO<br />

Hall Foster (2001), crítico de arte, no seu texto El Retorno de lo real 349 ,<br />

utilizará a noção lacaniana do Real, para considerar uma série de manifestações na<br />

Arte, especialmente americana, identificados como arte pop, ilusionismo e<br />

apropriacionismo. Utilizar a noção lacaniana do Real implica num giro bastante<br />

significativo desde o ponto de vista da crítica: uma percepção da arte como<br />

deslocamento traumático da realidade na adjacência ao Real.<br />

Esta proposta de Foster sobre a leitura de imagens surge como variante<br />

frente aos dois modelos usados pela crítica na época: o referencial (ligado a t<strong>em</strong>as<br />

auto-referenciais como a análise dos referentes, t<strong>em</strong>as iconográficos, coisas reais do<br />

mundo) e o simulacral (baseado na desimbolização do objeto utilizada por Barthes,<br />

346 ARCHER (2001, p. 85).<br />

347 Ibid (p 81- 82).<br />

348 LEANDRO FERREIRA (2006, loc.cit.).<br />

349 O texto, El retorno de lo real, foi publicado no livro homônimo: El retorno de lo real. La<br />

vanguardia a finales de siglo. Madrid, España: Alkal, 2001.<br />

175


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Baudrillard, Foucault, Deleuze mesmo com algumas variações) Foster propõe outro<br />

modelo de leitura: o realismo traumático.<br />

Porque traumático? Porque como Foster 350 afirma se as imagens das<br />

manifestações de arte pod<strong>em</strong> ser lidas como referenciais e simuladas, conectadas y<br />

desconectadas, afetivas e desafetas, críticas e complacentes, [...] dev<strong>em</strong>os e<br />

pod<strong>em</strong>os, sim, lê-las [...] <strong>em</strong> termos de um realismo traumático. Entretanto <strong>em</strong><br />

relação a isto o autor esclarece:<br />

[Mesmo que] não existindo um realismo traumático<br />

como tal, [este enfoque] é útil como noção heurística,<br />

<strong>em</strong>bora seja como via de saída da estagnada<br />

oposição entre a nova história da arte (os métodos<br />

s<strong>em</strong>ióticos frente aos histórico-sociais, o texto frente<br />

ao contexto) e a crítica cultural (o significante frente<br />

ao referente, o sujeito construtivista frente ao corpo<br />

naturalista) 351 .<br />

Com uma idéia de “realismo traumático” cabe aqui, de acordo com Foster,<br />

uma forma de pensar o “trauma” (ferida) através de um discurso no qual a comoção<br />

se repensa por meio da efetividade psíquica e a fantasia imaginária. Considerando o<br />

esqu<strong>em</strong>a da visualidade de Lacan 352 , já analisado no corpo principal da dissertação,<br />

Foster coloca que certa arte pós-moderna rasga, ou sugere que rasga a Tela, lugar<br />

da representação <strong>em</strong> forma de imag<strong>em</strong> “instituída” e aceita dentro do simbólico. Em<br />

relação à Tela se manifesta da seguinte maneira:<br />

Entendo que se refere à reserva cultural da que cada<br />

imag<strong>em</strong> é um ex<strong>em</strong>plo. Constituída pelas convenções<br />

da arte, os esqu<strong>em</strong>as da representação, os códigos<br />

da cultura visual, esta Tela media A Mirada do objeto<br />

para o sujeito, mas também protege ao sujeito de A<br />

Mirada do objeto 353 .<br />

Por essa Tela rasgada, lugar do armistício que mostra o que o Simbólico<br />

“esconde” e “aquilo” do qual me protege, o Real escoa, penetra. (“uma aba solta da<br />

tenda se incendeia, e pela abertura enegrecida você pode ver os olhos dos<br />

urradores.” M.Atwood).<br />

350 FOSTER (2001, p. 132-133, passim).<br />

351 Ibid<strong>em</strong> (p. 133, tradução nossa).<br />

352 Ver sobre o t<strong>em</strong>a: LACAN. S<strong>em</strong>inário 11, cap. VIII, 1985; FOSTER, H (2001, p. 129-172) e<br />

HMELJEVSKI (2006, p. 35-38).<br />

353 FOSTER (op. cit, p.143)<br />

176


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Neste enfoque crítico, como realismo traumático, Foster coloca infiltrando-se<br />

através da Tela o adjeto, o obsceno, o pornográfico, o perverso, o grotesco, o vazio<br />

os quais se manifestam através do trabalho de alguns artistas cont<strong>em</strong>porâneos. Para<br />

isto ele analisa trabalhos como os de Andy Warhol (Automóvel branco <strong>em</strong> chamas III,<br />

1963; Desastre com ambulância, 1963; Veludo nacional, 1963). Cindy Sherman.<br />

(Aqui Foster faz alusão a que as fases da obra da artista passam pelas três posições<br />

do diagrama de visibilidade lacaniano) S<strong>em</strong> título #2, 1977; S<strong>em</strong> título # 183, 1988;<br />

S<strong>em</strong> título, # 153, 1985; entre outras. Richard Prince (S<strong>em</strong> título – por de sol -, 1981;<br />

S<strong>em</strong> título – vaqueiro-, 1989). Kiki Smith (S<strong>em</strong> título, 1992). Robert Gober<br />

(Chiqueirinho inclinado para bebê,1987; S<strong>em</strong> título, 1990). André Serrano (O Cristo<br />

da urina, 1987). John Miller (Dick/Jane, 1991). Mike Kelly (Descrição nostálgica da<br />

inocência da infância, 1990). Zoe Leonard (Fruto cosido, 1993) 354 .<br />

Fig. 62 Robert Gober – S<strong>em</strong> título, 1990. Fig. 63 Cindy Shernan – S<strong>em</strong> título #153, 1985<br />

354 Ante a impossibilidade, neste escrito, de uma análise mais apurada da conceitualização de Foster<br />

ao respeito do t<strong>em</strong>a, sugerimos a leitura integral do texto original El retorno de lo real. IN: FOSTER, H<br />

El retorno de lo real. La vanguardia a finales de siglo. Madrid, España: Alkal, 2001. p.129-172.<br />

177


<strong>Dissertação</strong> de Mestrado__________________________________________________________ Ana Hmeljevski - 2009-08-07<br />

Fig. 64 Andy Warhol – Automóvel branco <strong>em</strong><br />

chamas III, 1963<br />

Fig. 65 Kiki Smith - S<strong>em</strong> título, 1992.<br />

Com foco nos recursos utilizados pelos artistas, Foster analisará a repetição, o<br />

punctum, o hiper-realismo, através dos quais percebe nos trabalhos destes artistas,<br />

um deslocamento da atenção da Tela, onde está a imag<strong>em</strong>, para a imag<strong>em</strong> olhada<br />

desde o objeto. Estas obras apresentam deste modo, um giro na teoria lacaniana do<br />

Simbólico para o Real, como coloca Slavoj Zizek 355 . Certamente se refere ao Real-<br />

Simbólico. No mesmo texto Foster argumenta que, no discurso do trauma o sujeito é<br />

desacreditado e elevado ao mesmo t<strong>em</strong>po. Isto porque, na cultura popular o trauma<br />

se trata como um acontecimento que garante o sujeito e, neste registro “psicologista”,<br />

o sujeito por mais perturbado, desacreditado, que esteja retorna, rapidamente, como<br />

test<strong>em</strong>unho, como super-vivente. Este estranho renascimento do autor, esta<br />

paradoxal condição de autoridade ausente, constitui um giro na arte, na crítica e na<br />

política cultural cont<strong>em</strong>porânea. Aqui o retorno ao real, converge com o retorno ao<br />

referencial 356 . Também é certo que essa arte não doma o olho como, de igual modo,<br />

não é uma cilada para A Mirada.<br />

É um fato que cada um de nós pode vivenciar que, quando alguém se sente baixo um olhar, um olhar<br />

não atribuível, trata-se poucas vezes de um olhar acolhedor, condescendente, amável; s<strong>em</strong>pre há aí<br />

algo inquietante.<br />

355 FOSTER (2001, p. 156, nota de rodapé).<br />

356 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong> (p 172).<br />

178<br />

Gerard Wacjman


P385<br />

Pellarin de Hmeljevski, Ana Matilde, 1951-<br />

Fundamentações e prática de processos artísticos<br />

cont<strong>em</strong>porâneos <strong>em</strong> arte pública / Ana Matilde Pellarin<br />

de Hmeljevski ; orientador: José Luiz Kinceler, 2009<br />

178 p. : Il. ; 30 cm<br />

Bibliografia: p.130-138<br />

<strong>Dissertação</strong> (mestrado) – Universidade do Estado de<br />

Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pósgraduação<br />

<strong>em</strong> Artes Visuais, Florianópolis, 2009.<br />

1. Arte Pública – 2. Pós-modernismo – 3. Arte<br />

Moderna Séc. XX – 4. Arte cont<strong>em</strong>porânea - Séc. XXI.–<br />

5. Sujeito (arte). I. Kinceler, José Luiz. II. Título.<br />

CDD: 707

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