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(1) De Olhos Abertos (Marguerite Yourcenar) - Amara

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<strong>De</strong> <strong>Olhos</strong> <strong>Abertos</strong> *<br />

(<strong>Marguerite</strong> <strong>Yourcenar</strong>)<br />

E é por isso que, no fundo, não tenho por mim mesma mais do que um<br />

interesse limitado. Tenho a impressão de ser um instrumento através do<br />

qual passaram correntes, vibrações. Isto é válido para todos os meus livros<br />

e direi mesmo que para toda a minha vida. Talvez para todas as vidas; e os<br />

melhores de nós talvez não sejam, também eles, mais que cristais<br />

trespassados. Assim, a propósito dos meus amigos, vivos ou mortos, repito-<br />

me muitas vezes a frase admirável que me disseram ser de Saint-Martin, «o<br />

filósofo desconhecido» do século XVIII, tão desconhecido de mim que<br />

nunca li uma linha dele e nunca verifiquei a citação: «Há seres através dos<br />

quais <strong>De</strong>us me amou.» Tudo vem de mais longe e vai mais longe que nós. Por<br />

outras palavras, tudo nos ultrapassa e sentimo-nos humildes e maravilhados<br />

por termos sido assim trespassados e ultrapassados.<br />

- Isso não conduzirá a uma atitude passiva perante a vida<br />

- <strong>De</strong> modo nenhum. É preciso penar e lutar até ao fim, nadar no rio sendo-se<br />

simultaneamente trazido e levado por ele e aceitar antecipadamente a<br />

saída, que é soçobrar ao largo. Mas quem é que soçobra? Basta aceitar os<br />

males, as preocupações, as doenças dos outros e as nossas, a morte dos<br />

outros e a própria, fazendo de tudo isto uma parte natural da vida, como<br />

teria feito, por exemplo, o nosso Montaigne, o homem que, no Ocidente,<br />

talvez se tenha parecido mais com um filósofo taoísta, e que só os leitores<br />

superficiais tomam por um antimístico. A morte, suprema forma de vida...<br />

Sobre este ponto, penso exactamente o contrário de Júlio César, que<br />

desejava morrer o mais depressa possível (o que quase lhe aconteceu). Pela<br />

minha parte, acho que desejaria morrer com pleno conhecimento, com uma<br />

doença de processo suficientemente lento para permitir que a morte de<br />

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algum modo se inserisse em mim, para ter tempo de a deixar desenvolver-se<br />

inteiramente.<br />

- Porquê!<br />

- Para não perder a última experiência, a passagem. Adriano fala em<br />

morrer de olhos abertos. E foi nesse espírito que fiz Zénon viver a sua<br />

morte.<br />

- Parecer-se-ia com Proust, que modificou a morte de Bergotte<br />

decalcando-a da sua ...<br />

- Compreendo muito bem que ele tenha tentado fazê-lo. Essa utilização<br />

do seu próprio fim é uma espécie de heroísmo do romancista. Para mim,<br />

tratar-se-ia antes de não perder uma experiência essencial, e é porque faço<br />

questão de fazê-la que acho destestável que se roube a morte a alguém.<br />

Nos Estados Unidos, o corpo médico é de uma sinceridade espantosa, ao<br />

passo que em França os médicos, e sobretudo as famílias, gastam muitas<br />

vezes o tempo escondendo dos doentes o que se passa. <strong>De</strong>saprovo essa<br />

atitude. Pelo contrário, amo e respeito as pessoas que preparam a sua<br />

morte.<br />

- Isso obriga a viver em constante intimidade com o fim.<br />

- O que está muito bem. Temos de pensar amigavelmente na nossa<br />

morte, mesmo que haja uma instintiva repugnância em fazê-lo. É verdade<br />

que os animais não pensam nisso. E ainda assim! Vê-se alguns animais que,<br />

com toda a evidência, prevêem a própria morte.<br />

- Apesar disso, estamos muito desarmados perante essa<br />

passagem.<br />

- Tão desarmados que talvez acabemos chorões ou apavorados, mas sem<br />

dúvida que se tratará de uma simples reacção física, como o enjoo no mar.<br />

A aceitação, que é o que importa, terá tido lugar anteriormente.<br />

E depois, quem sabe? Talvez sejamos amparados por recordações, como<br />

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por anjos. Os místicos tibetanos asseguram os moribundos são amparados<br />

pela presença daquilo em que acreditaram: Shiva ou Buda, para uns, Cristo<br />

ou Maomé, para outros. Os cépticos puros ou as pessoas com falta de<br />

imaginação nada verão, sem dúvida como o quarto oficial de Malbrouck que<br />

não trazia nada. Um amigo meu, reanimado depois de quase se ter afogado,<br />

disse-me que era verdadeira a crença popular que diz que se revê toda a<br />

vida de fulgurante; se assim fôr, pode ser desagradável. Talvez devessemos<br />

ser mais selectivos; mas que quereria eu rever?<br />

Talvez os jacintos do Mont-Noir ou as violetas do Connecticut na Primavera;<br />

as laranjas astuciosamente penduradas nos ramos por meu pai, num jardim<br />

do Midi; um cemitério na Suíça, inundado de rosas: um outro sob a neve, no<br />

meio de abetos brancos e outros ainda, cuja localização nem sequer conheço<br />

o que, afinal, não tem qualquer importância. As dunas, tanto na Flandres<br />

como mais tarde nas ilhas-barreiras da Virgínia, com o ruído do mar que vem<br />

desde o princípio do mundo; a humilde caixinha de música suíça, que toca<br />

pianíssimo uma ariazinha de Haydn, e que pus a trabalhar à cabeceira de<br />

Grace, uma hora antes da sua morte, no momento em que os contactos e as<br />

palavras já não a atingiam; ou ainda as longas torrentes de pedaços de gelo<br />

nos rochedos de Mount-<strong>De</strong>sert; ao longo dos quais, em Abril, a água<br />

encontra a saída e jorra com um ruído de fonte. O cabo Sounion, ao pôr-do-<br />

sol; o Olimpo, ao meio-dia; camponeses numa estrada de <strong>De</strong>lfos, oferecendo<br />

à estrangeira, em troca de nada, os chocalhos da mula; a missa de<br />

Ressurreição, numa aldeia de Eubeia, depois de uma travessia nocturna, a<br />

pé, pela montanha; uma chegada matinal a Segesta, a cavalo, por carreiros<br />

então desertos, pedregosos e que cheiravam a tomilho. Um passeio a<br />

Versalhes, por uma tarde sem sol, ou aquele dia, em Corbridge, ao<br />

Northumberland, em que deitada no meio de um campo de escavações<br />

invadido pelas ervas me deixei passivamente impregnar pela chuva, como os<br />

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ossos dos mortos romanos. Gatos recolhidos com André Embiricos numa<br />

aldeia da Anatólia; o «jogo do anjo», na neve; uma descida louca de<br />

toboggan, do alto de uma colina tirolesa, sob as estrelas cheias de<br />

presságios. Ou ainda, mais próximos, apenas suficientemente decantados<br />

para serem já recordação, o mar verde dos Trópicos, aqui e além manchado<br />

de óleo; um voo triangular de cisnes selvagens a caminho do Árctico, o sol<br />

nascente da Páscoa (que não sabia que era o sol da Páscoa), visto este ano de<br />

um espigão rochoso de Mount-<strong>De</strong>sert, tendo mais abaixo um lago<br />

semicongelado, estilhaçado com a proximidade da Primavera…<br />

Atiro estas imagens desordenadamente e sem pretender fazer delas<br />

símbolos. E sem dúvida que lhe deveria acrescentar alguns rostos amados,<br />

vivos ou mortos, à mistura com rostos imaginários, ou tirados da História.<br />

Ou talvez nada disto, ou tão somente o grande vazio azul-branco que o<br />

octogenário Honda, o juiz de olhos perspicazes e que é, ao mesmo tempo, no<br />

sentido mais ofensivo da palavra, um voyeur, contempla perto do fim, no<br />

último romance de Mishima, terminado algumas horas antes de este morrer.<br />

Vazio flamejante como um céu de Verão, que devora as coisas e cujo preço é<br />

que tudo o resto não passe de um desfile de sombras.<br />

- Talvez não seja por acaso que vai buscar este exemplo a um romance<br />

japonês. Parece-me que o Budismo teve sobre si grande influência.<br />

- Tenho várias religiões, como tenho várias pátrias, de modo que, num<br />

certo sentido, talvez não pertença a nenhuma. <strong>De</strong>certo que não penso em<br />

renegar o Homem que disse que aqueles que tiverem fome e sede de justiça<br />

serão saciados (num outro mundo, com toda a certeza, porque tal não é a<br />

verdade para o nosso), e que os puros verão a <strong>De</strong>us, e que em paga se fez<br />

crucificar (“Oh, oh, às vezes, ponho-me a tremer quando penso nisso”, diz<br />

um dos mais belos spirituals ), mas ainda menos renuncio à sabedoria<br />

taoista, semelhante a uma água límpida, ora clara, ora sombria, sob a qual se<br />

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distingue o fundo escondido das coisas. Sinto-me grata, pelo que me<br />

ensinaram de precioso sobre mim mesma e, na medida em que empreendi e<br />

prossigo o estudo, ao Tantrismo e aos seus métodos quase psicológicos de<br />

despertar as forças do espírito e do corpo, e ao Zen, essa lâmina faiscante.<br />

Sobretudo, continuo profundamente ligada ao conhecimento búdico,<br />

estudado através das suas diferentes escolas, que, como as diferentes<br />

seitas cristãs, me parecem menos contradizerem-se do que<br />

complementarem-se. Não só a sua compaixão para com todos os seres vivos<br />

amplia as nossas noções, frequentemente estreitas, de caridade; não só,<br />

como os pré-socráticos, recoloca o homem passageiro, num universo que<br />

passa; como também, como Sócrates (ainda que entregando-se-lhe, bem<br />

entendido), nos previne contra as especulações metafísicas ambiciosas para<br />

nos incitar, sobretudo, conhecermo-nos melhor. E, tanto quanto as modernas<br />

filosofias consideradas das mais audaciosas, insiste na necessidade de<br />

dependermos apenas de nós mesmos: “Sede para vós mesmos como uma<br />

lâmpada…”.<br />

- Esse é um dos “votos búdicos” a que por vezes tem feito alusão?<br />

- Os ”quatro votos búdicos”, que de facto recitei muitas vezes durante a<br />

minha vida, hesito em repeti-los neste momento perante si, porque um voto<br />

é uma prece e mais secreto ainda do que uma prece. (As pessoas que nos<br />

dizem para “fazermos um voto” ao comermos os primeiros morangos do ano<br />

ou ao olharmos a lua cheia, aconselham-nos sabiamente a não o contarmos).<br />

Mas, simplificando, trata-se do seguinte: lutar contra todas as nossas más<br />

inclinações; entregarmo-nos ao estudo até ao fim; aperfeiçoarmo-nos na<br />

medida do possível; e, finalmente, “por mais numerosas que sejam as<br />

criaturas errantes na extensão dos três mundos”, isto é, no Universo,<br />

“trabalhar para salvá-las”. <strong>De</strong>sde a consciência moral até ao conhecimento<br />

intelectual, desde o aperfeiçoamento de si até ao amor e compaixão pelos<br />

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outros, está tudo ali, parece-me, nesse texto velho de alguns vinte e seis<br />

séculos.<br />

- E pô-los em prática, esses votos?<br />

- Uma vez em mil. Mas já é alguma coisa pensar-se neles.<br />

* <strong>Yourcenar</strong>, <strong>Marguerite</strong> – <strong>De</strong> olhos abertos, (1980), ed. DISTRI EDITORA – GRUPO<br />

ELECTROLIBER, 1984, pp. 224-228.<br />

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