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O princípio moral-didatizante no romance oitocentista

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GRUPO DE TRABALHO 6<br />

TEORIA E PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL<br />

O PRINCÍPIO MORAL-DIDATIZANTE NO<br />

ROMANCE OITOCENTISTA<br />

Ewerton de Sá Kaviski


Resumo<br />

O PRINCÍPIO MORAL-DIDATIZANTE NO ROMANCE OITOCENTISTA<br />

Ewerton de Sá Kaviski*<br />

O objetivo desta comunicação é apresentar certas reflexões, propostas como projeto de mestrado,<br />

que vêm sendo desenvolvidas <strong>no</strong> Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do<br />

Paraná. Trata-se, na verdade, de rastrear e mapear certas relações entre a prosa de ficção e a vida<br />

ideológica do Oitocentos brasileiro. Com base <strong>no</strong> caráter <strong>moral</strong>izante das narrativas deste período, o<br />

centro de interesse do trabalho é estabelecer tanto certos condicionamentos da obra literária, como<br />

certos impasses de sublimação para a representação literária por parte de <strong>no</strong>ssos escritores.<br />

Privilegia-se, para o presente estudo, uma abordagem de acumulação de experiência literária, que<br />

tem como pa<strong>no</strong> de fundo a tentativa de constituição de um sistema literário. Não fugirá de <strong>no</strong>sso<br />

interesse certos problemas constitutivos de <strong>no</strong>ssa formação cultural, social e histórica de países<br />

periféricos. Pretende-se evidenciar que a prosa de ficção não só registrou <strong>no</strong>ssa situação de países a<br />

margem do sistema capitalista, como ofereceu soluções, <strong>no</strong> campo da representação literária, para<br />

elas.<br />

Preliminares: a situação da pesquisa<br />

As considerações que se seguem são parte integrante do pré-projeto aprovado para o exame<br />

de seleção 2009 do Programa de Pós-Graduação em Letras, ênfase em estudos literários, da<br />

Universidade Federal do Paraná. O objetivo desta exposição é dar <strong>no</strong>tícias de algumas proposições,<br />

formulações e hipóteses acerca do estudo que vem sendo desenvolvido sobre a presença do<br />

<strong>moral</strong>ismo <strong>no</strong> <strong>romance</strong> <strong>oitocentista</strong>.<br />

As metas a serem alcançadas, de acordo com a proposta preliminar apresentada junto ao<br />

Programa, são duas. A primeira, de âmbito mais geral, visa desenvolver um conjunto de<br />

formulações acerca da prosa do período formativo inicial 1 . Trata-se de abordar os <strong>romance</strong>s que<br />

antecederam a entrada de Machado de Assis <strong>no</strong> canário das letras nacionais, buscando entendê-los<br />

como obras integradas e articuladas por elementos de duas ordens, a saber, sócio-histórica e<br />

ideológica. Dito de outro modo, o objetivo geral da proposta é fixar um movimento amplo da prosa<br />

<strong>oitocentista</strong> de modo que se evidenciem continuações e rupturas dentro da dinâmica do <strong>no</strong>sso<br />

sistema literário a partir das relações entre processo social e literatura. Num âmbito mais específico,<br />

e que não será contemplado nas presentes considerações, o objetivo da proposta de trabalho é de<br />

debruça-se sobre a obra de Franklin Távora buscando evidenciar aquele movimento mais geral da<br />

prosa de ficção <strong>oitocentista</strong> e as conseqüências para a fatura das obras deste romancista.<br />

Para tanto, tratarei exclusivamente daquilo que optei por chamar de <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<br />

<strong>didatizante</strong> por ter este uma recorrência surpreendente <strong>no</strong> discurso ficcional. Este conceito deve ser<br />

* Mestrando pela Universidade Federal do Paraná e bolsista CNPq.<br />

1 O período formativo inicial deve ser entendido, aqui, como a fase romântica da ficção em prosa <strong>no</strong> Brasil que vai,<br />

grosso modo, de 1843 a 1880.


compreendido como toda manifestação da instância narrativa, mas em alguns casos da instância<br />

autoral também, e que tem como traço principal o intuito de edificar, vicariar, didatizar, instruir e<br />

corrigir comportamentos, idéias, costumes, atitudes e situações histórico-sociais plasmadas<br />

ficcionalmente na obra com base em uma constelação de valores, que por hora prefiro chamar,<br />

liberais. Ao mesmo tempo, o <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> deve ser entendido como conceito que vai<br />

para além do texto, embora esteja subordinado a ele dialeticamente, motivada pela vida social e<br />

ideológica do <strong>no</strong>sso 19 de afinar <strong>no</strong>ssa experiência cultural com outra de ordem diversa, a saber,<br />

européia.<br />

Trata-se de um traço, se não exclusivo, pelo me<strong>no</strong>s predominante da prosa de ficção do<br />

período selecionado, e que possui, ao que parece, fortes desdobramentos em <strong>no</strong>ssa tradição literária.<br />

Este <strong>princípio</strong> sintetiza também certos impasses e soluções, para bem e para mal, de <strong>no</strong>ssa formação<br />

cultural, possuindo fortes vínculos com <strong>no</strong>sso processo civilizatório. Assim, parece pertinente<br />

sustentarmos a hipótese de que o <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> é, <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> do texto literário, um elo<br />

crucial de articulação entre <strong>no</strong>ssa literatura <strong>oitocentista</strong> e <strong>no</strong>sso processo social.<br />

Por último, repito, as considerações aqui desenvolvidas são preliminares e que, portanto,<br />

necessitam de desdobramentos, nuances e aprofundamentos que estão sendo realizados neste<br />

primeiro a<strong>no</strong> de atividades da pesquisa.<br />

O <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong><br />

Um dos aspectos mais curiosos e recorrentes quando da leitura da prosa de ficção do <strong>no</strong>sso<br />

século XIX, especialmente em seu período formativo inicial, é a insistente intervenção injuntiva do<br />

narrador junto à fabulação. São interrupções do fluxo narrativo para não só apresentar as<br />

personagens, encaminhar o enredo ou descrever o espaço (procedimentos estratégicos de articulação<br />

discursiva recorrentes nas narrativas em terceira pessoa), mas para comentar sobre os<br />

acontecimentos narrados com forte intuito de <strong>moral</strong>izar e ensinar, <strong>no</strong> sentido estrito dos termos. O<br />

narrador de O Cabeleira (1876), <strong>romance</strong> de Franklin Távora, para aduzirmos a um único exemplo,<br />

diz a certa altura da narrativa (1977, 68):<br />

Não é sem grande constrangimento, leitor, que a minha pena, molhada em tinta,<br />

graças a Deus, e não em sangue, descreve cenas de estranho canibalismo como as<br />

que nesta história se lêem (...) são fatos acontecidos há pouco mais de um século<br />

(...) Não estou imaginando, estou, sim, recordando; e recordar é instruir, e quase<br />

sempre <strong>moral</strong>izar.<br />

Não só <strong>no</strong> processo do fluxo narrativo aparece esse caráter <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong>, vicariante, do<br />

texto literário, mas também na aura ou intenção que circunscreve a narrativa como um todo. Por<br />

outra entrada: a injunção <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong>, em alguns casos, não está explicitamente presente,


formando um bloco enunciativo claro e isolado dentro do corpo da narrativa. Apesar disso, há um<br />

encaminhamento discursivo que leva a explicitação da intenção de ensinar e <strong>moral</strong>izar. Trata-se do<br />

redimensionamento do <strong>romance</strong>, coloquemos nestes termos, à função original da fábula, em seu<br />

sentido de edificação, como podemos perceber em A pata da gazela (1870) de José de Alencar.<br />

Após ter perdido a disputa pela mão de Amélia, Horácio, um dos leões dos salões cariocas, volta<br />

para casa de mãos abanando. O narrador, ao contrário de ensinar e <strong>moral</strong>izar, injuntivamente,<br />

limita-se a narrar os últimos acontecimentos (ALENCAR, 1914, 238):<br />

Horácio desceu do seu observatorio; escalando a grade de ferro do jardim, ganhou<br />

a casa, onde chegou todo alagado. Emquanto philosophicamente esperava que seu<br />

criado lhe preparasse uma chicara de café, abriu um livro, que acertou ser<br />

Lafontaine:<br />

Leu ao acaso: era a fábula do leão amoroso.<br />

- É verdade! murmurou soltando uma fumaça de charuto. O leão deixou que lhe<br />

cerceassem as garras; foi esmagado pela pata da gazella.<br />

Ainda dentro deste circuito do <strong>moral</strong>izar e ensinar interessa destacar os elementos<br />

paratextuais; isto é, prefácios e <strong>no</strong>tas que são atribuídos ao autor, e não ao narrador. Como exemplo,<br />

tomemos um peque<strong>no</strong> excerto do prefácio ao <strong>romance</strong> O filho do pescador (1843) de Teixeira e<br />

Sousa (1997, 1):<br />

(...) a tarefa é-me difícil, não pela obra em si própria, mas pelas pessoas a quem ele<br />

se deve dirigir; porque me dizeis que desejais um <strong>romance</strong> para vós, vosso marido,<br />

vosso filho e vossa filha! (...) Escrevo para agradar-vos; junto aos meus escritos o<br />

quanto posso de <strong>moral</strong>, para que vos sejam úteis.<br />

Trata-se, como se pode perceber, de uma prosa com função edificante, manifestadamente<br />

utilitária, junto ao leitor.<br />

O <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> e o processo social (I)<br />

Interrupção do fluxo narrativo por comentários do narrador, alçamento discursivo do texto<br />

literário ao estatuto de fábula, elementos paratextuais ideologicamente orientados; são marcas da<br />

presença do <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> <strong>no</strong>s <strong>romance</strong>s do período formativo. Este <strong>princípio</strong>, como<br />

sugerem os excertos acima, inscreve <strong>no</strong>ssa experiência literária num universo de crenças na<br />

instrução como pedra de toque para humanizar o homem e promover o progresso da sociedade<br />

brasileira. É o âmago da ilusão ilustrada, para falarmos com Antonio Candido (1987), de <strong>no</strong>ssos<br />

escritores, que orientou ideologicamente toda a literatura do século XIX na qual predominava a<br />

“<strong>no</strong>ção de „país <strong>no</strong>vo‟, que ainda não pudera realizar-se, mas que atribuía a si mesmo grandes<br />

possibilidades de progresso futuro.” (p. 147). Nesse sentido, o <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong>, atrelado


à ilusão ilustrada, está inscrito dentro do nacionalismo literário dos românticos cujo principal<br />

objetivo, regido por um senso de missão, é integrar-se, juntamente com o nativismo e o patriotismo,<br />

ao esforço construtivo do país recém independente.<br />

Não é para me<strong>no</strong>s, portanto, que o fenôme<strong>no</strong> de ensinar e <strong>moral</strong>izar, via literatura, não tenha<br />

sido exclusivo da forma <strong>romance</strong>. Está presente também <strong>no</strong> teatro, como observa Tânia Rebelo<br />

Costa Serra, em Joaquim Manuel de Macedo ou os Dois Macedos, sobre as peças O Juiz de Paz da<br />

Roça e Antonio José ou O Poeta e a Inquisição, iniciadores de “uma época de total prestígio do<br />

teatro, veículo de <strong>moral</strong>ização por excelência, tópico explorado incessantemente por <strong>no</strong>sso<br />

Romantismo, e utilizado por todos os <strong>no</strong>ssos melhores escritores do século XIX” (SERRA, 1994,<br />

26) (grifo meu). Dentro do próprio processo de recepção crítica, reverbera este constante tópico do<br />

Romantismo como critério de avaliação literária: “O <strong>romance</strong> é d‟origem moderna; (...) um alimento de<br />

fácil digestão proporcionado a estômagos fracos. Por seu intermédio pode-se <strong>moral</strong>izar e instruir o povo<br />

fazendo-lhe chegar o conhecimento de algumas verdades metafísicas, que aliás escapariam à sua<br />

compreensão (...) o <strong>romance</strong> é a <strong>moral</strong> em ação.” (PINHEIRO apud SERRA, 1994, 348).<br />

Deste modo, o <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> parece assumir um papel de atualização e<br />

modernização junto a <strong>no</strong>ssa vida cultural, pois tenta desenvolver a força latente de progresso<br />

creditada ao país. E, pelo conteúdo das intervenções, pela qualidade das formulações morais, em<br />

suma, pela carga ideológica, este <strong>princípio</strong> tentava, adianto, pôr o país em sintonia com o que se<br />

passava na Europa – em especial com o tipo de idéias que lá circulavam, a saber, as do liberalismo.<br />

Cabe destacar que a função edificante assumida pelo <strong>romance</strong> <strong>oitocentista</strong> como papel a ser<br />

cumprido junto ao leitor constitui-se também a partir de algumas relações entre o escritor e o<br />

público 2 . Guiou-<strong>no</strong>s, durante o século XIX e boa parte do século XX, a <strong>no</strong>ção de senso de missão<br />

que, em literatura, nada mais foi do que a delimitação do papel social do escritor face aos demais<br />

como segmento especial da sociedade. Na produção do <strong>no</strong>sso Romantismo, a delimitação do grupo<br />

de escritores e sua integração basearam-se na realização da tarefa que o homem de letras se<br />

incumbiu como agente positivo da vida civil, o militante intelectual inspirado pela idéia nacional de<br />

erigir a pátria às alturas. Por outro lado, a função de difundir as Luzes e trabalhar pela pátria não foi<br />

somente uma auto-imposição, mas uma atribuição que a sociedade (grupo de leitores) delegou aos<br />

membros desse segmento elevado que é o escritor. O artista é o capaz de apontar o caminho, ou<br />

mesmo conduzir a nação, para realizarem-se as possibilidades de progresso. É por essa <strong>no</strong>ta que os<br />

escritores executaram suas obras: alargaram o temário nacional com a introdução de descrições<br />

paisagísticas, seja cidade, campo ou selva; descrição dos costumes de uma região, classe ou época;<br />

ou ainda com a criação de tipos nacionais como o índio valente, o vaqueiro, o jagunço, a moça<br />

morena e travessa. A própria função edificante do <strong>romance</strong> entra nesse circuito ideológico. O<br />

2 As considerações que se seguem são elaboradas com base <strong>no</strong> texto “O escritor e o público”, de Antonio Candido<br />

(2000).


<strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> é um discurso integrativo e construtivo como foi a ampliação e<br />

positivação do temário nacional. Todo o esforço conjunto, por assim dizer, de escritores e leitores<br />

tinha <strong>no</strong> horizonte próximo a necessidade de se criar uma cultura nacional, um sistema simbólico<br />

vigente que os unisse pela identidade de brasileiros, mas tendo como tom uma cultura européia.<br />

Todo este esforço dos escritores de positivar os elementos da nacionalidade, criar um teto<br />

simbólico representativo, não é formulado sem certa contradição. Por mais que todos, escritores e<br />

público, estivessem tomados por um sentimento eufórico, por uma louvação da terra <strong>no</strong> sentido<br />

mais exuberante possível (a “Canção do exílio” é paradigmática nesse sentido: “Minha terra tem<br />

palmeiras/ onde canta o sabiá/ as aves que aqui gorjeiam/ não gorjeiam como lá”), levando os<br />

escritores a plasmar ao máximo, quantitativamente, <strong>no</strong>ssa realidade; seus propósitos evidenciavam<br />

certo desconcerto em si mesmos. A tradução deste desconcerto foi certo constrangimento por parte<br />

dos artistas frente sua fidelidade ao real, pois ao tentar representar diversos elementos da realidade<br />

local, surgem aos seus olhos os entraves, que deveriam ser superados, de <strong>no</strong>ssa posição de atrasados<br />

em que <strong>no</strong>s encontrávamos frente aos países europeus. O elemento elaborado para <strong>no</strong>s representar é<br />

ambivalente: leva <strong>no</strong>ssos autores a um problema complicado de olhar para a cor local como<br />

afirmação do nacional, mas não deixar de vê-la com constrangimento de quem ainda não está<br />

seguro de si. É a manifestação daquilo que Antonio Candido (1975, 2002) de<strong>no</strong>mi<strong>no</strong>u de dupla<br />

fidelidade dilacerada. A solução, como a crítica aponta, é a idealização das situações narrativas em<br />

uns, é o aceite das ambivalências em outros. Franklin Távora, um dos escritores com maior senso de<br />

missão <strong>no</strong> século XIX, se vê em grandes apuros quando tenta ao mesmo tempo trazer para o temário<br />

nacional o curiboca, o matuto e o jagunço como representantes de <strong>no</strong>ssa nacionalidade, ou como<br />

representante daquilo que ele chama de Literatura do Norte, sendo que, ao mesmo tempo, eles se<br />

revelam, na própria narrativa, como elementos de entrave do progresso nacional formulado pela voz<br />

do narrador. A (tentativa de) solução estará <strong>no</strong> discurso ilustrado dos escritores 3 (ou como optei por<br />

chamá-lo <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> da ficção, <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong>), que, por outro lado, serve de marcador<br />

do grau de constrangimento dos homens de letras do Império.<br />

Destaco, assim, o duplo movimento deste <strong>princípio</strong>: ao mesmo tempo em que é força<br />

construtiva, que vem somar forças juntamente com o nacionalismo e o patriotismo dos <strong>no</strong>sso<br />

românticos para desenvolver o país; é também força corretora, que subtrai, que expõe certa fratura<br />

daquela consciência otimista com relação ao progresso do país. Corrigindo os vícios, males e<br />

problemas, a prosa de ficção pôs a mostra a fratura da formação de <strong>no</strong>sso sistema cultural – nem<br />

podemos ser exclusivamente brasileiros, posto que seria não assumir a máscara da civilidade; nem<br />

3 Pensando <strong>no</strong> papel do intelectual brasileiro, o livro A América Latina (1905), de Manuel Bonfim, é exemplar neste<br />

tipo de resolução dos problemas nacionais.


podemos ser europeus por medo de perdermos <strong>no</strong>ssa identidade. A questão, grosso modo, para o<br />

<strong>romance</strong> poderia ser formulada <strong>no</strong>s seguintes termos: como ser um brasileiro civilizado?<br />

Sob este aspecto é curioso <strong>no</strong>tar que o discurso ilustrado, que se queria a saída de todos os<br />

problemas nacionais, todos mesmo, levou os escritores a formar um grupo que via tudo de cima,<br />

incluindo seus leitores. Na verdade, a ilusão ilustrada levou o escritor ao máximo tensionamento do<br />

nó cultural, produto de <strong>no</strong>ssa formação social e histórica como país periférico, pois a visão que os<br />

escritores tinham de si mesmos é deformada frente à incultura dominante, como observa Antonio<br />

Candido, em “Literatura e subdesenvolvimento” (1987, 147-148):<br />

Ao lamentar a ig<strong>no</strong>rância do povo e desejar que ela desaparecesse, a fim de que a pátria<br />

subisse automaticamente aos seus altos desti<strong>no</strong>s, eles se excluíam do contexto e se<br />

consideravam grupo à parte, realmente “flutuante” (...) Flutuavam, com ou sem consciência<br />

de culpa, acima da incultura e do atraso, certos de que estes não os poderiam contaminar,<br />

nem afetar a qualidade do que faziam.<br />

A conseqüência de tal visão de si mesmos levou os escritores ao inevitável: virar-se para a<br />

Europa em busca de seu público, um “público ideal”. Mais, o deslocamento de atenção para a<br />

Europa era porque lá se radicava uma escala de valores com os quais o discurso ilustrado<br />

trabalhava. E isso pode trazer resultados bons ou ruins, dependendo da realização formal e estética<br />

de cada obra; e de como o escritor joga com os influxos exter<strong>no</strong>s dentro da dinâmica interna da<br />

cultura. Entretanto, a tensão entre expressão formal e sistema cultural periférico, em um ou outro<br />

caso, é ainda questão posta. Outro detalhe: o deslocamento de foco para a Europa não é total uma<br />

vez que o <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong>, com seu caráter de corretivo social, pressupõe também um<br />

grupo de leitores diverso daqueles ideais. Tal posição do escritor parece estar na base do <strong>princípio</strong><br />

<strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong>, e pode ter conseqüências estéticas decisivas para a fatura das obras.<br />

Não pode ser deixada de lado uma força interventora que tenta solucionar as debilidades que<br />

se instituiam entre escritor e público em <strong>no</strong>ssa literatura: o Estado. Uma vez que os escritores não<br />

tinham respaldo em função da exigüidade de público, coube ao Estado desempenhar o papel de<br />

mecenas para que a atividade literária pudesse ser executada <strong>no</strong> Brasil. A conseqüência imediata<br />

que se pode imaginar quando da incorporação do escritor à superestrutura do Estado é o<br />

nivelamento da obra literária ao gosto médio. O <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> passa a ser uma das<br />

manifestações mais evidentes dessa dinâmica na fatura das obras. Nesse sentido, uma <strong>no</strong>tação como<br />

a de Manuel Antonio de Almeida (um escritor não incorporado pela malhas da burocracia estatal) é<br />

altamente reveladora desse nivelamento médio da produção literária da época: “A <strong>no</strong>ssa literatura<br />

hoje é filha da política: a política dos povos que começam é escrava das paixões”, e segue:<br />

“Compreendo Lamartine em França, assombro-me de Porto Alegre <strong>no</strong> Brasil” (ALMEIDA, 1991,<br />

53). Destaco ainda que de tudo isso Candido tira a explicação de quase não ter havido <strong>no</strong> Brasil<br />

literatura realmente requintada, <strong>no</strong> sentido favorável da palavra, até o Modernismo.


Decorre das relações entre escritor e público uma das formulações de <strong>no</strong>ssa questão: a<br />

presença intensiva de didatismo em <strong>no</strong>ssa literatura do período formativo foi elemento decisivo para<br />

a realização de um texto esteticamente válido. Roberto Schwarz (1978, 53), em O pai de família e<br />

outros estudos, observa que “o didatismo é um fato literário-político”. Embora o crítico formule<br />

suas considerações em tor<strong>no</strong> de uma questão entre massa operária e teoria marxista, essa<br />

observação <strong>no</strong>s interessa de perto na medida em que expressa a relação escritor-público dentro de<br />

um sistema social descompassado. Pensando <strong>no</strong> <strong>romance</strong> brasileiro do período formativo, Antonio<br />

Candido (2000, 85) aponta que há “(...) uma situação peculiar <strong>no</strong> tocante às relações entre o escritor<br />

e o público – que agora vamos encarar como conjunto eventual de leitores. É que <strong>no</strong> Brasil, embora<br />

exista tradicionalmente uma literatura muito acessível, na grande maioria, verifica-se ausência de<br />

comunicação entre o escritor e a massa (...)”. Restringindo-se ao conjunto eventual de leitores (a<br />

elite literária brasileira), os escritores do 19 tenderam me<strong>no</strong>s ao requinte formal e mais a uma<br />

espécie de didatismo de quem contribui para a coletividade. Volto à frase de Schwarz: “o didatismo<br />

é um fato literário-político”. Nossa posição nas antípodas do sistema capitalista conjugado com as<br />

debilidades culturais e materiais, traduzidas em pobreza cultural dos eventuais leitores, levou a<br />

literatura a desempenhar o papel de discurso didático-compensatório, isto é, além de ser discurso<br />

ficcional, ela deveria preencher o espaço dos demais discursos (sociológico, político, filosófico,<br />

etc.) sempre levando em conta a precariedade espiritual do meio brasileiro. A literatura tenta suprir<br />

os vácuos espirituais da nação. Daí a pertinência de outra observação de Schwarz – “A prosa<br />

didático-política tenta unir, através de um processo literário, o que o processo real separa”<br />

(SCHWARZ, 1978, 52) (grifo meu) –, pois o <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong>, <strong>no</strong> contexto do século<br />

XIX, foi este ponto de articulação entre literatura e processo social. Didatismo e vida espiritual,<br />

portanto, são faces da mesma moeda <strong>no</strong> campo literário – e elementos estruturantes na fatura dos<br />

<strong>romance</strong>s do período formativo.<br />

O <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> e o processo social (II): crítica literária e sociologia<br />

Mapeada, ainda que esquematicamente, algumas relações entre o <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<br />

<strong>didatizante</strong> e <strong>no</strong>sso processo social, gostaria de abordar um aspecto crucial, formulado por Roberto<br />

Schwarz em seu célebre ensaio, “As idéias fora de lugar”: a <strong>no</strong>ção de adaptação de uma forma<br />

literária, calcada na experiência burguês-européia, dentro da dinâmica interna de um país periférico<br />

como o <strong>no</strong>sso.<br />

O <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong>, como se pretendeu evidenciar, é um fenôme<strong>no</strong> claramente<br />

prescritivo, de intuito edificante, de orientação ilustrada e que respondia, a seu modo, à<br />

configuração histórico-social do Brasil Império. Como tentei sugerir, o fenôme<strong>no</strong> de <strong>moral</strong>izar e<br />

ensinar, dentro da prosa de ficção, inscreve-se <strong>no</strong> universo de idéias do mundo europeu (com


destaque para as do liberalismo) que os autores do período formativo queriam tomar como <strong>no</strong>ssas,<br />

posto que eram consideradas necessárias para o progresso, material e espiritual, da pátria recém<br />

independente.<br />

Antonio Candido apreende, de maneira mais global, a dinâmica da <strong>no</strong>ssa esfera literária,<br />

legado do estatuto colonial, e que expõe o aspecto prescritivo do <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong>: “(...)<br />

mais do que na Europa, nas colônias, onde se gestavam futuras nações, a literatura foi um<br />

instrumento de dominação. Por meio dela o colonizador forçou o predomínio da sua língua (...),<br />

sugeriu e impôs a celebração das autoridades, o respeito à sua religião, o culto dos seus valores<br />

morais e estéticos.” (CANDIDO, 2002, 100) (grifos meus). Em outras palavras, trata-se da lógica<br />

do processo de transplantação e imposição da cultura européia para o Brasil, resultando, como<br />

observa Roberto Schwarz em “As idéias fora de lugar”, em um torcicolo cultural; isto é, um<br />

descompasso entre <strong>no</strong>ssa vida intelectual e <strong>no</strong>ssa vida social que afeta esteticamente a produção<br />

literária do século XIX.<br />

Com efeito, transportadas para cá, elas, as idéias, chocam-se com <strong>no</strong>ssa configuração social<br />

de três extratos (senhores, escravos e “homens livres e dependentes”); e com uma eco<strong>no</strong>mia de base<br />

agrária, latifundiária e escravista. O choque entre as idéias e a configuração da sociedade brasileira<br />

resulta, por um lado, em desarticulação da ideologia européia, liberal, que não tinha meios de operar<br />

entre nós. A escravidão, vale lembrar, desmente as idéias liberais do grupo pensante do país 4 .<br />

Trata-se, em outros termos, daquilo que a historiografia chamou de impropriedade de <strong>no</strong>sso<br />

pensamento. Como observa Sérgio Buarque de Hollanda (2000, 21): “Trazendo de países distantes<br />

<strong>no</strong>ssas formas de vida, <strong>no</strong>ssas instituições e <strong>no</strong>ssa visão do mundo e timbrando em manter tudo isso<br />

em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns desterrados em <strong>no</strong>ssa terra” (grifo meu).<br />

São as idéias fora de lugar, nas palavras de Schwarz (2000, 21) – “foras de centro em relação à<br />

exigência que elas mesmas propunham, e reconhecivelmente <strong>no</strong>ssas nessa mesma qualidade. Assim,<br />

posto de parte o raciocínio sobre causas, resta na experiência aquele „desconcerto‟ que foi o <strong>no</strong>sso<br />

ponto de partida: a <strong>no</strong>ção que o Brasil dá de dualismo e factício”. Na esteira destas considerações, o<br />

<strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> é, grosso modo, um repositório de impropriedades ou deslocamentos<br />

dos valores absorvidos como necessários ao progresso da nação dentro dos <strong>romance</strong>s. Por ser a<br />

concentração destas ideologias “importadas”, enunciadas claramente <strong>no</strong> âmbito ficcional, o<br />

<strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> é um dos índices do torcicolo cultural que a ficção do século XIX<br />

sofreu e que tem desdobramentos na fatura das obras.<br />

Segundo Roberto Schwarz, ainda em “As idéias fora de lugar”, um dos problemas centrais a<br />

ser enfrentado por aquele que deseja estudar a literatura do <strong>no</strong>sso Oitocentos é o fenôme<strong>no</strong> de<br />

4 Desarticulação que é rearticulação, ainda segundo Schwarz <strong>no</strong> referido ensaio, quando entra em cena o mecanismo de<br />

reprodução social: o favor. De desarticulação passamos agora à rearticulação, por deslocamento, das idéias do<br />

liberalismo em <strong>no</strong>ssa dinâmica social.


descentramento que a ideologia liberal sofre <strong>no</strong> contexto social brasileiro do Segundo Reinado<br />

(SCHWARZ, 2000, 29):<br />

Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e repõe idéias<br />

européias, sempre em sentido impróprio. É nesta qualidade que elas serão matéria e<br />

problema para a literatura. O escritor pode não saber disso, nem precisa para usálas.<br />

Mas só alcança uma ressonância profunda e afinada caso lhes sinta, registre e<br />

desdobre – ou evite – o descentramento e a desafinação.<br />

Nesse sentido, estudar o <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> é tentar dar conta do nó ideológico,<br />

traço básico de <strong>no</strong>ssa formação cultural, como agente de interferência na realização estética dos<br />

<strong>romance</strong>s do período formativo. Por outra entrada: trata-se de abordar o caráter edificante dos<br />

<strong>romance</strong>s como um possível eixo estruturante de <strong>no</strong>ssa narrativa <strong>oitocentista</strong> e, deste modo,<br />

entender outros elementos romanescos, que podem variar de obra para obra, como subordinados à<br />

ambivalência de <strong>no</strong>ssa vida pensante. Para a proposta de estudo, interessa considerar o <strong>princípio</strong><br />

como elemento internalizado à obra literária e que, de algum modo, configura este deslocamento<br />

ideológico em termos de fatura, formando um padrão peculiar na <strong>no</strong>ssa produção literária.<br />

Um parênteses de amarra e exposição de pressupostos teóricos: o estudo da relação entre as<br />

idéias e a literatura pode, em alguns casos, gerar um hiato entre uma e outra, isto é, levar à “idéia<br />

correlata de impregnação (da obra) pelo ambiente, sempre sugestiva e verdadeira, mas sempre vaga<br />

e externa” (SCHWARZ, 2000, 29). Ao contrário, a proposta de estudo tenta entender um<br />

mecanismo social e/ou histórico “na forma em que ele se torna elemento inter<strong>no</strong> ativo da cultura”<br />

(SCHWARZ, 2000, 29), ou seja, uma lógica da vida social, compondo uma espécie de chão<br />

histórico <strong>no</strong> qual está inserida a prática intelectual dos homens de letras e que, por sua imposição, é<br />

matéria direta, estando os escritores conscientes ou não, para a confecção de <strong>romance</strong>s. Dizendo<br />

com Schwarz (2000, 30): “Noutras palavras, definimos um campo vasto e heterogêneo, mas<br />

estruturado, que é resultado histórico, e pode ser origem artística”.<br />

No pla<strong>no</strong> da prosa de ficção, as idéias européias, que são matéria e problema para a<br />

literatura, não correspondem, somente, ao que chamei de <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong>. Em âmbito<br />

mais largo (e que torna mais complexa a relação entre ideologia e literatura), as idéias européias<br />

estão postas na própria forma romanesca. Nesse sentido, o deslocamento das idéias, <strong>no</strong> campo<br />

literário, deve também levar em conta o choque entre a forma literária, <strong>romance</strong>, e o conteúdo a ser<br />

plasmado ficcionalmente. No que diz respeito propriamente às tensões entre forma e conteúdo<br />

quanto ao <strong>romance</strong>, Roberto Schwarz formula, logo <strong>no</strong> início de seu ensaio “A importação do<br />

<strong>romance</strong> e suas contradições em Alencar”, o aspecto central para resolução formal das obras do<br />

Oitocentos, quando da imigração da forma <strong>romance</strong> ao Brasil e sua aclimatação (SCHWARZ, 2000,<br />

35-36):


(...) adotar o <strong>romance</strong> era acatar também a sua maneira de tratar as ideologias. Ora,<br />

vimos que entre nós elas estão deslocadas, sem prejuízo de guardarem o <strong>no</strong>me e o<br />

prestígio originais, diferença que é involuntária, um efeito prático da <strong>no</strong>ssa<br />

formação social. Caberia ao escritor, em busca de sintonia, reiterar esse<br />

deslocamento em nível formal, sem o que não fica em dia com a complexidade<br />

objetiva de sua matéria – por próximo que esteja da lição dos mestres (...) Em<br />

suma, a mesma dependência global que <strong>no</strong>s obriga a pensar em categorias<br />

impróprias, <strong>no</strong>s induzia a uma literatura em que essa impropriedade não tinha<br />

como aflorar. Ou outra, antecipando: em vez de <strong>princípio</strong> construtivo, a defesa<br />

aparecia involuntária e indesejadamente, pelas frestas, como defeito.<br />

Como Schwarz afirma, a forma <strong>romance</strong>, como os demais elementos de expressão artística,<br />

são importações de países cujas dinâmicas sociais, políticas e econômicas diferem grandemente das<br />

<strong>no</strong>ssas. A forma <strong>romance</strong>, em especial, radica-se na Europa com base em uma ideologia liberal e<br />

burguesa que não encontra correspondente, quando fazemos o teste do real, na vida desenvolvida<br />

em países periféricos como o <strong>no</strong>sso, causando certo desequilíbrio na produção romanesca.<br />

Exemplificando: houve uma tendência de <strong>no</strong>ssa ficção, desde os primórdios com Macedo, de entrar<br />

em duas ca<strong>no</strong>as para descer o rio da ficção: adesão pedestre ao meio e adesão à convenção<br />

literária 5 . De um lado, um meio social regido pela lógica do favor, de base econômica escravocrata,<br />

enfim, de núcleo familista 6 ; de outro, uma forma de representação poética de lágrimas, treva, traição<br />

e conflito formulada em uma ideologia liberal, negadora dos <strong>princípio</strong>s sociais apontados como<br />

pertencentes ao <strong>no</strong>sso meio: “era inevitável que levasse (o <strong>romance</strong>) alguns tombos de estilo<br />

próprio, tombos que não levavam os livros franceses, já que a história social de que estes se<br />

alimentavam podia ser resolvida a fundo juntamente por aquele mesmo tipo de entrecho”<br />

(SCHWARZ, 2000, 41).<br />

Por último, pode-se dizer que a formulação-chave para a abordagem da prosa de ficção do<br />

Oitocentos, neste estudo, diz respeito ao desajuste entre forma literária e processo social <strong>no</strong> período<br />

formativo. Dentro de um movimento dialético entre a forma e o conteúdo, o esforço da proposta de<br />

trabalho é de trilhar o caminho pelo qual o <strong>romance</strong> teve de percorrer, aqui <strong>no</strong> Brasil, até achar um<br />

ponto de realização estético e formal válidos. Entra aqui o ponto de fuga desta proposta: a obra de<br />

Machado de Assis. A leitura desta proposta de estudo para abordar os textos do período formativo<br />

assume que a experiência literária deve ser entendida como um processo de acumulação de<br />

procedimentos formais ao longo do tempo. Rastrear os procedimentos formais para o tratamento<br />

literário do temário local, realizado pelos romancistas <strong>oitocentista</strong>s, com vistas a estabelecer os<br />

5 Noção formulada com base <strong>no</strong> texto de Antonio Candido, “O Honrado e Facundo Joaquim Manuel de Macedo”. In:<br />

Formação da Literatura Brasileira (momentos decisivos).<br />

6 Uso o termo familista por conta de uma observação de Gilberto Freyre feita sobre a literatura brasileira, mais<br />

especificamente sobre a obra de Alencar <strong>no</strong> ensaio José de Alencar, re<strong>no</strong>vador das letras e crítico social. O sociólogo<br />

cunha este conceito para dar conta de uma unidade presumida de <strong>no</strong>ssas atividades sociais e culturais. Para os fins de<br />

análise literária, interessa destacar que dentro deste conceito reside a <strong>no</strong>ção de cultura e sociedade brasileira explicadas<br />

“principalmente como expressão ou resíduos de uma formação processada antes em tor<strong>no</strong> da família patriarcal e<br />

escravocrata do que em volta do Estado, da Igreja ou do Indivíduo”. Ou seja, os valores que pautam <strong>no</strong>ssa vida social e<br />

cultural são, de certa maneira, negadores das idéias liberais.


impasses e possibilidades de solução que o <strong>romance</strong> encontrou na série literária brasileira, é, em<br />

outros termos, propor o estudo de como a produção bem realizada, <strong>no</strong> caso do século XIX, a de<br />

Machado de Assis, aproveita a experiência de certa tradição da literatura brasileira para a sua<br />

própria escrita. Traçar, pesado bem o termo, a evolução do <strong>romance</strong> <strong>oitocentista</strong> do primeiro tempo,<br />

é pensar em Machado de Assis como a linha de chegada desta ficção.<br />

Últimas considerações sobre o estudo a ser empreendido<br />

De um lado um temário nacional, que garantia a identidade do país recém independente; de<br />

outro um sistema de valores, uma forma literária e uma maneira de ler a realidade local por vezes<br />

incompatível com a cor local – eis o nó que o <strong>princípio</strong> <strong>moral</strong>-<strong>didatizante</strong> teve de desatar: construir<br />

uma nação e uma identidade nacional, sem esquecer de uma <strong>no</strong>rma alienígena, mas necessária para<br />

a manutenção de <strong>no</strong>ssa auto-estima de país periférico. Para os estudos literários, esta constatação é<br />

crucial, porque ela pode servir de índice para balizar um juízo estético. Quer dizer, com base na<br />

contextualização esquemática aqui exposta podemos perceber certos pontos de inflexão, que são<br />

históricos, sociais e ideológicos, decisivos para a existência de um discurso esteticamente válido.<br />

Como isso se materializa nas obras ou como fica este julgamento, só será possível dizer com o<br />

andamento da pesquisa.


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Fundação Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1994.<br />

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WATT, Ian. A ascensão do <strong>romance</strong>. São Paulo: Cia. das Letras, s.d.

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