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bahia-mulher: a construção histórica das imagens ... - Itaporanga.net

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BAHIA-MULHER: A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DAS IMAGENS DA BAHIA<br />

E DAS BAIANAS NAS OBRAS DE JORGE AMADO, GILBERTO FREYRE,<br />

DORIVAL CAYMMI E CARYBÉ.<br />

INTRODUÇÃO<br />

ELISÂNGELA SALES ENCARNAÇÃO<br />

Uneb -Universidade do Estado da Bahia<br />

O artigo que ora se apresenta faz parte de um estudo maior sob o título de “Bahia,<br />

Cidade-Mulher: o processo histórico de produção <strong>das</strong> <strong>imagens</strong> da Bahia e do seu povo”,<br />

apresentado como trabalho final para a obtenção do título de especialista em História<br />

Regional pela Universidade do Estado da Bahia. Nele procuro entender como, quando e<br />

por que uma certa idéia de Bahia e dos baianos se cristalizou no imaginário de<br />

brasileiros e estrangeiros e vem ao longo de mais de meio século direcionando a fala e o<br />

olhar sobre a Bahia.<br />

Esse trabalho nasceu da inquietação diante da forma como nós, baianos, somos<br />

representados nos vários discursos: acadêmicos, literários, musicais, <strong>das</strong> artes-visuais,<br />

jornalísticos e,em especial, pela mídia televisiva.<br />

Uma gama variada de fontes foi submetida à análise do discurso e o que se percebeu<br />

foi o poder instituidor que o discurso possui, algo já percebido por M. Foucault, E. Said,<br />

D. M. Albuquerque Jr., Maria Celeste P. de Andrade, entre muitos outros importantes<br />

contribuidores desse estudo.<br />

I- BAHIA, A CIDADE E O POVO.<br />

Imagine-se a decepção de um turista que chega a Salvador e não é recebido por<br />

negras vesti<strong>das</strong> de baianas com um belo e largo sorriso no rosto e não vê, logo ali no<br />

aeroporto mesmo, uma roda de capoeira. Imagine-se que este turista não vá ao<br />

Pelourinho, ao Mercado Modelo, não coma um acarajé, não pule o carnaval, não se<br />

banhe nas belas praias, não veja belas <strong>mulher</strong>es e homens também, não ouça a fala<br />

arrastada e preguiçosa do baiano, não beba água de coco e volte para casa sem uma<br />

fitinha do Bonfim amarrada no pulso. Esse turista não esteve na Bahia!<br />

A pessoa que vem à Bahia já sabe o que vai encontrar. A literatura amadiana em<br />

suas milhões de cópias vendi<strong>das</strong> no Brasil e no exterior, assim como as telenovelas,<br />

séries, mini-séries, músicas, filme etc., baseados nesses romances também exibidos no<br />

mundo todo, já ensinaram o que esperar, o que encontrar, o que ver. Essa literatura<br />

construiu um arquivo interno de <strong>imagens</strong> que moldaram a linguagem, a percepção, a<br />

experimentação e a forma do encontro. E mesmo quando não se consegue de imediato<br />

reconhecer no conhecido, agora na prática, as idéias-imagem construí<strong>das</strong> anteriormente,<br />

o estranhamento é apenas momentâneo e o visitante logo se apega ao familiar, ao<br />

conhecido, acomodando as coisas como repeti<strong>das</strong>. Esse conhecimento é mediado por<br />

experiências anteriores que não permitem ver para além do já conhecido.<br />

O campo de forças criado na relação obra-autor-leitor, na literatura amadiana,<br />

permeada pela vontade de verdade que a atravessa, instituiu no imaginário de quem leu,<br />

ouviu, viu, além de <strong>imagens</strong>, sensações e expectativas. Assim, também o foi(e é) com o<br />

Oriente segundo as discussões de E.W. Said 2 , assim o foi com a América. No encontro<br />

entre europeus e americanos, encontro fundante, do que somos e de como somos vistos,<br />

apesar de Colombo não reconhecer na América e nos nativos traços do que se sabia<br />

sobre as Índias, ainda assim ele nomeou os nativos de índios, numa clara constatação da


esistência em aceitar o desconhecido, em ver o outro fora dos padrões préestabelecidos<br />

na sua partida.<br />

Os índios serão apreendidos e interpretados pelos europeus colonizadores por<br />

meio dos “signos que antecipavam a revelação de sua existência e não como realidade<br />

que se revelava” 3 . O que quer dizer que os índios, antes de terem existência concreta,<br />

existiam nas len<strong>das</strong> e sonhos dos colonizadores que, ao se defrontarem com eles, não os<br />

vêem como são e sim como aquilo anteriormente projetado.<br />

Herdeiro desse encontro, o Brasil coloca o projeto de formulação da identidade<br />

nacional brasileira para a primeira geração nacional empresária da independência.<br />

Através dos discursos históricos e literários, o Brasil constrói para si uma identidade<br />

particular, individualizada. Na literatura, com a geração dos românticos, a identidade<br />

nacional já nasce mestiça do encontro entre o português e o índio, um encontro amoroso<br />

do qual nasceria um povo mestiço. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a fala<br />

autorizada sobre o passado, na época, completa essa visão dando alta carga de<br />

positividade ao europeu colonizador.<br />

Já no século XX,<br />

Gilberto Freyre, ao fazer a apologia da mestiçagem, enfatizando o seu<br />

potencial criativo e dulcificando o passado por uma visão<br />

‘compreensiva’ e ‘sensual’ <strong>das</strong> relações entre a casa grande e a senzala,<br />

tornou-se o maior ideólogo do ‘novo Brasil’. Sua versão da realidade<br />

nacional correspondia ao otimismo dos anos 30-40, que parecia<br />

encontrar a saída para a modernidade na recomposição da coalizão<br />

dominante de classes e acomodando as velhas elites rurais com a nova<br />

burguesia urbana nos quadros do Estado. 4<br />

A mestiçagem torna-se, a partir daí, a marca registrada de identificação do Brasil,<br />

bem como o processo harmonioso pelo qual ela se deu. No Brasil, as maiores diferenças<br />

se harmonizam e é até possível arrumar as velhas elites rurais e a burguesia urbana<br />

nascente no poder.<br />

Perguntada se a brasilidade de Jorge Amado foi feita para estrangeiro ler, Lúcia<br />

Helena diz que:<br />

Seria uma injustiça reduzir a obra de Jorge Amado a isso. Mas, de certa<br />

forma, ele foi lido pelo europeu, na maior parte dos casos, à partir da<br />

mitologia que eles fazem do seu ‘Outro’ orgulhosos de sua<br />

‘civilização’, e sem muita autocrítica do colonialismo que implantaram,<br />

eles se sentem atraídos por nós justamente naquilo que julgam ser a<br />

nossa ‘diversidade’ cultural: o sol, sul, sal, mulatas, pratos típicos, rios<br />

e florestas. Esse perfil já havia existido na ‘moreninha’ romântica, na<br />

Rita Baiana naturalista, de O Cortiço, que dava dengue e paratí ao<br />

amante português. Isso chega à apoteose de uma tipologia clichê,<br />

quando os europeus, enfim, importam, para deleite de suas idealizações<br />

sensuais, as Gabrielas cravo e canela. 5<br />

Discursos acadêmicos e literários, em especial Gilberto Freyre e Jorge Amado,<br />

elaboraram uma imagem do Brasil mestiço, sensual, quente, de natureza e <strong>mulher</strong>es<br />

exóticas e exuberantes, que deve muito de seus símbolos a outras duas identidades: a<br />

nordestinidade e a baianidade. Esta imagem do Brasil exportada em muito destoava do<br />

que o sul-sudeste, em meados do século XX, queria se tornar: a Europa civilizada.<br />

Contraditoriamente, o Brasil que o europeu queria comprar era aquele, mais adequado<br />

às suas expectativas de europeu colonizador.


Nesse caldeirão de identidades se definindo, a baianidade tem em Jorge Amado seu<br />

principal ideólogo-divulgador, mas não o único Gilberto Freyre, Dorival Caymmi e o<br />

pintor Carybé esses dois últimos assumem importância nesse processo ao serem<br />

apropriados pelo próprio Jorge Amado, são também partícipes dessa<br />

<strong>construção</strong>/divulgação. A Bahia que nasce de seus escritos é uma terra exótica,<br />

misteriosa, singular.<br />

Jorge Amado cerca seu texto de elementos capazes de falar aos cinco sentidos. A<br />

apropriação de Caymmi e Carybé, personagens em seus romances, referências<br />

constantes de sua fala, monumentos de seu guia, colaboradores de sua obra, serviu<br />

muito bem a esse propósito. Jorge Amado alia em seus romances dois elementos de<br />

forte pe<strong>net</strong>ração em sociedades com altos índices de analfabetismo: a música e a<br />

iconografia. Agregue-se a estes um terceiro, a televisão, já que o baiano cai nas graças<br />

da mídia televisiva no Brasil e vários produtos são elaborados baseados nos escritos de<br />

Jorge Amado.<br />

No guia Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios, Jorge Amado<br />

transforma Caymmi e Carybé em patrimônios da Bahia, assim como a arquitetura, as<br />

ruas, os pontos turísticos. Vejamos o que ele diz no guia sobre Carybé:<br />

Carybé vem fixando a mais de um quarto de século, no quadro a óleo,<br />

no desenho, na gravura, na aguada, no mural, no painel, na madeira, no<br />

concreto, o viver baiano nesse fim de um tempo que não voltará. 6<br />

Ou o que diz, em 1981, em entrevista:<br />

E o povo da Bahia é impressionante, é um povo que não falta aos seus<br />

amigos. Se você não viu a festa da sexta-feira da semana passada pra<br />

Carybé, é uma grande pena, pois não viu a coisa mais bela do mundo.<br />

Juntaram-se mais de 10 mil pessoas no largo do Pelourinho. Estava lá<br />

Antônio Carlos, governador da Bahia, que é amigo de Carybé. Também<br />

estavam lá figuras da vida intelectual <strong>das</strong> mais importantes. Mas quem<br />

estava lá fundamentalmente era o pessoal do cais, eram os<br />

trabalhadores, o pessoal dos candomblés... os Filhos de Gandhi, os<br />

capoeiristas, os cantores populares. Mais de 10 mil pessoas naquele<br />

largo imenso, cheio de gente... não estavam ali para festejar nenhum<br />

político, nenhum general, nenhum banqueiro, nenhum milionário,<br />

nenhum cardeal, e sim um simples artista. O povo foi lá para saudar um<br />

artista do povo. E isso mostra bem o que é a cultura baiana: esse<br />

homem nem é nascido na Bahia! Ele se fez baiano aqui e hoje é um dos<br />

homens fundamentais na criação de uma arte com características<br />

baianas, nacionais, mestiças, na conservação de nossa memória de<br />

povo. 7<br />

Sob o título de “Poeta e cantor <strong>das</strong> graças da Bahia” Jorge escreve, em seu guia, o<br />

seguinte sobre Caymmi:<br />

Fez-se um intérprete da vida popular, o bardo cantor <strong>das</strong> graças, do<br />

drama e do mistério da terra e do homem baiano. Ainda adolescente<br />

viveu com intensidade, nas ruas, nas ladeiras, nos becos da urbi mágica,<br />

a aventura de um povo capaz de sobreviver e ir adiante nas mais duras<br />

condições de existência, sobrepondo-se à miséria e à opressão para rir,<br />

cantar, e bailar, superando a morte para criar a festa. Apoderou-se do<br />

drama, da emoção e da magia da cidade sem igual, do povo que<br />

liquidou todos os preconceitos e fez da mistura de sangues e raças sua


filosofia de vida. Nessa cidade e nesse povo, Caymmi tem plantado as<br />

raízes de sua criação, a precisa realidade tantas vezes cruel, e a mágica<br />

8<br />

invenção.<br />

Jorge Amado estende sua autoridade de representar a verdade baiana a Caymmi e<br />

Carybé. A experiência vivida, o viver misturado ao povo da Bahia, aparece neles<br />

também como o elemento que dá a condição de autenticidade dessas falas. Segundo<br />

interpretação de Jorge Amado, a obra de seus amigos aparece marcada pelos mesmos<br />

elementos que a sua, ao definir a Bahia e os baianos: magia, mestiçagem, alegria, festa,<br />

sexualidade, força, mas, principalmente, na percepção da Bahia como espaço da<br />

saudade. Suas obras são uma tentativa de aprisionar no presente, e garantir para o<br />

futuro, um passado que eles sentem esvaindo de suas mãos.<br />

Cidade sem igual, Salvador-Bahia será dita, pintada e cantada com to<strong>das</strong> as cores,<br />

rimas e versos que merece por esses autores. O poder instituidor da obra amadiana é tão<br />

grande que, de acordo com Celeste Maria Pacheco de Andrade 9 , foi capaz de difundir<br />

uma outra geografia, dividindo o estado da Bahia em três “<strong>bahia</strong>s”: a do sul, eixo<br />

Ilhéus-Itabuna, a do sertão e a cidade da Bahia, parte antiga da cidade de Salvador e o<br />

recôncavo baiano. Para cada espaço, ele construiu perfis humanos que lhes dessem<br />

visibilidade. No sertão: cangaceiros e beatos, no sul: coronéis, em Salvador e no<br />

recôncavo: pescadores, vagabundos e prostitutas. Esses tipos criados são mantenedores<br />

da invenção do Nordeste e instituidores da Bahia. Essas <strong>bahia</strong>s foram apropria<strong>das</strong> como<br />

realidade, pois se mostraram ideais aos interesses <strong>das</strong> elites locais: para o sul e<br />

Salvador, por incentivarem o turismo, e para o sertão, a inclusão do sertão baiano no<br />

círculo da seca, e, por conseguinte, o acesso às verbas federais.<br />

Mesmo os romances amadianos tendo sido ambientados em espaços diferentes,<br />

fundando <strong>bahia</strong>s, algo as une: o misto de singularidade e exuberância. Seja em<br />

Salvador-Recôncavo, no sertão ou no sul, a Bahia aparece carregada de elementos que a<br />

particularizam do restante do País, do Nordeste, mas ao mesmo tempo em que gesta e<br />

fornece elementos para representar a brasilidade e a nordestinidade. O turista vem ao<br />

Brasil, muitas vezes, buscar o Brasil-Bahia-Nordeste, mulato, sensual, tropical, festeiro,<br />

tradicional, popular, artesanal, interiorano; um Brasil, em alguns aspectos, diferente do<br />

Brasil-Sul-Sudeste, racional, moderno, futurista.<br />

A Bahia que surge <strong>das</strong> tintas de autores como Jorge Amado, Gilberto Freyre,<br />

Caymmi e Carybé possui cores mais fortes do que em qualquer outro lugar. O sol é mais<br />

intenso, o mar é mais azul, a natureza é mais exuberante, o povo é mais alegre, até<br />

objetos inanimados como casas, ruas, ladeiras, becos parecem vivos, parecem respirar,<br />

transpirar, ofegar, ouvir, falar, sussurrar.<br />

Em Jorge Amado, a descrição da natureza surge exuberante nas três <strong>bahia</strong>s,<br />

tornando a Bahia fantástica, sem igual, misteriosa, exótica, única:<br />

O amarelo <strong>das</strong> roças de cacau, ah! O mais belo do mundo! Um amarelo<br />

como só os grapiúnas vêem nos dias de verão no paradeiro. Não há<br />

palavras para descrevê-lo, não há imagem para compará-lo, um amarelo<br />

sem comparação, o amarelo <strong>das</strong> roças de cacau! 10<br />

A inigualável beleza baiana aparece também noutro espaço totalmente diferente<br />

desse:<br />

Aqui o vento deposita diária colheita de areia, a mais alva, a mais fina,<br />

escolhido a propósito para formar a praia singular de mangue seco, sem


comparação com nenhuma outra, aqui onde a Bahia nasce na convulsa<br />

conjunção do rio real com o oceano. 11<br />

Isso, sim era viver. No clima bendito do Agreste, na beleza sem par de<br />

Mangue Seco. No paraíso. 12<br />

Tudo na Bahia é mais e melhor. É o próprio paraíso, onde as diferenças se<br />

harmonizam, onde as contradições se suavizam para transformá-la no melhor lugar para<br />

viver. A magia da Bahia é tão grande que até Iemanjá escolheu a “pedra do Dique do<br />

cais da Bahia ou na sua loca em Monte Serrat” 13 para morar.<br />

Num artigo para o Jornal O Cruzeiro, Gilberto Freyre define a Bahia da seguinte<br />

forma:<br />

E quem diz Bahia ou baianos diz festa, bolo, doce, mulata, alegria, e até<br />

pecado. Os sete pecados mortais e não apenas todos os Santos da Igreja,<br />

mais os dos Candomblés: Bahia de Todos os Santos. Diz música,<br />

dança, canto, foguete, capoeiragem, pastel enfeitado com papel de cor,<br />

caprichosamente recortado, carurú, violão, balangandãs, chinela leve na<br />

ponta do pé da <strong>mulher</strong>, em contraste com tamanco pesadamente<br />

português do homem, saia de roda, camisa de cabeção picado de renda,<br />

guardando peitos gordos de negras, de mulatas, de quadrarunas<br />

provocantes. 14<br />

Deste enumerado de elementos se consegue perceber grandes semelhanças com<br />

elementos presentes nas obras de Jorge Amado e Dorival Caymmi, inclusive o título do<br />

artigo “Acontece que são baianos” é uma clara alusão à música de Caymmi “Acontece<br />

que eu sou baiano”. 15 Há uma grande afinidade nos discursos desses três autores ao<br />

dizer a Bahia.<br />

Falando sobre a atmosfera da cidade no Guia Bahia de Todos os Santos, Jorge<br />

Amado diz:<br />

Escorre o mistério sobre a cidade como um óleo. Pegajoso, todos os<br />

sentem. De onde ele vem? Ninguém o pode localizar perfeitamente.<br />

Virá do baticum dos candomblés nas noites de macumba? (...) De onde<br />

vem esse mistério que cerca e sombreia a cidade da Bahia? 16<br />

Que óleo é esse que escorre da cidade de Salvador? Será que é o mesmo “ar mole<br />

oleoso” presente na poesia de Gilberto Freyre, em 1926 17 ? Por que as <strong>imagens</strong> sobre a<br />

Bahia são tão repetitivas? A função da repetição é fixar, reter na memória. Aliado ao<br />

processo de <strong>construção</strong> da identidade baiana, houve um outro poderoso processo de<br />

divulgação pela repetição em vários segmentos artísticos e acadêmicos <strong>das</strong> <strong>imagens</strong><br />

gesta<strong>das</strong>. E estas falas se fizeram eficazes, porque quando pensamos, falamos na Bahia,<br />

esses elementos estão sempre presentes. To<strong>das</strong> as vezes que a televisão precisa<br />

representar a Bahia, ela recorre a este arquivo de <strong>imagens</strong>-símbolo que falam por si sós,<br />

que dispensam apresentações.<br />

Para completar o estado-maravilhoso que é a Bahia, não poderia faltar um povo sem<br />

igual. Ser baiano, no entanto, vai além de nascer na Bahia, é um estado de espírito:<br />

Baiano quer dizer quem nasce na Bahia, quem teve este alto privilégio,<br />

mas significa também um estado de espírito, certa concepção de vida,<br />

quase uma filosofia, determinada forma de humanismo. Eis porque


homens e <strong>mulher</strong>es nascidos em outras plagas, por vezes em distantes<br />

plagas, se reconhecem baianos, apenas atingem a fímbria desse mar de<br />

saveiros, as agruras desse sertão de vaqueja<strong>das</strong> e de milagres, os rastros<br />

desse povo de toda a resistência e de toda a gentileza. E como baianos<br />

são reconhecidos, pois de logo se pode distinguir o verdadeiro do falso.<br />

Aqui entre nós: tem gente que há vinte anos tenta obter seu passaporte<br />

de baiano e jamais consegue pois não é fácil preencher as condições e<br />

como diz o moço Caymmi, nosso poeta, “quem não tem balangandãs<br />

não vai ao Bonfim”. 18<br />

Para Freyre, a “mistura de negros e brancos na Bahia deu origem a um povo baiano<br />

alegre, expansivo, sociável, loquaz, petulante, gracioso, espontâneo, cortez, de riso bom<br />

e contagioso. 19 Esses autores nos inventaram. Criaram um baiano com certidão e tudo.<br />

Se você preenche os requisitos do estado de espírito baiano, desta quase filosofia, aí<br />

sim, é um verdadeiro baiano, tendo nascido na Bahia ou não. No entanto, podemos<br />

concluir, se não se reconhece nas <strong>imagens</strong> de Bahia aqui descritas, mesmo tendo<br />

nascido na Bahia, estes autores não lhes concederão o passaporte de baiano, pois você é<br />

um baiano falso, um baiano que não preenche os requisitos para morar na cidade da<br />

Bahia, onde várias mágicas se sucedem sem a ninguém, ou melhor, sem a nenhum<br />

baiano verdadeiro, causar espanto.<br />

II - AS BAIANAS – CARTÃO-POSTAL DA BAHIA.<br />

As personagens femininas sempre tiveram grande destaque na literatura brasileira.<br />

José de Alencar fez parte da primeira geração nacional e em Iracema 20 representa o<br />

mito fundador da sociedade e da identidade brasileira via miscigenação. No processo de<br />

fundação da nova sociedade a partir do encontro, o Brasil contribuiu com o elemento<br />

feminino: a <strong>mulher</strong> indígena, e a Europa com o elemento masculino: o homem branco.<br />

Dessa mistura, surge o povo brasileiro. Mas o Novo Mundo contribuiu também com o<br />

espaço para o nascimento e o desenvolvimento desse novo povo, e esse espaço era<br />

formado por uma natureza exuberante, misteriosa, perigosa, conforme os relatos de<br />

viagens. A exuberância, o mistério e o perigo eram também <strong>imagens</strong> facilmente<br />

encontra<strong>das</strong> sobre as <strong>mulher</strong>es na Idade Média, mentalidade da qual esses homens<br />

descobridores eram tributários. Assim, o Novo Mundo era essencialmente feminino:<br />

irracional, passional, belo, perturbador, pecaminoso. Misto de paraíso e inferno, prazer e<br />

pecado, bem e mal.<br />

A <strong>mulher</strong> atravessa a literatura universal, num eterno conflito entre Evas e Marias.<br />

E mesmo em romances cujo personagem central é(ou se quer) o homem, elas<br />

conquistam lugar de destaque. O caso de Dom Casmurro 21 é exemplar. Mesmo sendo a<br />

história contada pelo personagem Bentinho, o tema central do romance é Capitu e sua<br />

possível traição: Eva ou Maria? Santa ou pecadora?<br />

Quando as mudanças trazi<strong>das</strong> pelo século XX forçam o Brasil no caminho da<br />

atualização de sua identidade nacional, vimos nascer a Rita Baiana 22 , a qual dispensa<br />

julgamentos. Ela é o próprio demônio feito <strong>mulher</strong>. Mulata, alegre, exótica, sensual,<br />

tropical, quente, festeira, exuberante, singular, em síntese: Mulher, brasileira, baiana. A<br />

Rita baiana é o resultado feminino da miscigenação harmoniosa <strong>das</strong> raças. Uma<br />

verdadeira baiana.<br />

As <strong>mulher</strong>es amadianas não destoam muito disso. São, preferencialmente, <strong>mulher</strong>es<br />

do povo, fruto da mestiçagem, dota<strong>das</strong> de uma força sem igual. Como, aliás, todo o<br />

povo baiano o é, elas só não resistem a seus homens, donas de grande beleza, a todos<br />

conquistam, mas são irremediavelmente conquista<strong>das</strong>.


É comum em jornais, revistas, televisão, a referência a Jorge Amado como o escritor<br />

de Gabriela, Dona Flor, Tereza Batista e Tieta. Foram essas personagens femininas que<br />

imortalizaram a obra amadiana.<br />

Constitui lugar comum afirmar que se transformou em preferência<br />

nacional e internacional após a publicação de Gabriela, Cravo e Canela<br />

(1958), a que se seguiu uma plêiade de moças baianas representantes do<br />

que vulgarmente pode ser considerado o melhor da <strong>mulher</strong> brasileira:<br />

Dona Flor e seus Dois Maridos (1966), Tereza Batista Cansada de<br />

Guerra (1972), Tieta do Agreste (1977) formaram um grupo de damas<br />

irresistíveis, que alçaram seu criador ao patamar dos grandes<br />

representantes da cultura nacional no país e no estrangeiro. 23<br />

Segundo Nelly Novaes Coelho 24 , a presença feminina no mundo visceralmente<br />

masculino construído pelo escritor se deu seguindo os rastros da incipiente revolução<br />

feminina iniciada nas primeiras déca<strong>das</strong> do século XX. A incorporação <strong>das</strong> <strong>mulher</strong>es ao<br />

mercado de trabalho e à esfera pública em geral faz acender a discussão junto a temas<br />

relacionados à sexualidade: adultério, virgindade, casamento e prostituição. Para muitos<br />

médicos e higienistas, o trabalho feminino fora do lar levaria à degradação da família.<br />

As várias profissões femininas eram estigmatiza<strong>das</strong> e associa<strong>das</strong> à imagem de perdição<br />

moral, de degradação e de prostituição 25 . A partir dessa revolução, temos a contestação<br />

da tradicional imagem de <strong>mulher</strong> consagrada pela civilização cristã-burguesa:<br />

pura/impura, submissa/insubmissa, anjo/demônio, esposa/amante, salvação/perdição do<br />

homem.<br />

Como é notório, as grandes personagens femininas que habitam o<br />

universo de Jorge Amado pertencem à linhagem de Eva, - as que<br />

transgrediram o “interdito”. Entretanto, ao lado destas, está sempre<br />

muito presente, a nostalgia da “<strong>mulher</strong> ideal”, pura e inacessível. A<br />

fusão dessas faces conflitantes (que o nosso tempo ainda persegue). 26<br />

O próprio Jorge Amado sofrerá as conseqüências de sua escolha,<br />

Por que não procurou u’a(sic) <strong>mulher</strong> merecedora de pincelada eternas?<br />

Por que não buscou uma figura feminina de valor histórico e social?<br />

Deixou-se levar pela tendência naturalista, ocupando-se<br />

demasiadamente em explorar o sexo, o sexo de Gabriela e seus ais, os<br />

seios pontiagudos de formosa retirante.<br />

Procurou o autor de “Gabriela” satisfazer o público. E satisfez, ao<br />

mesmo tempo que viu uma venda fantástica para seu livro.<br />

Lamentamos que as rameiras do romance “Gabriela, cravo e canela”<br />

nada deixem de proveitoso às <strong>mulher</strong>es. E mais nada de sublime,<br />

permanente, eterno, edificante à sociedade. 27<br />

As <strong>mulher</strong>es amadianas, apesar de serem descendentes de Eva, possuem<br />

características da Virgem Maria, da mãe sem pecado: são doces, ingênuas, boas,<br />

guerreiras na vida e no trabalho, mas submissas a seus companheiros, de grande caráter,<br />

são absolutamente fiéis quando apaixona<strong>das</strong>. “A posição subalterna <strong>das</strong> morenas e<br />

mulatas amadianas – anteriores à Tieta e Teresa – boas de cama e azeite-de-dendê, que


aceitam maus-tratos de seus homens, reforça estereótipos consagrados em nossa história<br />

cultural.” 28<br />

Dona Flor é uma versão ampliada de Amélia – a <strong>mulher</strong> de verdade,<br />

com que todo brasileiro sonha; Vadinho é o amoroso irresponsável,<br />

bastante imaginativo em matéria de erotismo, vadio e cafajeste, um tipo<br />

ideal de companheiro com que talvez sonhem to<strong>das</strong> as brasileiras tão<br />

frustra<strong>das</strong>. 29<br />

No romance Dona Flor e seus dois maridos, temos uma representação da<br />

complicada relação entre os gêneros no Brasil da segunda metade do século XX. De um<br />

lado, temos a <strong>mulher</strong> perfeita para o homem brasileiro: fogosa e recatada, boa de cama e<br />

de mesa. Do outro, temos a imagem do homem que sabe dar prazer à sua companheira,<br />

isso num momento em que os homens, herdeiros de uma sociedade patriarcal, pouco se<br />

preocupam com a felicidade sexual de suas parceiras. No entanto, o prazer sexual<br />

feminino estava irremediavelmente atrelado à figura do malandro, do amante<br />

irresponsável, vadio, cafajeste. Não haveria prazer sem a dor. A dor da insegurança, da<br />

traição, da violência, da humilhação.<br />

A partir de Tereza Batista, a <strong>mulher</strong> amadiana assume o controle de sua<br />

sexualidade, aprendendo a dar e a receber prazer. Tereza e Tieta são sexualmente<br />

independentes. Elas assumem o poder na cama. Nesse espaço são doutas, não são<br />

apenas coadjuvantes, assumem a postura de protagonistas via sexo. Passam à condição<br />

de personagens centrais no momento em que assumem o controle de seu corpo, de seu<br />

prazer, de sua própria sexualidade.<br />

Tereza e Tieta são o culminar da elaboração da imagem de <strong>mulher</strong> baiana, e brasileira<br />

por extensão. A perfeita fusão dos contrários. Frutos de uma completa miscigenação<br />

étnica e moral: Mulatas, Evas e Marias.<br />

A linguagem é uma moldadora de idéias. A linguagem literária amadiana<br />

influenciou nosso modo de pensar, construiu a realidade sobre a Bahia e as baianas que<br />

conhecemos.<br />

Quando combinada com <strong>imagens</strong>, então, a linguagem torna-se ainda<br />

mais eficaz. De fato, esta sutil combinação pode ter um poder de<br />

manipulação tão extenso que é capaz de transformar uma ideologia<br />

particularmente negativa em um aspecto cultuado da cultura de uma<br />

sociedade. 30<br />

Jorge Amado nos dá um exemplo disso. Segundo ele,<br />

Carybé mudou também o porte e o comportamento dos baianos, em<br />

particular <strong>das</strong> baianas. As <strong>mulher</strong>es ficaram mais esguias, mais<br />

elegantes, desde que miraram e se reconheceram nas mulatas que<br />

povoam a obra do mestre pintor e desenhista(...) Num deslumbre de<br />

volumes e de cores, as <strong>mulher</strong>es baianas, mestiças de todos as matizes,<br />

são carne e sangue da criação de Carybé. 31<br />

A imagem de <strong>mulher</strong> elaborada via linguagens literária, televisiva, musical,<br />

acadêmica, <strong>das</strong> artes visuais e da propaganda, evidencia a noção de que a <strong>mulher</strong> baiana<br />

e brasileira deve ser sempre bela, sexualmente fogosa e disponível. O contexto histórico<br />

de meados do século XX é um terreno fértil para propagação dessa imagem. As<br />

<strong>mulher</strong>es começam a adentrar mais maciçamente no mercado de trabalho, tornando-se


também consumidoras. Denise Bernuzzi de Sant’anna 32 trata de como recursos<br />

publicitários contidos em revistas, televisão e cinema são aliciados por grandes<br />

empresas nacionais e multinacionais de cosméticos para incutir um novo ideal de<br />

preocupação com a beleza na <strong>mulher</strong> brasileira, naturalizando a preocupação com a boa<br />

forma, com a beleza de seu corpo.<br />

As <strong>mulher</strong>es brasileiras, em geral, se orgulham desta reputação sexual e<br />

tentam fazer jus a ela. Já que ‘a <strong>mulher</strong> sexualmente disponível’<br />

também está presente nos textos verbais e visuais produzidos pela<br />

mídia publicitária, não é de se espantar que esta ideologia tenha se<br />

tornado ainda mais natural e popular na cultura brasileira. 33<br />

Bahia e Rio de Janeiro, os dois cartões-postais turísticos do Brasil, souberam muito bem<br />

se aproveitar disso. Autoridades municipais, estaduais e agências de turismo, desde a<br />

década de 1930, vêm promovendo as cidades do Rio de Janeiro 34 e de Salvador por<br />

meio da imagem de <strong>mulher</strong>es sedutoras espalha<strong>das</strong> pelas praias e de exóticas mulatas<br />

dançando, sambando como atrações turísticas. No entanto, apesar de partilharem várias<br />

semelhanças, a imagem de <strong>mulher</strong> brasileira e baiana tem também diferenças. Há na<br />

baiana, detalhes que a particularizam que a tornam única, singular. Há um não-sei-oquê,<br />

um tempero, uma graça, talvez seja a pimenta, o azeite, talvez seja o dengo.<br />

Dengo... Denguice... Dengosa... Palavras que dizem muita coisa, que<br />

definem, por vezes, a personalidade de uma <strong>mulher</strong>. O Sol do Nordeste,<br />

aquele calor <strong>das</strong> tardes pedindo rede e água de coco, pedindo cafuné e<br />

dando ao corpo certa moleza gostosa, produz o “dengo” que por vezes<br />

está só no quebranto de um olhar, às vezes na modulação da voz terna,<br />

de súbito gesto, como um convite. Não sei como definir certas<br />

<strong>mulher</strong>es senão pelo dengo que elas possuem. Dengo no sorriso, no<br />

andar, no remelexo, no olhar, no jeitinho do rosto ou <strong>das</strong> mãos. Onde<br />

é que a baiana não tem dengo? 35<br />

A <strong>mulher</strong> baiana se torna o cartão-postal da cidade da Bahia, esta cidade morena,<br />

quente, voluptuosa, sedutora, cheirosa como suas <strong>mulher</strong>es. A Bahia encarna o mistério<br />

feminino, a irracionalidade, a fantasia, a mágica. É uma cidade-<strong>mulher</strong> por excelência<br />

onde coisas “mágicas sucedem sem a ninguém causar espanto”. 36<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

E. W. Said nos alerta sobre a materialidade e/ou materialização do discurso.<br />

Sendo assim, por mais que nos perturbe, não se deve nunca supor que a imagem da<br />

Bahia e dos baianos construída não passa de uma estrutura de mentira ou de mitos que,<br />

caso fosse dita a verdade sobre eles, partiriam com o vento. O que temos de respeitar e<br />

tentar entender é a força nua e sólida desse discurso e sua temível durabilidade. Afinal,<br />

qualquer sistema de idéias que possa permanecer inalterado como sabedoria que se pode<br />

ensinar em livros, filmes, jornais, televisão, músicas etc., deve ser algo mais formidável<br />

que uma mera coleção de mentiras. A baianidade, portanto, não é uma fantasia, mas um<br />

corpo criado de teoria e prática em que houve, ao longo <strong>das</strong> últimas déca<strong>das</strong>, um<br />

considerável investimento material. Cabe a nós pesquisadores baianos entender este<br />

fenômeno percebendo o jogo de interesses, a rede de poder que sustentou e é sustentada<br />

por essa identidade de Bahia criada.


REFERÊNCIAS<br />

ALBUQUERQUE JR., D. M. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:<br />

Cortez, 1999.<br />

ANDRADE, Celeste M. P. de. Bahias de Amado: a ficção fundando uma nova<br />

geografia. In: FONSECA, Aleilton & PEREIRA, Rubens(orgs). Rotas e Imagens:<br />

literatura e outras viagens. Feira de Santana: UEFS/PPGLDC, 2000.<br />

FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso: a aula inaugural no Collège de France,<br />

pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 8. ed. São Paulo: Loyola, 2002.<br />

SAID, E. W. O Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Cia<br />

<strong>das</strong> Letras,1990.

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