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LEITURA 1 ANTI-HERÓI/HERÓI PICARESCO OU QUIXOTESCO I

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por Davi Fazzolari<br />

PROJETO <strong>LEITURA</strong> E DIDATIZAÇÃO<br />

MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS<br />

MANUEL ANTÔNIO DE ALMEIDA<br />

Possíveis dialogismos trabalhados neste projeto:<br />

1. Anti-herói/herói picaresco ou quixotesco (leituras 1 e 3)<br />

2. Romântico de exceção (leitura 2)<br />

3. A malícia e as milícias: jeitinho e corrupção (leitura 4)<br />

4. As idiossincrasias cariocas e o espírito brasileiro (leitura 5)<br />

<strong>LEITURA</strong> 1<br />

<strong>ANTI</strong>-<strong>HERÓI</strong>/<strong>HERÓI</strong> <strong>PICARESCO</strong> <strong>OU</strong> <strong>QUIXOTESCO</strong> I<br />

Leia, com atenção, os excertos a seguir, antes de trabalhar<br />

com as questões propostas. O primeiro faz parte do trecho<br />

inicial do romance de Manuel Antônio de Almeida,<br />

Memórias de um sargento de milícias, considerado pela crítica<br />

como “romance de exceção, dentro do período romântico”;<br />

o segundo é o prefácio escrito por Miguel de Cervantes, em<br />

1605, para sua obra-prima O engenhoso fidalgo D. Quixote de<br />

La Mancha.<br />

TEXTO 1<br />

Mas voltemos à esquina. Quem passasse por aí em<br />

qualquer dia útil dessa abençoada época veria sentado em<br />

assentos baixos, então usados, de couro, e que se denominavam<br />

– cadeiras de campanha – um grupo mais ou menos<br />

numeroso dessa nobre gente conversando pacificamente<br />

em tudo sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos,<br />

1


nas notícias do Reino e nas astúcias policiais do Vidigal.<br />

Entre os termos que formavam essa equação meirinhal pregada<br />

na esquina havia uma quantidade constante, era o<br />

Leonardo-Pataca. Chamavam assim a uma rotunda e<br />

gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado,<br />

que era o decano da corporação, o mais antigo dos<br />

meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice tinha-o tornado<br />

moleirão e pachorrento; com sua vagareza atrasava o<br />

negócio das partes; não o procuravam; e por isso jamais saía<br />

da esquina; passava ali os dias sentado na sua cadeira, com<br />

as pernas estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa<br />

bengala, que depois dos cinqüenta era a sua infalível companhia.<br />

Do hábito que tinha de queixar-se a todo o instante<br />

de que só pagassem por sua citação a módica quantia de<br />

320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome.<br />

TEXTO 2<br />

ALMEIDA, Manuel Antônio de.<br />

Memórias de um sargento de milícias.<br />

São Paulo: Saraiva, 2006 (Clássicos Saraiva).<br />

Desocupado leitor: sem meu juramento podes crer<br />

que eu quisera que este livro, como filho do entendimento,<br />

fosse o mais formoso, o mais galhardo, e mais discreto que<br />

se pudesse imaginar. Mas não pude eu contravir a ordem da<br />

natureza, que nela cada coisa engendra sua semelhante. E<br />

assim que poderá engendrar o estéril e mal cultivado<br />

engenho meu, senão a história de um filho seco, mirrado,<br />

caprichoso e cheio de pensamentos vários e nunca imaginados<br />

por outro alguém, tal como quem fosse engendrado<br />

num cárcere, onde todo desconforto tem seu assento, e<br />

onde todo o triste ruído faz sua morada? O sossego, o lugar<br />

aprazível, a amenidade dos campos, a serenidade dos céus,<br />

o murmurar das fontes, a quietude do espírito dão ocasião<br />

bastante para que as musas mais estéreis se mostrem<br />

fecundas e ofereçam ao mundo partos que o cumulem de<br />

maravilha e de contento. Não raro acontece a um pai ter um<br />

filho feio e sem graça alguma, e o amor que lhe tem põe-lhe<br />

uma venda nos olhos para que não veja suas falhas, antes as<br />

toma por graças e discrições e as conta aos amigos como<br />

agudezas e donaires. Mas eu, que, embora pareça pai, sou<br />

padrasto de D. Quixote, não quero seguir o corrente do uso<br />

suplicando-te, quase com as lágrimas nos olhos, como outros<br />

fazem, leitor caríssimo, que perdoes ou dissimules as<br />

faltas que neste meu filho vires, pois não és seu parente<br />

nem seu amigo, e tens a alma em teu corpo e teu livrearbítrio<br />

no justo ponto (...).<br />

SAAVEDRA, Miguel de Cervantes.<br />

O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, Primeiro Livro;<br />

tradução de Sérgio Molina. São Paulo: Ed. 34, 2002.<br />

1. A apresentação das personagens, na prosa de ficção,<br />

geralmente se vale das qualidades físicas e psicológicas que<br />

servirão de arma e escudo, para essas mesmas personagens,<br />

durante o enredo. Destaque do texto 1:<br />

a) As expressões que compõem as características físicas da<br />

personagem chamada Leonardo-Pataca.<br />

b) As expressões que compõem as características psicológicas<br />

da personagem em questão.<br />

c) Quanto às intenções do autor ao criar a personagem, o<br />

que esse conjunto de características, destacadas em suas<br />

respostas anteriores, pode revelar?<br />

2. A obra de Miguel de Cervantes, escrita no início do<br />

século XVII, portanto mais de duzentos anos antes do<br />

romance de Manuel Antônio de Almeida, é apontada<br />

pelos especialistas como uma das responsáveis pelo<br />

declínio das Novelas de Cavalaria, já que criou um herói<br />

com características contrárias às do herói convencional.<br />

2


Novela de Cavalaria – Manifestação literária medieval<br />

que narra as peripécias e aventuras de heróicos cavaleiros.<br />

Geralmente em busca do amor de uma donzela,<br />

eles enfrentam inúmeros desafios e seres maravilhosos,<br />

como dragões e monstros, exaltando ideais de coragem,<br />

lealdade e honra.<br />

a) Que expressões, no trecho destacado, aproximam a obra<br />

de Cervantes do que se convencionou chamar Novela de<br />

Cavalaria?<br />

b) Que expressões distanciam a descrição do protagonista<br />

das descrições dos típicos heróis de cavalaria (os cavaleiros)?<br />

3. Compare os dois textos. Ambos descrevem personagens<br />

com informações mínimas, antes que iniciem, de fato, as<br />

peripécias inseridas no enredo.<br />

a) Quanto ao foco narrativo, em que as estruturas das duas<br />

narrativas se aproximam ou se distanciam?<br />

Foco narrativo – É o ponto de vista, adotado por um<br />

narrador, pelo qual se apresenta o enredo para o leitor.<br />

Quando o narrador, além de narrar, participar das ações<br />

do enredo, como um narrador-personagem, o foco narrativo<br />

estará em primeira pessoa. Quando o narrador não<br />

estiver envolvido em qualquer ação dentro do enredo, o<br />

foco narrativo estará em terceira pessoa.<br />

b) Por que, em sua opinião, os autores fizeram essa opção?<br />

<strong>LEITURA</strong> 2<br />

ROMÂNTICO DE EXCEÇÃO<br />

Responda a estas questões prévias para, em seguida, iniciar<br />

a leitura de novos textos.<br />

1. É comum a expressão “romantismo de exceção” quando a<br />

crítica se refere ao romance Memórias de um sargento de milícias,<br />

publicado pela primeira vez em 1852.<br />

a) Que características justificam plenamente essa expressão?<br />

b) A obra de Cervantes aqui destacada poderia, ao seu<br />

tempo, ser considerada também uma narrativa de exceção?<br />

A seguir, além de mais um excerto do romance de Manuel<br />

Antônio de Almeida, leremos o trecho final de A pata da<br />

gazela, romance escrito por José de Alencar e que alcançou<br />

grande popularidade na segunda metade do século XIX,<br />

durante a fase final do Romantismo brasileiro. Trata-se de<br />

uma obra escrita em 1870, portanto quase vinte anos após a<br />

publicação de Memórias de um sargento de milícias.<br />

TEXTO 3<br />

Quem Amélia amou desde o princípio foi Leopoldo. A<br />

vaidade, o galanteio que se nutre de brilhantes futilidades, a<br />

seduziam por momentos, e rendiam ao capricho de<br />

Horácio. Mas passado esse enlevo, sua alma sentia a atração<br />

irresistível que a impelia para o seu pólo.<br />

Disso que durante dois meses passava na vida íntima da<br />

moça, ela própria não se apercebia; foi depois da cena do baile,<br />

que ela entrou em si, e compreendeu as sublevações recônditas<br />

de sua alma, e o drama que aí se agitava desde muito.<br />

3


Leopoldo começara a freqüentar a casa de Sales<br />

poucos dias depois da partida de D. Clementina. As duas<br />

almas, por tanto tempo separadas, só esperavam o momento<br />

de se unirem ou antes de se entranharem uma na outra.<br />

Às tardes, no jardim, entre cortinas de flores, elas celebravam<br />

esse místico himeneu do amor, único eterno e<br />

indissolúvel, porque se faz no seio do Criador.<br />

Pelo voto de todos se apressou o dia do casamento, que<br />

os noivos exigiram se fizesse inteiramente à capucha, e sem<br />

prévia participação. A razão desse empenho, só Amélia a<br />

sabia e nunca a disse. Eram escrúpulo de seu pudor: depois<br />

do que tinha acontecido, não queria que lhe dessem outra<br />

vez o título de noiva.<br />

Terminada a cerimônia, e feitas as felicitações do costume,<br />

correram os minutos em agradável conversação.<br />

Eram onze horas, quando Leopoldo entrou no toucador<br />

em que sua noiva o esperava. Sentada em uma conversadeira,<br />

Amélia sorriu para seu marido; porém através<br />

das largas dobras do roupão de cambraia, percebia-se o<br />

tremor involuntário que agitava seu lindo talhe.<br />

– É meu presente! disse ela com timidez.<br />

E apresentou ao noivo um objeto envolto em papel de<br />

seda, atado com fita azul.<br />

Abrindo, achou Leopoldo dois mimosos pantufos de<br />

cetim branco, os mesmos que Amélia começara a bordar no<br />

dia seguinte ao baile.<br />

O moço enleado, não compreendia. Insensivelmente<br />

seu olhar desceu à fímbria do roupão. Sobre a almofada de<br />

veludo e entre os folhos da cambraia, apareciam as unhas<br />

rosadas de dois pezinhos divinos.<br />

Uma onda de rubor derramou-se pelo semblante da<br />

moça, cujos lábios balbuciaram uma palavra.<br />

– Calce!<br />

Leopoldo ajoelhou aos pés da noiva.<br />

O temporal, desabando nesse momento, bateu com<br />

violência nos vidros da janela, que fechou-se.<br />

ALENCAR, José de. A pata da gazela.<br />

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1960 (Obra Completa).<br />

TEXTO 4<br />

Sua história tem pouca coisa de notável. Fora<br />

Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria; aborrecera-se<br />

porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se<br />

sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o<br />

vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde<br />

tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não<br />

sei fazer o que, uma certa Maria da hortaliça, quitandeira<br />

das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota. O<br />

Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de<br />

sua mocidade mal apessoado, e sobretudo era maganão. Ao<br />

sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o<br />

Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com<br />

o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé<br />

direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se<br />

como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de<br />

disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda.<br />

Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da<br />

terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer<br />

passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a<br />

diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia<br />

seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares,<br />

que pareciam sê-lo de muitos anos.<br />

Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir<br />

certos enojos: foram os dois morar juntos: e daí a um mês<br />

manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do<br />

beliscão; sete meses depois teve a Maria um filho, formidável<br />

menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho,<br />

cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois<br />

que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o<br />

peito. E este nascimento é certamente de tudo o que temos<br />

dito o que mais nos interessa, porque o menino de quem<br />

falamos é o herói desta história.<br />

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias.<br />

São Paulo: Saraiva, 2006 (Clássicos Saraiva).<br />

4


2. Destaque do texto de José de Alencar expressões que revelam<br />

a atração impulsionada pelo sentimento amoroso e<br />

uma cena em que, em sua opinião, simbolicamente se dá o<br />

enlace matrimonial.<br />

3. Identifique a passagem do texto 4 que narra a aproximação<br />

amorosa dos pais do protagonista Leonardo.<br />

Compare, agora, os textos 3 e 4.<br />

4. Qual dos dois está mais próximo das características do<br />

Romantismo? Justifique sua resposta a partir do texto escolhido.<br />

5. O que distancia a outra obra das expectativas do leitor<br />

romântico?<br />

<strong>LEITURA</strong> 3<br />

<strong>ANTI</strong>-<strong>HERÓI</strong>/<strong>HERÓI</strong> <strong>PICARESCO</strong> <strong>OU</strong> <strong>QUIXOTESCO</strong> II<br />

Assim como Memórias de um sargento de milícias pode<br />

ter recebido influências d'O engenhoso fidalgo D. Quixote<br />

de La Mancha, de Miguel de Cervantes, o romance de<br />

Manuel Antônio de Almeida também pode ter estendido<br />

seu registro de mundo para obras brasileiras que<br />

foram escritas mais tarde, em um diálogo sempre vivo e<br />

aquecido.<br />

Confrontaremos agora o protagonista Leonardo com outros<br />

heróis da literatura nacional, ainda na fase inicial de suas<br />

vidas: Macunaíma e Brás Cubas.<br />

TEXTO 5<br />

Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde<br />

o nascimento e batizado do nosso memorando, e vamos<br />

encontrá-lo já na idade de sete anos. Digamos unicamente<br />

que durante todo este tempo o menino não desmentiu aquilo<br />

que anunciara desde que nasceu: atormentava a vizinhança<br />

com um choro sempre em oitava alta; era colérico;<br />

tinha ojeriza particular à madrinha, a quem não podia<br />

encarar, e era estranhão até não poder mais.<br />

Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava<br />

e rasgava tudo que lhe vinha à mão. Tinha uma paixão<br />

decidida pelo chapéu armado do Leonardo; se este o deixava<br />

por esquecimento em algum lugar ao seu alcance, tomava-o<br />

imediatamente, espanava com ele todos os móveis, punha-lhe<br />

dentro tudo que encontrava, esfregava-o em uma parede, e<br />

acabava por varrer com ele a casa; até que a Maria, exasperada<br />

pelo que aquilo lhe havia de custar aos ouvidos, e talvez às<br />

costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além de<br />

traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. A Maria não<br />

lhe perdoava; trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo;<br />

porém ele não se emendava, que era também teimoso, e as<br />

travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas.<br />

Assim chegou aos sete anos.<br />

TEXTO 6<br />

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias.<br />

São Paulo: Saraiva, 2006 (Clássicos Saraiva).<br />

“No fundo do Mato-Virgem nasceu Macunaíma, herói<br />

de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.<br />

Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando<br />

o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas<br />

pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de<br />

Macunaíma.”<br />

[...] Ficava no canto da maloca, trepado no jirau da paxiúba,<br />

espiando o trabalho dos outros e principalmente os<br />

5


dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força<br />

de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de<br />

saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro,<br />

Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava<br />

quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e<br />

nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres<br />

soltavam gritos gozados por causa dos guaimuns dizque<br />

habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma<br />

cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha. Macunaíma<br />

punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos<br />

machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e freqüentava<br />

com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô<br />

a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.<br />

Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho<br />

sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe<br />

estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha,<br />

espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando<br />

palavras feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas<br />

no ar.<br />

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter.<br />

Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1987, p. 9-12.<br />

Os dois trechos transcritos situam-se na introdução dos<br />

respectivos romances e anunciam os primeiros passos dos<br />

heróis. A obra de Manuel Antônio de Almeida, como sabemos,<br />

é de 1852, mas os leitores brasileiros só puderam<br />

ler Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, romance mais<br />

conhecido de Mário de Andrade, em 1928, data de sua<br />

primeira edição.<br />

Com base nas duas leituras, responda as questões propostas.<br />

1. Destaque do texto 5 expressões que caracterizam o protagonista<br />

Leonardo em sua infância.<br />

2. Destaque do texto 6 os termos utilizados por Mário de<br />

Andrade para descrever Macunaíma, quando o “herói sem<br />

nenhum caráter” está com uma idade muito próxima do<br />

herói de Memórias de um sargento de milícias.<br />

3. É possível identificar no protagonista de Mário de<br />

Andrade aspectos psicológicos já presentes em Memórias<br />

de um sargento de milícias? Para oferecer uma resposta<br />

completa, procure empregar elementos dos textos apresentados.<br />

Agora, levante hipóteses.<br />

4. Aparentemente, os protagonistas das duas obras destacadas<br />

estão distantes do conceito comum de herói.<br />

a) A partir do contexto de cada obra, o que justificaria tal distância?<br />

b) Teria nascido um novo conceito de herói no romance<br />

escrito por Manuel Antônio de Almeida?<br />

Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas –<br />

um dos romances mais importantes da literatura brasileira,<br />

publicado em 1882 e considerado marco inicial do Realismo<br />

no Brasil –, apresenta um curioso capítulo em que o herói,<br />

narrador-personagem, descreve-se em sua infância. Esse<br />

estranho protagonista, que narra sua vida depois de morto,<br />

costuma tecer alguns comentários de inclinação psicológica.<br />

Vejamos.<br />

TEXTO 7<br />

CAPÍTULO XI – O MENINO É PAI DO HOMEM<br />

CRESCI; e nisso é que a família não interveio; cresci<br />

naturalmente como crescem as magnólias e os gatos.<br />

Talvez os gatos são menos matreiros, e com certeza, as<br />

magnólias são menos inquietas de que eu era na minha<br />

infância. Um poeta dizia que o menino é pai do homem. Se<br />

6


isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.<br />

Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino<br />

diabo"; e verdadeiramente não era outra cousa; fui dos<br />

mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas<br />

e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de<br />

uma escrava, porque me negara uma colher do doce de<br />

coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício,<br />

deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da<br />

travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara<br />

o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos.<br />

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos<br />

os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos<br />

queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma<br />

varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro<br />

lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia<br />

sem dizer palavra, ou, quando muito, um –"ai, nhonhô!"<br />

– ao que eu retorquia: – "Cala a boca, besta!" –<br />

Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas<br />

graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões<br />

nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste<br />

jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que<br />

eram também expressões de um espírito robusto, porque<br />

meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me<br />

repreendia à vista de gente, fazia-o por simples formalidade:<br />

em particular dava-me beijos.<br />

Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da<br />

minha vida a quebrar a cabeça dos outros nem a esconderlhes<br />

os chapéus; mas opiniático, egoísta e algo contemptor<br />

dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes<br />

os chapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das<br />

cabeleiras.<br />

(...)<br />

Sim, meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora<br />

fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz crédula,<br />

sinceramente piedosa, – caseira, apesar de bonita, e modesta,<br />

apesar de abastada; temente às trovoadas e ao marido. O<br />

marido era na Terra o seu deus. Da colaboração dessas duas<br />

criaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma<br />

cousa boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes,<br />

negativa. Meu tio cônego fazia às vezes alguns reparos ao<br />

irmão dizia-lhe que ele me dava mais liberdade do que ensino,<br />

e mais afeição do que emenda; mas meu pai respondia<br />

que aplicava na minha educação um sistema inteiramente<br />

superior ao sistema usado; e por este modo, sem confundir<br />

o irmão, iludia-se a si próprio.<br />

(...)<br />

Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade<br />

e pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um<br />

espírito superior, apenas compensavam um espírito<br />

medíocre. Não era homem que visse a parte substancial da<br />

Igreja; via o lado externo, a hierarquia, as preeminências, as<br />

sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia que<br />

do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma<br />

infração dos mandamentos. Agora, a tantos anos de distância,<br />

não estou certo se ele poderia atinar facilmente com um<br />

trecho de Tertuliano, ou expor, sem titubear, a história do<br />

símbolo de Nicéia; mas ninguém, nas festas cantadas, sabia<br />

melhor o número e casos das cortesias que se deviam ao oficiante.<br />

Cônego foi a única ambição de sua vida; e dizia de<br />

coração que era a maior dignidade a que podia aspirar.<br />

Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observância<br />

das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuía algumas<br />

virtudes, em que era exemplar – mas carecia absolutamente<br />

da força de as incutir, de as impor aos outros;<br />

Não digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana,<br />

e aliás era a pessoa que mais autoridade tinha sobre mim;<br />

essa diferençava-se grandemente dos outros; mas viveu<br />

pouco tempo em nossa companhia, uns dous anos. Outros<br />

parentes e alguns íntimos não merecem a pena de ser citados;<br />

não tivemos uma vida comum, mas intermitente, com<br />

grandes claros de separação. O que importa é a expressão<br />

geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada, vulgaridade<br />

de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído,<br />

frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa<br />

terra e desse estrume é que nasceu esta flor.<br />

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.<br />

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v. 1.<br />

7


5. O texto de Machado de Assis apresenta um título muito<br />

curioso, “O menino é pai do homem”.<br />

a) Após ler o texto com cuidado, procure decifrar o título.<br />

b) Levando em consideração que o narrador é um tanto<br />

arrogante em sua maneira de apresentar os fatos, localize,<br />

no texto, elementos que comprovem a sua resposta<br />

anterior.<br />

6. O protagonista de Memórias póstumas de Brás Cubas,<br />

descrito em suas atitudes, nos faz lembrar do protagonista de<br />

outras memórias, as de um sargento de milícias.<br />

a) Destaque adjetivos que servem para descrever Brás<br />

Cubas.<br />

b) Compare os textos. As descrições da infância dos protagonistas<br />

os distanciam ou os aproximam?<br />

7. A obra de Manuel Antônio de Almeida é reconhecida,<br />

entre os críticos, como precursora da apresentação em<br />

primeiro plano das camadas populares na Literatura<br />

brasileira. Já a obra de Machado de Assis tratou dos temas<br />

em voga no Realismo, predominantemente, a partir das<br />

elites burguesas do século XIX. De posse dessas informações,<br />

responda:<br />

a) A reação dos adultos, nos dois textos, para as “traquinagens”<br />

dos meninos será a mesma? Apresente trechos dos<br />

textos que confirmem sua resposta.<br />

b) Desprezando a época de publicação, em uma primeira<br />

leitura, a qual das duas reações, destacadas em sua resposta<br />

anterior, você atribuiria o termo “realista”? Comente sua<br />

resposta, levando em consideração o uso comum dos termos<br />

“realista” e “romântico”.<br />

Agora, levante novas hipóteses.<br />

8. Seria possível atribuir a teoria expressa no título do capítulo<br />

escrito por Machado de Assis (O menino é pai do<br />

homem) ao personagem de Manuel Antônio de Almeida?<br />

9. Seria possível ler na descrição de Brás Cubas uma<br />

influência direta do texto de Manuel Antônio de Almeida?<br />

<strong>LEITURA</strong> 4<br />

A MALÍCIA E AS MILÍCIAS: JEITINHO E CORRUPÇÃO<br />

Há na literatura brasileira certa tradição quanto ao protagonista<br />

arrevesado, torto, gauche. O anti-herói formulado por<br />

Manuel Antônio de Almeida para o seu romance único<br />

pode estar só quando pensamos em meados do século XIX.<br />

Contudo, estará muito bem acompanhado quando o olhar<br />

for mais panorâmico. Os textos selecionados nesta fase da<br />

atividade revelam estreita ligação entre o imaginário<br />

literário da malandragem e os sambas que se produziram<br />

com o tema.<br />

A “malandragem” carioca/brasileira pode ser ouvida também<br />

nos sambas de Noel Rosa, Geraldo Pereira, Moreira da<br />

Silva, entre muitos outros.<br />

Paulinho da Viola, um dos principais nomes do samba contemporâneo,<br />

referiu-se diretamente à obra de Manuel Antônio<br />

de Almeida e, em 1966, a Portela desfilou ao som de<br />

“Memórias de um sargento de milícias” (que foi gravado por<br />

Martinho da Vila). Não deixe de ouvir.<br />

Os textos 9, 10 e 11 ilustram bem a referida tradição da<br />

nossa literatura. Leia-os com atenção e responda as próximas<br />

questões.<br />

8


TEXTO 8<br />

Escola de Samba Portela 1966<br />

Enredo: Memórias de um sargento de milícias<br />

Compositor: Paulinho da Viola<br />

Era no tempo do rei<br />

Quando aqui chegou<br />

Um modesto casal<br />

Feliz pelo recente amor<br />

Leonardo, tornando-se meirinho<br />

Deu a Maria Hortaliça um novo lar<br />

Um pouco de conforto e de carinho<br />

Dessa união nasceu um lindo varão<br />

Que recebeu o mesmo nome de seu pai<br />

Personagem central da história<br />

Que contamos neste carnaval<br />

(...)<br />

Era temido pelo povo da cidade<br />

Luizinha, primeiro amor<br />

Que Leonardo conheceu<br />

E que dona Maria<br />

A outro como esposa concedeu<br />

Somente foi feliz<br />

Quando José Manuel morreu<br />

Nosso herói outra vez se apaixonou<br />

Quando sua viola a mulata Vidinha<br />

Esta singela modinha contou:<br />

Se os meus suspiros pudessem<br />

Aos seus ouvidos chegar<br />

Verias que uma paixão<br />

Tem poder de assassinar<br />

(...) O tema do sermão foi a necessidade de buscar o<br />

Leonardo uma ocupação, de abandonar a vida que levava,<br />

gostosa sim, porém sujeita a emergências tais como a que<br />

acabava de dar-se. A sanção de todas as leis que a predadora<br />

impunha ao seu ouvinte eram as garras do Vidigal.<br />

– Haveis de afinal cair-lhe nas unhas, dizia ela no fim<br />

de cada período; e então o côvado e meio te cairá também<br />

nas costas.<br />

Esta idéia do côvado e meio fez brecha no espírito do<br />

Leonardo: ser soldado era naquele tempo, e ainda hoje<br />

talvez, a pior coisa que podia suceder a um homem.<br />

Prometeu pois sinceramente emendar-se e tratar de ver um<br />

arranjo em que estivesse ao abrigo de qualquer capricho<br />

policial do terrível major. Achar porém ocupação para quem<br />

nunca cuidou nela até certa idade, e assim de pé para mão,<br />

não era das coisas mais fáceis.<br />

Entretanto o zelo da comadre pôs-se em atividade, e<br />

poucos dias depois entrou ela muito contente, e veio participar<br />

ao Leonardo que lhe tinha achado um excelente arranjo<br />

que o habilitava, segundo pensava, a um grande futuro, e<br />

o punha perfeitamente a coberto das iras do Vidigal; era o<br />

arranjo de servidor na ucharia real. Deixando de parte o<br />

substantivo ucharia, e atendendo só ao adjetivo real, todos<br />

os interessados e o próprio Leonardo regalaram os olhos<br />

com o achado da comadre. Empregado da casa real?! oh!<br />

isso não era coisa que se recusasse; e então empregado na<br />

ucharia! essa mina inesgotável, tão farta e tão rica!… A proposta<br />

da comadre foi aceita sem uma só reflexão contra, da<br />

parte de quem quer que fosse.<br />

Como a comadre pudera arranjar semelhante coisa<br />

para o afilhado é isso que pouco nos deve importar.<br />

Dentro de poucos dias achou-se o Leonardo instalado<br />

no seu posto, muito cheio e contente de si.<br />

O major, que o não perdia de vista, soube-lhe dos passos,<br />

e mordeu os beiços de raiva quando o viu tão bem aquartelado;<br />

só deixando a vida que levava podia o Leonardo cortar<br />

ao major pretextos para pôr-lhe a unha mais dia menos dia.<br />

– Se ele se emenda?! dizia pesaroso o major; se ele se<br />

emenda perco eu a minha vingança… Mas… (e esta esperança<br />

o alentava) ele não tem cara de quem nasceu para<br />

emendas.<br />

O major tinha razão: o Leonardo não parecia ter nascido<br />

para emendas. Durante os primeiros tempos de serviço<br />

tudo correu às mil maravilhas; só algum mal-intencionado<br />

poderia notar em casa de Vidinha uma certa fartura desusada<br />

na despensa; mas isso não era coisa em que alguém<br />

fizesse conta.<br />

9


O Leonardo porém parece que recebera de seu pai a<br />

fatalidade de lhe provirem sempre os infortúnios dos<br />

devaneios do coração.<br />

Dentro do pátio da ucharia morava um toma-largura<br />

em companhia de uma moça que lhe cuidava na casa; a<br />

moça era bonita, e o toma-largura um machacaz talhado<br />

pelo molde mais grotesco; a moça fazia pena a quem a via<br />

nas mãos de tal possuidor.<br />

O Leonardo, cujo coração era compadecido, teve,<br />

como todos, pena da moça; e apressemo-nos a dizer, era<br />

tão sincero esse sentimento que não pôde deixar de despertar<br />

também a mais sincera gratidão ao objeto dele.<br />

Quem pagou o resultado da pena de um e da gratidão da<br />

outra foi o toma-largura.<br />

Vidinha lá por casa começou a estranhar a assiduidade<br />

do novo empregado na sua repartição, e a notar o quer que<br />

fosse de esmorecimento de sua parte para com ela.<br />

Um dia o toma-largura tinha saído em serviço;<br />

ninguém esperava por ele tão cedo: eram 11 horas da<br />

manhã. O Leonardo, por um daqueles milhares de escaninhos<br />

que existem na ucharia, tinha ido ter à casa do<br />

toma-largura. Ninguém porém pense que era para maus<br />

fins. Pelo contrário era para o fim muito louvável de levar<br />

à pobre moça uma tigela de caldo do que há pouco fora<br />

mandado a el-rei… Obséquio de empregado da ucharia.<br />

Não há aqui nada de censurável. Seria entretanto muito<br />

digno de censura que quem recebia tal obséquio não o<br />

procurasse pagar com um extremo de civilidade: a moça<br />

convidou pois ao Leonardo para ajudá-la a tomar o caldo.<br />

E que grosseiro seria ele se não aceitasse tão belo oferecimento?<br />

Aceitou.<br />

De repente sente-se abrir uma porta: a moça, que tinha<br />

na mão a tigela, estremece, e o caldo entorna-se.<br />

O toma-largura, que acabava de chegar inesperadamente,<br />

fora a causa de tudo isto. O Leonardo correu precipitadamente<br />

pelo caminho mais curto que encontrou; sem<br />

dúvida em busca de outro caldo, uma vez que o primeiro se<br />

tinha entornado. O toma-largura corre-lhe também ao<br />

alcance, sem dúvida para pedir-lhe que trouxesse desta vez<br />

quantidade que chegasse para um terceiro.<br />

O caso foi que daí a pouco ouviu-se lá por dentro barulho<br />

de pratos quebrados, de móveis atirados ao chão, gritos,<br />

alarido; viu-se depois o Leonardo atravessar o pátio da<br />

ucharia à carreira e o toma-largura voltar com os galões da<br />

farda arrancados, e esta com uma aba de menos.<br />

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .<br />

No dia seguinte o Leonardo foi despedido da ucharia.<br />

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias.<br />

São Paulo: Saraiva, 2006 (Clássicos Saraiva).<br />

TEXTO 9<br />

CAPRICHO DE RAPAZ SOLTEIRO<br />

(NOEL ROSA – 1933)<br />

Nunca mais esta mulher<br />

Me vê trabalhando!<br />

Quem vive sambando<br />

Leva a vida para o lado que quer<br />

De fome não se morre<br />

Neste Rio de Janeiro<br />

Ser malandro é um capricho<br />

De rapaz solteiro<br />

TEXTO 10<br />

RAPAZ FOLGADO<br />

(NOEL ROSA – 1932)<br />

Deixa de arrastar o teu tamanco<br />

Pois tamanco nunca foi sandália<br />

E tira do pescoço o lenço branco<br />

Compra sapato e gravata<br />

Joga fora esta navalha que te atrapalha<br />

10


Com chapéu do lado deste rata<br />

Da polícia quero que escapes<br />

Fazendo um samba-canção<br />

Já te dei papel e lápis<br />

Arranja um amor e um violão<br />

Malandro é palavra derrotista<br />

Que só serve pra tirar<br />

Todo o valor do sambista<br />

Proponho ao povo civilizado<br />

Não te chamar de malandro<br />

E sim de rapaz folgado<br />

TEXTO 11<br />

HOMENAGEM AO MALANDRO<br />

(CHICO BUARQUE – 1977)<br />

Eu fui fazer um samba em homenagem<br />

À nata da malandragem<br />

(...)<br />

Agora já não é normal<br />

O que dá de malandro regular, profissional<br />

Malandro com aparato de malandro oficial<br />

Malandro candidato a malandro federal<br />

Malandro com retrato na coluna social<br />

Malandro com contrato, com gravata e capital<br />

Que nunca se dá mal<br />

Mas o malandro pra valer<br />

Não espalha<br />

Aposentou a navalha<br />

Tem mulher e filho e tralha e tal<br />

Dizem as más línguas que ele até trabalha<br />

Mora lá longe e chacoalha<br />

Num trem da Central<br />

Geralmente, a negação do trabalho e a conquista amorosa<br />

são, dentro do que já foi chamado pela crítica de “estética da<br />

malandragem”, dois obstáculos a serem superados e que, via<br />

de regra, determinam as peripécias do anti-herói. Em vez de<br />

enfrentar as leis e os rituais sociais regulares, o “malandro”<br />

corrompe os caminhos e burla as regras.<br />

1. No texto 8, encontre e reproduza, com suas palavras, o<br />

modo como Leonardo encontra emprego e começa a trabalhar,<br />

bem como os motivos que o levaram a isso.<br />

2. O que fez Leonardo para perder o emprego “arranjado”<br />

pela comadre?<br />

3. O texto 9 – Capricho de rapaz solteiro, de Noel Rosa –<br />

apresenta uma tomada de decisão baseada no ambiente em<br />

que se vive.<br />

a) De qual decisão se trata? Transcreva o trecho correspondente.<br />

b) Qual ambiente justifica essa tal decisão?<br />

Peripécia – Termo, de origem grega, que se refere a<br />

uma reviravolta na narrativa, com a mudança,<br />

geralmente inesperada, do destino de uma personagem.<br />

c) O que o sambista arrisca perder, quando toma sua<br />

decisão?<br />

4. Em Rapaz folgado, outro samba de Noel Rosa, que se lê<br />

no texto 10, mais uma vez estão em debate o trabalho, o<br />

sambista e a malandragem.<br />

a) Destaque as palavras que se referem à malandragem.<br />

11


) A voz poética pede ao “malandro” que abandone essa<br />

condição. Qual é o trabalho proposto para a mudança de vida?<br />

Voz poética – Instrumento de quem fala, no poema.<br />

É o elemento da linguagem poética que está para a poesia<br />

como o narrador está para a prosa. Quando a<br />

temática é lírica, para se referir à voz poética, é comum<br />

o uso da expressão “eu-lírico”.<br />

c) Destaque os instrumentos de trabalho propostos no<br />

samba.<br />

d) Haverá real transformação, caso o “malandro” acate as<br />

sugestões da voz poética?<br />

Assim como a literatura de Manuel Antônio de Almeida<br />

registra a formação do caráter nacional, a música popular<br />

brasileira dá vazão a esse mesmo registro de modo universal<br />

e estende a condição do “malandro” ao que se convencionou<br />

chamar “jeitinho brasileiro”.<br />

O samba de Chico Buarque, Homenagem ao malandro,<br />

aqui destacado no texto 11, sugere que o malandro, agora (o<br />

samba é de 1977), saltou das camadas populares e pertence<br />

à elite nacional.<br />

5. Destaque da letra de Chico Buarque expressões que confirmam<br />

a presença dos “malandros” nas esferas do poder.<br />

6. Apesar do tom de denúncia, assim como no romance de<br />

M. A. Almeida, não haverá, no samba de Chico Buarque,<br />

julgamento moral da conduta do “malandro”. O sambista<br />

parece respeitar a presença tradicional do malandro em seu<br />

meio social.<br />

a) A quem se faz a homenagem do título?<br />

b) Por que, no quarto verso desse samba, o sambista diz que<br />

perdeu a viagem?<br />

c) Para onde foi, afinal, a malandragem?<br />

d) No samba de Chico Buarque, o “malandro” sofreu transformação?<br />

7. Posicione-se:<br />

• Você considera o “jeitinho brasileiro” um motivo de orgulho?<br />

Trata-se de um benefício que tem seu preço ou de um<br />

mal necessário que auxilia o desenvolvimento do país?<br />

<strong>LEITURA</strong> 5<br />

AS IDIOSSINCRASIAS CARIOCAS E O ESPÍRITO<br />

BRASILEIRO<br />

<strong>OU</strong> VAI, RIO, SER GAUCHE NA VIDA<br />

O Rio de Janeiro foi um dos espaços narrativos mais freqüentes<br />

da literatura nacional no século XIX. Manuel<br />

Antônio de Almeida escreve na década de l850, mas reporta-se<br />

ao “tempo do rei”, apontando para as primeiras<br />

décadas daquele século. O Rio de Leonardo-Pataca e de seu<br />

filho Leonardinho não está muito distante daquele que recebeu<br />

D. João VI e sua coroa portuguesa.<br />

Pesquise e amplie seu repertório temático.<br />

Dois cronistas maiores da literatura brasileira contemporânea<br />

farão o leitor se lembrar das aventuras de Leonardo<br />

pelas ruas do Rio de Janeiro. Leia com atenção os textos<br />

seguintes e responda às próximas questões.<br />

12


TEXTO 12<br />

CARIOCA DA GEMA<br />

JOÃO ANTÔNIO<br />

Carioca, carioca da gema seria aquele que sabe rir de<br />

si mesmo. Também por isso, aparenta ser o mais desinibido<br />

e alegre dos brasileiros. Que, sabendo rir de si e de<br />

um tudo, é homem capaz de se sentar ao meio-fio e chorar<br />

diante de uma tragédia.<br />

O resto é carimbo.<br />

Minha memória não me permite esquecer. O tio mais<br />

alto, o meu tio-avô Rubens, mulherengo de tope, bigode frajola,<br />

carioca, pobre, porém caprichoso nas roupas, empaletozado<br />

como na época, empertigado, namorador impenitente<br />

e alegre e, pioneiro, me ensinar nos bondes a olhar as<br />

pernas nuas das mulheres e, após, lhes oferecer o lugar. Que<br />

havia saias e pernas nuas nos meus tempos de menino.<br />

Folgado, finório, malandreco, vive de férias. Não pode<br />

ver mulher bonita, perdulário, superficial e festivo até as<br />

vísceras. Adjetivação vazia... E só idéia genérica, balela, não<br />

passa de carimbo.<br />

Gosto de lembrar aos sabidos, perdedores de tempo e<br />

que jogam conversa fora, que o lugar mais alegre do Rio é a<br />

favela. E onde mais se canta no Rio. E, aí, o carioca é<br />

desconcertante. Dos favelados nasce e se organiza, como<br />

um milagre, um dos maiores espetáculos de festa popular<br />

do mundo, o Carnaval.<br />

O carimbo pretensioso e generalizador se esquece de<br />

que o carioca não é apenas o homem da Zona Sul badalada<br />

– de Copacabana ao Leblon. Setenta e cinco por cento da<br />

população carioca moram na Zona Centro e Norte, no Rio<br />

esquecido. E lá, sim, o Rio fica mais Rio, a partir das caras<br />

não cosmopolitas e se o carioca coubesse no carimbo que<br />

lhe imputam não se teriam produzido obras pungentes,<br />

inovadoras e universais como a de Noel Rosa, a de Geraldo<br />

Pereira, a de Nelson Rodrigues, a de Nelson Cavaquinho...<br />

Muito do sorriso carioca é picardia fina, modo atilado de se<br />

driblarem os percalços.<br />

Tenho para mim que no Rio as ruas são faculdades; os<br />

botequins, universidade. Algumas frases apanhadas lá nessas<br />

bigornas da vida, em situações diversas, como aparentes<br />

tipos-a-esmo:<br />

“Está ruim pra malandro” – o advérbio até está oculto.<br />

“Quem tem olho grande não entra na China”.<br />

“A galinha come é com o bico no chão”.<br />

“Negócio é o seguinte: dezenove não é vinte”.<br />

“Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na<br />

panela”·<br />

“Não leve uma raposa a um galinheiro”.<br />

“Se a farinha é pouca o meu pirão primeiro”.<br />

“Há duas coisas em que não se pode confiar. Quando<br />

alguém diz ‘deixe comigo’ ou ‘este cachorro não morde’”.<br />

“Amigo, bebendo cachaça, não faço barulho de<br />

uísque”.<br />

“Da fruta de que você gosta eu como até o caroço”.<br />

“A vida é do contra: você vai e ela fica”.<br />

Como filosofia de vida ou não, vivendo numa cidade<br />

em que o excesso de beleza é uma orgia, convivendo com<br />

grandezas e mazelas, o carioca da gema é um dos poucos<br />

tipos nacionais para quem ninguém é gaúcho, paraibano,<br />

amazonense ou paulista. Ele entende que está tratando com<br />

brasileiros.<br />

TEXTO 13<br />

O CARIOCA É. ANTES DE TUDO.<br />

MILLÔR FERNANDES<br />

ANTONIO, João. Ô, Copacabana.<br />

São Paulo: Editora Cosac & Naify, 2001, p. 142.<br />

Os paulistanos (!) que me perdoem, mas ser carioca é<br />

essencial. Os derrotistas que me desculpem, mas o carioca<br />

taí mesmo pra ficar e seu jeito não mudou. Continua livre<br />

por mais que o prendam, buscando uma comunicação<br />

humana por mais que o agridam, aceitando o pão que o<br />

diabo amassou como se fosse o leite da bondade humana.<br />

O carioca, todos sabem, é um cara nascido dois terços no<br />

Rio e outro terço em Minas, Ceará, Bahia, e São Paulo, sem<br />

13


falar em todos os outros Estados, sobretudo o maior deles o<br />

estado de espírito. Tira de letra, o carioca, no futebol como<br />

na vida. Não é um conformista – mas sabe que a vida é aqui<br />

e agora e que tristezas não pagam dívidas. Sem fundamental<br />

violência, a violência nele é tão rara que a expressão<br />

"botei pra quebrar" significa exatamente o contrário, que<br />

não botou pra quebrar coisa nenhuma, mas apenas "rasgou<br />

a fantasia", conseguiu uma profunda e alegre comunicação<br />

– numa festa, numa reunião, num bate-coxa, num ato de<br />

amor ou de paixão – e se divertiu às pampas. Sem falar que<br />

sua diversão é definitivamente coletiva, ligada à dos outros.<br />

Pois, ou está na rua, que é de todos, ou no recesso do lar,<br />

que, no Rio é sempre, em qualquer classe social, uma openhouse,<br />

aberta sob o signo humanístico do "pode vir que a<br />

casa é sua".<br />

Carioca, é. Moreno e de 1,70 metro de altura na minha<br />

geração, com muitos louros de 1,80 metro importados da<br />

Escandinávia na geração atual, o carioca pensa que não trabalha.<br />

Virador por natureza, janota por defesa psicológica,<br />

autocrítico e autogozador não poupando, naturalmente, os<br />

amigos e a mãe dos amigos – ele vai correndo à praia no<br />

tempo do almoço apenas pra livrar a cara da vergonhosa pecha<br />

de trabalhador incansável. E nisso se opõe frontalmente ao<br />

"paulista", que, se tiver que ir à praia nos dias da semana, vai<br />

escondido pra ninguém pensar que ele é um vagabundo.<br />

Amante de sua cidade, patriota do seu bairro, o carioca<br />

vai de som (na música), vai de olho (é um paquerador<br />

incansável e tem um pescoço que gira 360 graus), vai de<br />

olfato (o odor é de suprema importância na fisiologia sexual<br />

do carioca).<br />

Sem falar, que, em tudo, vai de espírito; digam o que<br />

disserem, o papo, invenção carioca, ainda é o melhor do<br />

Brasil, incorporando as tendências básicas do discurso nacional:<br />

o humanismo mineiro, o pragmatismo paulista, a<br />

verborragia baiana.<br />

E basta ouvir pra ver que o nervo de todas as conversas<br />

cariocas, a do bar sofisticado como a do botequim<br />

pobre e sujo, por isso mesmo sofisticadíssimo, a do livingroom<br />

granfa, a da cama (antes e depois), é o humor, a críti-<br />

ca, a piada, a graça, o descontraimento. Não há deuses e<br />

nada é sagrado no Olimpo da sacanagem. O carioca é,<br />

antes de tudo, e acima de tudo, um lúdico. Ainda mais<br />

forte e mais otimista do que o homem da anedota clássica<br />

que, atravessado de lado a lado por um punhal, dizia: "Só<br />

dói quando eu rio", o carioca, envenenado pela poluição,<br />

neurotizado pelo tráfego, martirizado pela burocracia,<br />

esmagado pela economia, vai levando, defendido pela<br />

couraça verbal do seu humor.<br />

Só dói quando ele não ri.<br />

Só dói quando ele não bate papo.<br />

Só dói quando ele não joga no bicho.<br />

Só dói quando ele não vai ao Maracanã.<br />

Só dói quando ele não samba.<br />

Só dói quando ele esquece toda essa folclorada acima,<br />

que lhe foi impingida anos a fio com o objetivo de torná-lo<br />

objeto de turismo, e enfrenta a dura realidade... carioca.<br />

FERNANDES, Millôr. Que País é Este?<br />

Rio de Janeiro: Editora Nórdica, 1978, p. 50.<br />

A imagem do carioca, como a de brasileiros de outros<br />

Estados, é, muitas vezes, criada pelas aparências. O texto 12<br />

quer desfazer mal-entendidos e revelar a verdadeira face do<br />

carioca.<br />

1. Com suas palavras, descreva o verdadeiro perfil do carioca,<br />

segundo a crônica de João Antônio, Carioca da gema.<br />

2. Agora, faça o mesmo a partir da crônica de Millôr<br />

Fernandes, O carioca é. Antes de tudo.<br />

3. Elabore um breve comentário para a seguinte questão:<br />

Será possível considerar as personagens de Manuel<br />

14


Antônio de Almeida como os tataravôs das pessoas<br />

descritas em suas respostas anteriores?<br />

4. Posicione-se:<br />

• Ao confrontar o brasileiro descrito nas últimas duas<br />

respostas com a caracterização dos tipos sociais registrada<br />

mais de um século antes, no romance de Manuel Antônio<br />

de Almeida, será possível verificar uma mudança na personalidade<br />

do brasileiro?<br />

• O jeito de ser do brasileiro determina o perfil do país?<br />

15

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