O catarina! - Fundação Catarinense de Cultura
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+ prosa + poesia + pensamento<br />
“É preciso estar namorando a inspiração,<br />
fazer uma espécie <strong>de</strong> chamamento”<br />
cleBer teiXeira, poeta e tipógrafo<br />
fundação catarinense <strong>de</strong> cultura | número 70 | 2009<br />
MEYER FILHO “MARCIANO”:<br />
NASCIDO HÁ 90 ANOS<br />
OS FILMES ESQUECIDOS<br />
NOS ANOS DE CHUMBO<br />
UM CINEMA EXTREMO<br />
NO OESTE CATARINENSE<br />
O catari<br />
v<br />
na!
editorial<br />
2<br />
17 DE<br />
NOVEMBRO<br />
DE 1889<br />
GOvERNADOR DO ESTADO DE<br />
SANTA CATARINA |<br />
Luiz Henrique da<br />
Silveira<br />
vICE-GOvERNADOR |<br />
Leonel Pavan<br />
SECRETÁRIO DE ESTADO DE<br />
TURISMO, CULTURA E ESPORTE |<br />
Gilmar Knaesel<br />
Luminescentes<br />
O tipógrafo-poeta Cleber teixeira emerge da contraluz e sua silhue-<br />
ta, captada pelas lentes <strong>de</strong> Heloísa Espada, contempla as páginas<br />
como quem re<strong>de</strong>scobre, no mundo poroso do papel, o seu lugar, a<br />
sua natureza, a sua condição <strong>de</strong> criador e criatura da palavra escri-<br />
ta. ô Catarina! colorizou o preto-e-branco da lâmpada que pen<strong>de</strong><br />
sobre Cleber para dar a ver a figura humana do editor da Noa Noa,<br />
tantas vezes recluso e invisível na vida <strong>de</strong> bibliófilo, tantas vezes<br />
presente na vida <strong>de</strong> outros bibliófilos como um exemplo, original<br />
sem réplicas. Essa mesma luz dissipa parte da sombra sobre dois<br />
instantes do cinema em Santa Catarina — o dos anos da ditadura e<br />
o dos recentes filmes trash <strong>de</strong> Palmitos — e inci<strong>de</strong> sobre as artes<br />
luminescentes <strong>de</strong> meyer Filho e <strong>de</strong> max moura e a poesia <strong>de</strong> mauro<br />
Faccioni Filho. Traz à luz a escrita <strong>de</strong> Kamilla Nunes e Silvana Silva<br />
<strong>de</strong> Souza e ilumina os olhares/relatos líricos <strong>de</strong> Francine Canto,<br />
Ryana Gabech e telma Scherer. De luz em luz, este número 70 cria<br />
outros campos <strong>de</strong> visão sobre Santa Catarina. n<br />
acontece<br />
expediente<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009<br />
n edital catarinense <strong>de</strong> cinema<br />
Com um número recor<strong>de</strong> <strong>de</strong> 189 projetos inscritos, foram encerradas no dia 20 <strong>de</strong><br />
novembro <strong>de</strong> 2009 as inscrições para o Edital <strong>Catarinense</strong> <strong>de</strong> Cinema, promovido<br />
pela <strong>Fundação</strong> <strong>Catarinense</strong> <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> (FCC), com apoio da Cinemateca <strong>Catarinense</strong>.<br />
Nesta edição, o Governo do Estado distribuirá R$ 1,9 milhão para 19 projetos<br />
selecionados em seis categorias diferentes. O resultado, com a divulgação<br />
dos selecionados, será publicado em março <strong>de</strong> 2010. O número <strong>de</strong> inscrições vem<br />
aumentando a cada edição: em 2008, o prêmio teve 140 projetos inscritos, contra<br />
128 em 2007, 101 em 2005, 55 em 2002 e 51 em 2001.<br />
n esPaço cultural casa da alfân<strong>de</strong>ga<br />
A <strong>Fundação</strong> <strong>Catarinense</strong> <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong> (FCC) inaugura em março <strong>de</strong> 2010 o Espaço<br />
<strong>Cultura</strong>l Casa da Alfân<strong>de</strong>ga, no Centro <strong>de</strong> Florianópolis. O local, que está sendo<br />
restaurado, receberá exposições <strong>de</strong> artistas plásticos catarinenses e será utilizado<br />
também para lançamentos <strong>de</strong> livros, realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates culturais e oficinas<br />
<strong>de</strong> arte, tudo com entrada gratuita. O espaço funcionará na Casa da Alfân<strong>de</strong>ga,<br />
no mesmo local anteriormente ocupado pela Associação <strong>Catarinense</strong> <strong>de</strong> Artistas<br />
Plásticos (Acap), ao lado da Galeria <strong>de</strong> Artesanato já administrada pela FCC. Uma<br />
comissão curatorial <strong>de</strong>finirá quais exposições serão realizadas no local.<br />
PRESIDENTE | Anita Pires<br />
DIRETOR ADMINISTRATIvO | Ray Borges Martins<br />
DIRETORA DE DIFUSãO ARTíSTICA | Mary Garcia<br />
DIRETORA DE PATRIMôNIO CULTURAL | Simone Harger<br />
ASSESSORA DE COMUNICAçãO | Deluana Buss<br />
CONSULTORA JURíDICA | Juliana Caon<br />
ASSESSOR DA PRESIDêNCIA | Sinval Santos da Silveira<br />
COORDENADOR DO NúCLEO DE PROJETOS | Eugênio<br />
Lacerda<br />
GERENTE DE ADMINISTRAçãO, FINANçAS E CONTABILIDADE |<br />
Antônio Ubiratan <strong>de</strong> Alencastro<br />
GERENTE OPERACIONAL | Domingos Guedin<br />
GERENTE DE LOGíSTICA E EvENTOS | Soraya Fóes<br />
Bianchini<br />
GERENTE DE PATRIMôNIO | Karla Fonseca<br />
GERENTE DE PESQUISA E TOMBAMENTO | Halley Filipouski<br />
GERENTE DE ARTES | Caio Cavichiolli<br />
ADMINISTRADORA DA ESCOLINHA DE ARTE | Alessandra<br />
Ghisi Zapelini<br />
ADMINISTRADOR DO CENTRO INTEGRADO DE CULTURA |<br />
Samuel Max Seemann<br />
ADMINISTRADORA DO TEATRO ADEMIR ROSA | Margarett<br />
Westphal<br />
ADMINISTRADOR DO TEATRO GOvERNADOR PEDRO IvO | Irani<br />
Apolinário<br />
ADMINISTRADORA DO MUSEU DE ARTE DE SANTA CATARINA |<br />
Lygia Helena Roussenq Neves<br />
ADMINISTRADORA DO MUSEU DA IMAGEM E DO SOM | Denise<br />
Thomasi<br />
ADMINISTRADORA DA BIBLIOTECA PúBLICA DO ESTADO DE SANTA<br />
CATARINA | Élia Mara Magalhães Brites<br />
ADMINISTRADORA DO MUSEU HISTóRICO DE SANTA CATARINA |<br />
Susana Simon<br />
AMINISTRADORA DO TEATRO ÁLvARO DE CARvALHO |<br />
Margarett Westphal<br />
Qual o <strong>de</strong>staque cultural da sua cida<strong>de</strong>?<br />
no dia 25 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009, cerca <strong>de</strong> 500 catarinenses<br />
estiveram no auditório da fe<strong>de</strong>ração das indústrias do estado<br />
<strong>de</strong> santa <strong>catarina</strong> (fiesc), em florianópolis, na ii conferência<br />
estadual <strong>de</strong> cultura. Ô Catarina! perguntou a alguns <strong>de</strong>les<br />
qual o <strong>de</strong>staque cultural das cida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> vivem.<br />
FOTOS MÁRCIO H. MARTINS/FCC<br />
ADMINISTRADORA DA CASA DA ALFâNDEGA | Lucília Polli<br />
ADMINISTRADORA DA CASA DE CAMPO DO GOvERNADOR HERCíLIO<br />
LUZ | Marilói<strong>de</strong> da Silva<br />
ADMINISTRADOR DA CASA DOS AçORES MUSEU ETNOGRÁFICO |<br />
José Neves<br />
ADMINISTRAçãO DO MUSEU NACIONAL DO MAR | <strong>Fundação</strong><br />
<strong>Catarinense</strong> <strong>de</strong> <strong>Cultura</strong><br />
SECRETÁRIA EXECUTIvA DO CONSELHO ESTADUAL DE CULTURA |<br />
Marita Balbi<br />
EDITORES | Deluana Buss e Dennis Radünz<br />
COORDENADORA | Mary Garcia<br />
CONSELHO EDITORIAL | Jason <strong>de</strong> Lima e Silva,<br />
Jayro Schmidt, Mary Garcia, Péricles Pra<strong>de</strong><br />
e Onor Filomeno<br />
PESQUISA E DOCUMENTAçãO | Aline Gallina e Denize<br />
Gonzaga<br />
ASSESSORIA | Cloé <strong>de</strong> Haro<br />
“Se fosse indicar um lugar para alguém visitar na<br />
cida<strong>de</strong>, com certeza seria a nossa al<strong>de</strong>ia. Ela é 100%<br />
falante da língua materna e 100% dos moradores fazem<br />
artesanato. Nossas crianças são alfabetizadas primeiro<br />
na língua materna.”<br />
ary feliciano, 37 anos, artesão, morador da al<strong>de</strong>ia Kondá,<br />
em Chapecó.<br />
“O Grupo Folclórico Alma Açoriana. Ele é<br />
municipal, existe há cinco anos e representa nossa<br />
cultura. Também temos a Dança <strong>de</strong> São Gonçalo, que<br />
estamos resgatando. Ela é santa. As pessoas fazem<br />
promessa e pagam dançando, homem com homem e<br />
mulher com mulher. Quem organiza é a comunida<strong>de</strong>.”<br />
Jacinda Padilha, 39 anos, diretora <strong>de</strong> cultura, moradora <strong>de</strong><br />
Barra velha.<br />
“Na minha cida<strong>de</strong> eu gosto dos movimentos<br />
culturais que vêm ocorrendo, no teatro, na música, na<br />
dança, principalmente nos grupos étnicos. A cultura<br />
alemã, italiana, afro-<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte, todas estão se<br />
<strong>de</strong>svelando. A cida<strong>de</strong> está <strong>de</strong>scentralizando, fazendo<br />
focos <strong>de</strong> cultura nos bairros.”<br />
Jussette WittKoWsKi, 39 anos, pedagoga social,<br />
moradora <strong>de</strong> Jaraguá do Sul.<br />
“Des<strong>de</strong> 1993 temos o Festival Internacional <strong>de</strong><br />
Corais. Outro <strong>de</strong>staque <strong>de</strong> Criciúma é a Casa <strong>de</strong><br />
<strong>Cultura</strong> e também a Mina Mo<strong>de</strong>lo, que está <strong>de</strong>sativada<br />
no momento. Temos um projeto para construir uma<br />
mina virtual.”<br />
lisiane PotriKos, 26 anos, historiadora, moradora <strong>de</strong><br />
Criciúma.<br />
“O Festival <strong>de</strong> Dança. Acontece todo ano e<br />
estamos na 19a edição. Ele é um dos melhores da<br />
região, outras cida<strong>de</strong>s também querem participar.<br />
Outro <strong>de</strong>staque é a Fanfarra Municipal <strong>de</strong> Três Barras,<br />
que existe há 23 anos e já foi 15 vezes campeã<br />
estadual.”<br />
marcos aurélio Budant, 46 anos, diretor <strong>de</strong> cultura,<br />
morador <strong>de</strong> Três Barras.<br />
v<br />
O <strong>catarina</strong>!<br />
REvISãO | Denize Gonzaga<br />
PLANEJAMENTO GRÁFICO E ARTE | Ayrton Cruz<br />
IMPRESSãO | Imprensa Oficial do Estado <strong>de</strong> Santa<br />
Catarina (Ioesc)<br />
TIRAGEM | 10 mil exemplares<br />
distriBuição gratuita<br />
PuBlicação da fundação<br />
catarinense <strong>de</strong> cultura<br />
APOIO |<br />
entre em contato<br />
FUNDAçãO CATARINENSE DE CULTURA<br />
Av. Governador Irineu Bornhausen,<br />
5.600 — Agronômica — CEP 88025-202 —<br />
Florianópolis — Santa Catarina<br />
E-mail | o<strong>catarina</strong>@fcc.sc.gov.br<br />
FONE | (48) 3953-2383<br />
O vAMPIRO. 1963. AQUARELA SOBRE PAPEL<br />
Kamilla nunes<br />
As primeiras décadas do século XX na América<br />
Latina foram marcadas por uma utopia: construir<br />
uma cultura nacional sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser vanguardis-<br />
ta; mo<strong>de</strong>rna sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser nacional. Renovação<br />
da arte e criação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> — ao mesmo tempo<br />
nacional e regional — tornaram-se a preocupação dos<br />
artistas do período, tanto em Santa Catarina e São<br />
Paulo, quanto em outros países latinos, com variação<br />
conforme as coor<strong>de</strong>nadas sociais, culturais e políticas<br />
<strong>de</strong> cada tempo e espaço.<br />
A arte <strong>de</strong> Ernesto Meyer Filho (Itajaí, 4 <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>zembro/1919 — Florianópolis, 22 <strong>de</strong> junho /1991)<br />
foi por vezes apresentada como estética primitivista,<br />
assumida na época com o caráter positivo associado<br />
ao popular. No entanto, a perspectiva insólita, marginal<br />
e singular que se formou com as premissas do<br />
mo<strong>de</strong>rnismo, tais como a renovação dos preceitos<br />
das vanguardas europeias e a ruptura com a arte<br />
meramente histórica associada às colônias indígenas,<br />
ao escravismo e ao império, impulsionaram a<br />
produção artística <strong>de</strong> Meyer Filho para um hibridismo<br />
técnico e para a enunciação simultânea <strong>de</strong><br />
discurso erudito e popular.<br />
Detentor no Banco do Brasil do maior salário<br />
público da época, ele convivia com a elite que<br />
estava se formando na Ilha <strong>de</strong> Santa Catarina,<br />
a mesma elite que crescia entre a cultura<br />
letrada e a mescla das tradições populares<br />
correntes na região, como o Boi-<strong>de</strong>-<br />
Mamão. Esse trânsito entre o popular<br />
e o culto marcou a obra <strong>de</strong> Meyer<br />
Filho <strong>de</strong> tal forma que ele superou<br />
o caráter meramente narrativo<br />
da arte e <strong>de</strong>ixou transparecer<br />
na superfície pictórica,<br />
na fala, na escrita, em<br />
<strong>de</strong>senhos e aquarelas,<br />
nos protestos<br />
e reivindicações,<br />
as<br />
s u a s<br />
cosmo e caos do emissário <strong>de</strong> Marte<br />
comPleXida<strong>de</strong> do mo<strong>de</strong>rnista meyer filho <strong>de</strong>safia as <strong>de</strong>finições<br />
inquietações e investigações plásticas relacionadas<br />
tanto à literatura quando à ciência e à política (vi<strong>de</strong> a<br />
charge ferina <strong>de</strong> 1954).<br />
Os <strong>de</strong>senhos e pinturas <strong>de</strong> Meyer refutam as regras<br />
ensinadas nas aca<strong>de</strong>mias e agregam elementos<br />
audaciosos a uma compreensão não apenas da arte<br />
enquanto técnica ou subordinada a um estilo, mas<br />
também como modo <strong>de</strong> vida. Desconheço outro artista<br />
que pintava galos e os punha na sacada para tomar<br />
banho <strong>de</strong> sol. Não porque se tratava <strong>de</strong> uma pintura<br />
cuja tinta necessitasse <strong>de</strong> calor, mas porque os galos,<br />
em sua exuberância, precisavam ser cortejados.<br />
A entrevista que Meyer Filho conce<strong>de</strong>u ao jornalista<br />
Manoel <strong>de</strong> Menezes nos anos 60, relatando a estadia<br />
em Marte, é contada até hoje com espanto e gargalhada<br />
por amigos e familiares. Não havia separação<br />
entre a arte e o artista, uma vez que sua obra não era<br />
refém <strong>de</strong> suportes, mas encontrava-se à <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> um<br />
corpo sempre prestes a explodir. Para além dos casarios,<br />
paisagens e galos, existia um interesse artístico e<br />
político em sair do lugar cultural no sentido primário<br />
(galeria, museus, catálogo) sem que a proposição em<br />
si <strong>de</strong>smoronasse imediatamente. E a série <strong>de</strong> crônicas<br />
publicadas pelo artista no extinto jornal “O Estado”<br />
permanece quase <strong>de</strong>sconhecida e inexplorada.<br />
Para chegar a uma compreensão da obra <strong>de</strong> Meyer<br />
<strong>de</strong>ntro da complexida<strong>de</strong> instaurada no mo<strong>de</strong>rnismo é<br />
preciso combater a tendência ao estável, à passivida<strong>de</strong><br />
ligada ao hábito, à insistência em pensar que a obra<br />
<strong>de</strong>sse artista se encerra em uma categoria possível <strong>de</strong><br />
ser nomeada ou a uma técnica específica. Meyer Filho,<br />
por exemplo, nunca foi um surrealista, apesar <strong>de</strong><br />
fazer referência a este movimento em momentos <strong>de</strong><br />
sua produção e divagação poética. O artista não <strong>de</strong>u<br />
importância às teorias psicanalíticas <strong>de</strong> Freud, aos<br />
preceitos do “Manifesto Surrealista” e tampouco <strong>de</strong>u<br />
margens ao automatismo psíquico.<br />
O conjunto da obra do artista refuta a hierarquia<br />
entre o cosmos e o mundo dos homens, há uma<br />
junção do espiritual e do profano, formado por um<br />
imaginário particular que se transfigura na ossatura<br />
revestida pela <strong>de</strong>sconfiança cética com a realida<strong>de</strong> e<br />
com posturas inquietas e chocantes do seu posicionamento<br />
enquanto artista e cidadão, vale dizer, um<br />
cidadão <strong>de</strong> Marte.<br />
Está aí um ponto importante a ser lembrado nos<br />
90 anos <strong>de</strong> seu nascimento: o caos. Recordarei que<br />
Meyer, junto com seus estudos rápidos e rapidíssimos,<br />
com as pinturas e os recortes <strong>de</strong> jornal, guardava todas<br />
as contas e notas fiscais quitadas por ele e que<br />
suas pinturas dividiam a pare<strong>de</strong> com gaiolas <strong>de</strong> passarinhos,<br />
tapetes e rascunhos.<br />
É quase inútil nominar o microcosmo criado por Meyer<br />
Filho na tentativa <strong>de</strong> constituir um ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong><br />
leitura da sua obra, pelo simples fato <strong>de</strong> que o fim e a<br />
or<strong>de</strong>m nunca existiram. Não há qualquer razão válida<br />
para consi<strong>de</strong>rar os meios <strong>de</strong> expressão do artista como<br />
uma extensão lógica <strong>de</strong> seu pensamento: ele é eloquente<br />
por si mesmo. Convém <strong>de</strong>ixar em suspenso<br />
a <strong>de</strong>finição. n<br />
texto | kamilla nunes<br />
é curadora e diretora do Instituto Meyer Filho.<br />
SitE | www.fcc.sc.gov.br imagens | divulgação<br />
3<br />
personalida<strong>de</strong><br />
ô Catarina! | número 70 | 2009
entrevista<br />
4<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009<br />
Cavaleiro andante da palavra<br />
Poeta e tiPógrafo carioca reViVe em santa <strong>catarina</strong> a arte gutemBerguiana<br />
marco Vasques<br />
A figura <strong>de</strong> Dom Quixote quase<br />
sempre é associada ao pejorativo,<br />
ao burlesco. O fidalgo Quijana, leitor<br />
<strong>de</strong> livros <strong>de</strong> cavalaria, resolve sair do<br />
papel <strong>de</strong> leitor para se tornar personagem<br />
e criar a sua própria aventura.<br />
Moinhos <strong>de</strong> vento ou barris <strong>de</strong> carvalho<br />
tomam feições <strong>de</strong> gigantes ou presos<br />
acorrentados passam a seres inocentes<br />
que precisam da justiça da cavalaria<br />
andante. Até Sancho Pança, o escu<strong>de</strong>iro,<br />
em princípio incrédulo na aventura,<br />
entra no sonho e se imagina governador<br />
<strong>de</strong> uma ilha. Tudo em Dom Quixote <strong>de</strong><br />
La Mancha é contagiante. Ele precisa<br />
<strong>de</strong> um sonho para não morrer. Somos<br />
todos quixotes.<br />
A gran<strong>de</strong> metáfora <strong>de</strong> Miguel <strong>de</strong><br />
Cervantes, que escreveu o romance na<br />
prisão, além da liberda<strong>de</strong> e do sonho,<br />
é, sem dúvida, a força da palavra falada<br />
e escrita. Força essa que encontramos<br />
na pessoa do tipógrafo, editor e poeta<br />
Cleber Teixeira. A vida <strong>de</strong>dicada à leitura,<br />
à escritura e à publicação <strong>de</strong> livros.<br />
O cavaleiro que faz da palavra sua<br />
aventura, a começar por dois <strong>de</strong> seus<br />
livros: “13 poemas do poeta, cavaleiro<br />
sem cavalo e tipógrafo Cleber Teixeira”<br />
e “Armadura, espada, cavalo e fé”.<br />
A poética <strong>de</strong> Cleber Teixeira cita as<br />
cantigas medievais e nos reporta aos<br />
provençais que tinham a poesia como<br />
ofício diário e irrestrito. E Cleber é assim:<br />
vive para a palavra e da palavra.<br />
Sua editora, Noa Noa, uma das mais<br />
importantes do Brasil, publicou traduções<br />
<strong>de</strong> John Donne, John Keats, Gerard<br />
Manley Hopkins, Mallarmé, Cummings<br />
e T.S.Eliot (e Augusto e Haroldo<br />
<strong>de</strong> Campos publicaram algumas <strong>de</strong><br />
suas traduções pela Noa Noa), em um<br />
catálogo <strong>de</strong> 72 títulos e tiragens limitadas,<br />
com média <strong>de</strong> duzentos exemplares<br />
compostos na gráfica manual<br />
guttemberguiana.<br />
Cleber não é um Quixote naquele<br />
sentido burlesco, mas no sentido<br />
mais nobre que se possa metaforizar.<br />
Entregar a vida aos livros, à leitura, a<br />
difundir a leitura, à feitura artesanal<br />
<strong>de</strong> livros num mundo em que tudo é<br />
rápido e mercantilizado; on<strong>de</strong> sinônimo<br />
<strong>de</strong> sucesso é ter dinheiro, carro do ano<br />
e algum po<strong>de</strong>r só po<strong>de</strong> mesmo ser um<br />
ato <strong>de</strong> amor. A generosida<strong>de</strong> e o prazer<br />
em receber com o tradicional cafezinho<br />
os amigos, escritores, estudantes — no<br />
bairro Agronômica, Ilha <strong>de</strong> Santa Catarina,<br />
on<strong>de</strong> o carioca vive há 30 anos —<br />
são outros dos atributos do cavaleiro/<br />
poeta da tipografia.<br />
t<br />
entrevista concedida a marco vasques<br />
Ô <strong>catarina</strong>! | o seu amor pelos livros<br />
está expresso no trabalho a frente<br />
da editora noa noa, na generosida<strong>de</strong><br />
com que recebe os escritores e amigos<br />
em sua casa para falar <strong>de</strong> literatura,<br />
na tenacida<strong>de</strong> em manter a editora<br />
sempre respirando e, é claro, na sua<br />
literatura.<br />
cleber teixeira | Eu venho procurando<br />
uma explicação para esta minha paixão<br />
pelos livros. Porque na minha casa não<br />
tínhamos tanto livros assim. Tudo bem<br />
que meu pai era um jornalista, mas não<br />
era um leitor compulsivo. Minha sorte<br />
foi ter recebido <strong>de</strong> presente <strong>de</strong> Natal a<br />
coleção completa do Monteiro Lobato.<br />
Foi um belíssimo presente. Talvez eu<br />
precise fazer uma revisão com relação<br />
ao prazer da leitura e a possível influência<br />
que meu pai teve nisso tudo. Meu pai<br />
teve uma vida quase secreta: ele tinha<br />
uma outra família e nós não sabíamos.<br />
Enfim, ele se mandou e nos <strong>de</strong>ixou na<br />
extrema miséria, miséria mesmo. Um<br />
dia tenho que mexer neste baú secreto.<br />
O que importa é que ele teve o cuidado<br />
<strong>de</strong> me dar o Monteiro Lobato e, certamente,<br />
a partir dali minha paixão pelos<br />
livros começou. Tanto faz estar em Desterro<br />
ou no Rio <strong>de</strong> Janeiro, se você tem<br />
acesso a bibliotecas você está sintonizado<br />
com o mundo.<br />
ÔC! | Mesmo com esses conflitos, pa-<br />
rece-me que seu pai teve papel funda-<br />
mental na sua formação como leitor.<br />
cleber | Exatamente. Na verda<strong>de</strong>,<br />
acontece aí uma coisa muito curiosa<br />
que se explica só pelo inexplicável da<br />
situação. Conheci pouco meu pai, convivi<br />
pouco com ele. Até para fazer um<br />
retrato real e honesto <strong>de</strong>le eu teria que<br />
refletir mais e rever meus sentimentos.<br />
Como disse, ele me <strong>de</strong>u <strong>de</strong> presente em<br />
um Natal a obra completa do Monteiro<br />
Lobato e o “Tesouro da Juventu<strong>de</strong>”. Tinha<br />
oito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e me tomei <strong>de</strong><br />
paixão por aquilo. Evi<strong>de</strong>ntemente que<br />
para me dar os livros <strong>de</strong> presente eu<br />
já havia manifestado o gosto pela leitura.<br />
Então ele estimulou dando aquilo<br />
que foi um presente pelo qual hoje, 61<br />
anos <strong>de</strong>pois, tenho um apego enorme.<br />
E isso agra<strong>de</strong>ço sempre. Não <strong>de</strong>veria<br />
agra<strong>de</strong>cer com tamanha ênfase, porque<br />
é obrigação <strong>de</strong> todo pai educar<br />
a<strong>de</strong>quadamente seus filhos, mas vá lá,<br />
como não convivi com um pai cumpridor<br />
das obrigações, vou homenagear,<br />
tentar resgatá-lo lembrando as coisas<br />
boas que ele fez.<br />
O meu pai tinha uma crônica num jornal<br />
popular <strong>de</strong> esquerda. Era a crônica<br />
típica do cronista mesmo. Eu tinha isso<br />
num ca<strong>de</strong>rno e boa parte sumiu completamente.<br />
Meu pai, na verda<strong>de</strong>, era uma<br />
pessoa com talento <strong>de</strong> escritor. Ele cobria<br />
um espetáculo <strong>de</strong> ópera em um dia<br />
e no outro ia a um jogo no Maracanã.<br />
Ele era muito versátil. Eu ia algumas vezes<br />
ao estádio com ele. Esse crédito eu<br />
dou a ele, o <strong>de</strong> ter aberto para mim um<br />
caminho ao qual eu já era propenso: a<br />
literatura.<br />
Ôc! | Quais autores foram <strong>de</strong>cisivos<br />
para a sua formação?<br />
cleber | Tomás Antônio Gonzaga me<br />
marcou muito. Ban<strong>de</strong>ira, Murilo Men<strong>de</strong>s,<br />
João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto. Um dos<br />
poetas que eu mais admiro é Affonso<br />
Ávila. Muitos outros, mas estes influíram<br />
na minha formação.<br />
Ôc! | como surgiu a editora noa noa?<br />
cleber | O nome vem do livro “Noa<br />
Noa”, do Paul Gauguin, e quer dizer Ter-<br />
ra Perfumada. Era o nome da ilha em<br />
que Gauguin viveu. [Risos] Cá estou eu<br />
numa ilha. Eu tive sorte, pois <strong>de</strong>s<strong>de</strong> garoto<br />
quis ser escritor. Queria fazer livros<br />
e ler livros; na época, isso para mim era<br />
aparentemente muito simples. Sabemos<br />
que não é simples. Mas tudo aconteceu<br />
<strong>de</strong> forma muito saborosa. Eu tinha vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> editar alguma coisa, mas não<br />
tinha dinheiro. Em outros tempos o processo<br />
<strong>de</strong> edição <strong>de</strong> um livro era muito<br />
mais complexo. Manter uma oficina tipográfica<br />
com linotipo era caro. A única<br />
maneira <strong>de</strong> um autor médio publicar era<br />
pagando. Ban<strong>de</strong>ira pagou a edição do<br />
seu primeiro livro, o “Cinza das horas”.<br />
Se minha memória não estiver me traindo,<br />
acredito que o Drummond também.<br />
Era muito complicado editar.<br />
Até que em 1965 eu casei e estava tentando<br />
achar uma maneira <strong>de</strong> prosseguir<br />
meu sonho <strong>de</strong> editar. Aí o meu ex-sogro<br />
um dia chegou para mim e disse “olha,<br />
tem uma viúva <strong>de</strong> um amigo meu que<br />
fazia um trabalho gráfico, ela quer ven-<br />
“a leitura passou<br />
a ser o possível<br />
momento <strong>de</strong> paz,<br />
pois o universo do<br />
livro é fascinante,<br />
tudo se po<strong>de</strong><br />
apren<strong>de</strong>r<br />
com a leitura.”<br />
entrevista<br />
5<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009
entrevista<br />
6<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009<br />
“é preciso estar<br />
namorando a<br />
inspiração, fazer<br />
uma espécie <strong>de</strong><br />
chamamento, e<br />
isso só acontece<br />
com muito labor.”<br />
Dei o teu nome<br />
às minhas vitórias<br />
(assim ficas imortal,<br />
como eu, meu poema<br />
e meu cavalo).<br />
Poema <strong>de</strong> cleber teixeira<br />
<strong>de</strong>r uma máquina com os tipos e eu sei<br />
que te interessa”. Aí eu disse que não<br />
tinha dinheiro, ele me disse “vai falar<br />
com ela, pois ela disse que o que importa<br />
é ven<strong>de</strong>r para alguém que tenha<br />
paixão por isso, ela não quer ven<strong>de</strong>r<br />
para qualquer um”. Na verda<strong>de</strong>, ela<br />
queria homenagear o marido repassando<br />
o trabalho <strong>de</strong>le para um apaixonado.<br />
Então eu comprei a máquina e comprei<br />
um manual <strong>de</strong> tipógrafo, aí surge a Noa<br />
Noa. No início quebrei a cabeça, mas fui<br />
pegando o pulo-do-gato.<br />
Havia uma antologia com <strong>de</strong>z poemas<br />
em edição bilíngue do [poeta estaduni<strong>de</strong>nse]<br />
Cummings que era uma rarida<strong>de</strong>.<br />
Então escrevi para o Augusto <strong>de</strong> Campos<br />
sugerindo que ele reeditasse os poemas.<br />
Imediatamente ele respon<strong>de</strong>u que<br />
topava e propôs que acrescentássemos<br />
mais <strong>de</strong>z poemas. Aí começamos uma<br />
parceria interessante <strong>de</strong> tradução e <strong>de</strong><br />
publicação <strong>de</strong> poetas que amávamos.<br />
Refizemos o livro <strong>de</strong> Cummings e teve<br />
uma repercussão incrível. veja: naquela<br />
época os Concretistas pagavam as edições!<br />
Fizemos <strong>de</strong>pois Donne, Keats, Arnaut<br />
Daniel...<br />
Ôc! | seu poema “a Paz” revela que é<br />
na infância que alcançamos a <strong>de</strong>seja-<br />
da tranquilida<strong>de</strong>. seu livro “edgar Poe<br />
the ancient raven et moi...” tem um<br />
caráter elegíaco e geralmente se dirige<br />
a uma senhora, o que nos remete<br />
às cantigas da ida<strong>de</strong> média.<br />
cleber | Exatamente. Essa leitura é<br />
muita precisa, pois a intenção da obra é<br />
essa. Os provençais e os poemas produzidos<br />
na Ida<strong>de</strong> Média em geral, sempre me<br />
seduziram muito, ainda que pessoalmente<br />
eu seja uma pessoa contida, também<br />
tem nesse livro uma história <strong>de</strong> vida. A<br />
pobreza, como sabemos, é muito cruel<br />
na formação <strong>de</strong> um ser. De certo modo,<br />
nesse livro, essas marcas estão repre-<br />
sentadas, daí o tom elegíaco. O poema<br />
“Paz” é, sim, um canto ao momento<br />
mais feliz da vida humana, à singeleza<br />
dos primeiros anos, à espontaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
como se vive. Nesse período, o tom e o<br />
toque das coisas são puros. Depois a leitura<br />
passou a ser o possível momento <strong>de</strong><br />
paz, pois o universo do livro é fascinante;<br />
tudo se po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com a leitura.<br />
De minha experiência com esse mundo,<br />
mesmo que minha vida tenha mudado,<br />
tenho um pesa<strong>de</strong>lo terrível até hoje, que<br />
é <strong>de</strong> estar à noite num lugar on<strong>de</strong> não há<br />
ninguém na rua e eu não tenho casa para<br />
ir. Meu pânico foi sempre não ter casa<br />
para mim e para meus irmãos, <strong>de</strong> modo<br />
que essas coisas entram na literatura,<br />
mesmo que o autor não queira. Sempre<br />
fui obsessivo em algumas coisas. Quando<br />
gosto <strong>de</strong> alguma coisa, eu me atiro,<br />
<strong>de</strong> certo modo. Os provençais são minha<br />
obsessão. Parece-me um período povoado<br />
por pessoas interessantes, os poetas,<br />
as damas e as senhoras e aquelas cantigas.<br />
Esse livro é uma espécie <strong>de</strong> diário<br />
poético. Agora eu estou num impasse,<br />
porque quando eu comecei essa obra eu<br />
estava magoado, tinha recém saído <strong>de</strong><br />
um casamento e recorri àquele universo<br />
para dar conta do problema que estava<br />
vivendo naquele momento. Só que<br />
agora estou com muitos anos <strong>de</strong> paz, <strong>de</strong><br />
tranquilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> bens, <strong>de</strong> amigos. Agora<br />
virou a página, é outro capítulo. Então,<br />
tudo está bom <strong>de</strong>mais na minha vida. O<br />
único problema que eu tenho é o <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,<br />
que anda me incomodando um pouco,<br />
mas isso todo mundo tem. Mas tudo<br />
anda tão bom, tão certo na minha vida,<br />
que às vezes eu temo que isso possa <strong>de</strong>struir<br />
o andamento poético.<br />
Ôc! | no livro “armadura, espada, ca-<br />
valo e fé” temos um poema que diz<br />
Sou um guerreiro discreto / mas tenaz,<br />
senhora, / (passei longo tempo / sob a<br />
proteção dos livros / e da casa fechada<br />
/ mas não perdi o / amor ao combate,<br />
/ não cultivei o esquecimento).<br />
labuta do escrever. Quais elementos<br />
essenciais para se tornar um escritor?<br />
cleber | Retomo o Guimarães Rosa, pois<br />
em dois momentos em que os concretistas<br />
proclamavam a morte da inspiração<br />
ele surge e diz que a inspiração existe,<br />
contudo é necessário que se trabalhe,<br />
trabalhe muito, para que ela se realize<br />
como linguagem. É preciso estar namorando<br />
a inspiração, fazer uma espécie<br />
<strong>de</strong> chamamento, e isso só acontece com<br />
muito labor. O Quintana é um exemplo.<br />
Ele tem um arsenal <strong>de</strong> coisas geniais. Eu<br />
prefiro dizer que minha criação é o resultado<br />
disto: labor e espreita. Costumo<br />
trabalhar um texto muitas vezes, estou<br />
permanentemente mudando. O que me<br />
apavora é que sempre se po<strong>de</strong> melhorar<br />
um poeta. O Salim Miguel sempre diz<br />
que escrever é cortar. Essa é uma boa<br />
pergunta, porque é <strong>de</strong> difícil resposta.<br />
Uma coisa que me agrada é não ter<br />
certeza. Estou sempre pronto a ouvir e<br />
atento ao que dizem poetas, aqueles<br />
que incluo no meu processo <strong>de</strong> criação,<br />
que é aberto. Como ouço o Mario Quintana<br />
e sua sofisticação, pois só os tolos<br />
rejeitam a sofisticação do Quintana,<br />
ouço Eliot, porque esse combate entre<br />
a sofisticação e a simplicida<strong>de</strong> me faz<br />
pensar há anos. Entre Haroldo e Mario<br />
Quintana, por exemplo, se tivesse que<br />
escolher um só, ficaria com o Quintana.<br />
O Manoel <strong>de</strong> Barros, ainda que não seja<br />
um poeta do sarcasmo do Quintana, tem<br />
uma algibeira <strong>de</strong> palavras. Meu processo<br />
<strong>de</strong> produção é lento. Estou permanentemente<br />
alterando um poema, mas isso<br />
não é estanque, às vezes um poema dá<br />
menos trabalho, outro mais. Cada escritor<br />
vai <strong>de</strong>scobrindo o que é essencial a<br />
sua formação. Existem, é claro, aqueles<br />
que nunca <strong>de</strong>scobrirão.<br />
t<br />
Ôc! | ainda nesse livro, parece-me<br />
que o seu eu poético está mais aberto,<br />
mais lírico. Parece que o poeta<br />
está entre a guerra e o gozo.<br />
cleber | Esteticamente é isso mesmo.<br />
O fato <strong>de</strong> você buscar uma maneira <strong>de</strong><br />
realizar o seu trabalho escrito, luta com<br />
a tua vonta<strong>de</strong> e com a tua competência.<br />
você sempre se acha menos competente<br />
do que a tua vonta<strong>de</strong> quer, então<br />
trabalhar com isso é muito difícil. Estabelece-se<br />
mesmo a guerra e o gozo. Mas<br />
clarões existem e acho que todo escritor,<br />
todo mesmo, tem clarões, mesmo o<br />
melhor <strong>de</strong>les, e você tem que ser mo<strong>de</strong>sto<br />
e honesto para mostrar que você<br />
não é infalível. Aliás, essa falibilida<strong>de</strong> é<br />
que dá sentido ao ato da escritura e à<br />
busca <strong>de</strong> um texto bom. Todos temos<br />
limites. Ocorre muito, muito mesmo, <strong>de</strong><br />
poetas terem uma vonta<strong>de</strong> maior que a<br />
competência; outros têm mais competência<br />
que vonta<strong>de</strong>.<br />
Lembro que quando Adélia Prado surgiu<br />
foi um furor [no poema “Casamento”<br />
dos versos: Há mulheres que dizem: /<br />
meu marido, se quiser pescar, pesque,<br />
/ mas que limpe os peixes / Eu não. a<br />
qualquer hora da noite me levanto, /<br />
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.<br />
(...), mas esse poema hoje é consi<strong>de</strong>rado<br />
um poetar não verda<strong>de</strong>iro. Claro<br />
que ninguém tem autorida<strong>de</strong> para dizer<br />
se esse poema é ou não verda<strong>de</strong>iro. Eu<br />
estive em um encontro <strong>de</strong> poetas em<br />
São Paulo em que a Adélia Prado estava<br />
também e ela foi muito infeliz na sua<br />
fala, pois ela disse que a mulher estava<br />
em segundo plano, que a mulher tem<br />
que servir ao homem. Enfim, penso que<br />
essa postura tenha alterado a leitura do<br />
poema por parte do público. Às vezes é<br />
melhor calar sobre a guerra ou o gozo,<br />
sobre a construção <strong>de</strong> um verso, porque<br />
o poeta po<strong>de</strong> se atrapalhar. Ela se<br />
atrapalhou.<br />
Em suma, naquela ocasião eu disse — o<br />
que me criou certo <strong>de</strong>sconforto com ela<br />
— que a Adélia Prado estava cada dia<br />
representando melhor a Adélia Prado.<br />
veja bem, eu disse isso sem malda<strong>de</strong>,<br />
não tenho nada contra ela. E isso remete<br />
ao que eu queria dizer, essa certa<br />
dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> lidar com o fazer poético<br />
quando você não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar,<br />
e eu não <strong>de</strong>ixo, que, como disse<br />
Mallarmé, poesia se faz com palavras.<br />
Contudo nós sabemos que poesia não<br />
se faz apenas com palavras, mas como<br />
fazer a comunhão do subjetivo, do<br />
mental, do emocional, da narração da<br />
existência. Tudo isso vem com as palavras<br />
e não há como um autor fugir <strong>de</strong><br />
si mesmo.<br />
Ôc! | graciliano ramos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que<br />
tudo que se escreve é, <strong>de</strong> algum<br />
modo, autobiográfico.<br />
cleber | Ele está corretíssimo. O disfarçar<br />
com a linguagem é que mostra<br />
o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fogo do poeta. Tirar o sentimentalismo<br />
e produzir um texto que<br />
discuta as questões pessoais <strong>de</strong> maneira<br />
universal e, às vezes, colocar uma situação<br />
universal particularizada. Fazer isso<br />
com maestria, como no “Homem Oco”<br />
do Eliot, é que diferencia o poeta do<br />
versejador. Temos muitos versejadores<br />
espalhados pelo mundo; poucos, pouquíssimos<br />
poetas que se traduzem em<br />
linguagem.<br />
Já que você falou do Graciliano Ramos,<br />
vou contar uma história. Essa eu ouvi<br />
na década <strong>de</strong> 1950 <strong>de</strong> um jornalista, o<br />
Santa Cruz, que foi chefe <strong>de</strong> redação<br />
do Correio da Manhã, on<strong>de</strong> o Graciliano<br />
era revisor. Quando eles trabalhavam<br />
juntos, o Graciliano per<strong>de</strong>u a mãe e estava<br />
sem dinheiro para pagar o enterro,<br />
então o Santa Cruz promoveu uma<br />
vaquinha para pagar o enterro da mãe<br />
<strong>de</strong>le. O Graciliano pegou aquilo e disse:<br />
“Santa, você é o cara menos ‘filha’ da<br />
puta que eu conheço”. Olha o po<strong>de</strong>r da<br />
linguagem. Ele ao proferir um elogio revelou<br />
meia ofensa.<br />
Ôc! | segundo o ministério da cultura<br />
existem, hoje, no Brasil, 600 municípios<br />
que nunca receberam uma biblioteca.<br />
Você iniciou um movimento<br />
aqui em florianópolis para a criação<br />
<strong>de</strong> bibliotecas.<br />
cleber | É preciso sensibilizar o po<strong>de</strong>r<br />
público. Esse quadro tem que mudar,<br />
pois os governantes têm que saber que<br />
se tivermos um maior investimento em<br />
educação e cultura todos os setores da<br />
socieda<strong>de</strong> acabam ganhando. Do saneamento<br />
básico à saú<strong>de</strong>. Temos iniciativas<br />
particulares, como a Barca dos Livros,<br />
da Tânia Piacentini [na Lagoa da Conceição],<br />
que só sobreviverá se o po<strong>de</strong>r<br />
público apoiar. Precisamos criar mecanismos<br />
para disponibilizar a informação<br />
nos bairros. Uma salinha, inicialmente,<br />
já contribui. Eu mesmo me disponibilizo<br />
a falar, dar palestras para os jovens<br />
e adolescentes sobre livros e literatura.<br />
Minha contribuição social po<strong>de</strong> ser<br />
essa, mas é preciso que cada bairro tenha<br />
um lugar on<strong>de</strong> o jornal, a revista, o<br />
livro esteja disponível. Faz-se necessário<br />
criar uma relação <strong>de</strong> afetivida<strong>de</strong> entre<br />
o jovem e a leitura. Existem muitos<br />
voluntários para ajudar.<br />
Ôc! | existe toda uma geração <strong>de</strong> jo-<br />
vens escritores que reverenciam seu<br />
trabalho: você sente que com isso que<br />
a missão foi atingida?<br />
cleber | Claro, eu sinto que minha missão<br />
foi atingida. Amo livros e vivo cercado<br />
por eles. Tenho uma família maravilhosa<br />
e amigos que amam a literatura<br />
e os livros tanto quanto eu. Também<br />
respeito muito os jovens escritores e<br />
fico satisfeitíssimo por saber que respeitam<br />
meu trabalho, porque passei a<br />
vida lutando e tentando fazer o melhor.<br />
Se consegui ou não, só eles mesmo para<br />
dizerem. Sinto muito prazer em ouvir<br />
isto que você fala, porque eu quero<br />
mesmo é ser útil. Muitas pessoas me<br />
procuram, sobretudo para saber sobre<br />
o Concretismo.<br />
Ôc! | como recebeu o documentário<br />
“só tenho um norte” (média reali-<br />
zado em 2007 com direção <strong>de</strong> alexan-<br />
dre Veras, <strong>de</strong>métrio Panarotto, Júlia<br />
studart e manoel ricardo <strong>de</strong> lima)?<br />
cleber | Acho que apareci em exces-<br />
so. Apareci mais do que gostaria. Eu me<br />
senti pouco à vonta<strong>de</strong>. Com relação ao<br />
filme penso que eles foram muito competentes,<br />
camaradas, mas sou muito<br />
discreto. Outra coisa que me incomodou<br />
foi a opção estética <strong>de</strong>les, tudo<br />
muito próximo, muito <strong>de</strong>talhado. Mesmo<br />
assim eu respeito o trabalho <strong>de</strong>les.<br />
Ôc! | o que é um bom poema para<br />
você?<br />
cleber | Bem, um bom poema é aquele<br />
que quando você está lendo você diz:<br />
eu queria ter escrito este poema. Não<br />
po<strong>de</strong>mos esquecer das subjetivida<strong>de</strong>s,<br />
cada qual tem a sua. Lembro-me muito<br />
bem que após o surgimento do Concretismo,<br />
tudo que os irmãos Campos falassem<br />
que era boa poesia, mesmo que<br />
se não gostasse, se procurava gostar.<br />
Então sabemos que é difícil respon<strong>de</strong>r<br />
esta sua pergunta. Tudo é muito subjetivo:<br />
quem viu o João Cabral falando<br />
não acredita que aquele que está falando<br />
é o mesmo quem escreveu aqueles<br />
poemas.<br />
Ôc! | em que a literatura melhora o<br />
homem e qual a sua função?<br />
cleber | Essa é mais uma pergunta difícil,<br />
mas vamos lá. A literatura engajada<br />
corre um risco porque se a pessoa que<br />
a pratica não tem uma ação real ela<br />
po<strong>de</strong>, e quase sempre acontece, não<br />
ter força alguma. Há quem produza do<br />
seu gabinete, sem nunca ter visitado e<br />
vivido o real e o imaginário daquilo que<br />
escreve. A literatura engajada exige<br />
que o sujeito no mínimo seja um homem<br />
atuante. Ele tem que ser um jornalista,<br />
um lí<strong>de</strong>r comunitário, enfim, tem que<br />
estar envolvido com a vida que passa<br />
pelas suas penas. Lima Barreto colocou<br />
a alma <strong>de</strong>le na literatura. Inconcebível<br />
uma obra daquelas produzida por<br />
um Olavo Bilac, por exemplo. Isso não<br />
significa que a literatura criativa não<br />
possa abordar essas questões, mas elas<br />
serão mais verda<strong>de</strong>iras quando feitas<br />
por criadores engajados, que viveram<br />
a escritura. n<br />
“um bom poema<br />
é aquele que<br />
quando você<br />
está lendo você<br />
diz: ‘eu queria<br />
ter escrito este<br />
poema’.”<br />
entrevista | marco vasques<br />
vive em Florianópolis e é poeta. Formado em<br />
filosofia (UFSC), publicou, entre outros, os<br />
livros “Elegias urbanas” (poemas) e “Diálogos<br />
com a literatura brasileira” (dois volumes <strong>de</strong><br />
entrevistas).<br />
fotografias | heloísa espada<br />
vive em São Paulo. É mestre e doutoranda em<br />
História da Arte pela ECA/USP, on<strong>de</strong> integra<br />
o Centro <strong>de</strong> Pesquisa em Arte e Fotografia, e<br />
coor<strong>de</strong>na a área <strong>de</strong> artes visuais do Instituto<br />
Moreira Salles.<br />
entrevista<br />
7<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009
feira do livro <strong>de</strong> porto alegre<br />
8<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009<br />
No rio do instante,<br />
as palavras porto<br />
Estado homenageado na 55 a Feira do Livro <strong>de</strong><br />
Porto Alegre, Santa Catarina teve em João Paulo<br />
Silveira <strong>de</strong> Sousa o emissário maior. Ativista das artes<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 50, o contista e cronista ouviu as<br />
palavras <strong>de</strong> sua “Janela <strong>de</strong> varrer” ressoarem pela<br />
antiga Força e Luz, a se<strong>de</strong> do Centro <strong>Cultura</strong>l Érico<br />
veríssimo, na rua dos Andradas, a poucos passos das<br />
alas labirínticas atravessadas pelos livros. Pelas palavras<br />
<strong>de</strong> Silveira <strong>de</strong> Sousa a literatura catarinense<br />
se disse presente, <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> outubro a 15 <strong>de</strong> novembro,<br />
em mesas redondas e sessões <strong>de</strong> autógrafos que<br />
reuniram, entre outros, os escritores Alci<strong>de</strong>s Buss,<br />
ILUSTRE:<br />
CONTISTA<br />
SILvEIRA DE<br />
SOUSA FOI O<br />
CATARINENSE<br />
HOMENAGEADO<br />
Amilcar Neves, Eliane Debus, Fábio Brüggemann e<br />
Péricles Pra<strong>de</strong>, pesquisadoras Tânia Piacentini e<br />
Tânia Regina Oliveira Ramos, e, entre os novos autores,<br />
Carlos Henrique Schroe<strong>de</strong>r, Clotil<strong>de</strong> Zingali,<br />
Cristiano Moreira e Ramone Abreu Amado.<br />
Para documentar parte do périplo, Ô Catarina!<br />
pediu à fotógrafa-poeta Francine Canto que capturasse<br />
a atmosfera <strong>de</strong> Porto Alegre e, <strong>de</strong> instante a<br />
instante, tecesse esse fio <strong>de</strong> Ariadne das imagens que<br />
orientam a palavra das poetas-fotógrafas Ryana Gabech<br />
e Telma Scherer. Nos rios do instante, no instantâneo<br />
das imagens, essas palavras-porto:<br />
ryana gabech<br />
Mar <strong>de</strong> livros — uma tenda encobre a<br />
corrente <strong>de</strong> palavras entre muitas margens,<br />
das docas <strong>de</strong> Porto Alegre às margens das<br />
alas <strong>de</strong> A a D. No Centro da cida<strong>de</strong>, a Praça<br />
da Alfân<strong>de</strong>ga transbordante <strong>de</strong> rostos que<br />
se intercalam na altura do olhar. As meninas<br />
dos olhos vagamente se distraem entre<br />
carrosséis <strong>de</strong> livros pendurados. Crianças<br />
miram-se no espelho colorido da fantasia.<br />
Quem po<strong>de</strong> costurar as direções entre<br />
os estan<strong>de</strong>s, se surpreen<strong>de</strong> com os eventos<br />
simultâneos: leitores procuram e procuram,<br />
malabares dançam ao sol do meio<br />
dia, o sax se liberta na música instrumental.<br />
De minuto a minuto, os autógrafos, as<br />
receitas do escrever, o bate-papo com autores.<br />
Palavras faladas ao vento soltam-se<br />
em mil bocas <strong>de</strong>sconhecidas e é possível<br />
ao passante pescar frases ondulantes no<br />
percurso.<br />
Nem a chuva ou as pequenas poças<br />
que sobraram sobre as pedras intimidam<br />
os interessados. Entrevistas ao vivo nas<br />
rádios, livros-CD, livros-<strong>de</strong>senho, livrosparque<br />
e, numa poesia extrema, livros são<br />
docemente trocados por briga<strong>de</strong>iros.<br />
E a Feira se alastra pela antiga Força e<br />
Luz, o Centro <strong>Cultura</strong>l Érico veríssimo, no<br />
terraço da Casa Mário Quintana, na Bienal<br />
do Mercosul, nos bares da Cida<strong>de</strong> Baixa,<br />
on<strong>de</strong> se abrem os abraços dos amigos e <strong>de</strong><br />
tantos <strong>de</strong>sconhecidos que se aproximam.<br />
As afinida<strong>de</strong>s se entrelaçam no calor da<br />
<strong>de</strong>scoberta e põem abaixo as diferenças<br />
culturais.<br />
A linguagem <strong>de</strong>sagua nas nascentes do<br />
ler e escrever. Os livros são começos. As<br />
palavras, o caminho.<br />
telma scherer<br />
Cinquenta e cinco anos. Já não é uma<br />
mocinha. Tampouco se aproxima dos seus<br />
últimos dias. Conserva ainda traços matreiros<br />
<strong>de</strong> criança, encontráveis por olhares<br />
mais sensíveis. De alinho, saia e coque,<br />
é bonita, sim. O que se vê nela, pelo<br />
exterior, acusa a proporção da sua sabedoria.<br />
Há quem diga que ela abandonou<br />
os rasgos <strong>de</strong> empolgação, o entusiasmo<br />
que costumava aparentar há algumas décadas.<br />
Compreendo. Já não há suspense.<br />
Aquele frio na barriga, aquele medo do<br />
futuro. Não. Há nela a serenida<strong>de</strong> da experiência,<br />
sim, e mostra já sinais <strong>de</strong> <strong>de</strong>satenção.<br />
A memória lhe falha, ainda mais<br />
no que se refere àqueles que ela vê pela<br />
primeira vez. “Já sei do que se trata, já<br />
vi <strong>de</strong>stes aos milhares”, é a primeira coisa<br />
que diz. Depois, amansa. Toma-os para<br />
amigos, ouve, dá presentes, agrados. Enfim,<br />
viram motivo do seu maior orgulho.<br />
“vejam só como são especiais esses meus<br />
meninos. Ninguém nunca fez algo assim.<br />
Nunca!” Foi assim com os escritores catarinenses,<br />
homenageados nessa sua 55a edição. Mostraram o que têm <strong>de</strong> melhor<br />
e cativaram a senhora. Esperamos que<br />
possam lhe perdoar as faltas, as pequenas<br />
rabugices. Des<strong>de</strong> então ela vai ficar<br />
saudosa, eternamente os esperando para<br />
uma visita. n<br />
NA CIDADE DOS<br />
JACARANDÁS, O<br />
POEMA DE HUGO<br />
MUND JR. TOMA<br />
O MURO<br />
(1)<br />
(2)<br />
(3)<br />
(4)<br />
TRêS LUGARES DE DELEITE LITERÁRIO DAS CRIANçAS<br />
textos | ryana gabech<br />
vive em Florianópolis, é poeta e formanda em<br />
Artes visuais (UDESC). Publicou “A data invisível do<br />
poema” e o livro-CD “Trêmulo”.<br />
| telma scherer<br />
vive em Porto Alegre, é mestre em Literatura<br />
Comparada (UFRGS) e publicou os livros <strong>de</strong> poemas<br />
“Desconjunto” e “O rumor da casa”.<br />
imagens | francine canto<br />
vive em Florianópolis, é fotógrafa e poeta. Publicou<br />
o volume <strong>de</strong> postais-poema “Arquitetura da luz”.<br />
feira do livro <strong>de</strong> porto alegre<br />
RAMONE<br />
ABREU AMADO<br />
(1), CARLOS<br />
HENRIQUE<br />
SCHROEDER<br />
(2), FÁBIO<br />
BRüGGEMANN<br />
(3), AMILCAR<br />
NEvES E<br />
ALCIDES<br />
BUSS (4),<br />
DESFOLHARAM<br />
PALAvRAS<br />
NA PRAçA DA<br />
ALFâNDEGA<br />
9<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009
cinema<br />
10<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009<br />
Um novelo no limbo dos anos <strong>de</strong> chumbo<br />
filmes florianoPolitanos Produzidos nos anos 60 e 70<br />
ficaram no esQuecimento, mas se mostram uniVersais<br />
fernando Boppré<br />
Os filmes “Novelo”, <strong>de</strong> 1968, “Via-<br />
Crucis”, <strong>de</strong> 1972, e “Olaria”, <strong>de</strong> 1976,<br />
não participaram da história da cinematografia<br />
em Santa Catarina. Não tomam<br />
parte <strong>de</strong> sua tradição como, por exemplo,<br />
“O Preço da Ilusão’, rodado pelos<br />
mo<strong>de</strong>rnistas do Grupo Sul em fins da década<br />
<strong>de</strong> 1950. Estão relegados, por assim<br />
dizer, a uma espécie <strong>de</strong> limbo histórico.<br />
Não se <strong>de</strong>ve, contudo, consi<strong>de</strong>rar<br />
mera coincidência o silêncio em torno<br />
<strong>de</strong>ssas produções. Fato é que apresentam<br />
uma poética e uma temática que<br />
não estabelecem continuida<strong>de</strong> com a<br />
tradição cinematográfica predominante<br />
nos dias <strong>de</strong> hoje: esses filmes não caracterizam<br />
ou reforçam i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s locais,<br />
mas sim articulam visões mais amplas<br />
sobre questões universais como a crise<br />
do sujeito ante a civilização oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Não por acaso, o principal estudo<br />
sobre esses filmes não surgiu dos cursos<br />
<strong>de</strong> Cinema ou <strong>de</strong> Jornalismo, mas sim<br />
do curso <strong>de</strong> História da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina. O trabalho<br />
<strong>de</strong> conclusão <strong>de</strong> curso <strong>de</strong> Sissi valente,<br />
intitulado “Novelo, via-Crucis e Olaria:<br />
experiências cinematográficas na Florianópolis<br />
das décadas <strong>de</strong> 1960 e 1970”<br />
é um esforço <strong>de</strong> síntese do material reunido<br />
ao longo <strong>de</strong> dois anos <strong>de</strong> pesquisa<br />
junto à equipe do Laboratório <strong>de</strong> Pesquisa<br />
e Imagem do Som (LAPIS), que registrou<br />
em ví<strong>de</strong>o os <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> Pedro<br />
Paulo Souza (diretor <strong>de</strong> “Novelo”),<br />
Pedro Bertolino (autor do argumento <strong>de</strong><br />
“Novelo” e “via-Crucis”), Nelson Machado<br />
dos Santos (diretor <strong>de</strong> “via-Crucis” e<br />
“Olaria”), Ady vieira Filho (produtor e<br />
ator <strong>de</strong> “Novelo”) e Gilberto Gerlach<br />
(diretor <strong>de</strong> fotografia <strong>de</strong> “Novelo”).<br />
No filme “Novelo”, com direção <strong>de</strong><br />
Pedro Paulo Souza, co-direção <strong>de</strong> Gilberto<br />
Gerlach e produção <strong>de</strong> Ady vieira<br />
Filho, o protagonista — interpretado por<br />
Fernando José — entra em crise ao se <strong>de</strong>parar<br />
com a frase <strong>de</strong> Martin Hei<strong>de</strong>gger:<br />
“Os valores não são, eles valem”. Após<br />
livrar-se da religião e da família, caminha<br />
por longo corredor até <strong>de</strong>frontar-se<br />
com uma lâmina <strong>de</strong> barbear (a metáfora<br />
precisa do corte, conceito fundamental<br />
tanto para se enten<strong>de</strong>r a época quanto<br />
o próprio cinema).<br />
A partir daí, ele tem duas opções:<br />
prostituir-se ou suicidar-se. Não obstante,<br />
ele se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> por uma terceira<br />
alternativa, impondo a essa aparente<br />
dicotomia uma saída (im)possível. De<br />
maneira radical, o personagem se livra<br />
da civilização — da cida<strong>de</strong>, das roupas,<br />
dos carros — e parte para o arrabal<strong>de</strong>.<br />
Na ocasião, a distante praia da Armação,<br />
no Sul da Ilha, com paisagens <strong>de</strong>sertas,<br />
serviu <strong>de</strong> abrigo: à beira do mar,<br />
ao lado do costão, nu, ele coloca-se em<br />
posição fetal e, lentamente, torna-se<br />
parte do orgânico.<br />
O pressuposto do filme é da or<strong>de</strong>m<br />
do impossível: morrer para renascer.<br />
Não há o happy end, muito menos o seu<br />
oposto. O que há é uma aposta na possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um renascimento — não sem<br />
antes proce<strong>de</strong>r com um corte brutal,<br />
com uma morte em civilização — inspirado<br />
nas i<strong>de</strong>ias existencialistas. É um<br />
filme corajoso, sobretudo.<br />
A partir da análise dos filmes e das<br />
entrevistas cedidas pelos realizadores,<br />
além dos roteiros e <strong>de</strong>mais materiais por<br />
eles cedidos, foi possível traçar algumas<br />
questões centrais para a compreensão<br />
do que estava em jogo na concepção e<br />
na produção <strong>de</strong>stas películas 16mm. Em<br />
primeiro lugar, <strong>de</strong>staca-se a predominância<br />
<strong>de</strong> um pensamento acerca do local<br />
numa estreita relação com o universal,<br />
numa dialética cujos resultados são,<br />
sem dúvida, ainda hoje, os mais ousados<br />
da cinematografia catarinense.<br />
Além disso, os filmes compõem testemunhos<br />
<strong>de</strong> um momento específico<br />
da história <strong>de</strong> Florianópolis que, naquele<br />
período, passava por um processo<br />
acelerado <strong>de</strong> urbanização, incluindo a<br />
verticalização do Centro da cida<strong>de</strong>. Por<br />
fim, cabe assinalar que as sofisticadas<br />
experimentações <strong>de</strong> linguagem cinematográfica<br />
aliavam-se a um conteúdo<br />
<strong>de</strong> caráter crítico sobre o meio social<br />
do período (incluindo aqui os impasses<br />
ante a censura com que os filmes tiveram<br />
que lidar). Foi <strong>de</strong>cisiva ainda a<br />
influência do existencialismo (em “Novelo”)<br />
e do marxismo (em “via-Crucis”<br />
e “Olaria”).<br />
t<br />
palavra <strong>de</strong> realizador<br />
“o “novelo”, po<strong>de</strong>ria se dizer assim, fala <strong>de</strong> uma crise<br />
existencial: o objetivo era mostrar a situação em que estava<br />
a civilização naquele momento, ai-5 arrebentando com<br />
tudo que havia acontecido em maio <strong>de</strong> 1968 na frança. o<br />
objetivo <strong>de</strong>le era mostrar a civilização e a crise do sujeito<br />
perante a civilização e tudo isso. então ele fala da <strong>de</strong>rrocada<br />
da civilização oci<strong>de</strong>ntal que estava acontecendo naquele<br />
momento e que não acabou <strong>de</strong> acontecer ainda, mas tudo<br />
bem, daqui a pouco a gente já ultrapassa, não há dúvidas.”<br />
Pedro Bertolino<br />
“nós estudávamos cinema, mas éramos amadores.<br />
Tínhamos a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> teoria cinematográfica, mas nunca<br />
havíamos feito nada. não tínhamos dinheiro. aí o ady Vieira<br />
[produtor <strong>de</strong> “novelo”] disse: ‘dinheiro é comigo, trate do<br />
resto’. aí eu falei com o Pedro Bertolino, porque há muitos<br />
anos nós éramos amigos e um tempo atrás ele havia me<br />
contado a história <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> burguesa em que o<br />
filho um dia se rebela contra tudo e aí parte para o suicídio.<br />
mas não era um suicídio. na verda<strong>de</strong>, era um suicídio<br />
existencial.”<br />
Pedro Paulo souza<br />
“na verda<strong>de</strong>, a i<strong>de</strong>ia do curta é uma sugestão para<br />
planos, que eu acho que o curta tem esse sentido. a<br />
linguagem <strong>de</strong>le tem que ser mais da poesia do que da prosa.<br />
o curta-metragem tem que ter a linguagem da poesia e não<br />
da prosa, prosear em um curta-metragem é uma coisa que<br />
está andando em cima <strong>de</strong> um fio, cai o tempo todo. A escola<br />
<strong>de</strong> cinema <strong>de</strong> curta metragem da Polônia já dizia isso: o<br />
curta tem que ter um sentido e uma forma poética.”<br />
gilBerto gerlach<br />
“Porque a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ‘Via-crucis’ foi justamente a<br />
trajetória <strong>de</strong> um urbano, não que não seja uma pessoa não<br />
i<strong>de</strong>ntificada, mas uma pessoa comum, que na verda<strong>de</strong> po<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> alguma maneira refletir todos nós, que num <strong>de</strong>terminado<br />
momento <strong>de</strong> sua história po<strong>de</strong> ser escolhido, como o<br />
personagem foi, e sofrer uma <strong>de</strong>terminação que ele não<br />
escolhera ou alheia a sua própria vonta<strong>de</strong>. aí, nesse caso,<br />
pelo próprio contexto que a gente vivia na época foi uma<br />
tragédia, o cara na verda<strong>de</strong> foi escolhido pela violência,<br />
torturado e morto... a i<strong>de</strong>ia é essa... e a <strong>de</strong>sproteção <strong>de</strong> que<br />
todos somos vítimas... estamos à mercê.”<br />
nelson machado do santos<br />
“o ponto <strong>de</strong> partida [para o filme “Olaria”] foi esse:<br />
‘Vamos filmar antes que <strong>de</strong>sapareça’. E, por outro lado,<br />
há um elemento trágico, porque é um modo <strong>de</strong> vida lindo,<br />
aquela coisa do artesão, uma pessoa que tem o domínio<br />
completo da sua vida. ele acordava às quatro da manhã,<br />
ia lá no meio da baía, pegava o almoço, vinha, já escalava<br />
o peixe, <strong>de</strong>ixava o peixe prontinho às seis, seis e meia,<br />
começava o trabalho na olaria. Quando chegava meio-dia, as<br />
mulheres já faziam o almoço, o cara almoçava e quatro da<br />
tar<strong>de</strong> encerrava.”<br />
nelson machado dos santos<br />
oVonoVelo: o novo no velho<br />
Um filme sobre o filme. Contempla-<br />
do no Edital Cinemateca <strong>Catarinense</strong><br />
2008, o documentário “Ovonovelo” —<br />
média-metragem em ví<strong>de</strong>o com direção<br />
<strong>de</strong> Fernando C. Boppré e Maria Emília <strong>de</strong><br />
Azevedo — se apropria do célebre poema<br />
visual “Ovonovelo”, <strong>de</strong> Augusto <strong>de</strong><br />
Campos, para revisitar o primeiro curtametragem<br />
realizado em Santa Catarina,<br />
“Novelo” (1968), ficção <strong>de</strong> poética fílmica<br />
singular com argumento <strong>de</strong> Pedro<br />
Bertolino e realizada em plena ditadura<br />
militar brasileira.<br />
A retomada em 2003 dos rolos dos<br />
filmes do antigo Grupo Universitário <strong>de</strong><br />
Cinema Amador (GUCA) coube ao Laboratório<br />
<strong>de</strong> Pesquisa em Imagem e Som<br />
(LAPIS/UFSC) e, como efeito da iniciati-<br />
seis instantes <strong>de</strong><br />
“noVelo”: EXISTENCIALISMO<br />
E NARRATIvA CIRCULAR<br />
MARCARAM O PRIMEIRO<br />
CURTA-METRAGEM REALIZADO<br />
EM SANTA CATARINA (1968)<br />
va, o original <strong>de</strong> “Novelo” está preservado<br />
na Cinemateca Brasileira, enquanto<br />
artigos e dissertações <strong>de</strong> História foram<br />
produzidos sobre o tema. Recentemente,<br />
um dos episódios <strong>de</strong> “Histórias <strong>de</strong> Cinema”<br />
(RBS-Tv), com direção <strong>de</strong> Chico<br />
Caprário e Marco Martins, exibiu trechos<br />
<strong>de</strong> “Novelo” e uma entrevista com Gilberto<br />
Gerlach.<br />
Rodado em junho e agosto <strong>de</strong> 2009,<br />
o documentário “Ovonovelo” conta com<br />
Ricardo Weschenfel<strong>de</strong>r (assistência <strong>de</strong><br />
direção), Guto Lima (produção executiva)<br />
Ivan Soares (direção <strong>de</strong> fotografia),<br />
Gustavo <strong>de</strong> Souza (direção <strong>de</strong> som), Alan<br />
Langdon (edição), André S.A. e Boppré<br />
(pesquisa). O média tem previsão <strong>de</strong><br />
lançamento para início <strong>de</strong> 2010. n<br />
textos | fernando boppré<br />
vive em Florianópolis, é mestre em História <strong>Cultura</strong>l pela UFSC e coor<strong>de</strong>nador da<br />
agenda cultural do Museu victor Meirelles/IBRAM/MinC.<br />
imagens | divulgação<br />
fotogramas do filme “Novelo”.<br />
cinema<br />
11<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009
cinema<br />
12<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009<br />
Cinema extremo<br />
diretor <strong>de</strong>Vora com ironia os gêneros “marginais” e<br />
realiza o “KaniBaru sinema” no oeste <strong>de</strong> santa <strong>catarina</strong><br />
rosana cacciatore<br />
Longe das salas multi-<br />
plex das gran<strong>de</strong>s re<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
cinema, mas muito exibidos<br />
nos circuitos ditos alterna-<br />
tivos do Brasil e também<br />
fora do país, os filmes do cata-<br />
rinense Petter Baiestorf<br />
estão próximos <strong>de</strong><br />
se tornarem cult.<br />
Nascido na cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Palmitos, no<br />
Oeste catarinense,<br />
em 1974, on<strong>de</strong><br />
mora e realiza os<br />
filmes do Kanibaru<br />
Sinema (cinema<br />
canibal),<br />
Baiestorf é um<br />
dos nomes mais<br />
expressivos do<br />
trash brasileiro.<br />
A importância<br />
<strong>de</strong> Baiestorf<br />
ren<strong>de</strong>u uma retrospectiva<br />
<strong>de</strong><br />
sua obra na 8 a Mostra do Filme Livre, em<br />
abril <strong>de</strong> 2009, no Centro <strong>Cultura</strong>l Banco<br />
do Brasil, no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
“Eu comecei a fazer filmes em 1992,<br />
com vHS ainda. Hoje eu tiro uma grana<br />
boa só fazendo filmes <strong>de</strong> horror e dando<br />
palestras”, diz o proprietário da cultuada<br />
e bem sucedida Canibal Filmes,<br />
produtora <strong>de</strong> um clássico do trash brasileiro:<br />
“O monstro legume do espaço”<br />
(1995). Baiestorf acumula na bagagem<br />
mais <strong>de</strong> cem filmes no gênero, cuja principal<br />
característica é o baixíssimo custo<br />
da produção, como propõe no “Manifesto<br />
canibal”, a sua <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> princípios<br />
<strong>de</strong> 2002: “A opção <strong>de</strong> realizar obras<br />
com cenários, figurinos, iluminação e<br />
maquiagens criados/conseguidos com<br />
lixo.” Tanto que seu filme mais caro custou<br />
três mil reais.<br />
Essas produções, oriundas do un<strong>de</strong>rground<br />
e conhecidas sob muitos<br />
rótulos — Filme trash, Cinema Marginal,<br />
Filme B, Cinema In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />
Alternativo, Boca do Lixo ou, principalmente,<br />
Gore (um subgênero do horror<br />
que exacerba a escatologia) —, além do<br />
baixo custo, têm em comum uma espécie<br />
<strong>de</strong> crueza estética, com edições<br />
toscas e atuações irregulares aliadas a<br />
doses consi<strong>de</strong>ráveis <strong>de</strong> ousadia, invencionismo<br />
e muita diversão, como no<br />
primeiro filme nacional sobre mortosvivos,<br />
“Zombio”, <strong>de</strong> 1999.<br />
É interessante notar que na obra<br />
do cineasta <strong>de</strong> Palmitos, por mais que<br />
seus filmes possam ser consi<strong>de</strong>rados<br />
“trashes”, na maioria das vezes eles<br />
ultrapassam os clichês com as provocações<br />
mais diversas. Mergulhando no<br />
lixo cultural espalhado pelo mundo e<br />
reutilizando o cinema <strong>de</strong> gênero — horror,<br />
pornô, policial —, Baiestorf promove<br />
uma anarquia narrativa regada a<br />
muito <strong>de</strong>boche, sangue e sexo e, por<br />
isso, é cultuado.<br />
De certa forma, conforme admite o<br />
próprio cineasta, parte <strong>de</strong> seus filmes<br />
segue a cartilha do hoje consagrado<br />
cinema marginal brasileiro das décadas<br />
<strong>de</strong> 60 e 70, que, apesar <strong>de</strong> serem<br />
produções heterogêneas, tinham como<br />
proposta comum um “cinema <strong>de</strong> autor”.<br />
São nomes da época José Mojica<br />
Marins, Sérgio Hingst, Andréa Bryan,<br />
Ozualdo Can<strong>de</strong>ias. “Can<strong>de</strong>ias me influenciou<br />
muito mais que Mojica”, diz<br />
Baiestorf. Tanto que um road movie<br />
exibido apenas em sessões fechadas<br />
— “Super Chacrinha e seu amigo Ultrashit<br />
em crise” vs. “Deus e o Diabo na<br />
Terra”, <strong>de</strong> Glauber Rocha (ou: “Ainda<br />
bem que Jimi Hendrix Morreu”) — é<br />
uma referência explícita a Glauber e a<br />
Rogério Sganzerla.<br />
Na atualida<strong>de</strong>, o filme trash começa<br />
a crescer e ser visto, graças ao barateamento<br />
<strong>de</strong> filmadoras portáteis e à<br />
internet. Nos Estados Unidos, a cultura<br />
<strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> filmes é estruturada e<br />
até lucrativa. Já no Brasil os cineastas<br />
<strong>de</strong>sse “gênero” começam a se firmar<br />
agora. Para os organizadores da 8a Mostra do Filme Livre, a Canibal Filmes<br />
é a dona do cinema mais transgressor<br />
e extremo feito no Brasil no momento.<br />
Para Petter Baiestorf, seus filmes<br />
explicitam “a opção <strong>de</strong> se utilizar do<br />
Kanibaru Sinema e sua estética do caos<br />
para finalmente po<strong>de</strong>r flertar com a estética<br />
da falta <strong>de</strong> estética”.<br />
t<br />
O estranho mundo <strong>de</strong> Petter<br />
Baiestorf é o nosso mundo<br />
Jair fonseca<br />
Ao escrever este texto, a começar pelo título, lembrei-me tanto <strong>de</strong><br />
Zé do Caixão, quanto <strong>de</strong> um artigo <strong>de</strong> Otto Maria Carpeaux sobre Jorge<br />
Luis Borges. Para quem estranhar o encontro <strong>de</strong> figuras tão diversas no<br />
início <strong>de</strong> um breve ensaio sobre a obra <strong>de</strong> Petter Baiestorf, também<br />
diferente dos trabalhos dos <strong>de</strong>mais, justifico a minha impressão. Carpeaux<br />
mostra que a obra <strong>de</strong> Borges, classificada à época como fantástica,<br />
apresenta insólitos laços com a realida<strong>de</strong> político-social e com a própria<br />
literatura. De modo semelhante, o estranho mundo <strong>de</strong> Zé do Caixão é o<br />
chamado Terceiro Mundo, transfigurado pela <strong>de</strong>voração mojiquiana dos<br />
antigos filmes <strong>de</strong> terror e dos quadrinhos. Também o surrealismo e o<br />
pós-surrealismo <strong>de</strong> Buñuel têm pouco a ver com o que se costuma classificar<br />
como fantástico e, ao invés <strong>de</strong> serem uma fuga da realida<strong>de</strong>, são<br />
bem mais um encontro e um confronto com ela. Claro que quando falo<br />
<strong>de</strong> realida<strong>de</strong> em relação à construção artística consi<strong>de</strong>ro esta <strong>de</strong>ntro<br />
daquela e vice-versa. Nada <strong>de</strong> ilusões referenciais (do tipo: a arte é um<br />
simples reflexo da realida<strong>de</strong>), ou outras ilusões, como as <strong>de</strong> que nada se<br />
refere a nada, tudo é linguagem e imagem, ou seja, tudo é nada, nada<br />
é tudo, e coisas do tipo.<br />
Pois bem, os filmes, ví<strong>de</strong>os, textos (literários ou não) e a performance<br />
<strong>de</strong> Petter Baiestorf na cena cultural mostram bem essas fronteiras<br />
móveis entre o artístico e o real vivido, pois mesmo o imaginado é vivido.<br />
Marcado, até por sua própria escolha, pelo estigma <strong>de</strong> realizador<br />
<strong>de</strong> filmes trash (lixo, sem valor) ou <strong>de</strong> terror gore (sangrento e nojento),<br />
o artista catarinense não po<strong>de</strong> ser compreendido <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> limites tão<br />
estreitos. E é notável como tenta não se limitar, embora isso acabe ocorrendo,<br />
tanto por injunções internas quanto externas.<br />
Tentarei explicar: Baiestorf combate o “cinemão” comercial <strong>de</strong> entretenimento,<br />
hollywoodiano ou brasileiro, por motivos estéticos-políticos,<br />
pois compreen<strong>de</strong> bem que essas dimensões não se separam. Ao<br />
mesmo tempo, faz um tipo <strong>de</strong> filme, ou ví<strong>de</strong>o, anti-industrial e transgressivo,<br />
que acaba por fazer certas concessões facilitadoras, apelando<br />
a clichês: os eternos zumbis, as cenas <strong>de</strong> nu<strong>de</strong>z e sexo etc. Entretanto,<br />
o uso que faz disso é suficientemente ambíguo para ser crítico. O seu<br />
trabalho também é diversão, é voltado para o entretenimento (inclusive,<br />
o <strong>de</strong> quem faz o filme), mas é autoconsciente. Sabemos do po<strong>de</strong>r subversivo<br />
do riso e vários <strong>de</strong>sses filmes e ví<strong>de</strong>os são cruelmente engraçados.<br />
“Zombio” (1999), já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o título, parece zombar <strong>de</strong> certos filmes<br />
americanos <strong>de</strong> terror, com aquelas histórias já muito vistas <strong>de</strong> jovensque-vão-acampar-e-se-dão-mal.<br />
Aliás, a zombaria se esten<strong>de</strong> ao próprio<br />
ví<strong>de</strong>o e às expectativas do espectador, quando, após o fim, temos outro<br />
final. Como os zumbis, o ví<strong>de</strong>o continua <strong>de</strong>pois do fim, e coloca a si<br />
mesmo em cena. Apesar <strong>de</strong> apresentar problemas <strong>de</strong> roteiro e <strong>de</strong> ritmo,<br />
“Zombio” já nos passa a estranha impressão <strong>de</strong> que esse mundo “fantástico”<br />
que se cria ali é o nosso (terceiro) mundo, que o sobrenatural é<br />
artificial e que a fuga da realida<strong>de</strong> serve para alcançá-la <strong>de</strong> outro jeito,<br />
e, <strong>de</strong> algum jeito, superar essa realida<strong>de</strong>.<br />
Não é à toa que Baiestorf briga tanto com o que se faz em gran<strong>de</strong><br />
parte do cinema brasileiro contemporâneo, paradoxal cinemão que<br />
não consegue vencer seu complexo <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong> frente ao cinemão<br />
hollywoodiano. Petter prefere fazer as coisas do jeito que po<strong>de</strong> e quer,<br />
referindo-se frequentemente a mitos <strong>de</strong> um cinema diferente do seu,<br />
mas semelhante ao seu, <strong>de</strong> algum modo: o <strong>de</strong> Rogério Sganzerla e principalmente<br />
o <strong>de</strong> Glauber Rocha. É que estes são mortos-vivos e muito da<br />
produção audiovisual <strong>de</strong> nossos dias é coisa <strong>de</strong> vivos-mortos. n<br />
CENAS DO MÉDIA-METRAGEM “ZOMBIO”,<br />
DE 1999, QUE TEvE UM CUSTO DE<br />
APROXIMADAMENTE R$ 300,00<br />
o que é ser<br />
cineasta?<br />
“É se exorcizar em<br />
público po<strong>de</strong>ndo (ou não)<br />
compartilhar seus i<strong>de</strong>ais.<br />
O cineasta <strong>de</strong>ve ser<br />
libertário e engajado com<br />
a busca pela solução dos<br />
problemas sociais do seu<br />
tempo. O cineasta do<br />
espetáculo não sobrevive<br />
muito tempo, já o cineasta<br />
das i<strong>de</strong>ias, dos i<strong>de</strong>ais,<br />
sobrevive para ser discutido<br />
pelas gerações futuras.”<br />
filmografia<br />
cinema<br />
algumas produções com roteiro<br />
e direção <strong>de</strong> Petter Baiestorf<br />
1993 “Criaturas Hediondas” (longa-metragem,<br />
R$ 300,00)<br />
1995 “O Monstro Legume do Espaço” (longametragem,<br />
R$ 500,00)<br />
1999 “Zombio” (média-metragem, R$ 300,00)<br />
2001 “Raiva” (longa-metragem, R$ 1.500,00)<br />
2003 “Primitivismo Kanibaru na Lama da<br />
Tecnologia Catódica” (curta, custo zero)<br />
2006 “A Curtição do Avacalho” (longametragem,<br />
R$ 1.200,00)<br />
2007 “Manifesto Canibal — O Filme” (curtametragem,<br />
custo zero)<br />
2009 “Ninguém Deve Morrer” (curta em<br />
produção, orçado em R$ 3.000,00)<br />
livro “Manifesto Canibal”, <strong>de</strong> Baiestorf e Coffin<br />
Souza (editora Achiamé, 2004)<br />
documentário “Baiestorf: Filmes <strong>de</strong><br />
Sangueira & Mulher Pelada”<br />
(direção <strong>de</strong> Cristian Caselli,<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2004)<br />
textos | rosana cacciatore<br />
é mestre e pesquisadora <strong>de</strong> cinema.<br />
| jair fonseca<br />
é professor <strong>de</strong> Teoria Literária e Cinema na UFSC.<br />
imagens | divulgação<br />
13<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009
ensaio<br />
14<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009<br />
um livro bom atrás do outro<br />
ronald augusto<br />
Mauro Faccioni Filho é autor <strong>de</strong> “He-<br />
lenos”, dos melhores livros <strong>de</strong> poemas<br />
publicados no remoto ano <strong>de</strong> 1998. Mas<br />
vou tratar aqui <strong>de</strong> “Duplo Dublê”, outro<br />
livro impressionante lançado por Mauro<br />
quatro anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “Helenos”. Ambos<br />
publicados pela editora Letras Contemporâneas.<br />
Se em “Helenos” Mauro se apo<strong>de</strong>ra<br />
do “eco épico”, isto é, transfigura em<br />
música verbal contemporânea as ruínas<br />
hieráticas <strong>de</strong> um epos cujos percalços<br />
narrativos já não copulam com os interesses<br />
dos <strong>de</strong>uses, nem reiteram a discursivida<strong>de</strong><br />
formular característica do<br />
gênero, em “Duplo Dublê” o mergulho<br />
na húbris da <strong>de</strong>sventura humana tornase<br />
mais radical. A dissolução e o dionisíaco<br />
exasperantes que atravessam as<br />
páginas <strong>de</strong> “Duplo Dublê” constituem a<br />
contraparte problematizadora daquela<br />
nu<strong>de</strong>z ática e beligerante dos afirmativos<br />
heróis <strong>de</strong> “Helenos”.<br />
Como metaforiza o fotograma da<br />
capa <strong>de</strong> “Duplo Dublê”, neste volume<br />
trata-se <strong>de</strong> dar ouvidos ao mortal que<br />
“lixa o céu seco” com seu brado assombrado.<br />
Nos encontramos (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
muito errar?) à orla <strong>de</strong> uma borrasca<br />
aniquiladora: o trágico. Mauro parece<br />
nos dizer que os musculosos e astutos<br />
prodígios <strong>de</strong> Aquiles e Odisseu (personae<br />
que percorrem seu “Helenos”) nada<br />
mais são do que um glamour fugaz a revestir<br />
uma polpa em processo <strong>de</strong> apodrecimento.<br />
E esta “polpa” vem a ser<br />
a tragédia. Tragédia como lance entrópico<br />
que não <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra a incisão do<br />
acaso. Ruptura <strong>de</strong> tendões e fibras — a<br />
inteireza física e moral no extremo <strong>de</strong><br />
seus tensionamentos.<br />
Estamos con<strong>de</strong>nados ao <strong>de</strong>sgaste, a<br />
estados cada vez mais indiferenciados<br />
e frios. Po<strong>de</strong> a tragédia vir, encontrará<br />
cada coisa fora do seu lugar. Por outro<br />
lado, os poemas <strong>de</strong> “Duplo Dublê” presentificam<br />
em sua linguagem menos um<br />
fado do que um fardo. A “questão <strong>de</strong><br />
fundo” a atravessar o livro — se é que a<br />
expressão entre aspas dá conta <strong>de</strong> sua<br />
beleza discursiva —, na verda<strong>de</strong>, não discute<br />
se <strong>de</strong>vemos ou não lidar <strong>de</strong> modo<br />
resignado com o <strong>de</strong>stino inexorável matutado<br />
pelos céus (fado) em prejuízo da<br />
nossa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> mortais.<br />
Mas, antes, põe em cena o reconhecimento<br />
(fardo) <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sagregadora<br />
que, ao fim e ao cabo, pavimen-<br />
ta com um sinal <strong>de</strong> distinção os rumos<br />
tortuosos por on<strong>de</strong> se arrasta o sujeito<br />
herói em condição transeunte e que, <strong>de</strong><br />
uma vez por todas, já não se assemelha<br />
mais aos <strong>de</strong>uses.<br />
O (re)conhecimento, a estupi<strong>de</strong>z do<br />
<strong>de</strong>sígnio: fardo. Meu “Duplo Dublê”: o<br />
esforço, via linguagem, para tentar impedir,<br />
retardar ou, quem sabe, refletir<br />
sobre o <strong>de</strong>stino pelo seu lado figural,<br />
como imagem <strong>de</strong> um processo. Dobrar o<br />
fado (por via da beleza?), vale dizer, num<br />
impulso <strong>de</strong> interpretá-lo, emprestar-lhe<br />
sentido, em suma, todo um concurso<br />
<strong>de</strong> signos agenciados para estancar a<br />
tendência entrópica e a dissolução. Encapsular<br />
a tragédia-entropia, portanto<br />
— como acontece —, na palavra grega<br />
sema, que admite os sentidos tanto <strong>de</strong><br />
“signo” como <strong>de</strong> “sepultura”. Uma textura<br />
<strong>de</strong> linguagem que, a um tempo, a<br />
evoca e a revoga.<br />
O “Duplo Dublê” reivindicado pelo<br />
meu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> linguagem, dobra a carne<br />
que se obstina em apodrecer e entristecer.<br />
Duplica um corpo no outro <strong>de</strong> forma<br />
vertiginosa. Ce<strong>de</strong> ao prazer do poema e<br />
ao poema do prazer como resquício <strong>de</strong><br />
pornografemas que enganam o gozo do<br />
qual nos ressentimos. n<br />
“TRóIA CINE CIDADE”, DE ROSA MARQUES<br />
COMO TODO<br />
como todo poeta anônimo<br />
amo também este esquecimento<br />
este espaço vazio e imenso<br />
este <strong>de</strong>stino inglório<br />
impessoal<br />
<strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses e objetivos<br />
amo este imenso espaço<br />
rodando num lento rio<br />
peitos pele saliva músculos <strong>de</strong>sejos<br />
à revelia<br />
texto | ronald augusto<br />
vive em Porto Alegre e é poeta, músico,<br />
editor e crítico <strong>de</strong> poesia. Autor <strong>de</strong>,<br />
entre outros, “vá <strong>de</strong> valha” (1992) e<br />
“No assoalho duro” (2007).<br />
imagem | rosa marques<br />
vive em Porto Alegre. Bacharel em<br />
Artes Plásticas/Desenho pela UFRGS,<br />
realizou <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> exposições<br />
individuais e coletivas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1986.<br />
Silvana Silva <strong>de</strong> souza<br />
líquido escuro em louça alva<br />
— Uma xícara <strong>de</strong> café? — a garçonete<br />
sorria amável como sempre.<br />
— Sim, obrigado...<br />
Era uma rotina boa aquela. Cinco e<br />
meia da tar<strong>de</strong> saía do escritório, apenas<br />
atravessava a rua, já estava sentado na<br />
mesa junto à janela on<strong>de</strong> ficava apreciando<br />
o movimento.<br />
— Puro e amargo.<br />
A moça, que nessa semana estava<br />
ruiva e tinha cortado os cabelos na altura<br />
dos ombros, já sabia todos os seus<br />
gostos <strong>de</strong> cor. Ele sorriu também, embora<br />
preferisse sempre o silêncio como<br />
forma <strong>de</strong> cortesia.<br />
— Não esqueça <strong>de</strong> trazê-lo bem<br />
quente.<br />
E saiu ela com graça, mexendo os<br />
quadris para um lado e para outro,<br />
jovial, fresca, arregalada como era<br />
próprio das moças na primavera. Não<br />
<strong>de</strong>morou muito para que voltasse, o líquido<br />
escuro fumegando na louça alva.<br />
Ele teve vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> sorrir-lhe outra vez.<br />
Era o segundo sorriso em menos <strong>de</strong> cinco<br />
minutos. Sentiu-se meio estranho.<br />
Baixou os olhos tentando escon<strong>de</strong>r seus<br />
arroubos. Era tar<strong>de</strong>. Um outro freguês<br />
salvou-o do sorriso malicioso que a<br />
moça <strong>de</strong>volvia, um misto <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira<br />
e provocação calculada. Ele não sorriu,<br />
mas sua serieda<strong>de</strong> atiçava-lhe uma chama<br />
por <strong>de</strong>ntro. De repente aquela moça<br />
que mudava <strong>de</strong> cara toda semana era,<br />
enfim, uma moça que lhe atraía completamente.<br />
Fascinou-se ainda mais ao vêla<br />
movendo-se pelo café com <strong>de</strong>streza e<br />
<strong>de</strong>sembaraço.<br />
A tar<strong>de</strong> caía tranquila em tons avermelhados.<br />
O aroma forte do café coado<br />
há pouco penetrou pelas narinas com<br />
prazer. Apenas fechou os olhos aproveitando<br />
o momento. Lembrou-se <strong>de</strong> coisas<br />
familiares. Uma memória longínqua...<br />
Um instante, uma perturbação ainda<br />
mais familiar atravessou-lhe o pensamento<br />
chispando rápido. Abriu os olhos.<br />
Novamente o aroma tranquilizando a<br />
consciência.<br />
— Estava a seu gosto? — Beatriz sentia<br />
prazer em iniciar aquele joguinho.<br />
Seu nome, antes uma mera inscrição no<br />
uniforme, agora tomava outros sentidos<br />
mais profundos. Lembrou-se <strong>de</strong> Dante.<br />
— Como sempre — Olhou-a direto,<br />
uma penetração <strong>de</strong> rasgar entranha. Sua<br />
serieda<strong>de</strong> quase severa <strong>de</strong>smontou-a.<br />
Bateu a caneta no bloco meio constrangida,<br />
meio fazendo-se <strong>de</strong> santa.<br />
— Deseja mais alguma coisa?<br />
— Qual a sua sugestão? — Pensou um<br />
pouco. Olhou <strong>de</strong> soslaio para o resto do<br />
salão como se certificando <strong>de</strong> alguma<br />
coisa.<br />
— Tortinha <strong>de</strong> limão. Hoje estão<br />
especialmente <strong>de</strong>liciosas. Para mim<br />
combina com café puro, amargo e bem<br />
quente.<br />
— Só se me acompanhar.<br />
— De jeito nenhum, senhor...<br />
— Márcio...<br />
— Seu Márcio, o patrão não <strong>de</strong>ixa.<br />
— Eu pago. O meu café, o seu café,<br />
mais o tempo que estiver comigo.<br />
— Desculpe, mas temos muitas mesas<br />
e poucas garçonetes. Não será possível.<br />
Mas agra<strong>de</strong>ço o convite... — ele até<br />
sentiu vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> rir da indignação no<br />
seu tom <strong>de</strong> voz. A raiva latejava pelo<br />
pescoço <strong>de</strong>la, como se realmente tivesse<br />
feito qualquer proposta in<strong>de</strong>corosa.<br />
Mas não era ela mesma quem mais se<br />
divertia com aquilo?<br />
— Desculpe a mim. Só queria uma<br />
companhia para o café. Sou meio solitário,<br />
às vezes.<br />
Ela pensou. Agora parecia compa<strong>de</strong>cer-se.<br />
Ele, ainda sério, também parecia<br />
sinceramente arrependido. Não pelo<br />
convite, mas por todo o resto. Não se<br />
<strong>de</strong>ve flertar com garçonetes, mesmo<br />
que <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira.<br />
— Eu saio daqui a pouco. Se quiser<br />
companhia... Para um outro café<br />
em outro lugar — seus cabelos ruivos<br />
emolduravam lindamente aquele rosto<br />
alvo agora tímido como uma colegial <strong>de</strong><br />
quinze anos.<br />
— Aceito. vai ser bom mudar a rotina.<br />
Recostou-se na ca<strong>de</strong>ira. Agora pessoas<br />
entravam e saíam a todo instante.<br />
O ambiente tornou-se insuportavelmente<br />
barulhento. Era a <strong>de</strong>ixa para ele ir<br />
embora. Não naquele dia. Aquele dia<br />
seria diferente. via, em meio a pequena<br />
multidão, Beatriz ir e vir, sempre lhe espiando<br />
pelas beiradas.<br />
— vai ser bom mudar a rotina.<br />
Sorveu o último gole do café já morno.<br />
Sentiu o gosto amargo percorrendo<br />
os recantos da boca. Novamente aquela<br />
sensação, um “queimor” que lhe comia<br />
por <strong>de</strong>ntro. Breve. Passou. Beatriz terminou<br />
seus afazeres e já vinha vindo.<br />
Agora a tar<strong>de</strong> era em tom <strong>de</strong> azul noturno<br />
com ar fresco, elegante. Não havia<br />
estrelas no céu. As pessoas pareciam felizes.<br />
Ele estava feliz, mergulhado no silêncio.<br />
Não precisaria falar, Beatriz tinha<br />
conversa para os dois. Falava gesticulando<br />
como os italianos, tomando gran<strong>de</strong><br />
parte do espaço individual <strong>de</strong>le. Isso o<br />
irritava um pouco... muito. Mas relevou.<br />
Estava linda num vestidinho leve e rosa.<br />
Caminhavam lentamente, ele tentando<br />
não seguir o ritmo da empolgação da fala<br />
<strong>de</strong>la. Três quadras <strong>de</strong>pois do café viraram<br />
à esquerda. Tão perto e já estavam longe<br />
do burburinho do centro. A rua emu<strong>de</strong>ceu,<br />
até po<strong>de</strong>r ouvir o som melodioso da<br />
brisa... Beatriz, entretanto, continuava<br />
sua tagarelice costumeira. Sentiu novamente<br />
aquele “queimor” por <strong>de</strong>ntro. Ele<br />
até parou um instante colocando a mão<br />
sobre a boca do estômago. Suspirou. Fechou<br />
os olhos. Parecia lutar contra alguma<br />
coisa... Força ou dor dilacerante. Uma<br />
gota <strong>de</strong> suor escorreu pelo rosto. Puxou<br />
Beatriz para um canto, apertando bem<br />
seu corpo contra o corpo <strong>de</strong>la num beijo<br />
longo, <strong>de</strong>sejado, <strong>de</strong>sejoso, intenso. Ela<br />
quase <strong>de</strong>sfaleceu em seus braços. Depois<br />
a olhou no fundo, o mesmo olhar que lhe<br />
<strong>de</strong>u no café. Ela <strong>de</strong>volveu-lhe aquele sorriso.<br />
Apenas sentiu entrando em seu corpo,<br />
certo e preciso, logo <strong>de</strong>pois o escorrer<br />
<strong>de</strong> uma coisa quente. Nem sentiu dor,<br />
a princípio, apenas uma leve falta <strong>de</strong> ar.<br />
Outra fincada, <strong>de</strong>ssa vez profunda. Mas<br />
já não tinha forças. O corpo esmoreceu<br />
<strong>de</strong>vagarzinho, o olhar <strong>de</strong>la parado, morto.<br />
Bastou tirar o punhal <strong>de</strong>ixar o corpo<br />
estirado ali mesmo. n<br />
texto | silvana silva <strong>de</strong> souza<br />
vive em Tubarão/SC e é contadora <strong>de</strong> histórias,<br />
diretora <strong>de</strong> teatro e atriz.<br />
imagem | ta<strong>de</strong>u lobato<br />
s/título, 1994. Acervo do Masc.<br />
prosa<br />
15<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009
semiótica curatorial<br />
16<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009<br />
diclotômica<br />
cínica<br />
cíclica<br />
salmoura<br />
clitolírica<br />
clitotímida<br />
clitoúmida<br />
clímax n<br />
poema | suzana mafra<br />
vive em Brusque/SC. É mestre<br />
em literatura e bibliotecária e<br />
publicou o livro “Borboletras:<br />
poemas curtos que voam”.<br />
litografia | max moura<br />
(1949-2009)<br />
artista plástico catarinense.<br />
Obra do acervo do Masc.<br />
SEMIóTICA CURATORIAL TEM CURADORIA DE Jayro schmidt E P R O P õ E I M A G E N S À I N v E N T I v I D A D E D O S P O E T A S . E L A S ,<br />
PORTANTO, NãO ILUSTRAM OS POEMAS: SãO OS POEMAS QUE SE REFEREM ÀS IMAGENS E SãO ESCRITOS INSTANTANEAMENTE.