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O catarina! - Fundação Catarinense de Cultura

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ensaio<br />

14<br />

ô Catarina! | número 70 | 2009<br />

um livro bom atrás do outro<br />

ronald augusto<br />

Mauro Faccioni Filho é autor <strong>de</strong> “He-<br />

lenos”, dos melhores livros <strong>de</strong> poemas<br />

publicados no remoto ano <strong>de</strong> 1998. Mas<br />

vou tratar aqui <strong>de</strong> “Duplo Dublê”, outro<br />

livro impressionante lançado por Mauro<br />

quatro anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> “Helenos”. Ambos<br />

publicados pela editora Letras Contemporâneas.<br />

Se em “Helenos” Mauro se apo<strong>de</strong>ra<br />

do “eco épico”, isto é, transfigura em<br />

música verbal contemporânea as ruínas<br />

hieráticas <strong>de</strong> um epos cujos percalços<br />

narrativos já não copulam com os interesses<br />

dos <strong>de</strong>uses, nem reiteram a discursivida<strong>de</strong><br />

formular característica do<br />

gênero, em “Duplo Dublê” o mergulho<br />

na húbris da <strong>de</strong>sventura humana tornase<br />

mais radical. A dissolução e o dionisíaco<br />

exasperantes que atravessam as<br />

páginas <strong>de</strong> “Duplo Dublê” constituem a<br />

contraparte problematizadora daquela<br />

nu<strong>de</strong>z ática e beligerante dos afirmativos<br />

heróis <strong>de</strong> “Helenos”.<br />

Como metaforiza o fotograma da<br />

capa <strong>de</strong> “Duplo Dublê”, neste volume<br />

trata-se <strong>de</strong> dar ouvidos ao mortal que<br />

“lixa o céu seco” com seu brado assombrado.<br />

Nos encontramos (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

muito errar?) à orla <strong>de</strong> uma borrasca<br />

aniquiladora: o trágico. Mauro parece<br />

nos dizer que os musculosos e astutos<br />

prodígios <strong>de</strong> Aquiles e Odisseu (personae<br />

que percorrem seu “Helenos”) nada<br />

mais são do que um glamour fugaz a revestir<br />

uma polpa em processo <strong>de</strong> apodrecimento.<br />

E esta “polpa” vem a ser<br />

a tragédia. Tragédia como lance entrópico<br />

que não <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra a incisão do<br />

acaso. Ruptura <strong>de</strong> tendões e fibras — a<br />

inteireza física e moral no extremo <strong>de</strong><br />

seus tensionamentos.<br />

Estamos con<strong>de</strong>nados ao <strong>de</strong>sgaste, a<br />

estados cada vez mais indiferenciados<br />

e frios. Po<strong>de</strong> a tragédia vir, encontrará<br />

cada coisa fora do seu lugar. Por outro<br />

lado, os poemas <strong>de</strong> “Duplo Dublê” presentificam<br />

em sua linguagem menos um<br />

fado do que um fardo. A “questão <strong>de</strong><br />

fundo” a atravessar o livro — se é que a<br />

expressão entre aspas dá conta <strong>de</strong> sua<br />

beleza discursiva —, na verda<strong>de</strong>, não discute<br />

se <strong>de</strong>vemos ou não lidar <strong>de</strong> modo<br />

resignado com o <strong>de</strong>stino inexorável matutado<br />

pelos céus (fado) em prejuízo da<br />

nossa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> mortais.<br />

Mas, antes, põe em cena o reconhecimento<br />

(fardo) <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sagregadora<br />

que, ao fim e ao cabo, pavimen-<br />

ta com um sinal <strong>de</strong> distinção os rumos<br />

tortuosos por on<strong>de</strong> se arrasta o sujeito<br />

herói em condição transeunte e que, <strong>de</strong><br />

uma vez por todas, já não se assemelha<br />

mais aos <strong>de</strong>uses.<br />

O (re)conhecimento, a estupi<strong>de</strong>z do<br />

<strong>de</strong>sígnio: fardo. Meu “Duplo Dublê”: o<br />

esforço, via linguagem, para tentar impedir,<br />

retardar ou, quem sabe, refletir<br />

sobre o <strong>de</strong>stino pelo seu lado figural,<br />

como imagem <strong>de</strong> um processo. Dobrar o<br />

fado (por via da beleza?), vale dizer, num<br />

impulso <strong>de</strong> interpretá-lo, emprestar-lhe<br />

sentido, em suma, todo um concurso<br />

<strong>de</strong> signos agenciados para estancar a<br />

tendência entrópica e a dissolução. Encapsular<br />

a tragédia-entropia, portanto<br />

— como acontece —, na palavra grega<br />

sema, que admite os sentidos tanto <strong>de</strong><br />

“signo” como <strong>de</strong> “sepultura”. Uma textura<br />

<strong>de</strong> linguagem que, a um tempo, a<br />

evoca e a revoga.<br />

O “Duplo Dublê” reivindicado pelo<br />

meu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> linguagem, dobra a carne<br />

que se obstina em apodrecer e entristecer.<br />

Duplica um corpo no outro <strong>de</strong> forma<br />

vertiginosa. Ce<strong>de</strong> ao prazer do poema e<br />

ao poema do prazer como resquício <strong>de</strong><br />

pornografemas que enganam o gozo do<br />

qual nos ressentimos. n<br />

“TRóIA CINE CIDADE”, DE ROSA MARQUES<br />

COMO TODO<br />

como todo poeta anônimo<br />

amo também este esquecimento<br />

este espaço vazio e imenso<br />

este <strong>de</strong>stino inglório<br />

impessoal<br />

<strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses e objetivos<br />

amo este imenso espaço<br />

rodando num lento rio<br />

peitos pele saliva músculos <strong>de</strong>sejos<br />

à revelia<br />

texto | ronald augusto<br />

vive em Porto Alegre e é poeta, músico,<br />

editor e crítico <strong>de</strong> poesia. Autor <strong>de</strong>,<br />

entre outros, “vá <strong>de</strong> valha” (1992) e<br />

“No assoalho duro” (2007).<br />

imagem | rosa marques<br />

vive em Porto Alegre. Bacharel em<br />

Artes Plásticas/Desenho pela UFRGS,<br />

realizou <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> exposições<br />

individuais e coletivas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1986.<br />

Silvana Silva <strong>de</strong> souza<br />

líquido escuro em louça alva<br />

— Uma xícara <strong>de</strong> café? — a garçonete<br />

sorria amável como sempre.<br />

— Sim, obrigado...<br />

Era uma rotina boa aquela. Cinco e<br />

meia da tar<strong>de</strong> saía do escritório, apenas<br />

atravessava a rua, já estava sentado na<br />

mesa junto à janela on<strong>de</strong> ficava apreciando<br />

o movimento.<br />

— Puro e amargo.<br />

A moça, que nessa semana estava<br />

ruiva e tinha cortado os cabelos na altura<br />

dos ombros, já sabia todos os seus<br />

gostos <strong>de</strong> cor. Ele sorriu também, embora<br />

preferisse sempre o silêncio como<br />

forma <strong>de</strong> cortesia.<br />

— Não esqueça <strong>de</strong> trazê-lo bem<br />

quente.<br />

E saiu ela com graça, mexendo os<br />

quadris para um lado e para outro,<br />

jovial, fresca, arregalada como era<br />

próprio das moças na primavera. Não<br />

<strong>de</strong>morou muito para que voltasse, o líquido<br />

escuro fumegando na louça alva.<br />

Ele teve vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> sorrir-lhe outra vez.<br />

Era o segundo sorriso em menos <strong>de</strong> cinco<br />

minutos. Sentiu-se meio estranho.<br />

Baixou os olhos tentando escon<strong>de</strong>r seus<br />

arroubos. Era tar<strong>de</strong>. Um outro freguês<br />

salvou-o do sorriso malicioso que a<br />

moça <strong>de</strong>volvia, um misto <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira<br />

e provocação calculada. Ele não sorriu,<br />

mas sua serieda<strong>de</strong> atiçava-lhe uma chama<br />

por <strong>de</strong>ntro. De repente aquela moça<br />

que mudava <strong>de</strong> cara toda semana era,<br />

enfim, uma moça que lhe atraía completamente.<br />

Fascinou-se ainda mais ao vêla<br />

movendo-se pelo café com <strong>de</strong>streza e<br />

<strong>de</strong>sembaraço.<br />

A tar<strong>de</strong> caía tranquila em tons avermelhados.<br />

O aroma forte do café coado<br />

há pouco penetrou pelas narinas com<br />

prazer. Apenas fechou os olhos aproveitando<br />

o momento. Lembrou-se <strong>de</strong> coisas<br />

familiares. Uma memória longínqua...<br />

Um instante, uma perturbação ainda<br />

mais familiar atravessou-lhe o pensamento<br />

chispando rápido. Abriu os olhos.<br />

Novamente o aroma tranquilizando a<br />

consciência.<br />

— Estava a seu gosto? — Beatriz sentia<br />

prazer em iniciar aquele joguinho.<br />

Seu nome, antes uma mera inscrição no<br />

uniforme, agora tomava outros sentidos<br />

mais profundos. Lembrou-se <strong>de</strong> Dante.<br />

— Como sempre — Olhou-a direto,<br />

uma penetração <strong>de</strong> rasgar entranha. Sua<br />

serieda<strong>de</strong> quase severa <strong>de</strong>smontou-a.<br />

Bateu a caneta no bloco meio constrangida,<br />

meio fazendo-se <strong>de</strong> santa.<br />

— Deseja mais alguma coisa?<br />

— Qual a sua sugestão? — Pensou um<br />

pouco. Olhou <strong>de</strong> soslaio para o resto do<br />

salão como se certificando <strong>de</strong> alguma<br />

coisa.<br />

— Tortinha <strong>de</strong> limão. Hoje estão<br />

especialmente <strong>de</strong>liciosas. Para mim<br />

combina com café puro, amargo e bem<br />

quente.<br />

— Só se me acompanhar.<br />

— De jeito nenhum, senhor...<br />

— Márcio...<br />

— Seu Márcio, o patrão não <strong>de</strong>ixa.<br />

— Eu pago. O meu café, o seu café,<br />

mais o tempo que estiver comigo.<br />

— Desculpe, mas temos muitas mesas<br />

e poucas garçonetes. Não será possível.<br />

Mas agra<strong>de</strong>ço o convite... — ele até<br />

sentiu vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> rir da indignação no<br />

seu tom <strong>de</strong> voz. A raiva latejava pelo<br />

pescoço <strong>de</strong>la, como se realmente tivesse<br />

feito qualquer proposta in<strong>de</strong>corosa.<br />

Mas não era ela mesma quem mais se<br />

divertia com aquilo?<br />

— Desculpe a mim. Só queria uma<br />

companhia para o café. Sou meio solitário,<br />

às vezes.<br />

Ela pensou. Agora parecia compa<strong>de</strong>cer-se.<br />

Ele, ainda sério, também parecia<br />

sinceramente arrependido. Não pelo<br />

convite, mas por todo o resto. Não se<br />

<strong>de</strong>ve flertar com garçonetes, mesmo<br />

que <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira.<br />

— Eu saio daqui a pouco. Se quiser<br />

companhia... Para um outro café<br />

em outro lugar — seus cabelos ruivos<br />

emolduravam lindamente aquele rosto<br />

alvo agora tímido como uma colegial <strong>de</strong><br />

quinze anos.<br />

— Aceito. vai ser bom mudar a rotina.<br />

Recostou-se na ca<strong>de</strong>ira. Agora pessoas<br />

entravam e saíam a todo instante.<br />

O ambiente tornou-se insuportavelmente<br />

barulhento. Era a <strong>de</strong>ixa para ele ir<br />

embora. Não naquele dia. Aquele dia<br />

seria diferente. via, em meio a pequena<br />

multidão, Beatriz ir e vir, sempre lhe espiando<br />

pelas beiradas.<br />

— vai ser bom mudar a rotina.<br />

Sorveu o último gole do café já morno.<br />

Sentiu o gosto amargo percorrendo<br />

os recantos da boca. Novamente aquela<br />

sensação, um “queimor” que lhe comia<br />

por <strong>de</strong>ntro. Breve. Passou. Beatriz terminou<br />

seus afazeres e já vinha vindo.<br />

Agora a tar<strong>de</strong> era em tom <strong>de</strong> azul noturno<br />

com ar fresco, elegante. Não havia<br />

estrelas no céu. As pessoas pareciam felizes.<br />

Ele estava feliz, mergulhado no silêncio.<br />

Não precisaria falar, Beatriz tinha<br />

conversa para os dois. Falava gesticulando<br />

como os italianos, tomando gran<strong>de</strong><br />

parte do espaço individual <strong>de</strong>le. Isso o<br />

irritava um pouco... muito. Mas relevou.<br />

Estava linda num vestidinho leve e rosa.<br />

Caminhavam lentamente, ele tentando<br />

não seguir o ritmo da empolgação da fala<br />

<strong>de</strong>la. Três quadras <strong>de</strong>pois do café viraram<br />

à esquerda. Tão perto e já estavam longe<br />

do burburinho do centro. A rua emu<strong>de</strong>ceu,<br />

até po<strong>de</strong>r ouvir o som melodioso da<br />

brisa... Beatriz, entretanto, continuava<br />

sua tagarelice costumeira. Sentiu novamente<br />

aquele “queimor” por <strong>de</strong>ntro. Ele<br />

até parou um instante colocando a mão<br />

sobre a boca do estômago. Suspirou. Fechou<br />

os olhos. Parecia lutar contra alguma<br />

coisa... Força ou dor dilacerante. Uma<br />

gota <strong>de</strong> suor escorreu pelo rosto. Puxou<br />

Beatriz para um canto, apertando bem<br />

seu corpo contra o corpo <strong>de</strong>la num beijo<br />

longo, <strong>de</strong>sejado, <strong>de</strong>sejoso, intenso. Ela<br />

quase <strong>de</strong>sfaleceu em seus braços. Depois<br />

a olhou no fundo, o mesmo olhar que lhe<br />

<strong>de</strong>u no café. Ela <strong>de</strong>volveu-lhe aquele sorriso.<br />

Apenas sentiu entrando em seu corpo,<br />

certo e preciso, logo <strong>de</strong>pois o escorrer<br />

<strong>de</strong> uma coisa quente. Nem sentiu dor,<br />

a princípio, apenas uma leve falta <strong>de</strong> ar.<br />

Outra fincada, <strong>de</strong>ssa vez profunda. Mas<br />

já não tinha forças. O corpo esmoreceu<br />

<strong>de</strong>vagarzinho, o olhar <strong>de</strong>la parado, morto.<br />

Bastou tirar o punhal <strong>de</strong>ixar o corpo<br />

estirado ali mesmo. n<br />

texto | silvana silva <strong>de</strong> souza<br />

vive em Tubarão/SC e é contadora <strong>de</strong> histórias,<br />

diretora <strong>de</strong> teatro e atriz.<br />

imagem | ta<strong>de</strong>u lobato<br />

s/título, 1994. Acervo do Masc.<br />

prosa<br />

15<br />

ô Catarina! | número 70 | 2009

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