O catarina! - Fundação Catarinense de Cultura
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cinema<br />
12<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009<br />
Cinema extremo<br />
diretor <strong>de</strong>Vora com ironia os gêneros “marginais” e<br />
realiza o “KaniBaru sinema” no oeste <strong>de</strong> santa <strong>catarina</strong><br />
rosana cacciatore<br />
Longe das salas multi-<br />
plex das gran<strong>de</strong>s re<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
cinema, mas muito exibidos<br />
nos circuitos ditos alterna-<br />
tivos do Brasil e também<br />
fora do país, os filmes do cata-<br />
rinense Petter Baiestorf<br />
estão próximos <strong>de</strong><br />
se tornarem cult.<br />
Nascido na cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Palmitos, no<br />
Oeste catarinense,<br />
em 1974, on<strong>de</strong><br />
mora e realiza os<br />
filmes do Kanibaru<br />
Sinema (cinema<br />
canibal),<br />
Baiestorf é um<br />
dos nomes mais<br />
expressivos do<br />
trash brasileiro.<br />
A importância<br />
<strong>de</strong> Baiestorf<br />
ren<strong>de</strong>u uma retrospectiva<br />
<strong>de</strong><br />
sua obra na 8 a Mostra do Filme Livre, em<br />
abril <strong>de</strong> 2009, no Centro <strong>Cultura</strong>l Banco<br />
do Brasil, no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
“Eu comecei a fazer filmes em 1992,<br />
com vHS ainda. Hoje eu tiro uma grana<br />
boa só fazendo filmes <strong>de</strong> horror e dando<br />
palestras”, diz o proprietário da cultuada<br />
e bem sucedida Canibal Filmes,<br />
produtora <strong>de</strong> um clássico do trash brasileiro:<br />
“O monstro legume do espaço”<br />
(1995). Baiestorf acumula na bagagem<br />
mais <strong>de</strong> cem filmes no gênero, cuja principal<br />
característica é o baixíssimo custo<br />
da produção, como propõe no “Manifesto<br />
canibal”, a sua <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> princípios<br />
<strong>de</strong> 2002: “A opção <strong>de</strong> realizar obras<br />
com cenários, figurinos, iluminação e<br />
maquiagens criados/conseguidos com<br />
lixo.” Tanto que seu filme mais caro custou<br />
três mil reais.<br />
Essas produções, oriundas do un<strong>de</strong>rground<br />
e conhecidas sob muitos<br />
rótulos — Filme trash, Cinema Marginal,<br />
Filme B, Cinema In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />
Alternativo, Boca do Lixo ou, principalmente,<br />
Gore (um subgênero do horror<br />
que exacerba a escatologia) —, além do<br />
baixo custo, têm em comum uma espécie<br />
<strong>de</strong> crueza estética, com edições<br />
toscas e atuações irregulares aliadas a<br />
doses consi<strong>de</strong>ráveis <strong>de</strong> ousadia, invencionismo<br />
e muita diversão, como no<br />
primeiro filme nacional sobre mortosvivos,<br />
“Zombio”, <strong>de</strong> 1999.<br />
É interessante notar que na obra<br />
do cineasta <strong>de</strong> Palmitos, por mais que<br />
seus filmes possam ser consi<strong>de</strong>rados<br />
“trashes”, na maioria das vezes eles<br />
ultrapassam os clichês com as provocações<br />
mais diversas. Mergulhando no<br />
lixo cultural espalhado pelo mundo e<br />
reutilizando o cinema <strong>de</strong> gênero — horror,<br />
pornô, policial —, Baiestorf promove<br />
uma anarquia narrativa regada a<br />
muito <strong>de</strong>boche, sangue e sexo e, por<br />
isso, é cultuado.<br />
De certa forma, conforme admite o<br />
próprio cineasta, parte <strong>de</strong> seus filmes<br />
segue a cartilha do hoje consagrado<br />
cinema marginal brasileiro das décadas<br />
<strong>de</strong> 60 e 70, que, apesar <strong>de</strong> serem<br />
produções heterogêneas, tinham como<br />
proposta comum um “cinema <strong>de</strong> autor”.<br />
São nomes da época José Mojica<br />
Marins, Sérgio Hingst, Andréa Bryan,<br />
Ozualdo Can<strong>de</strong>ias. “Can<strong>de</strong>ias me influenciou<br />
muito mais que Mojica”, diz<br />
Baiestorf. Tanto que um road movie<br />
exibido apenas em sessões fechadas<br />
— “Super Chacrinha e seu amigo Ultrashit<br />
em crise” vs. “Deus e o Diabo na<br />
Terra”, <strong>de</strong> Glauber Rocha (ou: “Ainda<br />
bem que Jimi Hendrix Morreu”) — é<br />
uma referência explícita a Glauber e a<br />
Rogério Sganzerla.<br />
Na atualida<strong>de</strong>, o filme trash começa<br />
a crescer e ser visto, graças ao barateamento<br />
<strong>de</strong> filmadoras portáteis e à<br />
internet. Nos Estados Unidos, a cultura<br />
<strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> filmes é estruturada e<br />
até lucrativa. Já no Brasil os cineastas<br />
<strong>de</strong>sse “gênero” começam a se firmar<br />
agora. Para os organizadores da 8a Mostra do Filme Livre, a Canibal Filmes<br />
é a dona do cinema mais transgressor<br />
e extremo feito no Brasil no momento.<br />
Para Petter Baiestorf, seus filmes<br />
explicitam “a opção <strong>de</strong> se utilizar do<br />
Kanibaru Sinema e sua estética do caos<br />
para finalmente po<strong>de</strong>r flertar com a estética<br />
da falta <strong>de</strong> estética”.<br />
t<br />
O estranho mundo <strong>de</strong> Petter<br />
Baiestorf é o nosso mundo<br />
Jair fonseca<br />
Ao escrever este texto, a começar pelo título, lembrei-me tanto <strong>de</strong><br />
Zé do Caixão, quanto <strong>de</strong> um artigo <strong>de</strong> Otto Maria Carpeaux sobre Jorge<br />
Luis Borges. Para quem estranhar o encontro <strong>de</strong> figuras tão diversas no<br />
início <strong>de</strong> um breve ensaio sobre a obra <strong>de</strong> Petter Baiestorf, também<br />
diferente dos trabalhos dos <strong>de</strong>mais, justifico a minha impressão. Carpeaux<br />
mostra que a obra <strong>de</strong> Borges, classificada à época como fantástica,<br />
apresenta insólitos laços com a realida<strong>de</strong> político-social e com a própria<br />
literatura. De modo semelhante, o estranho mundo <strong>de</strong> Zé do Caixão é o<br />
chamado Terceiro Mundo, transfigurado pela <strong>de</strong>voração mojiquiana dos<br />
antigos filmes <strong>de</strong> terror e dos quadrinhos. Também o surrealismo e o<br />
pós-surrealismo <strong>de</strong> Buñuel têm pouco a ver com o que se costuma classificar<br />
como fantástico e, ao invés <strong>de</strong> serem uma fuga da realida<strong>de</strong>, são<br />
bem mais um encontro e um confronto com ela. Claro que quando falo<br />
<strong>de</strong> realida<strong>de</strong> em relação à construção artística consi<strong>de</strong>ro esta <strong>de</strong>ntro<br />
daquela e vice-versa. Nada <strong>de</strong> ilusões referenciais (do tipo: a arte é um<br />
simples reflexo da realida<strong>de</strong>), ou outras ilusões, como as <strong>de</strong> que nada se<br />
refere a nada, tudo é linguagem e imagem, ou seja, tudo é nada, nada<br />
é tudo, e coisas do tipo.<br />
Pois bem, os filmes, ví<strong>de</strong>os, textos (literários ou não) e a performance<br />
<strong>de</strong> Petter Baiestorf na cena cultural mostram bem essas fronteiras<br />
móveis entre o artístico e o real vivido, pois mesmo o imaginado é vivido.<br />
Marcado, até por sua própria escolha, pelo estigma <strong>de</strong> realizador<br />
<strong>de</strong> filmes trash (lixo, sem valor) ou <strong>de</strong> terror gore (sangrento e nojento),<br />
o artista catarinense não po<strong>de</strong> ser compreendido <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> limites tão<br />
estreitos. E é notável como tenta não se limitar, embora isso acabe ocorrendo,<br />
tanto por injunções internas quanto externas.<br />
Tentarei explicar: Baiestorf combate o “cinemão” comercial <strong>de</strong> entretenimento,<br />
hollywoodiano ou brasileiro, por motivos estéticos-políticos,<br />
pois compreen<strong>de</strong> bem que essas dimensões não se separam. Ao<br />
mesmo tempo, faz um tipo <strong>de</strong> filme, ou ví<strong>de</strong>o, anti-industrial e transgressivo,<br />
que acaba por fazer certas concessões facilitadoras, apelando<br />
a clichês: os eternos zumbis, as cenas <strong>de</strong> nu<strong>de</strong>z e sexo etc. Entretanto,<br />
o uso que faz disso é suficientemente ambíguo para ser crítico. O seu<br />
trabalho também é diversão, é voltado para o entretenimento (inclusive,<br />
o <strong>de</strong> quem faz o filme), mas é autoconsciente. Sabemos do po<strong>de</strong>r subversivo<br />
do riso e vários <strong>de</strong>sses filmes e ví<strong>de</strong>os são cruelmente engraçados.<br />
“Zombio” (1999), já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o título, parece zombar <strong>de</strong> certos filmes<br />
americanos <strong>de</strong> terror, com aquelas histórias já muito vistas <strong>de</strong> jovensque-vão-acampar-e-se-dão-mal.<br />
Aliás, a zombaria se esten<strong>de</strong> ao próprio<br />
ví<strong>de</strong>o e às expectativas do espectador, quando, após o fim, temos outro<br />
final. Como os zumbis, o ví<strong>de</strong>o continua <strong>de</strong>pois do fim, e coloca a si<br />
mesmo em cena. Apesar <strong>de</strong> apresentar problemas <strong>de</strong> roteiro e <strong>de</strong> ritmo,<br />
“Zombio” já nos passa a estranha impressão <strong>de</strong> que esse mundo “fantástico”<br />
que se cria ali é o nosso (terceiro) mundo, que o sobrenatural é<br />
artificial e que a fuga da realida<strong>de</strong> serve para alcançá-la <strong>de</strong> outro jeito,<br />
e, <strong>de</strong> algum jeito, superar essa realida<strong>de</strong>.<br />
Não é à toa que Baiestorf briga tanto com o que se faz em gran<strong>de</strong><br />
parte do cinema brasileiro contemporâneo, paradoxal cinemão que<br />
não consegue vencer seu complexo <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong> frente ao cinemão<br />
hollywoodiano. Petter prefere fazer as coisas do jeito que po<strong>de</strong> e quer,<br />
referindo-se frequentemente a mitos <strong>de</strong> um cinema diferente do seu,<br />
mas semelhante ao seu, <strong>de</strong> algum modo: o <strong>de</strong> Rogério Sganzerla e principalmente<br />
o <strong>de</strong> Glauber Rocha. É que estes são mortos-vivos e muito da<br />
produção audiovisual <strong>de</strong> nossos dias é coisa <strong>de</strong> vivos-mortos. n<br />
CENAS DO MÉDIA-METRAGEM “ZOMBIO”,<br />
DE 1999, QUE TEvE UM CUSTO DE<br />
APROXIMADAMENTE R$ 300,00<br />
o que é ser<br />
cineasta?<br />
“É se exorcizar em<br />
público po<strong>de</strong>ndo (ou não)<br />
compartilhar seus i<strong>de</strong>ais.<br />
O cineasta <strong>de</strong>ve ser<br />
libertário e engajado com<br />
a busca pela solução dos<br />
problemas sociais do seu<br />
tempo. O cineasta do<br />
espetáculo não sobrevive<br />
muito tempo, já o cineasta<br />
das i<strong>de</strong>ias, dos i<strong>de</strong>ais,<br />
sobrevive para ser discutido<br />
pelas gerações futuras.”<br />
filmografia<br />
cinema<br />
algumas produções com roteiro<br />
e direção <strong>de</strong> Petter Baiestorf<br />
1993 “Criaturas Hediondas” (longa-metragem,<br />
R$ 300,00)<br />
1995 “O Monstro Legume do Espaço” (longametragem,<br />
R$ 500,00)<br />
1999 “Zombio” (média-metragem, R$ 300,00)<br />
2001 “Raiva” (longa-metragem, R$ 1.500,00)<br />
2003 “Primitivismo Kanibaru na Lama da<br />
Tecnologia Catódica” (curta, custo zero)<br />
2006 “A Curtição do Avacalho” (longametragem,<br />
R$ 1.200,00)<br />
2007 “Manifesto Canibal — O Filme” (curtametragem,<br />
custo zero)<br />
2009 “Ninguém Deve Morrer” (curta em<br />
produção, orçado em R$ 3.000,00)<br />
livro “Manifesto Canibal”, <strong>de</strong> Baiestorf e Coffin<br />
Souza (editora Achiamé, 2004)<br />
documentário “Baiestorf: Filmes <strong>de</strong><br />
Sangueira & Mulher Pelada”<br />
(direção <strong>de</strong> Cristian Caselli,<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2004)<br />
textos | rosana cacciatore<br />
é mestre e pesquisadora <strong>de</strong> cinema.<br />
| jair fonseca<br />
é professor <strong>de</strong> Teoria Literária e Cinema na UFSC.<br />
imagens | divulgação<br />
13<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009