O catarina! - Fundação Catarinense de Cultura
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cinema<br />
10<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009<br />
Um novelo no limbo dos anos <strong>de</strong> chumbo<br />
filmes florianoPolitanos Produzidos nos anos 60 e 70<br />
ficaram no esQuecimento, mas se mostram uniVersais<br />
fernando Boppré<br />
Os filmes “Novelo”, <strong>de</strong> 1968, “Via-<br />
Crucis”, <strong>de</strong> 1972, e “Olaria”, <strong>de</strong> 1976,<br />
não participaram da história da cinematografia<br />
em Santa Catarina. Não tomam<br />
parte <strong>de</strong> sua tradição como, por exemplo,<br />
“O Preço da Ilusão’, rodado pelos<br />
mo<strong>de</strong>rnistas do Grupo Sul em fins da década<br />
<strong>de</strong> 1950. Estão relegados, por assim<br />
dizer, a uma espécie <strong>de</strong> limbo histórico.<br />
Não se <strong>de</strong>ve, contudo, consi<strong>de</strong>rar<br />
mera coincidência o silêncio em torno<br />
<strong>de</strong>ssas produções. Fato é que apresentam<br />
uma poética e uma temática que<br />
não estabelecem continuida<strong>de</strong> com a<br />
tradição cinematográfica predominante<br />
nos dias <strong>de</strong> hoje: esses filmes não caracterizam<br />
ou reforçam i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s locais,<br />
mas sim articulam visões mais amplas<br />
sobre questões universais como a crise<br />
do sujeito ante a civilização oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Não por acaso, o principal estudo<br />
sobre esses filmes não surgiu dos cursos<br />
<strong>de</strong> Cinema ou <strong>de</strong> Jornalismo, mas sim<br />
do curso <strong>de</strong> História da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina. O trabalho<br />
<strong>de</strong> conclusão <strong>de</strong> curso <strong>de</strong> Sissi valente,<br />
intitulado “Novelo, via-Crucis e Olaria:<br />
experiências cinematográficas na Florianópolis<br />
das décadas <strong>de</strong> 1960 e 1970”<br />
é um esforço <strong>de</strong> síntese do material reunido<br />
ao longo <strong>de</strong> dois anos <strong>de</strong> pesquisa<br />
junto à equipe do Laboratório <strong>de</strong> Pesquisa<br />
e Imagem do Som (LAPIS), que registrou<br />
em ví<strong>de</strong>o os <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> Pedro<br />
Paulo Souza (diretor <strong>de</strong> “Novelo”),<br />
Pedro Bertolino (autor do argumento <strong>de</strong><br />
“Novelo” e “via-Crucis”), Nelson Machado<br />
dos Santos (diretor <strong>de</strong> “via-Crucis” e<br />
“Olaria”), Ady vieira Filho (produtor e<br />
ator <strong>de</strong> “Novelo”) e Gilberto Gerlach<br />
(diretor <strong>de</strong> fotografia <strong>de</strong> “Novelo”).<br />
No filme “Novelo”, com direção <strong>de</strong><br />
Pedro Paulo Souza, co-direção <strong>de</strong> Gilberto<br />
Gerlach e produção <strong>de</strong> Ady vieira<br />
Filho, o protagonista — interpretado por<br />
Fernando José — entra em crise ao se <strong>de</strong>parar<br />
com a frase <strong>de</strong> Martin Hei<strong>de</strong>gger:<br />
“Os valores não são, eles valem”. Após<br />
livrar-se da religião e da família, caminha<br />
por longo corredor até <strong>de</strong>frontar-se<br />
com uma lâmina <strong>de</strong> barbear (a metáfora<br />
precisa do corte, conceito fundamental<br />
tanto para se enten<strong>de</strong>r a época quanto<br />
o próprio cinema).<br />
A partir daí, ele tem duas opções:<br />
prostituir-se ou suicidar-se. Não obstante,<br />
ele se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> por uma terceira<br />
alternativa, impondo a essa aparente<br />
dicotomia uma saída (im)possível. De<br />
maneira radical, o personagem se livra<br />
da civilização — da cida<strong>de</strong>, das roupas,<br />
dos carros — e parte para o arrabal<strong>de</strong>.<br />
Na ocasião, a distante praia da Armação,<br />
no Sul da Ilha, com paisagens <strong>de</strong>sertas,<br />
serviu <strong>de</strong> abrigo: à beira do mar,<br />
ao lado do costão, nu, ele coloca-se em<br />
posição fetal e, lentamente, torna-se<br />
parte do orgânico.<br />
O pressuposto do filme é da or<strong>de</strong>m<br />
do impossível: morrer para renascer.<br />
Não há o happy end, muito menos o seu<br />
oposto. O que há é uma aposta na possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um renascimento — não sem<br />
antes proce<strong>de</strong>r com um corte brutal,<br />
com uma morte em civilização — inspirado<br />
nas i<strong>de</strong>ias existencialistas. É um<br />
filme corajoso, sobretudo.<br />
A partir da análise dos filmes e das<br />
entrevistas cedidas pelos realizadores,<br />
além dos roteiros e <strong>de</strong>mais materiais por<br />
eles cedidos, foi possível traçar algumas<br />
questões centrais para a compreensão<br />
do que estava em jogo na concepção e<br />
na produção <strong>de</strong>stas películas 16mm. Em<br />
primeiro lugar, <strong>de</strong>staca-se a predominância<br />
<strong>de</strong> um pensamento acerca do local<br />
numa estreita relação com o universal,<br />
numa dialética cujos resultados são,<br />
sem dúvida, ainda hoje, os mais ousados<br />
da cinematografia catarinense.<br />
Além disso, os filmes compõem testemunhos<br />
<strong>de</strong> um momento específico<br />
da história <strong>de</strong> Florianópolis que, naquele<br />
período, passava por um processo<br />
acelerado <strong>de</strong> urbanização, incluindo a<br />
verticalização do Centro da cida<strong>de</strong>. Por<br />
fim, cabe assinalar que as sofisticadas<br />
experimentações <strong>de</strong> linguagem cinematográfica<br />
aliavam-se a um conteúdo<br />
<strong>de</strong> caráter crítico sobre o meio social<br />
do período (incluindo aqui os impasses<br />
ante a censura com que os filmes tiveram<br />
que lidar). Foi <strong>de</strong>cisiva ainda a<br />
influência do existencialismo (em “Novelo”)<br />
e do marxismo (em “via-Crucis”<br />
e “Olaria”).<br />
t<br />
palavra <strong>de</strong> realizador<br />
“o “novelo”, po<strong>de</strong>ria se dizer assim, fala <strong>de</strong> uma crise<br />
existencial: o objetivo era mostrar a situação em que estava<br />
a civilização naquele momento, ai-5 arrebentando com<br />
tudo que havia acontecido em maio <strong>de</strong> 1968 na frança. o<br />
objetivo <strong>de</strong>le era mostrar a civilização e a crise do sujeito<br />
perante a civilização e tudo isso. então ele fala da <strong>de</strong>rrocada<br />
da civilização oci<strong>de</strong>ntal que estava acontecendo naquele<br />
momento e que não acabou <strong>de</strong> acontecer ainda, mas tudo<br />
bem, daqui a pouco a gente já ultrapassa, não há dúvidas.”<br />
Pedro Bertolino<br />
“nós estudávamos cinema, mas éramos amadores.<br />
Tínhamos a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> teoria cinematográfica, mas nunca<br />
havíamos feito nada. não tínhamos dinheiro. aí o ady Vieira<br />
[produtor <strong>de</strong> “novelo”] disse: ‘dinheiro é comigo, trate do<br />
resto’. aí eu falei com o Pedro Bertolino, porque há muitos<br />
anos nós éramos amigos e um tempo atrás ele havia me<br />
contado a história <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> burguesa em que o<br />
filho um dia se rebela contra tudo e aí parte para o suicídio.<br />
mas não era um suicídio. na verda<strong>de</strong>, era um suicídio<br />
existencial.”<br />
Pedro Paulo souza<br />
“na verda<strong>de</strong>, a i<strong>de</strong>ia do curta é uma sugestão para<br />
planos, que eu acho que o curta tem esse sentido. a<br />
linguagem <strong>de</strong>le tem que ser mais da poesia do que da prosa.<br />
o curta-metragem tem que ter a linguagem da poesia e não<br />
da prosa, prosear em um curta-metragem é uma coisa que<br />
está andando em cima <strong>de</strong> um fio, cai o tempo todo. A escola<br />
<strong>de</strong> cinema <strong>de</strong> curta metragem da Polônia já dizia isso: o<br />
curta tem que ter um sentido e uma forma poética.”<br />
gilBerto gerlach<br />
“Porque a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ‘Via-crucis’ foi justamente a<br />
trajetória <strong>de</strong> um urbano, não que não seja uma pessoa não<br />
i<strong>de</strong>ntificada, mas uma pessoa comum, que na verda<strong>de</strong> po<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> alguma maneira refletir todos nós, que num <strong>de</strong>terminado<br />
momento <strong>de</strong> sua história po<strong>de</strong> ser escolhido, como o<br />
personagem foi, e sofrer uma <strong>de</strong>terminação que ele não<br />
escolhera ou alheia a sua própria vonta<strong>de</strong>. aí, nesse caso,<br />
pelo próprio contexto que a gente vivia na época foi uma<br />
tragédia, o cara na verda<strong>de</strong> foi escolhido pela violência,<br />
torturado e morto... a i<strong>de</strong>ia é essa... e a <strong>de</strong>sproteção <strong>de</strong> que<br />
todos somos vítimas... estamos à mercê.”<br />
nelson machado do santos<br />
“o ponto <strong>de</strong> partida [para o filme “Olaria”] foi esse:<br />
‘Vamos filmar antes que <strong>de</strong>sapareça’. E, por outro lado,<br />
há um elemento trágico, porque é um modo <strong>de</strong> vida lindo,<br />
aquela coisa do artesão, uma pessoa que tem o domínio<br />
completo da sua vida. ele acordava às quatro da manhã,<br />
ia lá no meio da baía, pegava o almoço, vinha, já escalava<br />
o peixe, <strong>de</strong>ixava o peixe prontinho às seis, seis e meia,<br />
começava o trabalho na olaria. Quando chegava meio-dia, as<br />
mulheres já faziam o almoço, o cara almoçava e quatro da<br />
tar<strong>de</strong> encerrava.”<br />
nelson machado dos santos<br />
oVonoVelo: o novo no velho<br />
Um filme sobre o filme. Contempla-<br />
do no Edital Cinemateca <strong>Catarinense</strong><br />
2008, o documentário “Ovonovelo” —<br />
média-metragem em ví<strong>de</strong>o com direção<br />
<strong>de</strong> Fernando C. Boppré e Maria Emília <strong>de</strong><br />
Azevedo — se apropria do célebre poema<br />
visual “Ovonovelo”, <strong>de</strong> Augusto <strong>de</strong><br />
Campos, para revisitar o primeiro curtametragem<br />
realizado em Santa Catarina,<br />
“Novelo” (1968), ficção <strong>de</strong> poética fílmica<br />
singular com argumento <strong>de</strong> Pedro<br />
Bertolino e realizada em plena ditadura<br />
militar brasileira.<br />
A retomada em 2003 dos rolos dos<br />
filmes do antigo Grupo Universitário <strong>de</strong><br />
Cinema Amador (GUCA) coube ao Laboratório<br />
<strong>de</strong> Pesquisa em Imagem e Som<br />
(LAPIS/UFSC) e, como efeito da iniciati-<br />
seis instantes <strong>de</strong><br />
“noVelo”: EXISTENCIALISMO<br />
E NARRATIvA CIRCULAR<br />
MARCARAM O PRIMEIRO<br />
CURTA-METRAGEM REALIZADO<br />
EM SANTA CATARINA (1968)<br />
va, o original <strong>de</strong> “Novelo” está preservado<br />
na Cinemateca Brasileira, enquanto<br />
artigos e dissertações <strong>de</strong> História foram<br />
produzidos sobre o tema. Recentemente,<br />
um dos episódios <strong>de</strong> “Histórias <strong>de</strong> Cinema”<br />
(RBS-Tv), com direção <strong>de</strong> Chico<br />
Caprário e Marco Martins, exibiu trechos<br />
<strong>de</strong> “Novelo” e uma entrevista com Gilberto<br />
Gerlach.<br />
Rodado em junho e agosto <strong>de</strong> 2009,<br />
o documentário “Ovonovelo” conta com<br />
Ricardo Weschenfel<strong>de</strong>r (assistência <strong>de</strong><br />
direção), Guto Lima (produção executiva)<br />
Ivan Soares (direção <strong>de</strong> fotografia),<br />
Gustavo <strong>de</strong> Souza (direção <strong>de</strong> som), Alan<br />
Langdon (edição), André S.A. e Boppré<br />
(pesquisa). O média tem previsão <strong>de</strong><br />
lançamento para início <strong>de</strong> 2010. n<br />
textos | fernando boppré<br />
vive em Florianópolis, é mestre em História <strong>Cultura</strong>l pela UFSC e coor<strong>de</strong>nador da<br />
agenda cultural do Museu victor Meirelles/IBRAM/MinC.<br />
imagens | divulgação<br />
fotogramas do filme “Novelo”.<br />
cinema<br />
11<br />
ô Catarina! | número 70 | 2009