A Paixão segundo G.H. - Catraca Livre
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aquela minha moralidade, a glória dura de estar viva é o horror.<br />
Eu antes vivia de um mundo humanizado, mas o puramente vivo<br />
derrubou a moralidade que eu tinha?<br />
É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno.<br />
Ontem de manhã quando saí da sala para o quarto da<br />
empregada - nada me fazia supor que eu estava a um passo da<br />
descoberta de um império. A um passo de mim. Minha luta mais<br />
primária pela vida mais primária ia-se abrir com a tranqüila<br />
ferocidade devoradora dos animais do deserto. Eu ia me defrontar<br />
em mim com um grau de vida tão primeiro que estava próximo do<br />
inanimado. No entanto nenhum gesto meu era indicativo de que<br />
eu, com os lábios secos pela sede, ia existir.<br />
Só depois é que me ocorreria uma frase antiga que tola mente<br />
se gravara há anos na minha memória, apenas o subtítulo de um<br />
artigo numa revista e que eu terminara por não ler: “Perdida no<br />
inferno abrasador de um canyon uma mulher luta<br />
desesperadamente pela vida”. Nada me fazia supor ao que eu ia.<br />
Mas é que nunca fui capaz de perceber as coisas se<br />
encaminhando; todas as vezes que elas chegavam a um ápice, me<br />
parecia com surpresa um rompimento, explosão dos instantes,<br />
com data, e não a continuação de uma ininterrupção.<br />
Naquela manhã, antes de entrar no quarto, o que era eu? Era<br />
o que os outros sempre me haviam visto ser, e assim eu me<br />
conhecia. Não sei dizer o que eu era. Mas quero ao menos me<br />
lembrar: que estava eu fazendo?<br />
Eram quase dez horas da manhã, e há muito tempo meu<br />
apartamento não me pertencia tanto. No dia anterior a empregada<br />
se despedira. O fato de ninguém falar ou andar e poder provocar<br />
acontecimentos alargava em silêncio esta casa onde em semiluxo<br />
eu vivo. Atardava-me à mesa do café como está sendo difícil saber<br />
como eu era. No entanto tenho que fazer o esforço de pelo menos<br />
me dar uma forma anterior para poder entender o que aconteceu<br />
ao ter perdido essa forma.<br />
Eu me atardava à mesa do café, fazendo bolinhas de miolo de<br />
pão - era isso? Preciso saber, preciso saber o que eu era! Eu era<br />
isto: eu fazia distraidamente bolinhas redondas com miolo de pão,<br />
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