A Paixão segundo G.H. - Catraca Livre
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mim, como um cego ausculta a própria atenção, pela primeira vez<br />
eu me sentia toda incumbida por um instinto. E estremeci de<br />
extremo gozo como se enfim eu estivesse atentando à grandeza de<br />
um instinto que era ruim, total e infinitamente doce - como se<br />
enfim eu experimentasse, e em mim mesma, uma grandeza maior<br />
do que eu. Eu me embriagava pela primeira vez de um ódio tão<br />
límpido como de uma fonte, eu me embriagava com o desejo,<br />
justificado ou não, de matar.<br />
Toda uma vida de atenção - há quinze séculos eu não lutava,<br />
há quinze séculos eu não matava, há quinze séculos eu não morria<br />
toda uma vida de atenção acuada reunia- se agora em mim e batia<br />
como um sino mudo cujas vibrações eu não precisava ouvir, eu as<br />
reconhecia. Como se pela primeira vez enfim eu estivesse ao nível<br />
da Natureza.<br />
Uma capacidade toda controlada me tomara, e por ser<br />
controlada ela era toda potência. Até então eu nunca fora dona de<br />
meus poderes - poderes que eu não entendia nem queria entender,<br />
mas a vida em mim os havia retido para que um dia enfim<br />
desabrochasse essa matéria desconhecida e feliz e inconsciente<br />
que era finalmente: eu! eu, o que quer que seja.<br />
Sem nenhum pudor, comovida com minha entrega ao que é o<br />
mal, sem nenhum pudor, comovida, grata, pela primeira vez eu<br />
estava sendo a desconhecida que eu era - só que desconhecer-me<br />
não me impediria mais, a verdade já me ultrapassara: levantei a<br />
mão como para um juramento, e num só golpe fechei a porta sobre<br />
o corpo meio emergido da barata .Ao mesmo tempo eu também<br />
havia fechado os olhos. E assim permaneci, toda trêmula. Que<br />
fizera eu?<br />
Já então eu talvez soubesse que não me referia ao que eu<br />
fizera à barata mas sim a: que fizera eu de mim?<br />
É que nesses instantes, de olhos fechados, eu tomava<br />
consciência de mim assim como se toma consciência de um sabor:<br />
eu toda estava com sabor de aço e azinhavre, eu toda era ácida<br />
como um metal na língua, como planta verde esmagada, meu<br />
sabor me veio todo à boca. Que fizera eu de mim? Com o coração<br />
batendo, as têmporas pulsando, eu fizera de mim isto: eu matara.<br />
Eu matara! Mas por que aquele júbilo, e além dele a aceitação vital<br />
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