A Paixão segundo G.H. - Catraca Livre
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harmonia de meu passado? - decalcar uma vida provavelmente me<br />
dava segurança exatamente por essa vida não ser minha: ela não<br />
me era uma responsabilidade.<br />
O leve prazer geral - que parece ter sido o tom em que vivo ou<br />
vivia - talvez viesse de que o mundo não era eu nem meu: eu podia<br />
usufruí-lo. Assim como também aos homens eu não os havia feito<br />
meus, e podia então admira-los e sinceramente amá-los, como se<br />
ama sem egoísmos, como se ama a uma idéia. Não sendo meus, eu<br />
nunca os torturava.<br />
Como se ama a uma idéia. A espirituosa elegância de minha<br />
casa vem de que tudo aqui está entre aspas. Por honestidade com<br />
uma verdadeira autoria, eu cito o mundo, eu o citava, já que ele<br />
não era nem eu nem meu. A beleza, como a todo o mundo, uma<br />
certa beleza era o meu objetivo? eu vivia em beleza?<br />
Quanto a mim mesma, sem mentir nem ser verdadeira - como<br />
naquele momento em que ontem de manhã estava sentada à mesa<br />
do café - quanto a mim mesma, sempre conservei uma aspa à<br />
esquerda e outra à direita de mim. De algum modo “como se não<br />
fosse eu” era mais amplo do que se fosse - uma vida inexistente me<br />
possuía toda e me ocupava como uma invenção. Somente na<br />
fotografia, ao revelar-se o negativo, revelava-se algo que,<br />
inalcançado por mim, era alcançado pelo instantâneo: ao revelarse<br />
o negativo também se revelava a minha presença de ectoplasma.<br />
Fotografia é o retrato de um côncavo, de uma falta, de uma<br />
ausência?<br />
Enquanto eu mesma era, mais do que limpa e correta, era<br />
uma réplica bonita. Pois tudo isso é o que provavelmente me torna<br />
generosa e bonita. Basta o olhar de um homem experimentado<br />
para que ele avalie que eis uma mulher de generosidade e graça, e<br />
que não dá trabalho, e que não rói um homem: mulher que sorri e<br />
ri. Respeito o prazer alheio, e delicadamente eu como o meu<br />
prazer, o tédio me alimenta e delicadamente me come, o doce tédio<br />
de uma lua-de-mel.<br />
Essa imagem de mim entre aspas me satisfazia, e não apenas<br />
superficialmente. Eu era a imagem do que eu não era, e essa<br />
imagem do não-ser me cumulava toda: um dos modos mais fortes<br />
é ser negativamente. Como eu não sabia o que era, então “não ser”<br />
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