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A Paixão segundo G.H. - Catraca Livre

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Mas antes rasparia da parede a granulada secura do carvão,<br />

desincrustando à faca o cachorro, apagando a palma exposta das<br />

mãos do homem, destruindo a cabeça pequena demais para o<br />

corpo daquela mulherona nua. E jogaria água e água que<br />

escorreria em rios pelo raspado da parede.<br />

Como se já estivesse vendo a fotografia do quarto depois que<br />

fosse transformado em meu e em mim, suspirei de alívio.<br />

Entrei, então.<br />

Como explicar, senão que estava acontecendo o que não<br />

entendo. O que queria essa mulher que sou? o que acontecia a um<br />

G.H. no couro da valise?<br />

Nada, nada, só que meus nervos estavam agora acordados -<br />

meus nervos que haviam sido tranqüilos ou apenas arrumados?<br />

meu silêncio fora silêncio ou uma voz alta que é muda?<br />

Como te explicar: eis que de repente aquele mundo inteiro<br />

que eu era crispava-se de cansaço, eu não suportava mais carregar<br />

nos ombros - o quê? - e sucumbia a uma tensão que eu não sabia<br />

que sempre fora minha. Já estava havendo então, e eu ainda não<br />

sabia, os primeiros sinais em mim do desabamento de cavernas<br />

calcáreas subterrâneas, que ruíam sob o peso de camadas<br />

arqueológicas estratificadas - e o peso do primeiro desabamento<br />

abaixava os cantos de minha boca, me deixava de braços caídos. O<br />

que me acontecia? Nunca saberei entender mas há de haver quem<br />

entenda. E é em mim que tenho de criar esse alguém que<br />

entenderá.<br />

É que apesar de já ter entrado no quarto, eu parecia ter<br />

entrado em nada. Mesmo dentro dele, eu continuava de algum<br />

modo do lado de fora. Como se ele não tivesse bastante<br />

profundidade para me caber e deixasse pedaços meus no corredor,<br />

na maior repulsão de que eu já fora vítima: eu não cabia.<br />

Ao mesmo tempo, olhando o baixo céu do teto caiado, eu me<br />

sentia sufocada de confinamento e restrição. E já sentia falta de<br />

minha casa. Forcei-me a me lembrar que também aquele quarto<br />

era posse minha, e dentro de minha casa: pois, sem sair desta,<br />

sem descer nem subir, eu havia caminhado para o quarto. A<br />

menos que tivesse havido um modo de cair num poço mesmo em<br />

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