ENSAIO SOBRE UM SENTIDO DE INFÂNCIA E POSSÍVEIS ...
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<strong>ENSAIO</strong> <strong>SOBRE</strong> <strong>UM</strong> <strong>SENTIDO</strong> <strong>DE</strong> <strong>INFÂNCIA</strong><br />
E <strong>POSSÍVEIS</strong> RELAÇÕES COM A DOCÊNCIA<br />
KUREK, Deonir Luís – UFPel / PPGE – FaE dikokurek@hotmail.com<br />
Eixo 10 - Formação de professores<br />
Resumo: Este texto, de cunho ensaístico, problematiza o conceito de infância tendo<br />
como referência teórica principal autores da antropologia do imaginário. Ao apresentar<br />
conceitos de teóricos deste campo, o texto procura revelar um sentido de infância ligado<br />
à imaginação. Com esta proposta de reflexão pretende-se suscitar discussões sobre a<br />
pertinência e/ou necessidade desta temática nos estudos sobre formação de professores.<br />
Palavras-chave: infância, poesia, formação.<br />
Introdução<br />
Como o disse Machado de Assis pela boca de Brás Cubas (1978, p. 17),<br />
pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez<br />
pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de<br />
volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu<br />
um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X:<br />
decifra-me ou devoro-te.<br />
Em termos gerais a idéia é a seguinte: imerso que estou em leituras para<br />
subsidiar uma problematização sobre a dor na docência, me deparo com vários<br />
conceitos e temáticas recorrentes e, cada autor ao seu modo filosofa e, em seu filosofar,<br />
eu encontro convergências. A infância é um destas temáticas, a qual pretendo<br />
problematizar neste texto. A escolhi, como impulsionadora desta escrita, por acreditar<br />
que nela estão implicados outros grandes temas e conceitos fundamentais para<br />
pensarmos a Educação e/ou, mais especificamente, a formação docente: tempo, dor,<br />
imaginação, amor, reflexão, sensação, conhecimento, emoção, pedagogia, alegria,<br />
tristeza, et all. Todos estes temas também fazem parte desta escrita. Ainda, terei de dizer<br />
algumas palavras sobre como esta temática – a infância - ou a problematização sobre ela<br />
pode levar à compreensão de conflitos vividos na docência e, portanto, pode também<br />
levar à produção de novas possibilidades práticas. Isto porque meu lugar é a filosofia da<br />
educação, que tem o papel de, como muitos defendem, refletir sobre os problemas que a<br />
realidade educacional apresenta. O entendimento sobre infância me parece um tema<br />
caro à Educação. Proponho-me, então, uma reflexão sobre um problema real.
Mas, quero alertar para a perspectiva de rompimento com a “explicação” e com<br />
uma lógica de “definição”. O que apresento é um ensaio, uma série de conexões entre<br />
teóricos e poetas e fulgurações que atravessam meus estudos sobre a dor. Não delimito<br />
territórios para o trânsito de meus pensamentos e não busco resposta final. Nesse<br />
exercício, enfim, me apoio no ponto de vista antropológico de Durand onde “nada de<br />
humano deve ser estranho” (2002, p. 40).<br />
(Des) romanceando a infância<br />
John Updike (s/d), na descrição de uma personagem, em Um mês só de<br />
domingos, assim escreveu: “era como aquelas tardes douradas e plenas de infância, que<br />
não obstante não queremos reviver, pois não queremos tornar a ser a pessoa minúscula,<br />
alérgica e sem poder que as gozava” (p. 188).<br />
Recortei e colei esta passagem, porque vejo nela a expressão de uma contradição<br />
que aparece quando, na vida adulta, nos referimos à infância: é uma bela paisagem, mas<br />
não queremos voltar lá. Mas, quando afirmamos a infância como lugar de coisas boas,<br />
imagino, queremos preservar um sentido, um estado de liberdade, que só existia na<br />
infância vivida bem como existe na vida adulta de forma imaginada. A infância<br />
concreta, temporal, é lugar de delimitações demasiadas, de não poder, assim, o que<br />
preservamos é uma imagem de infância, rememorada em momentos de solidão, a qual<br />
nos impulsionaria à criação.<br />
A infância conhece a infelicidade pelos homens. Na solidão a criança pode<br />
acalmar seus sofrimentos. Ali ela se sente filha do cosmos, quando o mundo<br />
humano lhe deixa a paz. E é assim que nas suas solidões, desde que se torna<br />
dona de seus devaneios, a criança conhece a ventura de sonhar, que será mais<br />
tarde a ventura dos poetas. Como não sentir que há comunicação entre a<br />
nossa solidão de sonhador e as solidões da infância? (BACHELARD, 2001,<br />
p. 94).<br />
É preciso, para desfazer os equívocos que podem conter enunciados cotidianos<br />
referidos a um “resgate da infância”, argumentar de forma a caracterizar a infância<br />
vivida como um lugar de dor extrema, mas que é transformado pela imaginação em<br />
lugar de encantamento. E aqui, tomo a imaginação na definição de Bachelard<br />
compartilhada por Durand (2002, p. 30): “a imaginação é dinamismo organizador, e<br />
esse dinamismo organizador é fator de homogeneidade na representação (...) muito<br />
longe de ser faculdade de ‘formar’ imagens, a imaginação é potência dinâmica que<br />
‘deforma’ as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção”. Por este caminho, percebo<br />
2
que não é ao tempo infantil que queremos retornar, nem a vida que tínhamos que<br />
queremos de volta, mas sim, queremos manter viva uma imagem potente que nos faz<br />
acreditar na possibilidade de um mundo diferente: a imagem de infância se faz<br />
necessária porque alimenta nossas utopias. A criança que fomos sofria com suas<br />
alergias e com medos do desconhecido. A criança que sonhamos nos devolve o<br />
devaneio sobre a eternidade. Nessa direção, já tocamos na temática da temporalidade. E,<br />
assim, convém afirmar que o tempo métrico da matemática não é o que fundamenta essa<br />
infância necessária que queremos preservar:<br />
Então, já não é o tempo dos homens que reina sobre a memória, nem<br />
tampouco o tempo dos santos, esses diaristas do tempo cotidiano que só<br />
marcam a vida da criança pelo nome dos pais, mas o tempo das quatro<br />
grandes divindades do céu: as estações. A lembrança pura não tem data. Tem<br />
uma estação. É a estação que constitui a marca fundamental das lembranças.<br />
Que sol ou que vento fazia nesse dia memorável? Eis a questão que dá a justa<br />
tensão da reminiscência. As lembranças tornam-se então grandes imagens,<br />
imagens engrandecidas, engrandecedoras. Associam-se ao universo de uma<br />
estação, de uma estação que não engana e que bem se pode chamar de<br />
estação total, que repousa na imobilidade da perfeição. Estação total porque<br />
todas as suas imagens exprimem o mesmo valor, porque com uma imagem<br />
particular possuímos a sua essência (BACHELARD, 2001, p. 111).<br />
Quero, com estes excertos de Bachelard, evidenciar que há um movimento de<br />
recriação do sentido de infância. Movimento necessário por certo, porque ele é<br />
impulsionador, reorganizador, como já afirmei acima. Mas este movimento não pode<br />
nos impedir de ver que a infância vivida é algo que não desejamos mais. Penso, por<br />
exemplo, numa criança que, aos quatro anos de idade, chora porque não quer que seus<br />
pais morram e tampouco ela. Ela sente medo, ela chora. Com o passar do tempo ela nem<br />
se lembrará disso, mas tenho certeza de que não gostaria de viver essa dor novamente.<br />
Da mesma forma todos nós, acredito. Se for assim, o que resta é uma imagem de<br />
infância, a qual, por contraditório que pareça, está contida no mesmo conceito de<br />
infância marcado por limitações e dores. Porém, sendo esta imagem produtora da vida,<br />
nós a acalentamos e cultuamos. Fernando Pessoa (1980, p. 144) diz, poeticamente, com<br />
mais “clareza”:<br />
A Criança Nova que habita onde vivo<br />
Dá-me uma mão a mim<br />
E a outra a tudo que existe<br />
E assim vamos os três pelo caminho que houver,<br />
Saltando e cantando e rindo<br />
E gozando o nosso segredo comum<br />
Que é o de saber por toda a parte<br />
Que não há mistério no mundo<br />
E que tudo vale a pena.<br />
3
Por este fragmento de criação poética, podemos perceber aquilo que diz<br />
Bachelard, em A poética do espaço, quando descreve o que entende por imagem e o<br />
trabalho da fenomenologia ao captá-la: “Em sua simplicidade, a imagem não tem<br />
necessidade de um saber. Ela é a dádiva de uma consciência ingênua. Em sua expressão,<br />
é uma linguagem de criança.” (2003, p. 4). Noto dessa forma, mais uma vez, como o<br />
sentido atribuído à infância está “ancorado” neste entendimento, proposto por<br />
Bachelard. Qual seja: é a poesia quem faz o trabalho de produzir imagens “infantis”. O<br />
poeta, ao produzir um poema, atinge a linguagem de criança. É um adulto expressando a<br />
infância que vive nele.<br />
Manoel Bandeira, em Vou-me embora pra Pasargada, constrói, também, uma<br />
imagem dessa saudade de um descanso infantil, de uma estação infância, onde todos<br />
encontramos aconchego: “e quando estiver cansado / deito na beira do rio / e mando<br />
chamar Mãe d’água / para me contar histórias / que no tempo de eu menino / Rosa vinha<br />
me contar” 1 .<br />
Estas produções ligam-se, não há um sonho do inconsciente reprimido, mas sim,<br />
a algo que faz parte de nossa forma de inventar razões para o viver: a imaginação. E ela<br />
não está descolada de uma consciência, ela está contida na força que impulsiona a<br />
produção de sentidos para o viver, quando o fizemos acordados, conscientes. Estas<br />
produções, enfim, seriam o que Durand (2002) chama de sonho acordado e Bachelard<br />
designa por devaneio poético.<br />
Tal é, para nós, a diferença radical entre sonho noturno e devaneio, diferença<br />
essa que pertence ao âmbito da fenomenologia: ao passo que o sonhador de<br />
sonho noturno é uma sombra que perdeu seu próprio eu, o sonhador de<br />
devaneio, se for um pouco filósofo, pode, no centro do seu eu sonhador,<br />
formular um cogito. Noutras palavras, o devaneio é uma atividade onírica na<br />
qual subsiste uma clareza de consciência. O sonhador de devaneio está<br />
presente no seu devaneio. (BACHELARD, 2001, p. 144).<br />
Tais devaneios são respostas às nossas angústias e nos trazem aconchego, e esta,<br />
talvez que seja a maior característica da produção simbólica e dá validade às nossas<br />
produções poéticas. Os devaneios não são verdade, no sentido positivo utilizado pelos<br />
cientistas, mas são necessários, justamente porque as respostas dos poetas resultam em<br />
imagens de aconchego para almas aflitas. Bachelard se expressa melhor: “a poesia tem<br />
uma felicidade que lhe é própria, independentemente do drama que ela seja levada a<br />
ilustrar” (2003, p. 14). Mas este movimento da imaginação, construindo um modo de<br />
1 Versos de Vou-me embora pra Pasargada. http://www.revista.agulha.nom.br/manuelbandeira02.html<br />
4
ser, não é racionalmente construído. A imagem é um modo primeiro de mediação com o<br />
mundo de coisas visíveis e invisíveis. Durand (2002) ao apresentar o regime diurno da<br />
imagem relaciona uma série de símbolos que teriam como fundamento convergente a<br />
percepção do tempo. De tal percepção resultariam criações simbólicas diversas sobre as<br />
mudanças e sobre a morte, posto que dar-se conta do tempo é, ao mesmo tempo, dar-se<br />
conta da finitude da vida. Numa passagem, onde está argumentando sobre produções<br />
simbólicas onde figuram animais, movimento, mudança, Durand assim se expressa:<br />
“Ora, a mudança e a adaptação ou a assimilação que ela motiva é a primeira experiência<br />
do tempo. As primeiras experiências dolorosas da infância são experiências de<br />
mudança: o nascimento, as bruscas manipulações da parteira e depois da mãe e mais<br />
tarde o desmame.” (2002, p. 74). Mais adiante, referindo-se à simbologia da queda,<br />
Durand reafirma temores entre as primeiras experiências da criança: “O movimento<br />
demasiado brusco que a parteira imprime ao recém-nascido, as manipulações e as<br />
mudanças de nível brutais que se seguem ao nascimento seriam, ao mesmo tempo, a<br />
primeira experiência de queda e ‘a primeira experiência de medo’” (Idem, p. 112). E,<br />
ainda, refletindo sobre a relação que encontra entre a dominante reflexa postural e a<br />
simbologia da queda, Durand conclui que “a queda resume e condensa os aspectos<br />
temíveis do tempo”. Teríamos, portanto, na queda, esta experiência “dolorosa<br />
fundamental” que resultaria na vertigem: “um relembrar brutal da nossa humana e<br />
presente condição terrestre” (p. 113).<br />
Até aqui temos algumas ilustrações sobre como o sentido de infância está<br />
envolvido numa complexidade de criação motivada por uma necessidade de suplantar<br />
dores vividas por meio de imagens de felicidade.<br />
A memória é uma ilha de edição 2<br />
Talvez que nossa condição seja mesmo dolorosa. Mas não nos apressemos em<br />
fazer conclusões. Quero seguir em minhas cogitações sobre o sentido de infância,<br />
defendendo sua importância, recorrendo agora a uma passagem de Bachelard, onde ele<br />
apresenta questões sobre a feminilidade referindo-se a Nietzsche. Eis as questões: “Que<br />
é que existe por baixo da máscara supermasculina de Zaratustra? Há na obra de<br />
Nietzsche, no tocante às mulheres, pequenos desprezos de baixo quilate. Sob todas essas<br />
2 Ouvi esta frase que utilizo como subtítulo na voz de Waly Salomão, no CD O Rappa: o silêncio que<br />
precede o esporro. Warner Music do Brasil, 2003.<br />
5
capas e compensações, quem nos descobrirá o Nietzsche feminino? E quem fundará o<br />
nietzscheísmo do feminino?” (BACHELARD, 2001, p. 56).<br />
Ora, o feminino defendido por Bachelard em toda a sua obra noturna está<br />
relacionado a uma das instâncias psicológicas pertencentes ao humano: a anima.<br />
Diferentemente de animus, instância com características masculinas e ligada à execução<br />
de projetos práticos, a anima é fundamental para o devaneio poético, para o sonhar, e<br />
esta “atividade” seria essencialmente feminina. “O devaneio está sob o signo de anima”,<br />
registrou Bachelard (2001, p. 59). Uma passagem mais longa pode ser esclarecedora:<br />
Num devaneio puro, que devolve o sonhador à sua serena solidão, todo ser<br />
humano, homem ou mulher, encontra o seu repouso na anima da<br />
profundidade, descendo, sempre descendo, “a encosta do devaneio”. Descida<br />
sem queda. Nessa profundidade indeterminada reina o repouso feminino. É<br />
nesse feminino, longe das preocupações, das ambições, dos projetos, que<br />
vamos conhecer o repouso concreto, o repouso que descansa todo o nosso<br />
ser. (Idem, p. 61).<br />
Então, volto à questão sobre onde se encontraria um Nietzsche feminino. A<br />
resposta que quero dar está também relacionada ao sentido de infância. Tema deste<br />
ensaio. Para isto precisamos retomar brevemente uma lógica na construção do<br />
pensamento bachelardiano. Retomamos algumas afirmações: a imagem poética pode<br />
nos devolver a infância sonhada. Num devaneio nos re-encontraríamos com uma<br />
infância imaginada que permanece em nós. A instância que impulsiona e permite o<br />
devaneio é anima. Portanto, com isso, podemos afirmar que em tais movimentos estaria<br />
implicada a possibilidade de criação. E esta estaria ligada ao feminino e ao sentido de<br />
infância como espaço de possibilidade de criação. Mais uma vez, chegaríamos à um<br />
sentido de infância imaginada. E, acredito que na leitura Das três metamorfoses” de<br />
Nietzsche poderemos encontrar uma resposta às questões de Bachelard.<br />
Assim começa o referido discurso de Zaratustra: “Três metamorfoses, nomeio-<br />
vos, do espírito: como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim,<br />
criança” (s/d, p. 43). As frases “ácidas” deste pensador designarão a fase camelo do<br />
espírito como lugar de suportação “do que há de mais pesado”. Depois de tomar para si<br />
todos os “pesadíssimos fardos” o espírito vai para o seu próprio deserto, e ali se torna<br />
leão. O camelo está sob o signo do “Tu deves”, o leão dirá “Eu quero”. O leão, no<br />
espírito, é aquele que cria a possibilidade de novos valores e com sua pujança cria “para<br />
si a liberdade de novas criações”. O espírito da suportação, quando se torna leão,<br />
6
ealizaria uma terrível conquista. Mas ainda, o espírito precisaria da criança. Por quê?<br />
Nietzsche pergunta e responde:<br />
Mas dizei, meus irmãos, que poderá ainda fazer a criança, que nem sequer<br />
pôde fazer o leão? (...) Inocência, é a criança, e esquecimento; um novo<br />
começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial,<br />
um sagrado dizer ‘sim’. Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso<br />
dizer um sagrado ‘sim’: o espírito, agora, quer a sua vontade, aquele que está<br />
perdido para o mundo conquista o seu mundo. (Idem, p. 44-45).<br />
A possibilidade de criação transita por todo o texto de Assim falou Zaratustra, e<br />
é no estado criança do espírito que a possibilidade se realiza. Pois bem, eu não quero<br />
fazer interpretações redutoras do texto de Nietzsche que é enigmático tanto quanto um<br />
evangelho, mas arrisco dizer, que há, pelas imagens escolhidas por Nietzsche, uma<br />
estreita relação entre a infância que transparece na linguagem dos poetas e a proposta<br />
deste pensador para o espírito humano. Trata-se de um dar-se conta do trágico em que<br />
habitamos e não querer permanecer nele, daí a necessidade em nós da criança que sonha<br />
e cria. “Criar”, diz Zaratustra, “essa é a grande redenção do sofrimento, é o que torna a<br />
vida mais leve. Mas, para que o criador exista, são deveras necessários o sofrimento e<br />
muitas transformações” (Idem, p. 101).<br />
Falando aos jovens, em O canto que dança, Zaratustra pede que não se assustem<br />
com ele, que continuem dançando, diz ser uma floresta, mas se não temessem a sua<br />
escuridão, também encontrariam “roseiras embaixo meus ciprestes”. E segue impelindo-<br />
nos, novamente, há uma imagem de infância. Mais precisamente um deus-criança: “E<br />
encontra, também, o pequeno deus que é o preferido dos jovens: está deitado junto da<br />
fonte, em silêncio, de olhos fechados. Em verdade, adormeceu em pleno dia, o<br />
preguiçoso! Terá andando demais caçando borboletas?” (Idem, p. 121).<br />
Da leitura destas, e de tantas outras, máximas poético-filosóficas de Nietzsche,<br />
sou levado à ousadia de dizer que há uma grande feminilidade neste pensador.<br />
Feminilidade que se revela nessa recorrência às imagens infantis, como nesta passagem,<br />
por exemplo: “E também a mim, que sou bondoso com a vida, parece-me que as<br />
borboletas e as bolhas de sabão e o que mais do gênero há entre os homens, são as que<br />
melhor conhecem a felicidade. Ver voejar essas alminhas loucas, leves e graciosas induz<br />
Zaratustra a chorar e a cantar.” (Idem, p. 57).<br />
Tais imagens seriam, na perspectiva bachelardiana, ligadas à anima, pois “é ao<br />
animus que pertencem os projetos e as preocupações, duas maneiras de não estar<br />
presente em si mesmo. À anima pertence o devaneio que vive o presente das imagens<br />
7
felizes.” (BACHELARD, 2001, p. 60-61). Por fim, também na estrutura textual<br />
nitzscheana encontramos uma relação com anima e com o feminino. Um comentário de<br />
Machado (1997, p. 21) resume esta relação:<br />
(...) ao escrever Assim falou Zaratustra, Nietzsche não está propriamente<br />
interessado em renovar ou modificar os conceitos da filosofia; seu objetivo<br />
principal, do ponto de vista da forma e da expressão, é libertar a palavra da<br />
universalidade do conceito, construindo um pensamento filosófico através da<br />
palavra poética.<br />
Assim, percebe-se em Nietzsche, também, uma valoração profunda de um<br />
sentido de infância. E temos, até o momento, convergências entre teóricos e ilustrações<br />
poéticas que reafirmam, não uma infância temporal, mas uma infância que, se está em<br />
algum lugar, está em cada um como uma vontade, e se manifesta em devaneios<br />
poéticos, os quais, por sua vez, dariam vazão a um impulso de criação necessário ao<br />
viver. Não se trata, ratifico, de uma dimensão positiva da experiência, trata-se de esferas<br />
invisíveis de desejo que fazem parte da vida humana e da criação de sentidos para ela.<br />
Ou, como escreveu Bachelard: “A conquista do supérfluo produz uma excitação<br />
espiritual maior que a conquista do necessário. O homem é uma criação do desejo, não<br />
uma criação da necessidade”. (Idem, 1999, p. 25).<br />
De posse de tais elementos, mais da poesia, talvez, do que da filosofia, quem<br />
sabe possamos pensar que nossa memória seja mesmo “uma ilha de edição”. A partir de<br />
nossas lembranças, nos permitiremos, talvez, vôos poéticos de imaginação para a<br />
criação e preservação de uma infância nunca conquistada, mas sempre presente e<br />
necessária. A infância viveria em nós pelo seu sentido de eterno recomeço. Bachelard,<br />
também afirma a necessidade da poesia neste processo:<br />
Infância na docência?<br />
Os poetas ajudam-nos a afagar as nossas felicidades de anima. Naturalmente,<br />
o poeta nada nos diz do nosso passado positivo. Mas, pela virtude da vida<br />
imaginada, o poeta acende em nós uma nova luz: nos nossos devaneios,<br />
pintamos quadros impressionistas do nosso passado. Os poetas nos<br />
convencem de que todos os nossos devaneios de criança merecem ser<br />
recomeçados” (2001, p. 99-100).<br />
A psicologia tem sido a disciplina que dá suporte às discussões sobre a infância<br />
nos cursos de formação de professores. E, na maioria das vezes, atem-se a processos de<br />
cognição. E a filosofia? A filosofia (falo isso com base nos currículos que já vi e cumpri<br />
em minha experiência profissional) tem se ocupado das discussões sobre o<br />
conhecimento, a verdade, o poder. A infância é pouco problematizada pela filosofia<br />
8
enquanto disciplina dos cursos de formação de professores. Pouco em termos históricos<br />
e menos em termos simbólicos, ou seja, na perspectiva de compreensão de um<br />
imaginário contido nesta temática.<br />
Hoje, com a grande produção de pesquisas que têm nas histórias de vida uma<br />
grande ferramenta metodológica, sou levado a crer na necessidade de atenção ao sentido<br />
de infância evidenciado neste texto. Papel que cabe a todas as disciplinas que pensam e<br />
dão suporte à formação. Porém, é preciso atentar para o fato de que não retornaremos<br />
para uma infância real, vivida, mas que nem por isso é menos importante a compreensão<br />
sobre este outro sentido de infância, o que re-anima nossos quereres. É um trabalho de<br />
reflexão que, no estudo de histórias de vida de professores, pode trazer à luz a<br />
compreensão, para o sujeito que se narra, de como é e qual é a infância que subjaz em<br />
sua vida e em suas práticas. E os poetas deveriam ser convidados a participarem destas<br />
reflexões. O poema de Mário Quintana – Recordo ainda – pode ser ilustrativo de meu<br />
pensamento:<br />
Recordo ainda... e nada mais me importa...<br />
Aqueles dias de uma luz tão mansa<br />
Que me deixavam, sempre, de lembrança,<br />
Algum brinquedo novo à minha porta...<br />
Mas veio um vento de Desesperança<br />
Soprando cinzas pela noite morta!<br />
E eu pendurei na galharia torta<br />
Todos os meus brinquedos de criança...<br />
Estrada afora após segui... Mas, aí,<br />
Embora idade e senso eu aparente<br />
Não vos iludais o velho que aqui vai:<br />
Eu quero os meus brinquedos novamente!<br />
Sou um pobre menino... acreditai!...<br />
Que envelheceu, um dia, de repente!... 3<br />
Uma problematização sobre uma infância simbólica atingiria, acredito,<br />
características de criança que se universalizam poeticamente em nossos imaginários. A<br />
criança que se admira, que pergunta “o que é”, por exemplo, é uma criança que<br />
queremos por perto, pois ela funciona como um dispositivo para o não deixar-se<br />
dominar demais, um dispositivo contra a rotina excessiva. A imagem de uma criança<br />
que faz “arte” que burla as “etiquetas” sociais, nos eleva a categoria de homens livres e<br />
é uma criança que busca novos mundos, que viaja. Não é sem razão que tanto sucesso<br />
3 Extraído de: http://www.amoremversoeprosa.com/imortais/328recordoainda.htm<br />
9
fez O pequeno príncipe de Saint-Exupéry. Também Fernando Pessoa, em seu devaneio,<br />
mostra tão bem essa completude que encontramos na infância imaginada, como uma<br />
criança que carregamos no colo. Referindo-se a um deus-menino ele assim escreveu: “O<br />
Menino Jesus adormece nos meus braços / E eu levo-o ao colo para casa.” 4<br />
Ligado que estou a estudos no campo da antropologia do imaginário, penso que<br />
uma fenomenologia das imagens pode acrescentar características menos prescritivas e<br />
racionais, e mais prospectivas e singularmente poéticas ao professorado. Esta<br />
perspectiva está referenciada em Durand que “considera a passagem da vida mental da<br />
criança ou do primitivo para o ‘adultocentrismo’ como um estreitamento, um<br />
recalcamento progressivo do sentido das metáforas.” Para este autor, “é esse ‘sentido’<br />
das metáforas, esse grande semantismo do imaginário, que é a matriz original a partir da<br />
qual todo o pensamento racional e o seu cortejo semiológico se desenvolvem.” (2002, p.<br />
31).<br />
É certo que os teóricos que apresento aqui estão ainda envolvidos numa certa<br />
mística, preconceituosa talvez por parte do instituído, pelo fato de serem ligados a um<br />
suposto estruturalismo pós-moderno. E isto acarreta em difícil penetração dos mesmos<br />
em espaços marcados por outras fundações teóricas. Mas, essa é outra discussão.<br />
Para finalizar, retomo a idéia que se pendurou no trapézio de Brás cubas. Iniciei<br />
com esta alusão, como uma forma de marcar uma tonalidade de humor que fundamenta<br />
minha escrita. Queria deixar transparecer em meu texto o sentido de infância que<br />
apresentei. Mas, devo dizer que a idéia de Brás cubas, como é do conhecimento de<br />
todos, foi a de produzir um “emplasto anti-hipocondríaco”. Espero que minhas idéias<br />
sobre o sentido de infância não sejam vistas como absurdo, como seria aquele<br />
medicamento.<br />
Referências<br />
ASSIS, M. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1978.<br />
BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.<br />
_______. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />
4 Op. Cit. p. 144.<br />
10
_______. A psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins fontes, 1999.<br />
DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia<br />
geral. São Paulo: Martins fontes, 2002.<br />
MACHADO, R. Zaratustra: tragédia nietzscheana. Rio de Janeio: Zorge Zahar, 1997.<br />
NIEZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Linoart – Cículo do livro, s/d.<br />
UPDIKE, J. Um mês só de domingos. São Paulo: Linoart - Círculo do livro, s/d.<br />
PESSOA, F. O eu profundo e os outros eus. 12ª Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,<br />
1980.<br />
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