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REVISTA - USCS

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Universidade Municipal de São Caetano do Sul - Ano X - n. 17 - jul./dez. 2009 - ISSN 1518-594X<br />

Arbitraje de inversión y America Latina<br />

Francisco González de Cossío<br />

Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?<br />

Taís Nader Marta e Henata Mariana de Oliveira Mazzoni<br />

O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito<br />

Joana Teixeira de Mello Freitas<br />

Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas<br />

Zilda Mara Consalter e Vinicius Dalazoana<br />

A relação entre dignidade humana e interesse público<br />

Zuenir de Oliveira Neves<br />

Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias:<br />

uma análise comparativa entre a legislação brasileira e a inglesa<br />

José Carlos de Carvalho Filho<br />

El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos<br />

Dora García Fernández<br />

Ius cogens<br />

Eber Betanzos<br />

<strong>REVISTA</strong><br />

Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia<br />

Dora Elvira García<br />

Conceito de minorias e discriminação<br />

Jamile Coelho Moreno<br />

A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF<br />

Carlos João Eduardo Senger e Wallace C. Dias<br />

Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?<br />

Rafael José Nadim de Lazari e Gelson Amaro de Souza<br />

A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade<br />

Thiago Felipe S. Avanci<br />

RESENHA<br />

Da estrutura à função: novos estudos da teoria do direito<br />

João Otávio Benevides Demasi


A Ratio do tipo Penal Ambiental e os Fundamentos da Constituição da República... I<br />

<strong>REVISTA</strong><br />

Antonio Celso Baeta Minhoto<br />

Coordenador Editorial<br />

ano X - n. 17 – jul./dez. 2009


II<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 16 – jan./jun. 2009<br />

Revista <strong>USCS</strong> Direito<br />

Uma publicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul<br />

Reitor<br />

Silvio Augusto Minciotti<br />

Pró-Reitores<br />

José Turíbio de Oliveira<br />

(Graduação)<br />

Eduardo de Camargo Oliva<br />

(Pós-Graduação e Pesquisa)<br />

Joaquim Celso Freire Silva<br />

(Extensão)<br />

Marcos Sidnei Bassi<br />

(Administrativo e Financeiro)<br />

Denis Donaire<br />

(Educação à Distância)<br />

Coordenador Editorial<br />

Antonio Celso Baeta Minhoto<br />

Conselho Editorial<br />

Alessandro Arthur Ramozzi Chiarottino<br />

(<strong>USCS</strong>, São Caetano do Sul, Brasil)<br />

Antonio Celso Baeta Minhoto<br />

(<strong>USCS</strong>, São Caetano do Sul, Brasil)<br />

Dora García Fernández<br />

(Universidade Anahuac, México)<br />

Emílio Suñe Llinás<br />

(Universidade Complutense de Madri, Espanha)<br />

José Maria Trepat Cases<br />

(USP, São Paulo, Brasil)<br />

José Reinaldo de Lima Lopes<br />

(USP, São Paulo, Brasil)<br />

Juan Pablo Pampillo Baliño<br />

(Escuela Libre de Derecho, México)<br />

Miguel Reale Junior<br />

(USP, São Paulo, Brasil)<br />

Ano X – n. 17 - jul./dez. 2009<br />

Nilson Tadeu Reis Campos Silva<br />

(UEM, Maringá, Brasil)<br />

Pedro Correia Gonçalves<br />

(Universidade Católica de Lisboa,<br />

Lisboa, Portugal)<br />

Sérgio Tibiriçá Amaral<br />

(UNITOLEDO,<br />

Presidente Prudente, Brasil)<br />

Tercio Sampaio Ferraz Junior<br />

(USP, São Paulo, Brasil)<br />

Vander Ferreira de Andrade<br />

(<strong>USCS</strong>, São Caetano do Sul, Brasil)<br />

Conselho Técnico<br />

Professores do Curso de Direito<br />

Coordenador do Curso de Direito<br />

Vander Ferreira de Andrade<br />

Gestor da Comissão<br />

de Publicações Acadêmicas<br />

Marcos Antonio Gaspar<br />

Jornalista Responsável<br />

Roberto Elísio dos Santos<br />

MTb 15.637<br />

Revisão<br />

Páginas & Letras Editora e Gráfica<br />

Produção e Impressão Gráfica<br />

Páginas & Letras Editora e Gráfica Ltda.<br />

Tiragem<br />

500 exemplares<br />

Revista <strong>USCS</strong> Direito<br />

Av. Goiás, 3.400<br />

São Caetano do Sul - SP - Brasil<br />

Tel. (11) 4239-3259<br />

Fax: (11) 4239-3216<br />

E-mail: revimes@uscs.edu.br<br />

A <strong>USCS</strong>, em suas revistas, respeita a liberdade intelectual dos autores, publica integralmente os originais que<br />

lhe são entregues, sem, com isso, concordar, necessariamente, com as opiniões expressas.


A Ratio do tipo Penal Ambiental e os Fundamentos da Constituição da República... III<br />

NOTA DA COORDENAÇÃO<br />

EDITORIAL<br />

A presente edição da Revista de Direito da Universidade Municipal de<br />

São Caetano do Sul será a última na modalidade impressa. Buscando um<br />

alinhamento com as práticas e os procedimentos mais atuais, a Coordenação, num<br />

trabalho conjunto envolvendo a gestão do curso e a Reitoria da Universidade,<br />

decidiu por bem veicular a revista em foco exclusivamente por meio eletrônico.<br />

Na próxima chamada de artigos (call of papers), procurar-se-á inserir as<br />

informações necessárias para que os autores e o público em geral possam acessar<br />

o endereço eletrônico da revista e, assim, viabilizar a submissão de seus artigos.<br />

A linha editorial foi mantida, havendo sempre uma atenção especial com a<br />

interdisciplinaridade e também com a transdisciplinaridade, o que, de acordo com<br />

esta Coordenação Editorial, enriquece as pesquisas dentro do universo jurídico e<br />

possibilita um debate mais extenso no âmbito do Direito que, sabidamente, enfrenta<br />

desafios contemporâneos cada vez mais amplos e profundos.<br />

Outro aspecto a ser mantido, uma característica da revista, é a busca pela<br />

divulgação de pesquisas de todas as partes do Brasil e também do exterior. Visões<br />

diferenciadas, muitas vezes acerca de um mesmo tema ou de temas semelhantes,<br />

conduzem a um tratamento igualmente mais abrangente dos assuntos estudados,<br />

o que parece ser um interessante benefício do ponto de vista científico.<br />

Para este número, com expressiva contribuição de vários autores, brasileiros<br />

e estrangeiros, constata-se a abordagem de muitos temas de interesse permanente<br />

para a área do Direito. Arbitragem, assassinos em série, dignidade humana e<br />

biodiversidade são algumas das questões abordadas nesta edição.<br />

Espera-se que os leitores aproveitem as reflexões de alto nível<br />

proporcionadas pelos artigos dos colaboradores aqui presentes, a quem se oferta<br />

um especial agradecimento.<br />

Coordenação Editorial


IV<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 16 – jan./jun. 2009


A Ratio do tipo Penal Ambiental e os Fundamentos da Constituição da República... V<br />

SUMÁRIO<br />

1. Arbitraje de inversión y America Latina<br />

Investment arbitration and Latin America<br />

Francisco González de Cossío........................................................... 7<br />

2. Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?<br />

Serial killers: a legal or psychological matter?<br />

Taís Nader Marta e Henata Mariana de Oliveira Mazzoni .................... 21<br />

3. O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado<br />

democrático de direito<br />

The moral reasonable disagreement in plural society of the<br />

democratic state<br />

Joana Teixeira de Mello Freitas .......................................................... 39<br />

4. Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas<br />

Disregard of legal entity: an analysis under three perspectives<br />

Zilda Mara Consalter e Vinicius Dalazoana ........................................ 53<br />

5. A relação entre dignidade humana e interesse público<br />

The relationship between human dignity and public interest<br />

Zuenir de Oliveira Neves ..................................................................... 67<br />

6. Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias:<br />

uma análise comparativa entre a legislação brasileira e a inglesa<br />

International marine insurance contracts of goods: a comparative analysis<br />

between english and brazilian legislation<br />

José Carlos de Carvalho Filho ............................................................ 77<br />

7. El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos<br />

The human embryo or nasciturus as subject of rights<br />

Dora García Fernández....................................................................... 91<br />

8. Ius cogens<br />

Ius cogens<br />

Eber Betanzos ................................................................................... 109


VI<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 16 – jan./jun. 2009<br />

9. Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos:<br />

exclusión y justicia<br />

Overpassing minimum moral principles in human rights:<br />

exclusion and justice<br />

Dora Elvira García ............................................................................. 117<br />

10. Conceito de minorias e discriminação<br />

Concept of minorities and discrimination<br />

Concepto de las minorías y la discriminación<br />

Jamile Coelho Moreno ....................................................................... 141<br />

11. A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF<br />

The new juridical pyramid: the unfaithful trustee prison on the STF view<br />

Carlos João Eduardo Senger e Wallace C. Dias ............................... 157<br />

12. Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás<br />

desta tendência?<br />

Exegesis about the “relativization” of res judicata: what’s behind this<br />

tendency?<br />

Rafael José Nadim de Lazari e Gelson Amaro de Souza ................. 171<br />

13. A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da<br />

biodiversidade<br />

The environmental legal reserve as a tool on effective protection<br />

of biodiversity<br />

Thiago Felipe S. Avanci .................................................................... 187<br />

RESENHA<br />

Da estrutura à função: novos estudos da teoria do direito<br />

From structure to function: new studies of the theory of law<br />

João Otávio Benevides Demasi ........................................................ 211


Arbitraje de inversión y America Latina 7<br />

1<br />

Arbitraje de inversión y America Latina<br />

Investment arbitration and Latin America<br />

FRANCISCO GONZÁLEZ DE COSSÍO<br />

GONZÁLEZ DE COSSÍO ABOGADOS, S.C. (www.gdca.com.mx) Árbitro y abogado en casos nacionales e<br />

internacionales. Profesor de Arbitraje, Arbitraje de Inversión y Arbitraje Deportivo,<br />

Universidad Iberoamericana y Escuela Libre de Derecho. Anterior Coordinador del<br />

Comité de Arbitraje de la Barra Mexicana, Colegio de Abogados. Representante alterno de México<br />

ante la Comisión de las Naciones Unidas para el Derecho Mercantil Internacional.<br />

Miembro del INSTITUTO MEXICANO DEL ARBITRAJE, LONDON COURT OF INTERNATIONAL ARBITRATION,<br />

INTERNATIONAL ARBITRATION INSTITUTE y el Comité de Arbitraje y Solución de Controversias del<br />

Artículo 2022 del Tratado de Libre Comercio para América del Norte.Árbitro del Tribunal Arbitral du<br />

Sport, Lausanne, Suiza. E-mail para correspondência: fgcossio@gdca.com.mx.<br />

ABSTRACT<br />

From a corner of international law hails a discipline which has historically caused<br />

mischief: international investment law. The last few decades have witnessed an<br />

interesting development: the channeling of disputes stemming there from through a<br />

private dispute resolution mechanism: arbitration. Albeit successful in other realms,<br />

its luck in Latin American is still an open question. And as history would have it, the<br />

(incipient) Latin American flavor is becoming a matter of concern. This paper<br />

comments on it, providing insight as to the right course of action and the implications<br />

of failing to follow it.<br />

Keywords: arbitration, international law, investment disputes.


8<br />

1. INTRODUCCIÓN 1<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

El humano produce muchas cosas. Produce arte. Produce música. Produce<br />

cultura. Produce historia. Produce inventos y objetos para satisfacer sus necesidades.<br />

En general, produce bienes y, lamentablemente, también males.<br />

Una de sus producciones más importantes son las ideas. El motivo es doble;<br />

uno filosófico y uno práctico. Primero, al hacerlo, responde a sus inquietudes más<br />

profundas. Segundo, busca soluciones a problemas que enfrenta.<br />

La importancia de esta producción no debe subestimarse. Las ideas han<br />

mostrado ser las fuerzas más importantes de la historia de la humanidad.<br />

El arbitraje de inversión es una idea –y del género práctico. Busca resolver los<br />

problemas derivados del flujo internacional de activos, los cuales han mostrado ser serios.<br />

Sin embargo, la idea tiene detractores. No sólo eso, tiene implicaciones<br />

importantes para América Latina. A continuación se tratarán.<br />

2. EL ARBITRAJE COMO MÉTODO PARA RESOLVER<br />

LAS CONTROVERSIAS DE INVERSIÓN<br />

A. ¿Porqué el arbitraje?<br />

No es claro que el arbitraje sea la solución apropiada para resolver los problemas<br />

que derivan de la inversión internacional. Tres motivos vienen a la mente. Primero,<br />

constituye un acto de delegación en manos de particulares de la solución de problemas<br />

que involucran a soberanos. Segundo, por su historia. El fenómeno ha propiciado<br />

explotación, intervenciones, uso de la fuerza, presión diplomática y política. Y la<br />

historia quiere repetirse. Tercero, los temas ventilados tienen implicaciones públicas.<br />

Al ventilar la legalidad de actos de entes públicos se afecta una sociedad. Ante ello,<br />

la utilización de un mecanismo in natura privado levanta cejas.<br />

No debe. El motivo es triple:<br />

1. La ausencia de una alternativa;<br />

2. Es un contrapeso jurídico –no político– de actos gubernamentales;<br />

3. Su ausencia resultaría en:<br />

a) Impunidad;<br />

b) Escenarios perder-perder; y<br />

c) Presión política y diplomática.<br />

Explicaré porqué.<br />

1 Esta nota se nutre de GONZÁLEZ DE COSSÍO, F. Arbitraje de Inversión, Ed. Porrúa, México, D.F., 2009.


Arbitraje de inversión y America Latina 9<br />

B. Ausencia de alternativa<br />

La plausibilidad de la disciplina obedece al counterfactual. Sin la misma,<br />

existe un universo importante de problemas que no encontrarían una solución<br />

jurídica, sino política. Y la historia muestra que las soluciones políticas han tendido<br />

a ser desafortunadas, en ocasiones bélicas. Pero inclusive sin llegar a extremos, en<br />

ausencia de un cause jurídico, la única opción sería intervencionismo, presiones<br />

diplomáticas y menos flujos internacionales. 2<br />

Un resultado en el que todos pierden.<br />

Existe cierto paralelismo entre el derecho humanitario internacional y el<br />

derecho de la inversión. No sólo porque ambos son excepciones en que otorgan<br />

derecho de acción internacional a entes privados, 3<br />

sino por que ambos encuentran<br />

su raison d’être en una (lamentable) circunstancia: el uso incorrecto del poder<br />

público. Por ello, el arbitraje es un contrapeso internacional al poder. Sin el mismo<br />

no existirían desincentivos contra cierto tipo de conducta que la historia muestra<br />

que tiende a suceder. Su ausencia dejaría un vacío: cierto tipo de delitos<br />

internacionales quedarían impunes.<br />

Es cierto que éstas preocupaciones no carecen de respuesta. Podría por<br />

ejemplo citarse la disponibilidad de una reclamación ante la Corte Internacional de<br />

Justicia. A su vez, la política y presión internacional ofrecen una alternativa<br />

realpolitik. Sin embargo, son insuficientes. El recurso ante la Corte Internacional<br />

de Justicia requiere de consentimiento, el cual el Estado anfitrión puede simplemente<br />

negar –¡y sin reproche alguno! Y la alternativa fáctica (diplomacia) tiende a no ser<br />

adecuada. Sea por que el inversionista carezca de la suficiente influencia con su<br />

Estado como para persuadirlo de llevarla acabo, 4 o no se realice con la forma,<br />

energía o diligencia que el inversionista hubiera preferido. O por que se a efectuada<br />

por motivos distintos a los méritos del caso. Es decir, con la finalidad de lograr<br />

otros fines. Y ello sin olvidar que, si bien el Estado de origen podría bajo derecho<br />

internacional consuetudinario enderezar una reclamación internacional, lo cierto es<br />

que no tienen que hacerlo. 5 Luego entonces, por técnica jurídica, es necesario que<br />

sea el interesado quien pueda recurrir.<br />

2 Admito que el nexo régimen de inversión-existencia de la inversión aún es discutido por economistas.<br />

3 Tradicionalmente, bajo derecho internacional sólo los Estados y organismos internacionales tienen<br />

derecho de acción. Las personas (físicas o morales) son destinatarios del mismo, como lo son los<br />

mares, espacio aéreo, el territorio, ríos, etcétera.<br />

4 Los motivos de ello pueden ser diversos. Por ejemplo, mientras que los grupos de interés grandes<br />

tendrán fácil acceso, los pequeños no. A su vez, el Estado cuya nacionalidad comparte el inversionista<br />

puede ser renuente a querer friccionar su relación con el Estado receptor de la inversión. Etcétera.<br />

5 Lo que es más, en ocasiones se han presentado reclamaciones internacionales por motivos que en<br />

verdad distan de tener en mente a la víctima de los actos recurridos.


10<br />

C. Beneficios accesorios<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Existen además beneficios colaterales. Uno importante es la gradual mejora<br />

del trato in genere que las autoridades dan no sólo a inversionistas extranjeros,<br />

sino a la población en general. 6 El motivo no sólo es la creciente existencia de<br />

inversión extranjera en diversas ramas, sino que es más fácil adoptar a nivel nacional<br />

prácticas profilácticas que siempre eliminen responsabilidad, que selectivamente<br />

tratar mejor a entidades con inversión foránea.<br />

Entendido lo anterior se observa cómo el derecho y arbitraje de inversión<br />

tiene una función ex ante, no sólo ex post. Y no debe menospreciarse, pues puede<br />

ser importante. La experiencia muestra que, sensibilizados de las implicaciones<br />

internacionales que cierta conducta gubernamental (estatal o municipal) puede<br />

tener, las autoridades proceden con más cuidado. Como resultado, la disciplina se<br />

constituye en un auténtico contrapeso de la utilización abusiva del poder público. 7<br />

Existen también beneficios desde la perspectiva estatal. Los Estados no<br />

sólo son importadores de capital; también exportan. Por ende, la disciplina es<br />

recíproca: obliga y protege. Obliga al Estado en tanto es destinatario de capital<br />

extranjero; y lo protege en tanto que es emisor del mismo.<br />

3. EXPERIENCIA DE AMÉRICA LATINA<br />

CON EL ARBITRAJE DE INVERSIÓN<br />

A. El pasado: Doctrinas Calvo, Drago y Cárdenas<br />

Los problemas de inversión extranjera no son nuevos. Un episodio mexicano<br />

puede refrescar la memoria. Cuando en 1862 Juárez suspendió pagos de deuda<br />

extranjera, propició la furia de España, Francia e Inglaterra, cristalizando el Tratado<br />

de Londres, que propició la intervención de 1863. Dirk Raat lo describe así: 8<br />

Con las arcas vacías, Juárez se vio obligado a decretar una suspensión de pagos<br />

de deuda extranjera por dos año. … mientras tanto, España, Francia e Inglaterra<br />

6 Lo que un experto ha denominado un “compliance pull”. (JAN PAULSSON. Enclaves of Justice,<br />

Transnational Dispute Management, June 2007, p. 12.) En sus palabras “…in Mexico … in the<br />

wake of NAFTA we are told that officials have developed the salutary instinct of avoiding conduct<br />

which might be criticized in an international forum: a direct case of compliance pull to the benefit<br />

not only of foreigners, but –perhaps more importantly– also to the benefit of local citizens. …”.<br />

7 Lo anterior no debe propiciar la idea que los beneficios son sólo del lado del inversionista; y mucho<br />

menos que el Estado siempre es el ‘malo de la película’. La experiencia internacional muestra<br />

frecuentes instancias de abuso del inversionista.<br />

8<br />

DIRK RAAT, William, Mexico, from Independence to Revolution, 1810-1910, University of Nebraska,<br />

1982, p. 146-148.


Arbitraje de inversión y America Latina 11<br />

acordaron “darle una lección a México”. Mediante el Tratado de Londres se<br />

comprometieron a intervenir para proteger sus intereses. En enero de 1863 el<br />

primer despacho desembarcó en Veracruz … bajo el comando del General Juan<br />

Prim. … El país fue ocupado por fuerzas extranjeras …<br />

[With the coffers empty, Juárez was forced to decree a two-year suspension of<br />

payments on foreign debts. … Meanwhile, Spain, France and England had<br />

agreed to “teach Mexico a lesson” by the Treaty of London undertook to<br />

intervene to project their interests. In January 1863 the first detachments<br />

landed at Veracruz … under the command of General Juan Prim. … The country<br />

was occupied with foreign forces …]<br />

Este tipo de actos se repitieron en países diversos de América latina. Ello<br />

produjo un choque no sólo de fuerzas, sino de ideas. Mientras que los extranjeros<br />

defendía que su inversión debía contar con un trato congruente con un estándar<br />

externo establecido por el derecho internacional, los Estados latinoamericanos<br />

insistían que sus propias leyes y constituciones, al garantizar tratamiento igualitario<br />

a los inversionistas extranjeros, satisfacían los requisitos del derecho internacional.<br />

Tres ideas brotaron la Doctrina Calvo, la Doctrina Drago y la Doctrina Cárdenas.<br />

América Latina dio tres respuestas al debate ideológico indicado. A<br />

continuación se resumirán.<br />

1. Doctrina Calvo<br />

La Doctrina Calvo, que lleva el nombre de su padre, Carlos Calvo, Ministro<br />

de Relaciones Exteriores de Argentina, 9 se fundamenta en dos principios: 10 (a) los<br />

Estados soberanos, estando libres y siendo independientes e iguales entre sí, gozan<br />

del derecho a estar libres de toda interferencia por parte de otros Estados, sea<br />

diplomática o por la fuerza; y (b) los extranjeros no pueden ser titulares de más<br />

derechos, privilegios o prerrogativas que aquéllos concedidos a nacionales, por lo<br />

que no pueden accionarse más que en tribunales y autoridades locales. 11<br />

De esta doctrina se derivó el instrumento que la implementa: la Cláusula<br />

Calvo, definida como “la renuncia voluntaria por un contratante particular a<br />

recurrir a la protección diplomática de su gobierno en cualquier causa<br />

9 En su libro Le Droit International (Vol. 6, 5ª edición, 1885, p. 231), en donde dice que los extranjeros<br />

que se establezcan en un país cuentan con los mismos derechos de protección que los nacionales,<br />

pero no pueden solicitar protección adicional.<br />

10<br />

SHEA, DONALD R. The Calvo Clause, A Problem of Inter-American and International Law and<br />

Diplomacy, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1955, p. 19.<br />

11 En Le droit international théorique et pratique, quinta edición, París, 1986. Citado por Shea, op. cit.<br />

p. 18.


12<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

relacionada con su contrato”. La Cláusula Calvo encontró eco en la legislación<br />

(constitucional y secundaria) en diversos países latinoamericanos. En el caso<br />

mexicano fue acogida en el artículo 27 12 y vasta legislación secundaria. 13<br />

2. Doctrina Drago<br />

La Doctrina Drago lleva el nombre de su padre, el Ministro de Relaciones<br />

Exteriores de Argentina, Luis María Drago, quien, mediante nota dirigida el 29 de<br />

diciembre de 1902 al plenipotenciario argentino en Estados Unidos, Martín García<br />

Merou, condena la intervención anglo-italo-germana en Venezuela para el cobro<br />

de ciertas deudas contractuales y públicas no satisfechas, que dio origen a un<br />

bloqueo pacífico, hundimiento de una escuadra venezolana, bombardeo de puertos<br />

y otras medidas violentas. 14 En su carta dice:<br />

…el cobro similar de los empréstitos supone la ocupación territorial; significa la<br />

supresión, o subordinación, de los gobiernos locales en los países a que se<br />

extiende […] contrariando visiblemente los principios […] proclamados por las<br />

naciones de América y muy particularmente la Doctrina Monroe, con tantos<br />

celos sostenida en tanto tiempo por Estado Unidos…<br />

El principio defendido: la deuda pública no justifica intervención armada. 15<br />

3. Doctrina Cárdenas<br />

El presidente mexicano Lázaro Cárdenas, en un discurso pronunciado el 10<br />

de septiembre de 1938, formuló una doctrina jurídica que guarda relación con estos<br />

problemas, y que algunos sostienen que es una teoría jurídica más profunda<br />

12 Fracción I del Artículo 27 de la Constitución Federal de los Estados Unidos Mexicanos, que dice<br />

“Sólo los mexicanos por nacimiento o por naturalización y las sociedades mexicanas tienen derecho<br />

para adquirir el dominio de las tierras, aguas y sus accesiones o para obtener concesiones de<br />

explotación de minas o aguas. El Estado podrá conceder el mismo derecho a los extranjeros,<br />

siempre que convengan ante la Secretaría de Relaciones en considerarse como nacionales respecto<br />

de dichos bienes y en no invocar, por lo mismo, la protección de sus gobiernos por lo que se refiere<br />

a aquéllos; bajo la pena, en caso de fallar al convenio, de perder en beneficio de la nación, los<br />

bienes que hubieren adquirido en virtud de lo mismo.”<br />

13 Artículo 2º de la Ley Orgánica de la Fracción I del artículo 27 de la Constitución y artículos 2º y 4º<br />

de su Reglamento; artículo 3º de la abrogada Ley para Promover la Inversión Mexicana y Regular la<br />

Inversión Extranjera y artículo 31 de su Reglamento; artículo 33 de la abrogada Ley de Nacionalidad<br />

y Naturalización; artículo 12 de la Ley de Vías Generales de Comunicación; en la Ley de Instituciones<br />

de Fianzas; Ley General de Instituciones y Sociedades Mutualistas de Seguros; y artículo 6º de la<br />

Ley de Pesca.<br />

14 Dicha doctrina fue expuesta también ante el Congreso Panamericano y las Conferencias de la Haya<br />

en 1917.<br />

15<br />

QUEZADA, Ernesto. La Doctrina Drago, su esencia y concepto amplio y claro, Buenos Aires, 1919, p. 4.


Arbitraje de inversión y America Latina 13<br />

escrupulosa que la Calvo y la Drago. 16 En su esencia, niega la extraterritorialidad<br />

de la ciudadanía y nacionalidad buscando simplemente suprimir de origen todas las<br />

controversias jurídicas y políticas que derivan de antaño precisamente por el efecto<br />

extraterritorial de uno y otro de ambos estatutos personales. Asevera que la<br />

ciudadanía y la nacionalidad son estatutos que deben ser territoriales, deben de<br />

carecer de extraterritorialidad. La persona (física o moral) que emigra a suelo<br />

extraño debe contar con las facilidades y garantías necesarias para adquirir el<br />

estatuto de la nacionalidad local, en absoluta similitud e igualdad con los derechos<br />

y obligaciones de los nacionales del país hospitalario. 17<br />

B. El presente<br />

En el presente, existen varios factores que acentúan la importancia del<br />

arbitraje de inversión en América Latina.<br />

1. El marco legal<br />

El arbitraje en América Latina tiene un presente importante. Como lo hace<br />

ver van den Berg: 18<br />

En el arbitraje de inversión latinoamericano los números son impresionantes: de<br />

los más de 2,600 tratados bilaterales que existen actualmente, aproximadamente<br />

el 20% incluyen a un país de la región. Adicionalmente, diversos países han<br />

concluido o se encuentran negociando Tratados de Libre Comercio con capítulos<br />

sobre inversión (ej., el Tratado de Libre Comercio entre República Dominicana,<br />

Estados Unidos y Centroamérica (CAFTA, por sus iniciales en inglés); Chile y<br />

Estados Unidos; Colombia y Estados Unidos).<br />

El ámbito interamericano muestra una rica pluralidad de instrumentos que<br />

aluden al arbitraje de inversión. Los resultados empiezan a verse. Mientras que<br />

Argentina tiene 48 casos, México tiene 18, Ecuador 14 y Venezuela 9. A su vez,<br />

Bolivia, Perú, Costa Rica y Chile están involucrados en ello. 19<br />

2. El Nacionalismo y el arbitraje de inversión<br />

Una de las cosas más importantes que hace una ideología es proveer un<br />

sentimiento de quienes somos, para luego darnos orgullo de ello. Al hacerlo se<br />

16<br />

MENDOZA, Salvador. La Doctrina de Cárdenas, antecedentes y comentarios, Ediciones Botas,<br />

México, 1939, p. 29.<br />

17 Ibid, p. 43.<br />

18<br />

GONZÁLEZ DE COSSÍO, Francisco. Arbitraje de Inversión, Ed. Porrúa, México, D.F., 2009, p. vii.<br />

19 Ver: www. unctad.org / iia-dbcases.


14<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

responde una pregunta fundamental de la teoría política: porqué debemos optar por<br />

convivir –y cómo– en lugar vivir aislados. Como dice Finlayson: 20<br />

Las ideologías no solo son maneras de pensar sobre el mundo sino maneras de<br />

estar en él. Nos dan una sensación de lo que está sucediendo, organizan nuestras<br />

percepciones de ciertas cosas y nos orientan en ciertos sentidos<br />

[Ideologies are not just ways of thinking about the world but ways of being<br />

within it. They give us a sense of what is going on, organise our perceptions of<br />

certain things and orient us in certain directions.]<br />

El nacionalismo es una ideología. 21 Desafortunadamente, la respuesta del<br />

nacionalismo es hostil hacia ‘los otros’ (quienes no son parte de ‘nosotros’). Además,<br />

es exclusionista.<br />

El nacionalismo es una ideología que obedece a factores sociales que rebasan<br />

esta nota. Lo relevante a mencionar es que el nacionalismo ha brotado en América<br />

Latina. Y ello ha tocado al arbitraje de inversión. Respetuoso de los motivos de la<br />

ideología, deseo hacer notar sus consecuencias, centrándome en dos: económicas<br />

y sociológicas.<br />

a) Efectos económicos del aislacionismo<br />

El efecto económico de optar por autarquía es el siguiente:<br />

1. Oferta: oportunidades perdidas del lado de la oferta;<br />

2. Demanda: oportunidades perdidas del lado de la demanda;<br />

3. Estado: menos crecimiento económico;<br />

4. Consumidor: menos opciones, menor diversidad de productos, menos libertad.<br />

Explicaré porqué.<br />

Aunque la autarquía financiera es una opción, visualicemos los resultados<br />

de prohibir el fenómeno.<br />

Suponiendo que fuera posible insular a cada país evitando flujos internacionales<br />

de capital, el resultado sería que algunos países tendrían más capital del que<br />

necesitan, mientras que otros tendrían menos. 22 Ello arrojaría un doble resultado.<br />

20 FINLAYSON, Alan. Nationalism, en ECCLESHALL, Robert. Political Ideologies, Routledge, London, p. 103.<br />

21 Kedourie define al nacionalismo como: “A doctrine invented in Europe at the beginning of the nineteenth<br />

century … the doctrine holds that humanity is naturally divided into nations, that nations are known by<br />

certain characteristics which can be ascertained, and that the only legitimate type of government is<br />

national self-government”. (KEDOURIE, Elie. Nationalism, Hutchinson, London, 1960, p. 12.)<br />

22 Esta primer premisa es incuestionable.


Arbitraje de inversión y America Latina 15<br />

Los países superavitarios enfrentarían un retorno decreciente de su capital, y los<br />

países con capital insuficiente mostrarían oportunidades de negocio perdidas. Esto<br />

último fomentaría apetito de capital, reflejando retornos crecientes a los ingresos<br />

marginales de inversión, los cuales, en nuestra hipótesis, estarían indisponibles.<br />

Es decir, mientras que a unos les sobrará a otros les faltará. Cuando algo<br />

sobra, su precio baja. Cuando algo escasea, su precio sube. Por ende, en un<br />

mundo ausente de intercambio de flujos internacionales se observará el (lamentable)<br />

escenario de oportunidades perdidas en ambos bandos: tanto la oferta como la<br />

demanda. Un escenario en el que nadie gana.<br />

Entendida esta realidad se percibe porqué conviene que ambos grupos de países 23<br />

comercien con capital: ambos estarán en mejores circunstancias si el capital puede<br />

moverse de un lado a otro. Así no se ‘desperdician’ oportunidades de negocio. Por ello,<br />

aunque existan dificultades, la solución no puede (no debe) ser erradicar el fenómeno.<br />

Lo anterior desde una perspectiva macro. Pero la perspectiva micro puede<br />

ser aún más persuasiva. Los beneficios del fenómeno son defendibles desde dos<br />

perspectivas: libertad y bienestar.<br />

Desde una perspectiva de libertad, es preferible que los individuos puedan<br />

mover su capital como les plazca. Desde la perspectiva de bienestar, es mejor<br />

tener opciones que carecer de las mismas. Si algo logra el comercio es que amplía<br />

oportunidades. Cuando las barreras caen, la gente de ambos lados de las fronteras<br />

incrementa su bienestar al encontrar más oportunidades para consumir diferentes<br />

tipos de productos (tanto en calidad como en precio). 24 Pueden decidir consumir<br />

productos que no han producido pagándolos con el superávit generado por los<br />

productos que han producido y que no desean consumir, si creen que ello les<br />

favorece. De no ser el caso, simplemente no lo hacen. De nuevo, más opciones.<br />

La misma lógica aplica a las finanzas internacionales. De la misma manera<br />

en que una economía puede consumir únicamente lo que produce, puede invertir<br />

únicamente lo que ahorra. Ni más; ni menos. El comercio en capital permite que<br />

los países separen su ahorro de sus opciones de inversión. Pueden invertir más de<br />

lo que ahorran mediante préstamos del extranjero, o pueden invertir menos de lo<br />

que ahorran prestando la diferencia (su superávit). Los cambios en el precio del<br />

capital asegurarán que la oferta y demanda global se conjugue eficientemente<br />

23 Deficitarios y superavitarios.<br />

24 El parangón con el comercio en bienes y servicios es no sólo obligado sino conveniente puesto que<br />

en esencia lo que está ocurriendo es justamente eso: se está comerciando con un bien. Mientras que<br />

en el caso de comercio de bienes y servicios es un producto o servicio, en el caso de inversión<br />

foránea es capital.


16<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

como ocurre con los precios de los productos importados y exportados, llevando a<br />

un desarrollo global. A un equilibrio óptimo.<br />

Debo admitir que hay quien asevera que no se ha demostrado una correlación<br />

entre la existencia de tratados y arbitraje de inversión y el fomento de la inversión. 25 El<br />

argumento merece dos respuestas. Primero, dado lo reciente del fenómeno, aún no se<br />

genera información suficiente para conclusivamente demostrar el nexo. 26 Segundo,<br />

dicho argumento empírico adolece de algo: no hay contra qué compararlo. No sabemos<br />

cuánta inversión hemos perdido por el simple hecho de que no nos hemos adherido al<br />

CIADI. Y en cambio, el argumento conceptual tiene fuerza: la comunidad internacional<br />

es sofisticada. Al momento de hacer el estudio de la viabilidad de una inversión, dentro<br />

del elemento “riesgo” factora el riesgo político, el cual es reducido mediante la<br />

disponibilidad de arbitraje de inversión. En caso de que el argumento conceptual no<br />

persuadiera al escéptico, recurriría a un empírico: las instancias de conducta estratégica<br />

por inversionistas para obtener protección de tratados. 27<br />

b) Efectos sociales del nacionalismo<br />

Un ejemplo histórico ilustra el impacto de optar por una respuesta nacionalista.<br />

El error más grave en materia de relaciones internacionales que un Presidente<br />

Estadounidense ha cometido fue la firma de la Smoot-Hawley Tariff Act de junio<br />

de 1930 que elevó los aranceles de Estados Unidos en forma importante. 28 El<br />

efecto que tuvo fue nada menos que desastrozo. Invitó retorsión de economías<br />

extranjeras llevando, lo que de otra manera hubiera sido un declive económico<br />

normal, a una depresión mundial. La reducción drástica en el comercio internacional<br />

y la actividad economía redujo la influencia de los moderados frente a los nacionalistas<br />

en Japón y pavimentó la victoria de los Nazis en Alemania en 1932. Japón invadió<br />

China en 1931, estableciendo el clima que llevó a la Segunda Guerra Mundial. 29<br />

Como lo explica un experto: 30<br />

25 Además, existen jurisdicciones que reciben inversión sin haber ratificado siquiera un sólo tratado de<br />

inversión (v.gr., Brasil).<br />

26 Aunque han existido algunos. El autor tiene conocimiento de cuatro, que arrojan resultados<br />

contradictorios o no conclusivos.<br />

27 Las cuales describo genéricamente por razones de confidencialidad.<br />

28 Esta legislación fue promulgada por motivos nacionalistas y proteccionistas.<br />

29<br />

JACKSON, John H., WILLIAM J. Davey y Alan O. SYKES, Jr., Legal Problems of International Economic<br />

Relations, Third Edition, West Publishing Co., St. Paul Minn. 1995, pgs. 4 y 38.<br />

30<br />

COOPER, Richard N. Trade Policy and Foreign Policy, U.S. Trade Policies in a Changing World<br />

Economy, Robert Stern Ed., The Massachussets Institute of Tecnology, 1987, pgs. 291-292. (“Valuable<br />

lessons were learned from the Smoot-Hawley tariff experience by the foreign policy community: the<br />

threat of tariff retaliation is not always merely a bluff; tariffs do influence trade flows negatively; a<br />

decline in trade can depress national economies; economic depression provides fertile ground for


Arbitraje de inversión y America Latina 17<br />

La experiencia de los aranceles Smoot-Hawley enseñó lecciones importantes a<br />

la comunidad política internacional: la amenaza de retorsión arancelaria no<br />

siempre es vacua; los aranceles influyen negativamente sobre los flujos de<br />

comercio; una reducción de comercio puede deprimir economías nacionales;<br />

una depresión genera tierra fértil para (pseudo) soluciones políticas radicales; y<br />

los radicales políticos con frecuencia buscan aventuras (militares) para distraer<br />

la atención de sus fracasos en la economía nacional. Las semillas de la Segunda<br />

Guerra Mundial, tanto en el Lejano Oriente como en Europa, fueron sembradas<br />

con la firma de los aranceles Smoot-Hawley.<br />

En un discurso el (entonces) Director de la Oficina de Asuntos Económicos<br />

del Departamento de Estado de Estados Unidos (Director of the Office of Economic<br />

Affaires of the Department of State) Harry Hawkins expuso: 31<br />

Hemos aprendido que, cuando un país es hambreado económicamente, su gente<br />

está más que dispuesta a seguir al primer dictador que surja y les prometa a<br />

todos empleos. Los conflictos comerciales invitan no-cooperación, sospecha,<br />

amargura. Las naciones que son enemigos económicos son improbables a<br />

permanecer como amigos por mucho tiempo.<br />

Si deseamos seguir la (aguda) advertencia del gran historiador Jorge<br />

Santayana 32 y evitar revivir las historia, debemos entender que el comercio internacional,<br />

y su fenómeno de moda – la Globalización – es positiva tanto por razones<br />

económicas como sociales. 33<br />

3. Rechazos incipientes<br />

Un resultado observable en la región al fenómeno del arbitraje de inversión<br />

es la denuncia del Convenio CIADI por Argentina, Bolivia y Ecuador.<br />

a) Argentina<br />

Argentina es actualmente parte de 48 demandas de arbitraje de inversión.<br />

Los montos son impactantes, como también lo son sus consecuencias (de prosperar).<br />

politically radical nostrums; and political radicals often seek foreign (military) adventures to distract<br />

domestic attention away from their domestic economic failures. The seeds of World War II, in both<br />

Far East and in Europe, were sown by Hoover’s signing of the Smoot-Hawley tariff.”)<br />

31 U.S. Department of State, Commercial Policy Series 74, pg. 3 (Pub. No. 2104, 1944). (“We’ve seen<br />

that when a country gets starved out economically, its people are all too ready to follow the first<br />

dictator who may rise up and promise them all jobs. Trade conflict breeds noncooperation, suspicion,<br />

bitterness. Nations which are economic enemies are not likely to remain political friends for long.”)<br />

32 Conocido por su lema: “quien desconoce la historia está condenado a revivirla”.<br />

33 Al respecto, ver GONZÁLEZ DE COSSÍO, Francisco. Estado de Derecho: Un Enfoque Económico, Ed.<br />

Porrúa, 2009, p. 82 et seq.


18<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

El origen de las demandas son las medidas que Argentina tomó en 2002 para<br />

enfrentar su crisis financiera.<br />

Mucho podría decirse al respecto. Si bien no es el lugar (ni el momento,<br />

pues muchas reclamaciones están en curso) para pronunciarse sobre la rectitud de<br />

las demandas y laudos que a la fecha existen, es válido decir que la adhesión al<br />

CIADI no es la fuente del problema, sino una solución. De no existir la opción<br />

CIADI, el resultado sería frustración, probablemente impunidad, presión política y<br />

diplomática internacional, aún más pérdida de inversión y bienestar, y ostracismo<br />

internacional. La aseveración no presupone responsabilidad. El autor no es quien<br />

para emitir una opinión sobre ello (para eso están los árbitros). Pero no dejo de ver<br />

el beneficio de que “alguien” pueda imparcialmente pasar juicio sobre ello. Y por<br />

ello aplaudo el que exista el mecanismo. La opción sería la ley de la selva. 34<br />

b) Bolivia<br />

Bolivia denunció el Convenio CIADI el 2 de mayo de 2007 dejando de ser<br />

parte el 3 noviembre de 2007. Sus motivos oficiales son que considera que el<br />

CIADI favorece a los inversionistas sobre los Estados anfitriones, que la función<br />

del Banco Mundial hace incompatible el que administre arbitrajes, la confidencialidad,<br />

los árbitros (que pueden también actuar como abogados de parte), el contenido<br />

que se la ha dado a ciertas disciplinas y que “no hay caso alguno en que el Banco<br />

Mundial haya sancionado a inversionistas por no cumplir con sus contratos”.<br />

c) Ecuador<br />

El 12 de junio de 2009 el poder legislativo de la República de Ecuador votó a<br />

favor de denunciar el Convenio CIADI, del cual era parte desde febrero de 2001.<br />

Los motivos esgrimidos son dos. Primero, para cumplir con la (recientemente creada)<br />

prohibición contenida en el artículo 422 de su Constitución que dice “no se podrá<br />

celebrar tratados o instrumentos internacionales en los que el Estado ecuatoriano<br />

ceda jurisdicción soberana a instancias de arbitraje internacional, en controversias<br />

contractuales o de índole comercial entre el Estado y personas naturales o jurídicas<br />

34 Además, existe un lado positivo. Como bien dice el dicho, no hay mal que por bien no venga. Y las<br />

crisis internacionales no son una excepción: generan conocimiento. Son fuentes de Derecho. Casos<br />

distintos pueden ser citados en apoyo de la aseveración. En el caso Argentino, los casos han versado<br />

sobre temas otrora abiertos e importantes. Por ejemplo, los (controvertidos) requisitos de jurisdicción,<br />

las cláusulas paraguas, el agotamiento de recursos locales (incluyendo los polémicos “fork in the<br />

road”), la diferenciación entre reclamaciones contractuales e internacionales, el alcance de las cláusulas<br />

de nación más favorecida, el contenido de trato mínimo, trato justo y equitativo, plena protección<br />

y seguridad, medidas equivalentes a expropiación, la responsabilidad internacional del Estado, el<br />

estado de emergencia, medidas de salvaguarda, estado de necesidad y sus consecuencias<br />

internacionales. Y esto podría ser la punta del iceberg.


Arbitraje de inversión y America Latina 19<br />

privadas…”. Segundo, para “defender la soberanía de Ecuador, el manejo de sus<br />

relaciones económicas con otros estados o empresas de otras nacionalidades”.<br />

Los intercambios en la Asamblea Nacional al ventilar la conveniencia de<br />

denunciar 35 incluyeron preocupación por los montos por los que había sido demandada.<br />

Ya desde octubre de 2007 había indicado que no aceptaría que la jurisdicción del<br />

CIADI abarcara controversias relativas al manejo de sus recursos naturales no renovables,<br />

entendiéndose por tales (pero no limitados a) recursos mineros e hidrocarburos.<br />

Irónicamente, Ecuador –si bien demandado con frecuencia– había sido<br />

victorioso en la mayoría de los casos. 36 El paso guarda consistencia con retórica<br />

nacionalista observable durante elecciones recientes.<br />

e) Canadá<br />

Pero no todo es rechazo. Canadá es un ejemplo alternativo que debe seguirse.<br />

El motivo es su trasfondo: la estructura constitucional de Canadá hace que la adhesión<br />

a un convenio internacional de tal envergadura tenga implicaciones locales importantes.<br />

Dado que Canadá está compuesto por provincias y territorios independientes, ello fue<br />

difícil, tanto jurídica como políticamente. 37 Implicó casi 20 años de negociaciones entre<br />

el gobierno federal, provincias y territorios. 38 Como resultado, el 15 de diciembre de<br />

2006 Canadá se convirtió en el signatario 155 del Convenio CIADI.<br />

C. El futuro del arbitraje de inversión<br />

George Bernard Shaw quien solía decir: ‘nunca pronostiques, y mucho menos<br />

sobre el futuro’. 39 Desobedeceré su sugerencia.<br />

El arbitraje de inversión ha llegado para quedarse. Y ello es plausible. A<br />

continuación fundamento ambas aseveraciones.<br />

Es de preverse que el éxito del arbitraje de inversión continúe no sólo en el<br />

futuro inmediato, sino el mediato. El motivo es doble: la infraestructura jurídica<br />

mundial existente y el corpus de casos y literatura.<br />

A la fecha, existen más de 2680 tratados de inversión, y los Estados siguen<br />

negociando y celebrándolos. A su vez, el CIADI nunca ha sido más exitoso. 40<br />

35 Es al legislativo ecuatoriano a quien le corresponde denunciar bajo el artículo 419 de su Constitución.<br />

36 Además que la denuncia ocurrió semanas después de una importante y publicitada victoria en una<br />

demanda por más de dos mil millones de dólares.<br />

37 Inter alia, dicho acto conlleva la necesidad de emitir una ley uniforme que facilite la aplicación y<br />

armonice las leyes canadienses en concordancia con dicha convención.<br />

38 La complejidad se magnificó dado que el Convenio CIADI carece de cláusula federal.<br />

39 La cita no es textual.<br />

40 De hecho, podría decirse que es víctima de su propio éxito.


20<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Existen casi 300 laudos de arbitraje de inversión. Y la mayoría de ellos es de la<br />

última década. Ello hace de esta materia el área más dinámica del derecho internacional.<br />

Además, constituye una rica masa crítica de conocimiento sobre la materia. Y la<br />

literatura juega un papel importante. Se observa que cada laudo es disectado y comentado<br />

por expertos en todas las esquinas del planeta–a veces en forma ardua. 41 Ello propicia<br />

una dialéctica mundial que enorgullecería a Georg Hegel, y que ha tenido como resultado<br />

la creación de una verdadera ciencia especializada.<br />

Por lo anterior, es predecible que el derecho y arbitraje de inversión no sólo<br />

permanezca con nosotros, sino que se acentúe tanto en volumen como contenido.<br />

Si el pronóstico es acertado, todos saldremos ganando.<br />

REFERENCIAS<br />

COOPER, Richard N. Trade policy and foreign policy. In: STERN, Robert M. (Ed.).<br />

US trade policies in a changing world economy. Cambridge, MA: The Massachussets<br />

Institute of Tecnology – MIT Press, 1987.<br />

DIRK RAAT, William. Mexico, from independence to revolution, 1810-1910.<br />

Lincoln, NE: University of Nebraska Press, 1982.<br />

ECCLESHALL, Robert; GEOGHEGAN, Vincent; LLOYD, Moya; MACKENZIE, Iain & WILFORD,<br />

Rick. Political ideologies: an introduction. 2. ed. London: Routledge, 1994.<br />

GONZÁLEZ DE COSSÍO, Francisco. Arbitraje de inversión. México, DF: Porrúa, 2009.<br />

______. Estado de Derecho: un enfoque económico. México, DF: Porrúa, 2007.<br />

JACKSON, John H.; DAVEY, William J. & SYKES JR., Alan O. Legal problems of<br />

international economic relations. St. Paul, MN: West Publishing Co., 1995.<br />

KEDOURIE, Elie. Nationalism. London: Hutchinson, 1960.<br />

MENDOZA, Salvador. La doctrina de Cárdenas: texto, antecedentes y comentarios.<br />

1. ed. Ciudad de México: Botas, 1939.<br />

PAULSSON, Jan. Enclaves of Justice. Transnational Dispute Management, v. 4, n.<br />

5, September, 2007.<br />

QUEZADA, Ernesto. La doctrina Drago, su esencia y concepto amplio y claro. Revista<br />

de la Universidad de Buenos Aires, tomo XLIII, p. 355 y siguientes, Buenos<br />

Aires, 1919.<br />

SHEA, Donald R. The Calvo Clause, a problem of inter-american and international<br />

law and diplomacy. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 1955.<br />

41 Expertos de diferentes jurisdicciones son tan prestos a aplaudir como a criticar laudos que distan de<br />

reflejar los paradigmas más aceptados sobre la materia.


Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 21<br />

2<br />

Assassinos em série:<br />

uma questão legal ou psicológica?<br />

Serial killers: a legal<br />

or psychological matter?<br />

TAÍS NADER MARTA<br />

Advogada; professora universitária; bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru –<br />

Instituição Toledo de Ensino – FDB/ITE; especialista em Direito Processual e em Direito<br />

Constitucional, pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. Atualmente, cursa pós-graduação<br />

stricto sensu (Mestrado em Direito), tendo como linha de pesquisa “Sistema Constitucional de<br />

Garantias”, sob a coordenação do Livre-Docente Luiz Alberto David de Araujo,<br />

no Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino – ITE, em Bauru.<br />

E-mail para correspondência: tais@barbosamarta.adv.br.<br />

HENATA MARIANA DE OLIVEIRA MAZZONI<br />

Professora universitária; bacharel em Psicologia e Direito, pela Universidade do<br />

Sagrado Coração – USC, de Bauru. E-mail para correspondência: h.mazzoni@ig.com.br.<br />

RESUMO<br />

A pessoa nasce ou se torna criminosa? Nasce ou se torna um serial killer, em razão<br />

do meio em que vive e de seus traumas de infância? Isso é um mistério na psiquiatria,<br />

e os estudiosos, em geral, ainda não conseguiram resolvê-lo nem entrar num<br />

consenso sobre ele. Entretanto, não pode ser aceita a simplista explicação de que o<br />

indivíduo nasceu assim e, não tendo pedido para nascer assim, não tem culpa e,<br />

portanto, deve ser desculpado e absolvido quando comete crimes cruéis.<br />

Palavras-chave: assassinos seriais, loucura, crueldade, psicóticos, psicopatas.<br />

ABSTRACT<br />

Can a person be born or become a criminal? Born or become a serial killer because of<br />

the environment they live and their childhood trauma? This is a mystery in psychiatry<br />

and scholars generally have failed to resolve or come to a consensus. However, it<br />

can be accepted the simplistic explanation that the individual was born that way,<br />

and not having asked to be born, would not fault and therefore should be excused<br />

and acquitted when committing vicious crimes.<br />

Keywords: serial killers, madness, cruelty, psychotic, psychopaths.


22<br />

1. INTRODUÇÃO<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

O crime é um fato tão antigo quanto o ser humano, e sempre impressionou<br />

a humanidade. Dos crimes contra a pessoa, o homicídio é um dos que se apresenta<br />

de maneira mais preocupante perante os indivíduos. Dentre todos os milhões de<br />

casos de crimes horrendos cometidos através dos séculos, existem aqueles que<br />

parecem ter vida própria. Apesar da passagem dos anos, eles continuam a manter<br />

seu fascínio sobre a imaginação coletiva e a despertar o medo atávico de todos.<br />

Por alguma razão, cada um desses casos – e as histórias que os acompanham<br />

– toca em algo nas profundezas da condição humana, talvez devido às personalidades<br />

envolvidas, à insensatez da corrupção criminal, ao persistente incômodo da<br />

dúvida sobre uma justiça que não se fez ou ao desapontamento de se saber que<br />

ninguém foi considerado culpado. De qualquer forma, os casos permanecem como<br />

mistério e deixam todos perplexos, ferindo fundo os indivíduos em suas considerações<br />

sobre eles próprios como seres humanos e sobre suas relações sociais (DOUGLAS<br />

& OLSHAKER, 2000).<br />

Existem muitos aspectos a ser analisados sobre tal tema, dentre eles a dúvida<br />

que surge: seriam os serial killers portadores de psicose, sofrendo com delírios e<br />

alucinações, ou seriam delinquentes vaidosos buscando o crime como satisfação<br />

de prazer, sofrendo então de uma psicopatia? E mais: em um ou outro caso, qual o<br />

melhor tratamento (punição) a ser dado pelo Direito?<br />

No centro do mundo misterioso e instigante do homicida serial, será encontrada<br />

a agressividade hostil, destrutiva e sádica, que se alimenta de profundos<br />

sentimentos ambivalentes, mórbidos, obsessivos, cujo alvo, no final das contas, é o<br />

próprio absoluto. Suas raízes remontam ao amor primitivo da criança, no qual estão<br />

fundidos impulsos destrutivos; remontam à época primordial em que imperava o<br />

que Freud chamou de sentimento oceânico, pelo qual a criança se sente fundida,<br />

misturada no universo e com ele identificada, numa experiência primária de<br />

onipotência narcisística. Portanto, o alvo das fantasias, das necessidades e da<br />

hostilidade destrutiva do homicida serial é o próprio absoluto. Um absoluto jamais<br />

alcançado e jamais alcançável, porque sempre procurado e perseguido por vias<br />

profundamente equivocadas e mórbidas (SÁ, 1999).<br />

Ademais, nos delinquentes, a vaidade se reveste de caracteres mórbidos,<br />

nitidamente antissociais. A vaidade mórbida assoma, pois, em todas as partes.<br />

Característica predominante na psicologia delituosa, tanto no crime individual como<br />

nas multidões delinquentes. Quando, num país qualquer, ocorrem delitos de grande<br />

repercussão, analisados pela imprensa e comentados pelo público, cria-se uma<br />

atmosfera criminógena apropriada para tentar a vaidade dos predispostos. De acordo


Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 23<br />

com Lombroso, “a vaidade profissional é maior nos delinquentes do que nos cômicos,<br />

nos literatos, nos médicos e nas mulheres elegantes” (INGENIEROS, 2003).<br />

Se a luta contra o delito vier a consistir numa organização racional dos<br />

meios preventivos, que impeçam os atos antissociais dos delinquentes, estas noções<br />

de psicologia terão utilidade em função da polícia e da justiça. A ciência criminológica<br />

começa a exercer influência sobre a evolução do Direito Penal.<br />

Ocorre que as razões para que indivíduos cometam esses crimes continuam a<br />

fascinar mais do que muitos outros, até porque assiste-se a uma sucessão interminável<br />

de assassinos e predadores sexuais que, embora possam ter algum grau de doença<br />

mental – já que não se pode, de modo deliberado, tirar outras vidas de maneira brutal<br />

e ser mentalmente saudável –, ainda assim, podem ser penalmente responsáveis, já<br />

que o fato de eventualmente possuírem alguma doença mental não significa que não<br />

saibam diferenciar o certo do errado, ou que sejam necessariamente incapazes de<br />

adequar seu comportamento e suas fantasias às regras sociais.<br />

Mas é possível também que haja alguns criminosos tão fora de si a ponto de<br />

não saberem que o que estão fazendo é errado, ou os que tendem a ter alucinações<br />

ou ilusões, mas esses tipos são fáceis de ser identificados, pois demonstram ser tão<br />

desorganizados e loucos que, em geral, são apanhados em pouco tempo.<br />

O presente artigo se propõe, por meio de uma apreciação crítica, a analisar<br />

quem são, como devem ser julgados, punidos e tratados os serial killers, além de<br />

apresentar aspectos psicológicos a eles relacionados.<br />

2. SERIAL KILLERS<br />

Os assassinos em série (serial killers) constituem um capítulo à parte na<br />

criminologia e uma dificuldade para a psiquiatria, uma vez que não se encaixam em<br />

nenhuma linha específica do pensamento. Esses casos desafiam a psiquiatria e acabam<br />

virando um duelo entre promotoria e defesa sobre a dúvida de ser o criminoso louco,<br />

meio louco, normal, anormal etc. Do ponto de vista criminológico, quando um<br />

assassino reincide em seus crimes com um mínimo de três ocasiões e com um certo<br />

intervalo de tempo entre cada um, é conhecido como assassino em série.<br />

A diferença do assassino em massa, que mata várias pessoas de uma só vez<br />

e sem se preocupar pela identidade destas, e o assassino em série é que este elege<br />

cuidadosamente suas vítimas, selecionando, na maioria das vezes, pessoas do mesmo<br />

tipo e com características semelhantes. Aliás, o ponto mais importante para o<br />

diagnóstico de um assassino em série é um padrão geralmente bem definido no modo<br />

como ele lida com seu crime. Com frequência, eles matam seguindo um determinado<br />

padrão, seja através de uma determinada seleção da vítima, seja de um grupo social


24<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

com características definidas, como prostitutas, homossexuais, policiais etc., por<br />

exemplo. As análises dos perfis de personalidade estabelecem, como estereótipo dos<br />

assassinos em série (evidentemente aceitando-se muitas exceções), homens jovens,<br />

de raça branca, que atacam preferentemente as mulheres, sendo que seu primeiro<br />

crime foi cometido antes dos 30 anos. Alguns sofreram uma infância traumática,<br />

devido a maus-tratos físicos ou psíquicos, motivo pelo qual têm tendência a isolar-se<br />

da sociedade e/ou vingar-se dela (BALLONE, 2003).<br />

Como no resto do mundo, a maioria dos assassinos em série no Brasil é<br />

constituída de homens brancos, que têm entre 20 e 30 anos, vieram de famílias<br />

desestruturadas, sofreram maus-tratos ou foram molestados quando crianças. A<br />

psicóloga clínica e forense Maria Adelaide Caires (apud CASOY, 2004: 18) apontou<br />

– ao analisar os “casos brasileiros” – alguns pontos comuns entre eles: “[...] infância<br />

negligenciada, violência sexual precoce, inabilidade escolar, sem norte, sem “casa”<br />

e sem um agente disciplinador”.<br />

Pesquisas indicam que cerca de 82% dos assassinos seriais sofreram abusos<br />

físicos, sexuais, emocionais ou foram negligenciados e abandonados quando<br />

crianças. Segundo Ilana Casoy, “é raro um (assassino serial) que não tenha uma<br />

história de abuso ou negligência dos pais. Isso não significa que toda criança que<br />

tenha sofrido algum tipo de abuso seja um matador em potencial”. Quando<br />

crianças, geralmente, os assassinos em série tiveram um relacionamento interpessoal<br />

problemático, tenso e difícil. Segundo a referida escritora, a chamada “terrível<br />

tríade” parece estar presente na infância de todo serial killer. Os elementos que<br />

compõem esta tríade são os seguintes: enurese noturna (urinar na cama) em idade<br />

avançada, destruição de propriedade alheia e crueldade com animais e outras<br />

crianças menores (CASOY, 2002).<br />

Estas frustrações, ainda segundo análises de estereótipos, introduzem os<br />

assassinos em série num mundo imaginário, melhor que seu real, onde ele revive<br />

os abusos sofridos, identificando-se, desta vez, com o agressor. Por esta razão,<br />

sua forma de matar pode se caracterizar pelo contacto direto com a vítima:<br />

utiliza armas brancas, estrangula ou golpeia, quase nunca usa arma de fogo.<br />

Seus crimes obedecem a uma espécie de ritual onde se misturam fantasias<br />

pessoais com a morte. A análise do desenvolvimento da personalidade desses<br />

assassinos seriais geralmente denuncia alguma anormalidade importante. Atos<br />

violentos contra animais, por exemplo, têm sido reconhecidos como indicadores<br />

de uma psicopatologia que não se limita a estas criaturas. Segundo o cientista<br />

humanitário Albert Schweitzer (apud BALLONE, 2003), “quem quer que tenha se<br />

acostumado a desvalorizar qualquer forma de vida corre o risco de considerar<br />

que vidas humanas também não têm importância”.


Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 25<br />

Além disso, muitos homicidas seriais têm inteligência privilegiada (Ed<br />

Kemper 1 , por exemplo, é gênio com QI superior a 140), o que se mostra paradoxal,<br />

porquanto, ao mesmo tempo em que eram inteligentes, tiveram fraco desempenho<br />

nas escolas, onde mais da metade deles não conseguiram sequer concluir o ciclo<br />

escolar, obtendo notas medíocres (BONFIM, 2004).<br />

De acordo com Casoy (2002: 16), “[...] serial killers são indivíduos que<br />

cometem uma série de homicídios durante algum período de tempo, com pelo menos<br />

alguns dias de intervalo entre eles”.<br />

A vítima representa na verdade, na maioria das vezes, um objeto de fantasia<br />

no qual o criminoso exercita seu poder e seu domínio. Também alguns serial killers<br />

cometem seus crimes motivados por ódio às mulheres, desejo de controle, dominação<br />

e vinganças reais ou algumas vezes imaginárias (CASOY, 2002).<br />

O desejo de controle e poder sobre a vítima vem, em grande parte, explicado<br />

pela violência e pelos abusos que a maioria desses indivíduos sofreu em sua infância.<br />

Quanto à sua forma de atuar, os assassinos em série se dividem em<br />

organizados e desorganizados. Organizados são aqueles mais astutos, que preparam<br />

os crimes minuciosamente, sem deixar pistas que os identifiquem. Os desorganizados,<br />

mais impulsivos e menos calculistas, atuam sem se preocupar com eventuais<br />

erros cometidos.<br />

2.1. Serial killers organizados<br />

São pessoas solitárias por se sentirem superiores e julgarem que ninguém<br />

pode ser suficientemente bom para eles. São muitas vezes casados e socialmente<br />

competentes, conseguindo – em muitos casos – bons empregos por parecerem<br />

confiáveis e aparentarem saber mais do que na realidade sabem. Para eles, o crime<br />

é um jogo: acompanham a perícia e os trabalhos da polícia; costumam observar de<br />

maneira atenta os noticiários e retornar ao local onde mataram. Ademais, costumam<br />

planejar o crime de maneira cuidadosa e carregar o material necessário para cumprir<br />

suas fantasias e, ao interagirem com a vítima, gratificam-se com o estupro e a tortura.<br />

Deixam poucas evidências no local do crime, escondem ou queimam o corpo da<br />

vítima e levam um pertence da mesma como lembrança (CASOY, 2004).<br />

1 De acordo com Newton (2005: 227), confinado em Vacaville, esse assassino serial norte-americano<br />

– que matava estudantes e admitiu que depois cortou em tiras a carne de pelo menos duas vítimas<br />

para cozinhá-las em uma panela de macarrão e devorar isso como uma forma de possuir sua presa<br />

– se uniu a um grupo de internos voluntários para gravar livros para cegos e completou mais livros<br />

que qualquer outro prisioneiro, com cerca de cinco mil horas de gravação feitas por ele.


26<br />

2.2. Serial killers desorganizados<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Também são seres solitários, mas tal característica decorre do fato de serem<br />

estranhos, esquisitos. A característica de desorganização é uma marca: são<br />

desorganizados com a casa, com o carro, com a aparência, com o trabalho, com o<br />

estilo de vida etc. São introvertidos e não possuem condição de planejar um crime<br />

de maneira eficiente. Casoy (2004) ainda descreveu as seguintes características:<br />

[...] De forma geral agem por impulso e perto de casa, usando as armas ou os<br />

instrumentos encontrados no local da ação. É comum manterem um diário<br />

com anotações sobre suas atividades e vítimas, trocam de emprego<br />

frequentemente e tentam fazer carreira militar ou similar, mas não passam no<br />

teste. É raro manter [sic] qualquer contato com a vítima antes do crime, agem<br />

de forma furiosa, gratificam-se com estupro ou mutilação post mortem e,<br />

nesse grupo, é comum encontrarmos canibais e necrófilos. Têm mínimo<br />

interesse no noticiário sobre seus crimes e deixam muitas evidências no<br />

local em que mataram (CASOY, 2004: 23).<br />

3. ASSASSINOS EM SÉRIE: PSICÓTICOS OU PSICOPATAS?<br />

A questão que se coloca, quando se fala em assassinos em série, é se seriam<br />

eles responsáveis por seus atos, ou seja, se cometeriam os crimes devido a um transtorno<br />

metal (psicose) ou por simples maldade, gosto pelo sofrimento alheio, desejo em<br />

transgredir as regras, sendo, então, nesse caso, portadores do transtorno de personalidade<br />

antissocial – TPA (também conhecidos como sociopatas ou psicopatas).<br />

Sobre esta questão, Ballone (2005) explicou que:<br />

[...] podemos dizer que o assassino em série psicótico atuaria em consequência<br />

de seus delírios e sem crítica do que está fazendo, enquanto o tipo assassino em<br />

série psicopata atuaria de acordo com sua crueldade e maldade. O psicopata<br />

tem juízo crítico de seus atos e é muito mais perigoso, devido à sua capacidade<br />

de fingir emoções e se apresentar extremamente sedutor, consegue sempre<br />

enganar suas vítimas.<br />

Evidencia-se, então, que o assassino em série tanto pode ser classificado<br />

como psicótico quanto como psicopata, sendo que, de acordo com a legislação<br />

brasileira, teria ele, em decorrência de ser considerado responsável ou não por<br />

seus atos, diferentes penalidades.<br />

O indivíduo psicótico tem como características principais alucinações e delírios.<br />

Alucinações são experiências de percepções que não têm fundamento na realidade. A


Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 27<br />

pessoa ouve, vê, sente ou cheira coisas que, na realidade, não existem. A mais comum<br />

das alucinações é a auditiva, por meio da qual a pessoa ouve vozes que se referem ao<br />

seu comportamento, criticando ou dando ordens. É importante destacar que, para os<br />

indivíduos que experimentam alucinações, estas parecem ser reais, sendo a pessoa<br />

incapaz de distinguir o que é alucinação e o que é real (HOLMES, 1997).<br />

As alucinações estão relacionadas com os sentidos, as percepções. Já os<br />

delírios são processos do pensamento do indivíduo.<br />

Em relação ao delírio, a pessoa possui crenças que são mantidas, apesar de<br />

evidências em contrário, ou seja, fazem parte apenas do pensamento do indivíduo.<br />

Dentre os delírios mais comuns, destacam-se os seguintes: delírios de perseguição,<br />

nos quais o indivíduo pensa que há pessoas espionando-o, conspirando contra ou<br />

querendo prejudicá-lo; delírios de referência, onde objetos, acontecimentos ou<br />

pessoas são percebidos como apresentando algum significado especial para a<br />

pessoa, dirigidos especificamente a ela; e delírios de identidade, onde os indivíduos<br />

acreditam ser outra pessoa. As pessoas normais também, por vezes, mantêm alguma<br />

crença que não tem base na realidade; contudo, as crenças delirantes são mais<br />

bizarras e mais resistentes a evidências contrárias do que as distorções que tais<br />

pessoas vivenciam em seu cotidiano (HOLMES, 1997)<br />

É evidente que o assassino em série não é uma pessoa normal. Mas não<br />

significa que ele não tenha consciência do que faz. Os assassinos em série, em sua<br />

maioria, são diagnosticados como portadores do transtorno de personalidade<br />

antissocial e, muito embora possam não ter domínio para controlar seus impulsos,<br />

sabem muito bem distinguir o que é certo e errado, tanto que se preocupam em não<br />

ser apanhados (BALLONE, 2005).<br />

Sobre a diferença entre o criminoso portador do transtorno de personalidade<br />

antissocial e o portador do transtorno psicótico, este sim sujeito à medida de segurança<br />

segundo a legislação brasileira, Kaplan, Sadock & Grebb (1997) consideraram<br />

que, em relação aos pacientes com transtorno de personalidade antissocial, em<br />

termos de conteúdo mental, estes sempre revelam uma ausência de delírios e<br />

outros sinais de pensamentos irracionais, demonstrando, pelo contrário, um<br />

aumentado senso de realidade, bem como uma boa inteligência verbal.<br />

Geralmente, pessoas com o referido transtorno se apresentam como normais,<br />

muitas vezes extremamente simpáticas e cativantes. Contudo, seus históricos irão<br />

revelar mentiras, fugas de casa e da escola, brigas, abuso de drogas e atividade<br />

ilegais (KAPLAN, SADOCK & GREBB, 1997). Tem-se, com isso, que a pessoa portadora<br />

do transtorno de personalidade antissocial, na maioria dos casos, em sua infância e<br />

adolescência, apresentava transtorno de conduta.


28<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Pessoas com transtorno de personalidade antissocial têm como característica,<br />

bastante acentuada, a ausência de ansiedade, culpa ou remorso. Ao cometer um<br />

crime, por mais repugnante que seja aos olhos da sociedade, elas não demonstram<br />

qualquer sentimento, a não ser o prazer. Aos olhos das outras pessoas, são tidas<br />

como indivíduos “sem coração” (HOLMES, 1994).<br />

O psicopata busca constantemente seu próprio prazer (mod.). Ele age como<br />

se tudo lhe fosse permitido. Excita-se com o risco e com o proibido. Quando mata,<br />

tem como objetivo final humilhar a vítima para reafirmar sua autoridade e realizar<br />

sua autoestima. Para ele, o crime é secundário e o que interessa, de fato, é o<br />

desejo de dominar, de sentir-se superior. De acordo com Antônio de Pádua Serafim 2<br />

(apud CASOY, 2004: 28):<br />

[...] São considerados “predadores intraespécies” que usam charme,<br />

manipulação, intimidação e violência para controlar os outros e para satisfazer<br />

suas próprias necessidades. Em sua falta de confiança e de sentimento pelos<br />

outros, eles tomam friamente aquilo que querem, violando as normas sociais<br />

sem o menor senso de culpa ou arrependimento.<br />

Marcante característica, presente nesse transtorno, é a contrariedade às<br />

normas sociais de conduta. Para esses indivíduos (psicopatas), as regras sociais<br />

não constituem uma força limitante, e a ideia de um bem comum é meramente<br />

uma abstração confusa e inconveniente, pois:<br />

[...] o transtorno de personalidade antissocial é caracterizado por atos antissociais<br />

e criminosos contínuos, mas não é sinônimo de criminalidade. Em vez disso,<br />

trata-se de uma incapacidade de conformar-se às normas sociais que envolvem<br />

muitos aspectos do desenvolvimento adolescente e adulto do paciente (KAPLAN,<br />

SADOCK & GREBB, 1997: 693).<br />

Trata-se de pessoas que buscam enganar e manipular os outros para, desse<br />

modo, obter alguma vantagem.<br />

Outra característica de pessoas portadoras do transtorno é não aprender<br />

com a punição. O indivíduo pode até ser preso, ficar anos na penitenciária, mas<br />

não vai aproveitar esse tempo para “refletir” sobre seus atos, se arrepender; muito<br />

pelo contrário, muitos vão aproveitar essa tempo para arquitetar seu próximo crime,<br />

quando em liberdade.<br />

Indivíduos com o transtorno de personalidade antissocial, por não apresentarem<br />

determinados sintomas psicológicos, como depressão, delírio, alucinações e<br />

2 Psicólogo clínico e forense.


Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 29<br />

ansiedade, geralmente não recebem o diagnóstico de problema psicológico e não<br />

são, portanto, submetidos a tratamento. Como seu comportamento normalmente é<br />

ilegal, eles tendem a ser punidos, e não tratados, o que, como se viu, demonstra<br />

pouca efetividade uma vez que não aprendem com a punição (HOLMES, 1997).<br />

Quanto às explicações há, ainda, apenas hipóteses acerca das causas do transtorno<br />

de personalidade antissocial. Para Holmes (1994: 19):<br />

É importante reconhecer que nenhuma explicação ou conjunto de evidências pode<br />

explicar todos os casos de TPA. Isto sugere que há provavelmente diferentes<br />

formas de transtorno e que pode haver mais de uma explicação correta para ele.<br />

O comportamento dos indivíduos com transtorno de personalidade antissocial<br />

é tradicionalmente explicado como consequência de fatores socais e familiares.<br />

Contudo, não podem ser descartadas as descobertas de pesquisas que indicam<br />

haver diferenças cerebrais entre psicopatas e pessoas normais (CASOY, 2002).<br />

4. DEFESA POR INSANIDADE USADA POR SERIAL KILLERS<br />

Em qualquer caso de homicídio, a primeira responsabilidade dos promotores<br />

e dos advogados é a determinação do estado mental do suspeito. Para isso, instaurase<br />

o chamado incidente de sanidade mental.<br />

O incidente de sanidade mental é instaurado quando existe a suspeita de que<br />

o acusado, em qualquer tipo de crime, possa ser doente mental. O processo<br />

fica suspenso e o acusado é submetido ao exame, até que se comprove ou se<br />

descarte essa possibilidade. No caso de haver um quadro mental que tenha<br />

relação direta com o crime cometido, o réu é isento de pena (inimputável) e a<br />

medida de segurança é aplicada, por ser o criminoso considerado perigoso. A<br />

medida de segurança prevê tempo mínimo de internação (três anos), mas não<br />

tempo máximo. A desinternação fica condicionada à cessação de<br />

periculosidade, o que pode significar prisão perpétua em alguns casos<br />

incuráveis (CASOY, 2004: 267).<br />

A eventual insanidade, frequentemente alegada na tentativa de absolver o<br />

assassino serial, quase nunca é constatada, realmente, pela psiquiatria, pois o fato<br />

de o assassino ser portador de algum transtorno de personalidade ou parafilia não<br />

faz dele um alienado mental.<br />

Além disso, o transtorno de personalidade antissocial é, por vezes, citado no<br />

caso de assassinos condenados com uma alegação de responsabilidade diminuída<br />

(SIMS, 2001). Em contrapartida a essas afirmativas citadas por Sims, Cordeiro<br />

(2003: 64) acrescentou que:


30<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Tanto Kurt Schneider (1950) como Kraeplin (1896) descreveram as tipologias da<br />

personalidade psicopáticas, não considerando o comportamento antissocial na<br />

definição de personalidade anormal, considerada apenas em termos estatísticos<br />

como um desvio da média geral. Trata-se de personalidades que provocam<br />

sofrimento nos outros e em si (geralmente em menor grau) [...]<br />

O termo abrange uma variedade de personalidades pervertidas, mas não<br />

tem significado para a formulação de uma teoria ou para a pesquisa nem facilita a<br />

comunicação clínica e a previsão. Tal conceito é apenas um juízo moral, disfarçado<br />

de diagnóstico clínico (BLACKBURN, 1988).<br />

Quando capturados, estes indivíduos costumam simular insanidade, alegando<br />

múltiplas personalidades, esquizofrenia ou qualquer coisa que os exima de<br />

responsabilidades, mas, na realidade, aproximadamente, apenas 5% 3 dos assassinos<br />

em série podem ser considerados mentalmente doentes no momento de seus crimes<br />

(BALLONE, 2003).<br />

De acordo com Michael Newton (2005: 105):<br />

[...] De fato, as estatísticas mostram que apenas 1% dos delinquentes suspeitos<br />

americanos pleiteiam insanidade no julgamento e apenas um, em cada três desses,<br />

é finalmente absolvido. Os assassinos seriais, com seu bizarro ornamento de<br />

sadismo, necrofilia e similares, parecem idealmente adequados para pleitos de<br />

insanidade, mas mesmo aqui a vantagem contra absolvição é extrema. Desde<br />

1900, nos Estados Unidos, apenas 3,6% dos serial killers identificados foram<br />

declarados incompetentes para julgamento, ou liberados por insanidade.<br />

Socialmente, os assassinos em série têm comportamento acima de qualquer<br />

suspeita, ou seja, dissimulam muito bem seu lado criminoso, criando um verdadeiro<br />

“verniz social”, como mencionado pela escritora Ilana Casoy. Isso deixa claro que<br />

eles têm consciência de que fazem algo contrário às regras sociais, sendo, portanto,<br />

difícil aceitar a alegação de inimputabilidade.<br />

Também é evidente que, nos assassinos seriais, não existe a ausência de<br />

compreensão da gravidade e das consequências de seus atos, isto explicado pela<br />

empatia, conforme mencionado pelo psiquiatra forense Brent E. Turvey (apud<br />

3 A título de exemplo, pode ser citado o caso de “Chico Picadinho”. De acordo com Casoy (2004), em<br />

seu julgamento, a defesa alegou que o motivo do crime não fora torpe, justificando que Francisco<br />

sofria de insanidade mental e seus crimes eram consequências da perturbação do réu. Alegou-se<br />

também que aquele era um homicídio simples, sem dolo, pois o motivo da retalhação do corpo da<br />

vítima não era sua ocultação, e sim o transe de perturbação mental do momento. A acusação<br />

discordou, obviamente.


Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 31<br />

CASOY, 2002). O criminoso sabe que a vítima está humilhada, amedrontada e sofrendo,<br />

pois é exatamente este resultado que eles buscam com seus atos.<br />

[...] as doenças mentais propriamente ditas (psicoses) não têm sido apontadas<br />

como causas muito frequentes de sociopatia. E, nas situações de criminalidade<br />

mais graves, essas doenças representariam 5% (STUMPFL, 1936) da sua etiologia.<br />

Em contrapartida, em cerca de 80% dos criminosos, têm sido comprovados<br />

antecedentes pessoais e familiares de psicopatia (FONSECA, 1997: 517).<br />

O sistema legal americano fornece ajuda de custo para indivíduos cujos<br />

comportamentos aberrantes tenham sido compelidos por doença mental,<br />

dispensando-os da punição como criminosos comuns. O público em geral ficou<br />

indignado, nos últimos anos, por casos como aquele do assassino presidencial, John<br />

Hinckley, em que os veredictos de “não culpado por insanidade” privaram réus da<br />

execução ou prisão e, em vez disso, consignaram-nos a instituições mentais por<br />

um prazo indefinido. As pesquisas de opinião pública revelam um consenso de que<br />

muitos, ou a maioria dos delinquentes acusados, tentam “admitir culpa e pedir<br />

clemência”, com esquemas de falsificação de insanidade, grande número deles<br />

deslizando por brechas e cumprindo um “tempo fácil”, antes de ser liberados mais<br />

uma vez para a sociedade (NEWTON, 2005).<br />

5. PENA E MEDIDA DE SEGURANÇA<br />

O homem nasceu eminentemente livre e apresenta – desde seu aparecimento<br />

sobre a Terra – duas dimensões fundamentais, que são a “sociabilidade” e a<br />

“politicidade”. Na realidade, são dois aspectos de um único fenômeno. Reforçando<br />

tal ideia, Betioli ensinou que:<br />

O homem é “sociável” e por isso tende a entrar em contato com seus semelhantes<br />

e a formar com eles certas associações estáveis; porém, começando a fazer parte<br />

de grupos organizados, ele torna-se um “político”, ou seja, membro de uma<br />

“polis”, de uma cidade, de um Estado e, como membro de tal organismo, ele<br />

adquire certos direitos e assume certos deveres (BETIOLI, 2000: 18).<br />

A origem da pena coincide com o surgimento do Direito Penal em razão da<br />

constante necessidade da existência de sanções penais em todas as épocas e em<br />

todas as culturas. O homem é obrigado a abrir mão de parcela de sua liberdade<br />

para poder usufruir da porção que manteve consigo e para garantir o bem comum.<br />

A pena é a consequência jurídica principal que deriva da infração penal. Conforme<br />

destacou Julio Fabbrini Mirabete:<br />

Nos grupos sociais primitivos, a peste, a seca e outros fenômenos naturais<br />

maléficos eram considerados manifestações divinas (totem). Para conter a ira


32<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

dos deuses, criam-se regras de proibição (sociais, religiosas e políticas), conhecidas<br />

por tabu, as quais, uma vez desobedecidas, acarretavam determinados<br />

castigos. Assim, a infração totêmica – ou a desobediência às regras tabu – deu<br />

origem ao que hoje se denomina crime e pena (MIRABETE, 2003: 35).<br />

Fazendo uma retrospectiva histórica, pode-se concluir que as penas e os<br />

castigos que o Estado impôs àqueles transgressores das normas foram evoluindo<br />

em face de um sentido maior de humanização. Cesare Beccaria preconizou – já<br />

em 1764 – que as penas desumanas e degradantes do primitivo sistema punitivo<br />

cederam seu espaço para outras, com senso mais humanitário, com maior finalidade<br />

de recuperação do delinquente:<br />

É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio<br />

deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação<br />

não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e<br />

preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o<br />

cálculo dos bens e dos males da vida (BECCARIA, 1997: 27).<br />

Desta forma, as penas corporais foram substituídas pelas penas privativas de<br />

liberdade, persistindo este objetivo de humanização das penas, ainda nos dias de hoje.<br />

A pena não tem uma definição genérica, válida para qualquer lugar e qualquer<br />

momento. Consiste em um conceito legal de cada código penal em particular, em que<br />

são elencadas sanções, cujas variações refletem as mudanças vividas pelo Estado.<br />

Penas e medidas de segurança são formas de reação penal, dirigidas aos<br />

delitos praticados no seio da sociedade. Sabe-se que ambas configuram formas de<br />

equilíbrio social e, como tal, se destinam à preservação dos bens coletivamente<br />

eleitos como relevantes à sociedade. Luiz Flávio Gomes (1990) elucidou que:<br />

Até o surgimento do positivismo italiano (século XIX, segunda parte), as penas<br />

constituíam a forma básica (senão única) de reação penal; os positivistas italianos<br />

(Lombroso, Ferri e Garofalo), no entanto, baseados no naturalismo e no<br />

determinismo, criaram e desenvolveram a ideia de que o homem criminoso deve<br />

ser tratado por meio de medidas até que alcance a cura. Duas, portanto, as<br />

fundamentais características das medidas de segurança então idealizadas: elas<br />

devem ocupar o lugar da pena que tem por fundamento a culpabilidade (os<br />

positivistas negavam a culpabilidade e, assim, preconizavam a abolição da pena)<br />

e, ademais, devem durar o tempo necessário para a cura (tempo indeterminado).<br />

Se a história do Direito Penal terminasse aí, diríamos que o único sistema de<br />

reação penal teria sido o monista, que consiste na contemplação positiva de<br />

uma consequência única ao delito: pena, baseada na culpabilidade, conforme os<br />

clássicos, ou medida de segurança, baseada na periculosidade, segundo os


Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 33<br />

positivistas italianos. Ocorre que, desde o projeto de Código Penal suíço,<br />

elaborado por Karl Stoos em 1893, ambas as formas de reação penal passaram a<br />

ser previstas conjuntamente nos Códigos Penais de incontáveis nações: aí está<br />

a origem do denominado sistema dualista ou dualismo (ou, ainda, doble via),<br />

que significava a previsão em conjunto das duas modalidades de sanção penal:<br />

pena e medida de segurança (GOMES, 1990: 257).<br />

René Ariel Dotti explicou que:<br />

A pena pressupõe a culpabilidade; a medida de segurança pressupõe a<br />

periculosidade. A pena tem seus limites mínimo e máximo predeterminados (CP,<br />

arts. 53, 54, 55, 58 e 75); a medida de segurança tem um prazo mínimo de 1 (um) a<br />

3 (três) anos, porém o máximo da duração é indeterminado, perdurando a sua<br />

aplicação enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de<br />

periculosidade (CP, art. 97, §1º); pena exige a individualização, atendendo às<br />

condições pessoais do agente e às circunstâncias do fato (CP, arts. 59 e 60); a<br />

medida de segurança é generalizada à situação de periculosidade do agente,<br />

limitando-se a duas únicas espécies: internação e tratamento ambulatorial – CP,<br />

art. 96 (DOTTI, 1986: 621).<br />

Na mesma intenção, expôs Luiz Flávio Gomes (1990) que:<br />

Penas e medidas de segurança, conceitualmente, distinguem-se porque: 1. a<br />

pena tem natureza retributivo-preventiva enquanto as medidas são só<br />

preventivas; 2. a pena baseia-se na culpabilidade, enquanto a medida, na<br />

periculosidade; 3. a pena aplica-se aos imputáveis e semi-imputáveis – as medidas<br />

não se aplicam aos imputáveis; 4. a pena é proporcional à infração – a<br />

proporcionalidade das medidas está na periculosidade; 5. a pena é fixa enquanto<br />

a medida é indeterminada; 6. a pena está voltada para o passado (crimeculpabilidade-retribuição),<br />

enquanto as medidas miram para o futuro (curaprevenção)<br />

(GOMES, 1990: 258).<br />

Desta maneira, percebe-se, dos ensinamentos acima transcritos, que, no plano<br />

didático-teórico, existem substanciais diferenças entre penas e medidas de segurança.<br />

5.1. Psicopatia no Código Penal<br />

O Código Penal brasileiro – em seu artigo 26 – estabelece que é isento de<br />

pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou<br />

retardado, não era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente capaz de entender<br />

o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.<br />

Se o indivíduo for incluso no caput do referido artigo, será considerado inimputável.<br />

O mesmo artigo 26, em seu parágrafo único, estabelece a possibilidade de semi-


34<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

imputabilidade quando o agente, em virtude de perturbação de saúde mental, ou por<br />

desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente capaz de entender<br />

o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.<br />

Sobre o sistema adotado no Brasil, conforme a regra do artigo 26 e parágrafos<br />

do Código Penal, Edilson Mougenot Bonfim (2004) esclareceu que:<br />

Os diferentes sistemas punitivos para casos onde se discute a imputabilidade<br />

penal (capacidade do agente de compreender o caráter ilícito do fato e de<br />

determinar-se de acordo com esse entendimento – ou seja, a responsabilidade<br />

penal) são os seguintes: aqueles onde as ações criminosas são imputadas ou<br />

inimputadas aos acusados, ensejando uma total irresponsabilidade criminal. E<br />

aqueles onde se aceita a chamada “região fronteiriça”, prevendo-se a semiimputabilidade,<br />

uma forma de responsabilidade penal diminuída, que permite a<br />

atenuação da pena ou a substituição da pena por uma medida de segurança<br />

consistente em tratamento médico (BONFIM, 2004: 31).<br />

Sempre que houver dúvida sobre a capacidade de imputação jurídica de um<br />

acusado, o juiz nomeia um perito para a realização de laudo. A perícia verificará o<br />

grau de entendimento e autodeterminação do agente à época dos fatos. 4<br />

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Loucura e maldade (que é uma opção humana) não são sinônimos e não<br />

podem ser assim considerados ao julgar-se um serial killer. A confusão muitas<br />

vezes verifica-se na prática porque ocorreu uma vulgarização do conceito de<br />

loucura. O que é louco? Quem é louco? “Você é louco” tornou-se expressão<br />

comum, mas, para realizar julgamentos, é preciso fazê-lo com critérios científicos,<br />

amparados na ciência.<br />

As defesas dos assassinos seriais normalmente pleiteiam a medida de<br />

segurança para seus clientes porque assim surgirá, todo ano, a possibilidade de sua<br />

soltura, já que a lei manda, em eventos como esses – caso se aplique a medida de<br />

segurança –, que se faça anualmente um exame de cessação de periculosidade.<br />

4 Sobre referido exame, a Dra. Maria Adelaide de Freitas Caires ponderou que, na atividade psicológica,<br />

envolvendo questões judiciais, o campo relacional ocorre em meio a uma interposição de fatores<br />

que, em maior ou menor grau, comprometem a disponibilidade do examinando para a avaliação. É<br />

comum ele chegar imbuído de desconfiança e, na sua grande maioria, não só chega com uma “tese”<br />

já bem articulada para provar sua inocência ou sua sanidade, como cônscio das prerrogativas legais<br />

de sua defesa (mentir/omitir informações). Além desses fatores, ele pode estar preocupado com a<br />

repercussão judicial, da qual em geral tem ciência, que o resultado do exame pode suscitar: algumas<br />

de seu interesse; outras contrárias a ele. (CAIRES, 2003: 128).


Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 35<br />

Ora, os serial killers possuem boa conversa, são convincentes e, em um<br />

desses exames, podem facilmente convencer um psiquiatra de que estão recuperados<br />

e conseguir um laudo favorável à sua soltura, até porque, se instalada a dúvida no<br />

caso concreto, esta poderá ser resolvida a seu favor. Portanto, como se vê, é um<br />

discurso falacioso dizer que a medida de segurança configura a prisão perpétua.<br />

A tendência contemporânea mundial é no sentido da plena responsabilização<br />

dos assassinos seriais, e isso é o correto do ponto de vista geral e social, uma vez<br />

que tal atitude resguarda a sociedade da presença perigosa de tais criminosos,<br />

colocando-os no cárcere, e do ponto de vista individual, tendo em vista que, ao<br />

permanecerem presos, não irão fazer mal aos outros nem a si próprios. Contudo,<br />

sabe-se que esses criminosos seriais, portadores do transtorno de personalidade<br />

antissocial, não aprendem com a punição, ou seja, de nada resolveria deixá-los por<br />

anos no cárcere, sem oferecer nenhum tratamento psicossocial, pois, como a<br />

experiência mostra, quando colocados novamente em liberdade voltam a transgredir.<br />

Não pode ser aceita a simplista explicação de que o indivíduo nasceu assim e,<br />

não tendo pedido para nascer, não teria culpa e, portanto, deveria ser desculpado e<br />

absolvido. Até porque esse “determinismo biológico” é muito perigoso, pois poderia<br />

igualmente retirar o livre-arbítrio e a responsabilidade de diversos criminosos. Se<br />

assim fosse, ninguém mais seria responsabilizado por nada. Entretanto, sabe-se que<br />

o homem é um ser pensante e com vontade, capaz de realizar escolhas e deliberações;<br />

portanto, tendo opções para agir, deve responsabilizar-se pelas escolhas.<br />

O Direito Penal funda-se na responsabilidade individual, e esta não pode ser<br />

cientificamente negada. Até porque ainda não existem tratamentos comprovados<br />

nem remédios que façam efeito para psicopatas. Agora, cabe à ciência começar a<br />

desvendá-los.


36<br />

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38<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Anotações


O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 39<br />

3<br />

O desacordo moral razoável na<br />

sociedade plural do estado<br />

democrático de direito<br />

The moral reasonable disagreement<br />

in plural society of the<br />

democratic state<br />

JOANA TEIXEIRA DE MELLO FREITAS<br />

Advogada; pós-graduada em Direito Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica<br />

de Minas Gerais – PUC/MG. E-mail para correspondência: joanamello@adv.oabmg.org.br.<br />

RESUMO<br />

O desacordo moral razoável, termo cravado pela filosofia, constitui-se perante a<br />

ausência de consenso sobre uma questão polêmica cujos argumentos antagônicos<br />

são, ambos, originados de uma conclusão racional. O presente trabalho demonstra<br />

o significado da existência do desacordo moral razoável em uma sociedade plural de<br />

um Estado democrático.<br />

Palavras-chave: desacordo moral razoável, Estado democrático de direito, pluralismo.<br />

ABSTRACT<br />

The moral reasonable disagreement is a term used by the liberal political theory that<br />

consists in the non consensus before a question which contradictory arguments are,<br />

both, originated from a reasonable conclusion. This article shows the meaning of the<br />

existence of reasonable disagreement in a plural society of a Democratic State.<br />

Keywords : moral reasonable disagreement, democratic state, plural society.


40<br />

1. INTRODUÇÃO<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

O Supremo Tribunal Federal, recentemente, foi incumbido de responder a<br />

uma questão um tanto polêmica que levantou diversas vozes na sociedade brasileira.<br />

A questão envolve uma série de argumentos a favor e outros contra a interrupção<br />

da gestação de feto anencefálico. A Arguição de Descumprimento de Preceito<br />

Fundamental – ADPF n. 54, proposta pela Confederação Nacional dos<br />

Trabalhadores na Saúde, discute a possibilidade, diante da ordem constitucional<br />

brasileira, da interrupção da gestação nos casos de fetos anencefálicos. O mérito<br />

ainda não foi julgado, mas, em decisão de sua liminar, em 1º de julho de 2004, o<br />

Ministro Relator Marco Aurélio de Mello deferiu o pedido, aceitando os argumentos<br />

da Confederação de que a gestação seria uma tortura psicológica para a genitora.<br />

Entretanto, levada ao crivo do plenário, tal decisão não persistiu. Em outubro do<br />

mesmo ano, a liminar foi cassada pelo Plenário do STF, vencidos os Ministros<br />

Marco Aurélio, Carlos Brito, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.<br />

A anencefalia é a má-formação fetal congênita em que o feto não apresenta<br />

hemisférios cerebrais ou o córtex, nem nunca apresentará. Trata-se de anomalia<br />

que resulta na inexistência de consciência, qualquer forma de cognição, vida social,<br />

comunicação e emotividade. Restam, apenas, parcialmente, algumas funções<br />

inferiores do sistema nervoso central, como a respiração, as funções vasomotoras<br />

e a medula espinhal. Mesmo assim, a expectativa de sobrevida, nesses casos, é de,<br />

no máximo, algumas horas após o parto. Essa gravidez é considerada uma gravidez<br />

de risco em que a própria saúde da gestante fica potencialmente perigosa, devido<br />

ao alto número de abortos espontâneos desses fetos. Aproximadamente, 65% dos<br />

fetos anencefálicos morrem quando ainda no útero da mãe 1 .<br />

A medicina não apresenta nenhuma solução ou qualquer tipo de intervenção<br />

que possa reverter o diagnóstico, e o exame que detecta tal anomalia é considerado<br />

praticamente infalível.<br />

Diante deste quadro, a ADPF n. 54 traz à tona duas posições opostas,<br />

construídas sobre fundamentos razoáveis. Por um lado, a posição a favor da<br />

interrupção de tal gravidez traz diversos argumentos, dentre eles a inexistência de<br />

vida humana, já que não há a formação completa do sistema nervoso; a dignidade<br />

da mãe, que passa por situação análoga à tortura; e outros que não cabe a esse<br />

1 DINIZ, Ribeiro apud BARROSO, Luiz Roberto. Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas com<br />

células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição. In: NOVELINO, Marcelo<br />

(Org.). Leituras complementares de Direito Constitucional: direitos humanos e direitos fundamentais.<br />

Salvador: Jus Podivm, 2008. p. 177.


O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 41<br />

artigo explanar. A posição contrária, avessa à interrupção da gravidez no caso de<br />

feto anencefálico, apresenta, também, seus argumentos. Seu principal fundamento<br />

é a defesa do direito à vida do feto, que não deixa de ser um potencial de vida<br />

humana, uma vez que a vida não se dá apenas com a formação saudável do sistema<br />

nervoso central, mas com a fecundação.<br />

Luiz Roberto Barroso, então, posicionando-se na questão, em artigo de sua<br />

autoria, apontou que tal polêmica se insere no que a filosofia chama de desacordo<br />

moral razoável. Não discorrendo muito sobre o assunto, o autor ensinou que “o<br />

desacordo moral razoável é aquele que tem lugar diante da ausência de consenso<br />

entre posições racionalmente defensáveis” 2 .<br />

Neste ponto, surge o interesse deste trabalho. O que se pretende é esclarecer<br />

a questão do desacordo moral razoável e a posição do Estado democrático de<br />

direito diante de questões polêmicas que sejam entendidas como tal. Já que a<br />

pluralidade é característica ontológica de um Estado democrático, seu posicionamento<br />

diante de questões que não são acolhidas por um consenso deve ser de<br />

respeito e tolerância ou de imposição para assegurar o bem comum?<br />

Para tentar responder a essa pergunta, foram trazidos a exame alguns casos<br />

considerados por se caracterizarem como desacordos morais razoáveis que<br />

aconteceram no País e no Direito comparado, além dos ensinamentos doutrinários<br />

sobre o assunto.<br />

Entretanto, antes de se chegar a esse ponto, cumpre destacar que as questões<br />

consideradas como desacordos morais razoáveis que serão tratadas nesse trabalho<br />

não são questões que versam sobre a escolha de políticas públicas, como formação<br />

da vontade do Estado (ideia de justiça, de políticas sociais, dentre outras). O que se<br />

abordará são questões mais próximas ao indivíduo, que dizem respeito a uma esfera<br />

mais íntima, ligada, mesmo, às suas concepções morais. É isso que será visto adiante.<br />

2. O DESACORDO MORAL RAZOÁVEL<br />

Em uma sociedade democrática moderna, segundo explicado por John Rawls 3 ,<br />

em seu livro O liberalismo político, é comum a existência de um pluralismo de ideias<br />

religiosas, filosóficas e morais que são incompatíveis entre si. Essas ideias, apesar de<br />

incompatíveis, não perdem seu caráter de ser razoáveis. Isso porque surgem de<br />

procedimentos que expressam princípios e concepções requeridos pela razão prática.<br />

2 Ibid., p. 180.<br />

3 RAWLS, John. El liberalismo político. Barcelona: Crítica, 2006, passim.


42<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

A origem do desacordo moral vem sendo discutida há muitos séculos. David<br />

Hume 4 , no século XVIII, argumentava que somente em condições de escassez<br />

moderada é que os conflitos morais surgem, demandando uma justa solução. Onde<br />

haja abundância, de modo que todos tenham o suficiente para satisfazer seus desejos,<br />

a justiça se tornaria uma cerimônia inútil. Conflitos morais que demandam soluções<br />

justas simplesmente não iriam surgir. Hume sugeriu que extrema escassez também<br />

eliminaria o desacordo moral. A razão é que, presumivelmente, os conflitos sobre<br />

os bens em situação tão desesperante seriam resolvidos pela força. Gutmann &<br />

Thompson 5 acrescentaram a esse argumento a incompatibilidade de valores e o<br />

entendimento incompleto como causas originárias do desacordo moral razoável.<br />

Jeremy Waldron 6 , ao explicar a teoria de Rawls, distinguiu dois modelos de<br />

desacordo, um ligado a princípios políticos e outro ligado a um desacordo filosófico<br />

sobre o bem em uma sociedade pluralista. Este último, o desacordo moral razoável,<br />

inclui desacordos entre argumentos religiosos e, também, entre concepções seculares<br />

sobre o bem, como o hedonismo, o asceticismo, o intelectualismo e vários<br />

argumentos éticos de autodesenvolvimento e de autorrealização. Assim, por<br />

exemplo, um católico liberalista pode concordar mais com o marxista cético do que<br />

com seu colega católico conservador sobre questões que envolvam o bem comum.<br />

Pode-se perceber, então, que as questões morais envolvidas em um desacordo<br />

moral estão ligadas a diversas esferas de um indivíduo. Marilena Chauí 7 apontou<br />

como elementos do senso moral de cada um a consciência de si, definindo seus<br />

próprios valores e sua própria conduta, e a percepção do outro, respeitando os<br />

valores do próximo e tolerando a sua conduta.<br />

Os desacordos ligados a princípios políticos, por sua vez, demandam critérios<br />

de maior legitimidade. Como vinculam a coletividade, requerem ser justificáveis ao<br />

máximo para que todos se submetam àquela decisão. Gutmann & Thompson 8<br />

(2000) apontaram três características de argumentos morais importantes nas<br />

decisões políticas: reciprocidade – devem ser usadas razões compartilhadas ou<br />

que poderiam ser compartilhadas pelos cidadãos; publicidade – discussões em<br />

arenas e fóruns públicos; e responsabilidade.<br />

4<br />

HUME, David apud GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Democracy and disagreement. Cambridge:<br />

Harvard University Press, 2000. p. 21.<br />

5 Ibid., p. 22.<br />

6<br />

WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. New York: Oxford University Press, 2004. p. 149-150.<br />

7<br />

CHAUÍ, Marilena apud BARROSO, Luiz Roberto. Op. cit., p. 181.<br />

8<br />

GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.


O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 43<br />

Na busca dessa legitimidade, Rawls 9 , Gutmann & Thompson 10 e Waldron 11<br />

defenderam, cada um à sua maneira e com seus argumentos, apesar de próximos,<br />

a deliberação democrática como ponto legítimo de tomada de decisões e<br />

questionaram os meios institucionais adotados, na atualidade, para tanto, como a<br />

decisão tomada pela maioria ou o controle judicial, o judicial review.<br />

Gutmann & Thompson 12 chegaram a afirmar que os princípios deliberativos<br />

podem injetar coerência moral e racionalidade no processo democrático. Ao encorajar<br />

um senso de propósito moral coletivo, a democracia deliberativa pode expressar uma<br />

concepção de bem comum mais completa possível em uma sociedade moralmente<br />

pluralista. Ademais, a deliberação pode clarear a natureza do conflito moral, ajudando<br />

a distinguir entre o moral, o amoral e o imoral, e entre compatível, os valores<br />

incompatíveis. Dessa forma, comparado a outros métodos de fazer decisões, a<br />

democracia deliberativa aumenta as chances de se chegar a políticas justificáveis.<br />

Entretanto, não é este o foco do presente trabalho. Pretende-se abordar o<br />

desacordo moral razoável, desacordo entre concepções morais, filosóficas e, até,<br />

religiosas dos indivíduos da coletividade; questões mais próximas ao indivíduo.<br />

Quando esse desacordo é enfrentado pelo Estado democrático, interessa saber se<br />

ele deve decidir em favor de uma posição ou permitir que cada um siga o seu<br />

próprio entendimento. Isso porque é certo que a decisão impositiva tomada pelo<br />

Estado vincula todos, tanto aqueles que concordam com a posição tomada como<br />

aqueles que lhe são contrários. Não interessa, aqui, discorrer sobre tomadas de<br />

decisões políticas e suas fontes de legitimidade.<br />

Entende-se, com Luiz Roberto Barroso 13 , que são necessários consensos<br />

mínimos em uma sociedade e que estes devem ser guardados pela Constituição de<br />

um Estado. Direitos essenciais ao funcionamento de um regime democrático, como<br />

a dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais, participação popular não<br />

podem ser subtraídos dos órgãos deliberativos que decidem pela vontade da maioria,<br />

uma vez que acabam garantindo o próprio espaço do pluralismo político. No entanto,<br />

o que se quer abordar são questões que estão longe desses chamados consensos<br />

mínimos e que envolvem o indivíduo em sua esfera de vida particular.<br />

9<br />

RAWLS, John. Op. cit., passim.<br />

10<br />

GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.<br />

11<br />

WALDRON, Jeremy. Op. cit., passim.<br />

12<br />

GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.<br />

13<br />

BARROSO, Luiz Roberto. Op. cit., p. 200.


44<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

2.1. Exemplos atuais e reais do desacordo moral razoável<br />

Na introdução deste trabalho, inseriu-se o caso da interrupção da gestão de<br />

feto anencefálico que, hoje, aguarda resolução no Supremo Tribunal Federal. Como<br />

demonstrado, o caso traz duas posições razoáveis, pois construídas por princípios<br />

da razão, mas que levam a soluções diametralmente diversas.<br />

Além desse caso, o Supremo Tribunal Federal decidiu, na Ação Direta de<br />

Inconstitucionalidade n. 3.510, pela constitucionalidade da Lei n. 11.105, de 2005, a<br />

chamada Lei de Biossegurança. Esse foi um assunto que levantou diversas vozes<br />

opostas, cada qual com seus argumentos moralmente razoáveis. A referida lei<br />

disciplina a pesquisa com células-tronco embrionárias, autorizando o uso daquelas<br />

obtidas de embriões humanos, produzidos mediante fertilização in vitro, que não<br />

foram transferidos para o útero materno, após o consentimento dos genitores e a<br />

adequação a diversos requisitos impostos na lei.<br />

Por um lado, havia os argumentos a favor da constitucionalidade da lei, que<br />

afirmavam não serem aqueles embriões vidas humanas, uma vez que não seriam,<br />

nunca, implantados no útero materno, condição sine qua non para a formação<br />

humana. Levantavam, ainda, a importância dessas pesquisas e o bem que elas<br />

poderiam atingir a inúmeras pessoas que sofrem de diversas doenças e que poderiam<br />

se beneficiar do uso de células-tronco. A posição oposta, contra o uso das células<br />

embrionárias, defendia o direito à vida daqueles embriões que seriam potenciais de<br />

vida humana, destacando, também, o perigo que essas pesquisas poderiam gerar,<br />

como a clonagem humana e a seleção da espécie.<br />

Por fim, o Supremo acolheu a primeira posição, declarando a constitucionalidade<br />

da lei. Concorda-se, mais uma vez, com Luiz Roberto Barroso 14 ao afirmar<br />

que o Congresso Nacional, com a edição da referida lei, permitiu o respeito ao<br />

pluralismo, isto é, a autonomia de cada um, já que não obrigou ou alienou a<br />

participação dos genitores no processo, mas, ao contrário, determinou como requisito<br />

do uso das células embrionárias em pesquisas o seu consentimento. Assim, cada<br />

um está apto a agir de acordo com sua moral pessoal.<br />

A Suprema Corte Norte-Americana também já se deparou com casos que<br />

envolvessem desacordo moral razoável. Em 1965, julgou o caso Griswold v.<br />

Connecticut 15 , que se tornou um precedente na Corte. O caso envolvia uma lei do<br />

Estado americano de Connecticut, que proibia o uso de contraceptivos. A lei<br />

14 Ibid., p. 202.<br />

15 US Supreme Court. Griswold v. Connecticut. 381 U.S. 479, 1965.


O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 45<br />

determinava como crime o uso de qualquer remédio, artigo medicinal ou instrumento<br />

com o propósito de prevenção contraceptiva.<br />

A Suprema Corte julgou pela inconstitucionalidade da lei, fundamentandose<br />

na proteção constitucional ao direito à privacidade, inserido na garantia do devido<br />

processo legal da 14ª Emenda, que assim dispõe:<br />

[...] Nenhum Estado fará ou imporá nenhuma lei que restrinja os privilégios ou<br />

imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer<br />

pessoa de sua vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal ou<br />

negar qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis. (Tradução<br />

da autora.). 16<br />

Essa foi uma decisão que valorizou a liberdade do indivíduo de qualquer<br />

imposição arbitrária e limitações sem propósitos. Garantiu-se, assim, que a decisão<br />

de planejamento familiar de um casal cabe exclusivamente a este, sendo assunto<br />

privado do casal com seu médico.<br />

Em um momento mais recente, a Suprema Corte Americana julgou o caso<br />

Lawrence v. Texas 17 . Lawrence e Garner, 55 e 31 anos, respectivamente, à época,<br />

homossexuais, foram presos, em 1998, em Houston, Texas, por praticarem atos sexuais<br />

consensuais íntimos no interior de sua casa. Informado por uma denúncia anônima, o<br />

xerife, dentro do apartamento de Lawrence, os prendeu e os enquadrou na lei texana<br />

que proibia certas formas de contatos sexuais íntimos entre membros do mesmo<br />

sexo. A Corte declarou que o estatuto texano não possuía nenhum legítimo interesse<br />

que pudesse justificar sua intromissão na vida pessoal e privada do indivíduo.<br />

Este caso é alarmante, já que muito recente, e, portanto, talvez leve ao<br />

extremo radical de imposição de um argumento moral por parte do Estado texano.<br />

Essa extremidade poderia até descaracterizar o caso como desacordo moral,<br />

levando-o ao conceito de rigorismo moral por parte do Estado, sendo este o polo<br />

extremo, oposto ao laxismo moral, da conduta moral correta. No entanto, presta<br />

ilustrar uma questão que envolve, ainda hoje, desacordo (a igualdade entre casais<br />

homossexuais e heterossexuais). Em uma sociedade pluralista, como a do Texas,<br />

nos Estados Unidos, há espaço para argumentos contra e a favor dessa igualdade.<br />

16 “No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens<br />

of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due<br />

process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws”.<br />

UNITED STATES OF AMERICA. The Constitution of the United States, 1868. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2009.<br />

17 US Supreme Court. Lawrence v. Texas. 381 U.S. 479, 2003.


46<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Porém, o que não parece razoável é a intromissão do Estado na esfera mais íntima<br />

dos indivíduos para impor o seu posicionamento, mesmo que este seja o da maioria.<br />

Tal ação é incompatível com um Estado democrático, que não subsiste sem o<br />

espaço para a liberdade e a igualdade dos seus cidadãos.<br />

São vários casos, em todo o mundo, que abarcam desacordos morais<br />

razoáveis de questões próximas ao indivíduo. Outro exemplo foi a edição da lei<br />

francesa, publicada em 2004, que proibiu o uso de véus islâmicos nas escolas da<br />

França (e de outros artigos religiosos distintivos). A questão levantou tal revolta no<br />

mundo mulçumano que resultou em um sequestro, no Iraque, de repórteres franceses,<br />

com a exigência da revogação da referida lei para libertá-los. A lei entrou em vigor<br />

próximo ao Dia Internacional da Mulher e foi justificada pelo então Presidente<br />

Jacques Chirac, que declarou que as escolas não são lugares de promoção ou<br />

refutação de qualquer religião e que a lei estava baseada nos princípios da laicidade<br />

e nas fundações da República Francesa 18 .<br />

O uso do véu para as jovens mulçumanas é sustentado por um dever religioso<br />

muito forte. Para algumas, pode ser, sim, instrumento de subordinação, mas, para<br />

outras, que de fato creem nas consequências religiosas e morais de seu não uso,<br />

em sua comunidade, consiste em algo muito sério. Mais uma vez, trata-se de uma<br />

imposição estatal de um argumento moral razoável, construído por princípios de<br />

racionalidade, que suprimem e vinculam aqueles que se situam na posição contrária,<br />

que também é construída por princípios da racionalidade (mesmo que advenham<br />

de concepções religiosas, já que esse fato não exclui o caráter razoável de seus<br />

argumentos, segundo Rawls 19 ) e, portanto, um argumento moral razoável.<br />

O que se percebe, nesses últimos casos apontados, é o impacto do<br />

posicionamento do Estado quando este impõe um determinado argumento moral<br />

razoável em detrimento de outro, sem que haja justificação para aqueles que serão<br />

submetidos e vinculados a essa imposição. Democratas procedimentalistas e<br />

constitucionalistas concordam, como apontaram Gutmann & Thompson 20 , que as<br />

instituições democráticas não são justificadas, a não ser que rendam, geralmente,<br />

resultados moralmente aceitáveis. Instituições democráticas que produzem políticas<br />

que negam a alguns cidadãos liberdade de expressão ou outra oportunidade básica<br />

de viver uma vida decente devem ser rejeitadas com base em argumentos morais.<br />

A possibilidade dessa imposição estatal, diante de desacordos morais<br />

razoáveis, é o que será analisado em seguida.<br />

18 DREYER, Diogo. A França sem o véu. In: Portal Aprende Brasil, 2004. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2009.<br />

19 RAWLS, John. Op. cit., passim.<br />

20 GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.


O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 47<br />

3. A POSSIBILIDADE DE SUBSISTÊNCIA DO<br />

DESACORDO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO<br />

Primeiramente, buscando um conceito, Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e<br />

Paulo Gustavo Branco explicaram que se entende como Estado democrático de<br />

direito a organização política em que o poder emana do povo, que o exerce<br />

diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e<br />

periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício de<br />

mandatos periódicos, como proclama, dentre outras, a Constituição brasileira. Mais<br />

ainda, segundo os autores, já no plano das relações concretas entre o Poder e o<br />

indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de direito que se empenha em<br />

assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e<br />

políticos, mas também e, sobretudo, dos direitos econômicos, sociais e culturais,<br />

sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos 21 . Acrescentase<br />

o caráter do império objetivo da lei que determina a submissão da sociedade<br />

civil e do Estado à lei objetiva e válida para todos, além de estabelecer as competências<br />

das autoridades estatais, legitimando suas ações.<br />

Ademais, os autores acima mencionados trouxeram como um exemplo de<br />

norma que abarca os princípios que envolvem o conceito de Estado de democrático<br />

de direito o artigo I-2º da Constituição da União Europeia, que assim dispõe:<br />

A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade,<br />

da democracia, da igualdade, do Estado de Direito e do respeito dos direitos,<br />

incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são<br />

comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo,<br />

a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre<br />

mulheres e homens 22 .<br />

Percebe-se, com esse dispositivo, que a democracia moderna parte do<br />

pressuposto da pluralidade quando garante a legitimidade da decisão por maioria,<br />

mas, ao mesmo tempo, resguarda os direitos da minoria. E assim o faz a Constituição<br />

brasileira quando institui, como fundamento, a soberania popular e os meios de<br />

tomada de decisão pelo critério da representação, além de assegurar a participação<br />

popular por diversas maneiras.<br />

São esses, aliás, traços essenciais da democracia moderna: a representação<br />

e a participação. Rodolfo Pereira ensinou que:<br />

21 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires & MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de<br />

Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 149.<br />

22 UNIÃO EUROPEIA. Tratado que estabelece uma Constituição para a União Europeia, 2004. Disponível<br />

em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2009.


48<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

[...] a função representativa, por um lado, associa-se, desde sua origem, à dinâmica<br />

da representação dos interesses e, com isso, tende a reconhecer e garantir o<br />

pluralismo ínsito às sociedades atuais. Continua, dizendo que a função<br />

participativa, por seu turno, prende-se desde as origens às teses da vontade<br />

pública/geral e, portanto, tende a estimular [...] ilhas de consenso necessárias ao<br />

encaminhamento, processamento e solução das divergências 23 .<br />

John Rawls 24 abordou o tema, afirmando ser o pluralismo razoável um<br />

resultado inevitável de instituições livres. Assim, a pluralidade será sempre um<br />

traço de um regime democrático legítimo. Segundo o referido autor, faz parte da<br />

tradição do pensamento democrático a concepção das pessoas como livres e iguais.<br />

A ideia básica é que, em virtude de suas faculdades morais (uma capacidade para<br />

um sentido da justiça e para uma concepção do bem) e das faculdades da razão<br />

(de juízo, pensamento e as inferências vinculadas com essas faculdades), as pessoas<br />

são livres. A posse dessas faculdades em grau mínimo requerido para ser membro<br />

cooperante da sociedade faz com que as pessoas sejam iguais.<br />

O desacordo moral razoável não rechaça os elementos essenciais de um<br />

regime democrático. Ao contrário, tendo o pluralismo como traço essencial da<br />

democracia moderna, caso se tenha que desacordar moralmente sobre políticas<br />

públicas, melhor que seja em uma democracia que respeite ao máximo possível o<br />

arcabouço moral de cada um.<br />

4. A POSIÇÃO DO ESTADO EM FACE<br />

DO DESACORDO MORAL RAZOÁVEL<br />

Como se viu, as noções de pluralidade, liberdade e igualdade do cidadão<br />

são intrínsecas ao conceito de democracia moderna. Rawls 25 sustentou que, como<br />

cidadãos livres e iguais, devem ser-lhes garantidos princípios de tolerância que<br />

consistem em deixar que eles próprios resolvam as questões de religião, filosofia<br />

e moral em concordância com o ponto de vista que professam livremente, sendo<br />

que a concepção política protege os direitos básicos de todos. Claro que isso se<br />

limita, como afirmado pelo autor em tela, aos direitos básicos do outro e nos<br />

consensos mínimos da própria ordem. O que ele acabou por afirmar é que o<br />

Estado deve abster-se de entrar especificamente em tópicos morais que dividam<br />

as doutrinas compreensivas.<br />

23 PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito Constitucional democrático. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.<br />

24 RAWLS, John. Op. cit., passim.<br />

25 Ibid., passim.


O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 49<br />

Rawls 26 demonstrou, ainda, que as instituições do Estado justo precisam ser<br />

neutras no resguardo de qualquer particular teoria do bem que cada cidadão deve<br />

perseguir. Essa neutralidade abarca três caracteres básicos:<br />

1. a ideia de racionalidade definida como a possibilidade de indivíduos<br />

provenientes de diferentes experiências culturais trabalharem uns com os<br />

outros politicamente e tolerarem as culturas de cada um;<br />

2. a ideia de um consenso sobreposto, que precisa ser ampla o suficiente para<br />

abarcar conjuntamente culturas distintas a serem consideradas pelos diversos<br />

campos de regulação governamental e pela legislação;<br />

3. a autonomia dos cidadãos do Estado justo, na esfera pública, invocando a<br />

ideia de razão pública, cidadãos como membros ativos do debate, da legislação<br />

e da revisão constitucional.<br />

Resta, assim, demonstrado que a defesa rawlsiniana sobre o papel do Estado<br />

diante de desacordos morais razoáveis é permitir espaço para a autonomia dos<br />

cidadãos, de modo a agirem de acordo com seu arcabouço moral, respeitado os<br />

direitos básicos dos outros. Dessa forma, o Estado respeita a pluralidade de sua<br />

sociedade, garantindo seu aspecto de Estado livre, justo e democrático. No mesmo<br />

sentindo, concluiu Luiz Roberto Barroso:<br />

Não se trata de pregar, naturalmente, um relativismo moral, mas de reconhecer a<br />

inadequação do dogmatismo onde a vida democrática exige pluralismo e<br />

diversidade. Em situações como essa [interrupção da gestação de feto<br />

anencefálico], o papel do Estado deve ser o de assegurar o exercício da autonomia<br />

privada, de respeitar a valoração ética de cada um, sem a imposição externa de<br />

condutas imperativas. 27<br />

5. CONCLUSÃO<br />

O desacordo moral razoável é constituído pela ausência de consenso em<br />

questões cujas posições, que apontam para soluções diversas, são construídas por<br />

processos razoáveis. Razoáveis no sentido de serem produtos de procedimentos<br />

da razão. Tais posições podem ser morais, filosóficas e até religiosas, o que não<br />

retira o seu caráter de razoáveis, uma vez que são construídas por argumentos<br />

partilhados ou que poderiam ser partilhados pelos membros que participam ou são<br />

atingidos pela discussão.<br />

26 BIRD, Colin. Democracy and its nightmares. In: The Hedgehog Review, Spring, 2000. Disponível<br />

em: . Acesso em: 02 de<br />

fevereiro de 2009.<br />

27 BARROSO, op. cit., p. 181.


50<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Esses desacordos se fazem presentes em um Estado democrático, já que,<br />

existindo instituições livres, que garantam o pluralismo, a liberdade e igualdade dos<br />

cidadãos, estes podem seguir e demonstrar suas concepções nas discussões que<br />

lhes são importantes. Em especial, no caso de questões que envolvam decisões<br />

relacionadas à vida privada do indivíduo, relacionadas à sua intimidade, às suas<br />

convicções religiosas e à sua dignidade, por exemplo, o Estado democrático deve<br />

permitir um espaço para que o indivíduo possa agir de acordo com suas concepções<br />

morais razoáveis, exercendo sua autonomia. Isso, claro, não exclui os direitos básicos<br />

garantidos a todos, nem as instituições de consenso mínimo na Constituição, mas,<br />

ao contrário, é por eles limitado. Nesse sentido, o Estado democrático não deve<br />

impor aos seus membros uma das posições de um argumento moral razoável,<br />

ciente de que essa imposição poderia vincular indivíduos cujas concepções são<br />

opostas a ela. É certo que a decisão do Estado vai além da esfera pessoal de um<br />

cidadão, mas, envolvendo questões que afetam sua vida privada, íntima, o Estado<br />

deve evitar impor uma das posições; ao contrário, deve garantir o exercício da<br />

autonomia de cada um, de acordo com seus posicionamentos.<br />

O presente trabalho procurou explanar esse conceito filosófico do desacordo<br />

moral razoável e demonstrar, por meio de casos concretos, como o Estado pode se<br />

abster, em determinadas esferas, para permitir a autonomia de cada cidadão. Nesse<br />

sentido, o legislador não criminalizar determinada conduta, por exemplo, não significa<br />

sua imposição. Nesse caso, cada indivíduo poderá escolher exercer ou não essa<br />

conduta, de acordo com suas concepções morais. O mesmo acontece com o<br />

Judiciário: impor, por suas decisões, posições que suprimam outros argumentos<br />

morais razoáveis deve ser evitado ao máximo, principalmente quando se tratar de<br />

questões mais próximas ao centro íntimo do indivíduo. Isso é característica de<br />

respeito ao pluralismo de uma sociedade democrática moderna.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BARROSO, Luiz Roberto. Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas com célulastronco:<br />

dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição. In: NOVELINO,<br />

Marcelo (Org.). Leituras complementares de Direito Constitucional: direitos<br />

humanos e direitos fundamentais. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2008.<br />

BIRD, Colin. Democracy and its nightmares. In: The Hedgehog Review, Spring,<br />

2000. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2009.


O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 51<br />

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SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de Justiça no mundo contemporâneo:<br />

fundamentação e aplicação do Direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del<br />

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UNIÃO EUROPEIA. Tratado que estabelece uma Constituição para a União Europeia,<br />

2004. Disponível em: . Acesso em: 02 de<br />

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WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. 2. ed. New York: Oxford University<br />

Press, 2004.


52<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Anotações


Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 53<br />

4<br />

Desconsideração da pessoa jurídica:<br />

uma análise sob três perspectivas<br />

Disregard of legal entity: an analysis<br />

under three perspectives<br />

ZILDA MARA CONSALTER<br />

Mestre em Direito Negocial, pela Universidade Estadual de Londrina – UEL,<br />

no Paraná; professora das disciplinas de Direito Civil e Metodologia da Pesquisa Jurídica<br />

nos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG,<br />

no Paraná; líder do Grupo de Pesquisa em Direito Obrigacional<br />

(http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhepesq.jsp?pesq=5471268018863867); advogada;<br />

coautora de Negócio jurídico: aspectos controvertidos à luz do novo Código Civil<br />

(São Paulo: Mundo Jurídico, 2005. 228 p.) e autora de Direito das obrigações em debate:<br />

estudos sobre temas contemporâneos da teoria obrigacional (Ponta Grossa: Eduepg, in press).<br />

E-mail para correspondência: zilda_advocacia@hotmail.com.<br />

RESUMO<br />

VINICIUS DALAZOANA<br />

Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG,<br />

no Paraná; membro pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito Obrigacional<br />

(http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhepesq.jsp?pesq=547126801 8863867).<br />

O presente artigo investiga as três principais teorias aplicáveis para conferir<br />

efetividade aos processos em que pessoas jurídicas são executadas. Apresenta,<br />

ainda, aspectos identificadores, raízes históricas, pressupostos de aplicabilidade e<br />

efeitos de cada teoria. Além disso, retrata como se posicionam doutrina e tribunais<br />

com relação às três técnicas, indicando qual a mais adequada a cada fattispecie.<br />

Palavras-chave: pessoa jurídica, desconsideração, despersonalização inversa, teoria<br />

da aparência.<br />

ABSTRACT<br />

It investigates the three main theories applied to give effect to the Lawsuits which<br />

legal entities are executed. It shows aspects that identifies it, historical roots,<br />

prerequisites for application and effects of each one. It shows how doctrine and<br />

Courts position themselves related to those techniques, indicating which one is<br />

more adequate for each case.<br />

Keywords: legal entity, disregard, depersonalization reverse, appearance theory.


54<br />

1. NOTA INTRODUTÓRIA<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

As teorias da desconsideração da personalidade jurídica são instrumentos<br />

de relevante utilidade prática, mas com vários requisitos de aplicabilidade que podem<br />

despertar muitas dúvidas tanto no pleito pelos causídicos quanto na sua aplicação<br />

pelos magistrados.<br />

Disto surgiu a ideia de realizar um estudo sob as três perspectivas mais<br />

atuais desta possibilidade: primeiro, delinear-se-á o atual “estado da arte”; depois,<br />

encarregar-se-á de destacar os principais aspectos da teoria da desconsideração<br />

inversa e, por derradeiro, apresentar-se-ão os meandros da teoria da aparência.<br />

Essa postura se justifica em razão não somente da já mencionada aplicabilidade<br />

e utilidade dos institutos, mas também devido à confusão entre as suas<br />

subespécies e, por vezes, ao desconhecimento de seus pressupostos de uso pela<br />

comunidade jurídica.<br />

2. DA DESCONSIDERAÇÃO CONVENCIONAL<br />

Impende mencionar que a desconsideração da personalidade jurídica – a que<br />

se chamará de convencional apenas para diferenciá-la das outras duas – constitui-se<br />

em técnica de aperfeiçoamento da pessoa jurídica, porquanto a ausência de parâmetros<br />

para desprezar a personalidade do ente moral poderia levar ao desvirtuamento do<br />

instituto 1 . Neste diapasão, insta sublinhar que o mero débito insatisfeito perante a<br />

sociedade não autoriza a sua desconsideração. Há outros pressupostos.<br />

Gagliano & Pamplona Filho 2 revelaram a adoção da formulação objetiva da<br />

desconsideração, sendo a ideia majoritária no Direito pátrio:<br />

[...] a teoria da desconsideração visa o (sic) superamento episódico da personalidade<br />

jurídica da sociedade, em caso de fraude, abuso ou simples desvio de<br />

função, objetivando a satisfação de terceiro lesado junto ao patrimônio dos<br />

próprios sócios, que passam a ter responsabilidade pessoal pelo ilícito causado.<br />

Pode-se dizer que duas são as concepções desta teoria, a seguir explicitadas.<br />

A objetivista, consagrada por Comparato 3 , que prescinde do elemento<br />

anímico para desconsiderar a personalidade, facilitando sobremaneira a produção<br />

de provas, tutelando com muito mais efetividade interesses de terceiros. Nesta, a<br />

1<br />

COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 38.<br />

2<br />

GAGLIANO, Pablo S. & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. Vol. I. 10. ed. São<br />

Paulo: Saraiva, 2008. p. 228.<br />

3<br />

COMPARATO, Fábio Konder. apud COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 45.


Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 55<br />

personalidade jurídica será desconsiderada sempre que configurado o desvio de<br />

função ou a confusão patrimonial 4 .<br />

A subjetivista, que elege a fraude como pressuposto fundamental.<br />

Insta, ainda, para início de discussão, destacar a principal vantagem da teoria<br />

da desconsideração, apresentada por Coelho 5 :<br />

[...] aplicação da teoria da desconsideração não importa a dissolução ou anulação<br />

da sociedade. Apenas no caso específico em que a autonomia patrimonial foi<br />

fraudulentamente utilizada, ela não é levada em conta, é desconsiderada, o que<br />

significa a suspensão episódica da eficácia do ato de constituição da sociedade,<br />

e não o desfazimento ou a invalidação desse ato (grifou-se).<br />

Historicamente, o primeiro caso a tangenciar a teoria da desconsideração,<br />

embora não estejam nele presentes os fundamentos de aplicabilidade, foi o famoso<br />

“Bank of United States vs. Deveaux”, de 1809 6 .<br />

Já o caso “Salomon vs. Salomon e Co.”, de 1897, é considerado o leading<br />

case 7 : Aaron Salomon constituiu uma sociedade com seis membros de sua família,<br />

atribuindo a cada um uma ação, ficando ele com as 20 mil restantes. Posteriormente,<br />

emitiu títulos privilegiados de crédito em nome da empresa, e adquiriu-os como<br />

pessoa natural. Sobrevindo a falência da sociedade, Salomon preferiu aos credores<br />

quirografários e executou todo o patrimônio líquido da empresa. Não obstante a<br />

House of Lords apregoar a separação estanque dos patrimônios, a tese desconsiderante<br />

repercutiu na Europa e nos Estados Unidos 8 .<br />

Forçoso é citar, também, o caso “State vs. Standard Oil Co.”, julgado pela<br />

Suprema Corte de Ohio, nos EUA, em 1892: “em que o poder de controle gerencial de<br />

nove empresas petrolíferas concentrou-se nas mãos de acionistas dessa companhia,<br />

sem qualquer alteração na estrutura e na autonomia das sociedades concorrentes” 9 .<br />

O Direito inglês foi o pioneiro também na positivação da teoria, não obstante<br />

não fazer menção a ela expressamente; a norma situava-se na seção 279 do<br />

Companies Act, de 1929 10 .<br />

4<br />

SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo Direito Societário. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 211.<br />

5<br />

COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 43.<br />

6<br />

NAHAS, Thereza Cristina. Desconsideração da pessoa jurídica: reflexos civis e empresariais no<br />

Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 96.<br />

7<br />

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro – teoria geral das obrigações. Vol. 2. São Paulo:<br />

Saraiva, 2004. p. 9.<br />

8<br />

SILVA, Alexandre Alberto T. da. A desconsideração da personalidade jurídica no Direito Tributário.<br />

São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 63-65.<br />

9<br />

COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 53.<br />

10 Ibidem, p. 49.


56<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Já a tese doutoral de Rolf Serick (Universidade de Tübigen, década de<br />

1950) constitui-se na primeira sistematização da teoria, tendo definido os parâmetros<br />

de aplicação da mesma com fulcro, mormente, na jurisprudência estadunidense.<br />

No Direito nacional, o precursor foi Rubens Requião, no artigo “Abuso de direito<br />

e fraude através da personalidade jurídica”, publicado na RT n. 410, em 1969 11 , destacandose<br />

também os trabalhos de Fábio Konder Comparato e José Lamartine Corrêa de Oliveira.<br />

Na legislação, a teoria apareceria apenas décadas mais tarde: o primeiro diploma legal a<br />

albergá-la foi o Código do Consumidor (Lei n. 8.078/90), em seu art. 28:<br />

[...] o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando,<br />

em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração<br />

da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração<br />

também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência,<br />

encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.<br />

[...] §5º: também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua<br />

personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos<br />

causados aos consumidores.<br />

Os dispositivos sequenciais a este primeiro foram: a Lei Antitruste (Lei n.<br />

8.884/94, artigo 18), a Lei Pelé (Lei n. 9.615/95, artigo 27), a Lei de Crimes<br />

Ambientais (Lei n. 9.605/98, artigo 4º) e por fim, o Código Civil, artigo 50, todos<br />

com termos parecidos ao do dispositivo alhures transcrito.<br />

Impende, ainda, lembrar que o parágrafo 2º do artigo 2º da Consolidação<br />

das Leis do Trabalho – CLT e os artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional<br />

– CTN referem-se ao termo responsabilidade, e não desconsideração, como<br />

observaram Gonçalves 12 , Silva 13 e Oliveira 14 .<br />

Também é impossível não lançar um repto ao “silêncio eloquente” do<br />

ordenamento brasileiro quanto à disciplina processual da matéria. Seria de bom<br />

alvitre uma lei processual que regulasse a temática, escoimando os litígios das<br />

amiúdes dubiedades.<br />

Quanto aos tribunais, do exame jurisprudencial, destaca-se a decisão na<br />

sequência, com o fito de ilustrar a forma pela qual vêm se manifestando os magistrados:<br />

A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não<br />

pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente<br />

11 REQUIÃO, Rubens apud SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 274.<br />

12 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 64.<br />

13 SILVA, Alexandre Alberto T. da. Op. cit., p. 119-120.<br />

14 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 529.


Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 57<br />

para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova da<br />

insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração)<br />

(sic), ou a demonstração da confusão patrimonial (teoria objetiva da<br />

desconsideração). (STJ, RE n. 279.273/2003, Rel. Min. Nancy Andrighi).<br />

Como visto, a jurisprudência brasileira é, de certo modo, reticente na aplicação<br />

do instituto. Isto se deve, possivelmente, ao fato de que geralmente faz-se uma<br />

intelecção regra/exceção, tratando a separação patrimonial como regra e o uso<br />

desvirtuado da personalidade como exceção.<br />

Esta exceção pode dar-se tanto pela fraude – formulação subjetiva – como<br />

pela disfunção ou confusão de esferas – formulação objetiva.<br />

O maior crítico deste posicionamento é Salomão Filho 15 , que apregoou que<br />

“as soluções, mesmo sem admiti-lo, tendem sempre a um raciocínio regra/exceção”<br />

e destacou: “na jurisprudência, fazem-se sentir fortemente as influências dessa<br />

impostação funcional-unitária da doutrina”.<br />

Assim, é mister enfatizar a destacada utilidade prática da teoria da desconsideração<br />

e, outrossim, lembrar que sua variabilidade concreta é maior do que<br />

costumeiramente se afirma no Direito pátrio.<br />

Na hercúlea tarefa de aperfeiçoamento do instituto, salutar é a preleção de<br />

Fabio Ulhoa Coelho 16 , que arrematou esse primeiro tópico:<br />

[...] a melhor interpretação judicial dos artigos sobre a desconsideração é a que<br />

prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica,<br />

reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas<br />

e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando<br />

necessária à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa<br />

jurídica.<br />

Daí se extrai, também, mais um reflexo da aplicação desta teoria, qual seja,<br />

a de coibir ou mitigar os abusos dos devedores que usam a pessoa jurídica como<br />

“cortina de fumaça” para esgueirar-se dos seus credores e da força do Poder<br />

Judiciário, apresentando-se em importante e eficaz ferramenta de entrega da<br />

prestação jurisdicional a todos os que dela necessitam.<br />

15 SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 229.<br />

16 COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 54.


58<br />

3. DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

A desconsideração inversa é técnica punitiva, de sorte a exigir presentes<br />

todos os seus pressupostos de aplicabilidade. Conquanto tais pressupostos muito<br />

se assemelhem aos da desconsideração tradicional, a fraude que a desconsideração<br />

inversa geralmente coíbe é o desvio de bens 17 .<br />

Neste diapasão, sufragaram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho<br />

que a desconsideração invertida<br />

[...] se dá quando o indivíduo coloca em nome da empresa seus próprios bens,<br />

visando a prejudicar terceiro. [...] Em tal caso, deverá o juiz desconsiderar<br />

inversamente a personalidade da sociedade empresária para atingir o próprio<br />

patrimônio social, que pertence, em verdade, à pessoa física fraudadora 18 .<br />

À guisa de definição, transcreve-se a preleção de Fabio Ulhoa Coelho: “Desconsideração<br />

inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa<br />

jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio”. (grifou-se) 19 .<br />

Insta, ainda, lembrar a necessidade de se proteger o patrimônio social, bem<br />

como os credores da sociedade. Destarte, a desconsideração em sentido inverso<br />

deve ser limitada ao valor anteriormente desviado para o ente moral, conforme<br />

propugnou Calixto Salomão Filho:<br />

No caso imaginado, de transferência indevida de recursos à sociedade, a simples<br />

devolução da contrapartida dessa transferência ao credor (devolução essa<br />

evidentemente limitada ao valor da transferência) não representaria qualquer<br />

diminuição de garantia. Nem mesmo qualquer agressão, direta ou indireta, ao<br />

capital da sociedade. [...] Não há, assim, qualquer lesão aos credores sociais 20 .<br />

No que tange à sua origem histórica, a teoria da desconsideração inversa da<br />

personalidade jurídica consagrou-se doutrinariamente na década de 1950, em<br />

clássica obra de Ulrich Drobnig, intitulada originalmente Haftungsdurchgriff bei<br />

Kapitalgesellschaften 21 . Ele objetivava classificar a desconsideração em quatro<br />

formas principais, sendo que a segunda, ou “primeira variante, em que credor<br />

do sócio de sociedade de capitais busca acionar e executar a sociedade: seria a<br />

penetração invertida” (destaques no original) 22 .<br />

17 COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 46.<br />

18 GAGLIANO, Pablo S. & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 238.<br />

19 COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 46.<br />

20 SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 223-224.<br />

21 DROBNIG, Ulrich apud OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Op. cit., p. 329.<br />

22 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Op. cit., p. 333.


Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 59<br />

Consoante dito alhures, a desconsideração invertida coíbe, via de regra, o<br />

desvio de bens. Responsabiliza-se a sociedade por dívidas do sócio, quando este,<br />

visando a lesar credores, transfere bens para a pessoa jurídica, continuando a<br />

deles gozar livremente. Num primeiro momento, não se pode executar o ente moral,<br />

dada a autonomia patrimonial. Não obstante, uma vez levantado o véu que escondia<br />

o lícito, possibilita-se a satisfação dos credores lesados.<br />

Também no Direito de Família se revela a utilidade do instituto, consoante<br />

obtemperou Maria Helena Diniz, citando Rolf Madaleno:<br />

[...] a teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada na<br />

solução de conflitos de Direito de Família, como nos casos em que um dos<br />

cônjuges, ou conviventes, transfere bens conjugais em nome da empresa para,<br />

sob o manto da personalidade jurídica, fraudar meação nupcial ou a do<br />

convivente. [...] O mesmo se diga se o marido, planejando a separação, usar de<br />

testa de ferro para retirar-se da sociedade e depois retornar a ela com o mesmo<br />

número de quotas. 23<br />

É de se destacar, outrossim, que o “silêncio eloquente” do ordenamento<br />

jurídico pátrio aqui também se repete – tal qual ocorria até poucas décadas atrás<br />

quanto à teoria da desconsideração tradicional – quanto à desconsideração inversa.<br />

Mitigando essa lacuna, o Enunciado n. 283 da IV Jornada de Direito Civil<br />

pontificou: “é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada<br />

‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar<br />

ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”.<br />

É forçoso lembrar, todavia, que a desconsideração da personalidade jurídica<br />

prescinde de lei para a aplicação. Não a utilizar, sob a alegação de ausência de<br />

norma regulamentadora, é prestigiar a fraude e o abuso de direito no sistema<br />

jurídico pátrio 24 .<br />

No tocante aos pretórios, impende transcrever a seguinte decisão, que bem<br />

demonstra a distinção entre as duas formas da desconsideração:<br />

A conveniência de sua utilização no âmbito do Direito de Família já foi abordada<br />

por Rolf Madaleno, em seu artigo intitulado “A disregard no Direito de Família”,<br />

publicado na Revista Ajuris, 57/57-66: O usual dentro da teoria da despersonalização<br />

(sic) é equiparar o sócio à sociedade, e que dentro dela se esconde,<br />

para desconsiderar seu ato ou negócio fraudulento ou abusivo e, destarte, alcançar<br />

23<br />

MADALENO, Rolf apud DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: parte geral. 23. ed.<br />

São Paulo: Saraiva, 2006. p. 302-303.<br />

24<br />

REQUIÃO, Rubens apud SILVA, Alexandre Alberto T. da. Op. cit., p. 93.


60<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

seu patrimônio pessoal, por obrigação da sociedade. Já no Direito de Família sua<br />

utilização dar-se-á de hábito, na via inversa, desconsiderando o ato, para alcançar<br />

bem da sociedade, para pagamento do cônjuge credor familial, principalmente<br />

frente à diuturna constatação nas disputas matrimoniais, de o cônjuge empresário<br />

esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, senão todo, ao<br />

menos o rol mais significativo dos bens comuns. (Rio Grande do Sul. TJRS. 7ª<br />

Câmara. Ap. Cív. n. 598082162. Rel. Des. Maria Berenice Dias.)<br />

Repise-se, outrossim, a imperiosidade da exigência da presença dos<br />

pressupostos de aplicabilidade, sem os quais não se deverá desconsiderar a<br />

personalidade societária. Nesse sentido, apregoou Ada Pellegrini Grinover:<br />

Disso se extrai que, como já salientado, a eficácia e o mérito da desconsideração da<br />

personalidade jurídica dependem também de seu adequado emprego. [...] A<br />

desconsideração, como visto, não é medida que se possa ou que se deva banalizar<br />

e não é panaceia para todos os males de credores em face de possíveis devedores 25 .<br />

Finalmente, é mister sublinhar a relevante utilidade prática do instituto, potente<br />

arma de satisfação creditória, com a entrega da prestação jurisdicional de forma<br />

efetiva e eficaz.<br />

4. DA TEORIA DA APARÊNCIA<br />

A terceira teoria que, de algum modo, pode ser utilizada quando da análise<br />

de relações jurídicas envolvendo pessoas abstratas é aquela que louva o aspecto<br />

externo daquelas ligações, ou seja, a aparência dos fatos e até que ponto isso pode<br />

gerar consequências no âmbito jurídico.<br />

A teoria da aparência encontra ampla guarida no Direito nacional. Desde a<br />

publicística, na “teoria do funcionário do fato”, até o Direito Processual Civil,<br />

permeando igualmente a civilística em suas mais variadas imbricações. Não<br />

obstante, seguindo a esteira das publicações precedentes, será aqui abordada a<br />

seara obrigacional 26 .<br />

Apregoaram Stolze Gagliano e Pamplona Filho que, “em determinadas<br />

situações, a simples aparência de uma qualidade ou de um direito poderá gerar<br />

efeitos na órbita jurídica” 27 . Destarte, pode uma situação fática, nula a prima<br />

25<br />

GRINOVER, Ada Pellegrini. Da desconsideração da pessoa jurídica. Interesse Público, v. 48, p. 13-30,<br />

Belo Horizonte, 2008.<br />

26<br />

GAGLIANO, Pablo S. & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 118.<br />

27 Ibidem, p. 117.


Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 61<br />

facie, ser admitida como eficaz pela norma jurídica, em vista da forma como se<br />

externa socialmente.<br />

Nesta linha de intelecção, atribui-se eficácia ao pagamento feito a credor aparente,<br />

que, consoante sufragaram Orlando Gomes e Edvaldo Brito, é “quem se apresenta<br />

como tal ‘à base de circunstâncias unívocas’, capazes de ensejar a convicção, no<br />

solvens, de que é o verdadeiro credor, eis que assim passa aos olhos de todos” 28 .<br />

Para que o pagamento a credor aparente seja validado, é mister que<br />

concorram dois requisitos: (a) a boa-fé é o subjetivo, e “pode ser destruída mediante<br />

a demonstração de que o solvens tinha ciência de que o accipiens não era o<br />

credor, ou podia ser declarado estranho à relação jurídica, [...]” 29 ; e (b) a<br />

escusabilidade do erro, havendo este que ser escusável, não devendo o direito<br />

proteger os incautos.<br />

Lembre-se que, neste tópico, reside um conflito de princípios jurídicos: de<br />

um lado, o respeito aos contratos e o direito do credor de receber o regular<br />

pagamento; de outro, o princípio da boa-fé, ora exigida do devedor criterioso 30 .<br />

Neste diapasão, alertou Álvaro Villaça Azevedo que, “[...] neste caso, mais<br />

alto se alça o princípio da boa-fé, norteador supremo do Direito. Ele é a única<br />

coluna do templo do Direito que não pode ruir, em qualquer momento, sob pena de<br />

negar-se o próprio fundamento da ciência jurídica.” 31 .<br />

Impende, outrossim, salientar que a qualidade de “credor putativo” (artigo<br />

309 do Código Civil – CC 32 ) dependerá do jaez de cada caso concreto, devendo<br />

sempre o magistrado ponderar os elementos casuísticos.<br />

Quanto a isto, admoestou Silvio Rodrigues: “o problema de prova, nessa<br />

matéria, é relevantíssimo, dado o arbítrio conferido ao juiz para decidir se o<br />

accipiens pode ou não ser considerado credor putativo” 33 . Entregue a prestação<br />

ao credor aparente, e seguidos os requisitos de validade da mesma, restará ao<br />

credor real simplesmente exigir o pagamento indevidamente recebido pelo<br />

accipiens putativo.<br />

28<br />

GOMES, Orlando & BRITO, Edvaldo (atualizador). Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.<br />

p. 122.<br />

29<br />

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. II. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 140.<br />

30 Ibidem, p. 139.<br />

31<br />

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações: responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo:<br />

Atlas, 2004. p. 135.<br />

32 Art. 309 do CC. O pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que<br />

não era credor.<br />

33<br />

RODRIGUES, Silvio. Op. cit., p. 140.


62<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Extenso é rol de exemplos onde emerge a figura da aparência, mas, consoante<br />

Silvio Rodrigues, o caso mais frequente é o do herdeiro aparente 34 : “apresenta-se<br />

essa figura quando uma pessoa, em virtude de dada circunstância, parece ser a<br />

sucessora do de cujus, embora em rigor não tenha tal qualidade” 35 .<br />

Álvaro Villaça Azevedo lembrou também que, “se alguém se intitula<br />

proprietário de uma casa e a aluga a outrem, que paga, regularmente, os aluguéis,<br />

caso fique provada a boa-fé deste e que aquele não seja o legítimo proprietário do<br />

imóvel, válidos serão os pagamentos dos aluguéis realizados” 36 .<br />

Pontes de Miranda mencionou, ainda, as hipóteses do inventariante sem<br />

direito à nomeação e do testamenteiro aparente 37 .<br />

Arnaldo Rizzardo trouxe a lume exemplos como o possuidor de cheque ao<br />

portador, que o tenha subtraído ou mesmo falsificado a assinatura, de sorte a não se<br />

perceber a diferença com a do titular da conta do depósito, a não ser mediante perícia;<br />

e o cessionário de um crédito, vindo a anular-se, postumamente, o título creditício 38 .<br />

Arnoldo Wald recordou interessante exemplo: “o síndico de um edifício que<br />

foi eleito, conforme ata de assembleia geral, está autorizado a receber as<br />

contribuições do condomínio, sendo considerado tal pagamento válido mesmo se<br />

depois vier a ser anulada a assembleia por qualquer vício de forma” 39 . Finalmente,<br />

mencione-se que não é credor putativo o falso procurador 40 .<br />

Objetivando o melhor entendimento da temática, afigura-se ineludível o exame<br />

jurisprudencial. Para isso, transcreve-se a seguinte decisão, que bem retrata o<br />

tratamento dispensado à teoria da aparência nos pretórios nacionais:<br />

Locação. Ação de despejo por falta de pagamento. Credor putativo. Art. 935<br />

(309) do CC. Teoria da Aparência. Recurso desacolhido. I – Demonstrado que o<br />

locatário teve inequívoca ciência da alienação do imóvel e de que deveria pagar<br />

os locativos daí por diante ao novo proprietário, não se há como reputar válido<br />

o pagamento realizado ao alienante. II – A incidência da teoria da aparência, em<br />

face da norma do art. 935 do Código Civil, calcada na proteção ao terceiro de<br />

34 RODRIGUES, Silvio. Op. cit., p. 137.<br />

35 RODRIGUES, Silvio. Loc. cit.<br />

36 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., p. 134.<br />

37 MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Tratado de direito privado. Vol. XXIV. 3. ed. Rio de Janeiro:<br />

Borsoi, 1971. p. 111.<br />

38 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações: Lei n. 10.406, de 10/01/2002. 4. ed. Rio de Janeiro:<br />

Forense, 2008. p. 309.<br />

39 WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil brasileiro: obrigações e contratos. Vol. II. 5. ed. São Paulo:<br />

Revista dos Tribunais, 1979. p. 55.<br />

40 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 251.


Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 63<br />

boa-fé, reclama do devedor prudência e diligência, assim como a ocorrência de<br />

um conjunto de circunstancias que tornem escusável o seu erro (REsp n. 12.592-<br />

SP (1991/0014208-5), 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 23/3/1993,<br />

DJ, 26 de abril de 1993, p. 7.212) (grifou-se).<br />

Para finalizar esse tópico, é importante mencionar que, na esfera legal,<br />

especialmente no novel Código Civil, a teoria da aparência vem positivada, além<br />

do já citado dispositivo (artigo 309 do CC), em diversos outros, como os artigos<br />

686, 1.561, e 1.817, regendo relações obrigacionais puras ou não.<br />

5. CONSIDERAÇÕES DERRADEIRAS<br />

Após o estudo, é importante contrapor as teorias analisadas com o escopo<br />

de traçar as suas precípuas distinções e/ou congruências e arrematá-lo de forma<br />

adequada.<br />

Calixto Salomão Filho diferençou as técnicas quanto à participação na<br />

organização societária:<br />

Apenas na ausência de participação da organização societária aplicar-se-iam<br />

os institutos civilísticos em detrimento da teoria da desconsideração. Exemplo<br />

típico é a teoria da aparência. Ali, trata-se de ato (ou sequência de atos) atinente<br />

às relações externas da sociedade, em que não há participação da organização<br />

societária 41 .<br />

Além disto, impende considerar situações semelhantes àquelas acima<br />

tratadas, em que a pessoa jurídica afigura-se como credor ou devedor putativo (ou<br />

aparente), quando se aplicam, quantum satis, os mesmos princípios aduzidos e<br />

expendidos alhures.<br />

Também é de se destacar a possibilidade de aplicação da teoria da aparência<br />

quando a pessoa jurídica, embora tenha a aparência de regular, de fato seja<br />

organizada informalmente ou que desobedeça a algum requisito em sua composição<br />

(verdadeiras sociedades de fato).<br />

Neste caso, para haver eventual cobrança de créditos contraídos pela pessoa<br />

jurídica (de fato), ao invés de aplicar-se a teoria da desconsideração ou da<br />

desconsideração inversa, por não ocorrer, ao menos juridicamente, a existência<br />

desta pessoa abstrata, a teoria a ser aplicada é a da aparência, e não aqueloutras<br />

mencionadas.<br />

41 SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 237.


64<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Por outro lado, das três teorias, a que pode ser usada igualmente no Direito<br />

de Família é a teoria da desconsideração inversa, para os casos de burla da meação<br />

em caso de separação judicial, e a teoria da aparência, nos casos de devedores de<br />

alimentos que desviam seu patrimônio para terceiros para escusar-se de adimplir<br />

esse tipo de crédito pessoal.<br />

Quanto a um comparativo entre as duas teorias da desconsideração, ressalvados<br />

os pressupostos de aplicação de cada uma, há que se destacar que ambas<br />

apresentam-se muito úteis em situações opostas: quando o devedor pessoa física<br />

utiliza-se da pessoa jurídica para desviar-se do pagamento de seus créditos pessoais<br />

e quando, para privar credores da pessoa jurídica do adimplemento dos haveres,<br />

desvia-se o patrimônio da mesma para o das pessoas físicas que com ela tenham<br />

alguma conexão.<br />

Cumpre repisar, em tempo, a necessidade da presença absoluta dos<br />

pressupostos autorizatórios do desprezo da personalidade jurídica para que seja<br />

aplicada qualquer das técnicas em comento.<br />

A pessoa moral é criação valiosa do Direito moderno, instrumento de inefável<br />

função na ordem socioeconômica hodierna. Se não se podem prestigiar condutas<br />

fraudulentas, tampouco deve-se tornar o instituto da desconsideração panaceia<br />

para todos os males.<br />

Deste modo, entende-se, com este ato derradeiro, ter sido dado um satisfatório<br />

deslinde ao estudo proposto, vez que foram abordadas, mesmo que rapidamente,<br />

as três poderosas ferramentas que o ordenamento jurídico e o arcabouço<br />

doutrinário fornecem aos que militam em prol da efetividade da Justiça, especialmente<br />

quando o instituto da pessoa jurídica é usado de forma incongruente com o<br />

que dele se espera.


Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 65<br />

REFERÊNCIAS<br />

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações: responsabilidade civil.<br />

10. ed. São Paulo: Atlas, 2004.<br />

COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. 10. ed. São Paulo:<br />

Saraiva, 2007.<br />

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: parte geral. 23. ed. São<br />

Paulo: Saraiva, 2006.<br />

GAGLIANO, Pablo Stolze & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil.<br />

Vol. I. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.<br />

GOMES, Orlando & BRITO, Edvaldo (atualizador). Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro:<br />

Forense, 2008.<br />

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: teoria geral das obrigações.<br />

Vol. II. São Paulo: Saraiva, 2004.<br />

GONÇALVES, Oksandro. Desconsideração da personalidade jurídica. 4ª reimpr.<br />

Curitiba: Juruá, 2008.<br />

GRINOVER, Ada Pellegrini. Da desconsideração da pessoa jurídica. Interesse Público,<br />

v. 48, p. 13-30, Belo Horizonte, 2008.<br />

MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Tratado de direito privado. Vol. XXIV. 3. ed.<br />

Rio de Janeiro: Borsoi, 1971.<br />

NAHAS, Thereza Christina. Desconsideração da pessoa jurídica: reflexos civis<br />

e empresariais no Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.<br />

OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São<br />

Paulo: Saraiva, 1979.<br />

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações: Lei n. 10.406, de 10/01/2002. 4. ed.<br />

Rio de Janeiro: Forense, 2008.<br />

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. II. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.<br />

SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo Direito Societário. 3. ed. São Paulo: Malheiros,<br />

2006.<br />

SILVA, Alexandre Alberto Teodoro da. A desconsideração da personalidade<br />

jurídica no Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2007.<br />

WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil brasileiro: obrigações e contratos. Vol.<br />

II. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979.


66<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Anotações


A relação entre dignidade humana e interesse público 67<br />

5<br />

A relação entre dignidade<br />

humana e interesse público<br />

The relationship between human<br />

dignity and public interest<br />

ZUENIR DE OLIVEIRA NEVES<br />

Advogado; especialista em Direito Público, pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais<br />

– Anamages, em convênio com o UniCentro Newton Paiva, de Minas Gerais;<br />

especialista em Direito Processual Civil, pelo Centro de Atualização em Direito – CAD da<br />

Universidade Gama Filho – UGF; especialista em Direito Constitucional, pelo Instituto de Educação<br />

Continuada – IEC da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG.<br />

E-mail para correspondência: zuenirneves@gmail.com.<br />

RESUMO<br />

O presente artigo visa a discorrer sobre as implicações trazidas pelo princípio da<br />

dignidade humana – por sua vez alçado a fundamento do Estado democrático de<br />

direito, conforme preleciona o artigo 1º, III, da CR/88 – sobre o conceito de interesse<br />

público e o princípio que o alberga, qual seja a supremacia sobre o interesse privado.<br />

Palavras-chave: bem comum, interesse público, princípio da dignidade da pessoa<br />

humana, princípio da supremacia do interesse público.<br />

ABSTRACT<br />

This article aims to discuss the consequences brought by the principle of human<br />

dignity, regarded as the reason of the democratic State of law, according to the<br />

Brazilian Constitution (article 1, III) on the concept of public interest and its principle,<br />

which is the supremacy over the private interest.<br />

Keywords: common good, public interest, principle of human dignity, supremacy of<br />

public interest.


68<br />

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

A relação travada entre o público e o privado não significou carência de<br />

divergências, e a História só se fez síntese porque comportou antíteses. Estas,<br />

entretanto, em sua maioria, foram baseadas em teorias unilaterais, que, apesar de<br />

importantes, revelaram, no embate discursivo, verdadeiros “diálogos de surdos”, à<br />

medida que valorizavam ora o interesse dos déspotas (absolutismo), ora o do<br />

indivíduo, sem alcançar um “conceito de comunidade enquanto realidade portadora<br />

de uma essência, valor e fim superiores ao indivíduo” – liberalismo individualista –<br />

(MESSNER apud MARTINS FILHO, 2000), ora o da comunidade, sem atingir a “realidade<br />

total da pessoa humana, com seus fins suprassociais e o seu valor de ordem<br />

suprassocial” – coletivismo (MESSNER apud MARTINS FILHO, 2000).<br />

Nesse trajeto, conceitos jurídicos foram vulnerados e direitos violados em<br />

nome da defesa do que se concebia como interesse público. Este mesmo foi<br />

considerado como sendo, em determinados momentos, o “da maioria”, em outros,<br />

o “do Estado” e “da coletividade”.<br />

Entretanto, atualmente, vozes têm se levantado no sentido de afirmar que o<br />

termo “interesse público”, mesmo em se tratando de um conceito jurídico indeterminado,<br />

deve ser interpretado a partir da exigência de proteção da pessoa.<br />

Com relação à sua hierarquia, a supremacia e a indisponibilidade, tidas, até<br />

então, por axiomas utilizados em situações de contenção/suspensão/supressão, enfim,<br />

de relativização dos direitos fundamentais pelos poderes estatais, alçados, alhures, à<br />

condição de tutores dos interesses coletivos, têm sido postas à prova por assertivas<br />

envolvendo as sub-regras da proporcionalidade do ato administrativo, consistentes<br />

na adequação, na necessidade e na proporcionalidade em sentido estrito.<br />

No fluxo desse entendimento, o presente artigo visa a discorrer sobre as<br />

implicações trazidas pelo princípio da dignidade humana – por sua vez alçado a<br />

fundamento do Estado democrático de direito, conforme preleciona o artigo 1º, III,<br />

da CR/88 – sobre o conceito de interesse público e o princípio que o alberga, qual<br />

seja a supremacia sobre o interesse privado.<br />

2. UMA DICOTOMIA INVENTADA: A CONTRAPOSIÇÃO<br />

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO COMO REFLEXO<br />

DA NÃO CONSIDERAÇÃO DO BEM COMUM<br />

No entendimento do signatário deste artigo, o critério da titularidade do<br />

interesse para diferençar a categoria pública da privada não só induz à perigosa<br />

conclusão sobre uma contraposição, como, também, à crença na necessidade de


A relação entre dignidade humana e interesse público 69<br />

superação de uma dicotomia, que – se considerada a definição desta palavra, pela<br />

ciência lógica, como “divisão de um conceito em dois outros, em geral, contrários,<br />

que lhe esgotam a extensão” (HOLANDA FERREIRA, 1993: 185) – não deveria ocorrer.<br />

Caso se insista em definir o interesse público como sendo o “do Estado e<br />

das pessoas jurídicas de direito público, bem como o interesse de todos sem ser de<br />

nenhum particular” (GUSMÃO, 1995: 156), corre-se o risco de incursão no critério<br />

excludente de interesses privados, negador, por sua vez, da perspectiva aristotélicotomista<br />

do bem comum, segundo a qual este é “o fim das pessoas singulares que<br />

existem na comunidade, como o fim do todo é o fim de qualquer de suas partes”<br />

(MARTINS FILHO, 2000).<br />

Quando o Estado, na condição de gestor dos interesses da coletividade,<br />

impõe normas de conduta, fá-lo para manter ou restaurar as possibilidades de<br />

convivência da comunidade que o alçou a tal missão. Mas isso não o autoriza a,<br />

encarnando os interesses da coletividade, furtar-se a conferir aos privados a eficácia<br />

pretendida pelo ordenamento, sob o argumento de superioridade do interesse público,<br />

pena de arranhadura do bem comum.<br />

Se é correto dizer que cabe ao Estado gerir os interesses da coletividade,<br />

impondo condutas para garantia do bem comum, não é razoável se pré-admitir que<br />

aquilo a que correntemente se chama de interesse público seja superior e, dessa<br />

forma, possa se opor ao que se denomina interesse privado, e vice-versa, porque<br />

ambos hão de se relacionar de forma inclusiva, ou seja, garantindo-se<br />

reciprocamente, a partir das noções elementares do bem comum, quais sejam a<br />

finalidade, a bondade, a participação, a comunidade e a ordem 1 .<br />

O contrário disso é interesse egoístico, que não se coaduna com a premissa<br />

segundo a qual, desde que o homem existe, coexiste e convive, a viabilidade de<br />

qualquer interesse que veicule depende do agir pautado na solidariedade, mínimo<br />

necessário à existência e à estabilidade de qualquer organismo social e conteúdo<br />

objetivo do bem comum 2 .<br />

Conclui-se que a falsa noção de contraposição entre o interesse público e o<br />

privado é reflexo do agir não orientado ou semiorientado à consecução do bem<br />

comum. Assim,<br />

1 A respeito, ver MARTINS FILHO (2000).<br />

2 Segundo Alceu Amoroso Lima, “a alma do Bem Comum é a Solidariedade. E a solidariedade é o<br />

próprio princípio constitutivo de uma sociedade realmente humana, e não apenas aristocrática,<br />

burguesa ou proletária. É um princípio que deriva dessa natureza naturaliter socialis do ser humano”<br />

(LIMA apud MARTINS FILHO, 2000).


70<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Para fundamentar qualquer teoria social, é peça de fundamental importância o<br />

Princípio do Bem Comum. Ao contrário do que se possa pensar, não é um<br />

princípio meramente formal ou demasiadamente genérico e teórico, sem<br />

conteúdo determinado, mas um princípio objetivo, que decorre da natureza<br />

das coisas e possui inúmeras consequências práticas para o convívio social<br />

(MARTINS FILHO, 2000).<br />

3. A CONSECUÇÃO DO BEM COMUM DEPENDE<br />

DO PROCESSO HISTÓRICO<br />

Mas a deficiência no agir em conformidade com o bem comum não pode<br />

constituir negativa ao caráter dinâmico da história e à necessidade de mudanças.<br />

Assim, por exemplo, é que o próprio contexto social de insatisfação com os<br />

métodos parciais de solução das controvérsias individuais, consistentes na autotutela<br />

(ou autodefesa) e na autocomposição (desistência, submissão e transação), presentes<br />

desde os primórdios civilizacionais, possibilitou a transição para a justiça pública,<br />

cuja legitimidade se estende aos dias atuais. Essa transição permitiu a atribuição<br />

da função ordenadora ao Estado, cuja ingerência nas relações privadas se deu,<br />

primeiramente, por meio de árbitros supostamente imparciais, e, num segundo<br />

momento, pelo surgimento de legisladores imbuídos da função de formular<br />

parâmetros obrigatórios de julgar.<br />

Da mesma forma se deu com o desenvolvimento do individualismo liberal,<br />

afiançado pelo princípio da legalidade, e do regime jurídico-administrativo, calcado<br />

no princípio da supremacia do interesse público, que manteve verticalizada a relação<br />

entre Administração e indivíduo. O contexto de incontrolável personalização e patrimonialização<br />

absolutista do poder desaguou em reações que demandariam maiores<br />

garantias dos direitos individuais, mediante a limitação dos poderes do Estado.<br />

Isso não implica dar atestado de perfeição aos novos sistemas que se instalavam,<br />

mesmo porque, sob o pálio da justiça pública e do Estado liberal, direitos<br />

vários foram violados sob o pretexto de garantia do interesse público, mas, ao<br />

contrário, ressaltar que a relativa dicotomia não significou carência de divergências,<br />

e a História só se fez síntese porque comportou antíteses. Estas, entretanto, como<br />

já ressaltado, em sua maioria, foram baseadas em teorias unilaterais, que, apesar<br />

de importantes, revelaram, no embate discursivo, verdadeiros “diálogos de surdos”,<br />

à medida que valorizavam ora o interesse dos déspotas (absolutismo), ora o do<br />

indivíduo, sem alcançar um “conceito de comunidade enquanto realidade portadora<br />

de uma essência, valor e fim superiores ao indivíduo” – liberalismo individualista –<br />

, ora o da comunidade, sem atingir a “realidade total da pessoa humana, com seus


A relação entre dignidade humana e interesse público 71<br />

fins suprassociais e o seu valor de ordem suprassocial” – coletivismo (MESSNER<br />

apud MARTINS FILHO, 2000).<br />

Por outro lado, por mais procedentes sejam as críticas que denunciam<br />

manobras ideológicas nos dois exemplos acima citados – mormente no segundo,<br />

em que a ideia de unitarismo (um interesse, um gestor, um representante da vontade<br />

geral etc.) foi marcante –, é necessário admitir que tanto a justiça privada quanto<br />

o poder absoluto não comportariam a mesma abertura para a defesa da vida, da<br />

liberdade e da integridade físico-psíquica, e que, portanto, violavam em maior<br />

intensidade o bem comum.<br />

4. A IMPORTÂNCIA DA DIGNIDADE HUMANA NO PÓS-POSITIVISMO<br />

É atrelada à apreensão histórica da noção do bem comum que a influência<br />

da perspectiva dita personalista ganha relevância a partir do constitucionalismo da<br />

segunda metade do último século.<br />

Não mais se deve considerar o homem como ser abstrato, autônomo e titular<br />

de uma liberdade negativa (concepção liberal), nem animal político, atado a um<br />

grupo social – parte de um todo –, que, algures, submetia-se a um poder superior<br />

negador do direito à liberdade e à igualdade naturais (concepção organicista<br />

aristotélica).<br />

No magistério de Sarmento:<br />

A ótica que prevalece nesta matéria no constitucionalismo contemporâneo é a<br />

do personalismo, que busca uma solução de compromisso entre as concepções<br />

individualista e coletivista. O ser humano é considerado um valor em si mesmo,<br />

superior ao Estado e a qualquer coletividade a qual integre. Mas, de outra banda,<br />

o homem que se tem em vista é um ser palpável, histórica e geograficamente<br />

situado, que partilha valores e tradições com seus semelhantes e que tem<br />

necessidades que devem ser atendidas. É o homem que não apenas vive, mas<br />

convive (SARMENTO, 2003: 69).<br />

Assim, o “novo constitucionalismo”, sob os auspícios da doutrina filosófica<br />

personalista, passou a encarar o homem como ser concreto, cuja dimensão coletiva,<br />

a despeito de autorizar eventuais restrições a direitos reconhecidamente<br />

constitucionais, desde que respeitada a proporcionalidade, não o afasta do contexto<br />

da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais, constante do artigo 5,<br />

§1º, da CR/88, que impõe o implemento do mínimo existencial.<br />

Em tais circunstâncias, desponta, no epicentro da discussão, o princípio da<br />

dignidade humana, alçado a fundamento do Estado democrático de direito, conforme


72<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

preleciona o artigo 1º, III, da CR/88, embora a preocupação com sua noção remonte<br />

à era judaico-cristã 3 .<br />

Desde então, a pós-modernidade tem presenciado o surgimento de teorias<br />

jurídicas que tomam a justiça por fundamento do direito positivo, consentâneas, por<br />

sua vez, com as necessidades de um neoconstitucionalismo principialista, adotante<br />

do pós-positivismo como paradigma filosófico que confere força normativa à<br />

Constituição e supera a legalidade estrita, sem, no entanto, reduzir o direito à moral.<br />

Diz-se, sobretudo, que a neutralidade e a objetividade visadas pelo positivismo<br />

kelseniano, pretensamente desvinculado da moral e da política, e equiparador da<br />

legitimidade, da validade e da vigência, na busca de certeza jurídica, não contiveram<br />

os desmandos hitleristas e fascistas, de ampla justificação legal e apoio popular.<br />

Foi com a derrocada ítala e germânica, que, no contexto do pós-guerra,<br />

resgatou-se definitivamente o compromisso humanista, assumido pelas revoluções<br />

dos setecentos, e se aferiu a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais,<br />

por sua vez fundados na dignidade humana, fator este atribuidor de justificação<br />

ética ao Estado, cujo poder é limitado pela Constituição. Dentre as funções do<br />

mencionado princípio, destacam-se a de legitimador ético da Constituição, bem<br />

como a de limitador e norteador da atuação do Estado, sem contar o papel<br />

hermenêutico unificador da ordem jurídica que desempenha 4 .<br />

5. POR UMA RELEITURA PÓS-POSITIVISTA DO<br />

INTERESSE PÚBLICO: A DIGNIDADE HUMANA<br />

COMO PARÂMETRO DE SUA IDENTIFICAÇÃO<br />

Em razão da importância atualmente conferida ao princípio da dignidade<br />

humana na pós-modernidade, tem-se problematizado não só o termo “interesse<br />

público”, como, também, as alegações sobre sua superioridade.<br />

Trata-se, sem margem de dúvidas, de posturas afinadas com o fenômeno<br />

neoconstitucionalista da “filtragem”, segundo o qual procede-se à releitura<br />

teleológica e sistêmica do direito – ex vi da legalidade enquanto juridicidade,<br />

constitucionalidade ou legitimidade, levando-se em conta a força normativa atribuída<br />

às bases do regime jurídico administrativo, de cujos princípios implícitos e explícitos<br />

decorrem, diretamente, direitos subjetivos.<br />

3 Segundo Sarmento, “a ideia de dignidade assenta raízes na tradição do pensamento judaico-cristão, a<br />

partir da concepção do homem como ser criado à imagem e semelhança de Deus” (SARMENTO, 2003: 61).<br />

4 A respeito, ver SARMENTO (2003: 70-73).


A relação entre dignidade humana e interesse público 73<br />

Por tal razão, o interesse público não pode ser definido como sendo o do<br />

Estado, porque este, além de ser tão só um elemento do espaço público, não detém<br />

“carta branca” para restringir direitos, dada a ausência de cláusula geral que o<br />

permita; nem como o da maioria ou o da coletividade, em face da supercomplexidade<br />

social e da exigência de defesa e de socialização das minorias.<br />

Conclui-se, na linha de entendimento de Grande Júnior (2006), que o interesse<br />

público é aquele para o qual a Constituição, cujo núcleo é a dignidade humana, foi<br />

projetada a realizar. Por abstrato, parece indeterminável, mas não o é, eis que sua<br />

detecção se faz pela análise articulada da realidade com as regras e os princípios<br />

próprios da Constituição ou da lei que com ela esteja conforme.<br />

6. A INVIABILIDADE DA SUPREMACIA DO INTERESSE<br />

PÚBLICO SOBRE O PRIVADO NO CONTEXTO DO<br />

ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO<br />

A supremacia, tida, até então, por axioma utilizado em situações de contenção/<br />

suspensão/supressão, enfim, de relativização dos direitos fundamentais pelos poderes<br />

estatais, alçados, alhures, à condição de tutores dos interesses coletivos, tem sido posta à<br />

prova por assertivas envolvendo as sub-regras da proporcionalidade do ato administrativo,<br />

consistentes na adequação, na necessidade e na proporcionalidade em sentido estrito.<br />

É que a Constituição não hierarquiza direitos fundamentais. Ao contrário,<br />

organiza-os sistêmica e harmonicamente, sem desconsiderá-los em suas diferenças,<br />

além de reputá-los intangíveis pelo Estado, com quem o homem, na modernidade,<br />

rompeu a relação de “vassalagem” para ocupar a posição de cidadão. A mencionada<br />

diferença não comporta a existência de um fundamento absoluto para os direitos<br />

fundamentais, razão pela qual são eles considerados heterogêneos, e, assim,<br />

dificilmente integralizáveis em sua plenitude.<br />

Sobre o caráter heterogêneo dos direitos fundamentais, vale a lição de Bobbio<br />

(1992):<br />

Os direitos sociais, que se realizam mediante obrigações positivas, e as liberdades<br />

tradicionais, que exigem obrigações negativas, um não fazer, são antinômicos,<br />

no sentido de que o desenvolvimento deles não pode proceder paralelamente,<br />

porque a realização integral de uns impede a realização integral dos outros. Dois<br />

direitos fundamentais, mas antinômicos, não podem ter, um e outro, um<br />

fundamento absoluto, ou seja, um fundamento que torne um direito e o seu<br />

oposto, ambos, inquestionáveis e irresistíveis. O fundamento absoluto não é<br />

apenas uma ilusão; em alguns casos, é também um pretexto para defender posições<br />

conservadoras (BOBBIO, 1992: 33).


74<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Uma vez constatada a antinomia, impõe-se a técnica da ponderação, realizável<br />

previamente pela própria Constituição, ou, ainda, mediante conformação legislativa,<br />

ou pelo Poder Judiciário, principalmente quando o órgão legiferante desconsidera<br />

princípios constitucionais.<br />

O que não se admite é que haja a supremacia de tal ou qual interesse,<br />

porque é a mesma Constituição que, considerada em sua unidade material e formal<br />

(ideias respectivas de relação total e de a-hierarquia entre os dispositivos), impõe<br />

uma relativização atenta à máxima eficácia dos direitos fundamentais em face da<br />

existência do princípio da dignidade da pessoa humana.<br />

Por isso, autores há negando a superioridade conferida ao interesse público,<br />

em verdadeira crítica ao “princípio” correlato 5 , que, segundo se afirma, se trata,<br />

em verdade, de uma regra abstrata de preferência, verificável pela análise conjunta<br />

e ponderada com outros interesses. Criticam-no como princípio, dada a sua abstrata<br />

indeterminabilidade e incompatibilidade com a proporcionalidade e a concordância<br />

prática, bem como a ausência de fundamento de validade de que é acometido.<br />

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A proeminência dos direitos fundamentais no constitucionalismo contemporâneo,<br />

porque atribuiu nova roupagem ao conceito de interesse público, fez com<br />

que este se aproximasse mais da ideia de bem comum, aqui brevemente abordada<br />

na perspectiva aristotélico-tomista, segundo a qual o todo e suas partes perseguem<br />

o mesmo fim, a felicidade. Fora dessa perspectiva, a relação de oposição não se<br />

dá entre os interesses público e privado, e sim entre interesse egoístico e bem<br />

comum, que foi contrariado em suas noções básicas de finalidade, bondade,<br />

participação, comunidade e ordem.<br />

É nesse ponto que o princípio ético do bem comum e o princípio jurídico da<br />

dignidade humana convergem para conferir justificação ética ao Estado, e não só<br />

demonstrar a ausência de superioridade do interesse público sobre o privado, como<br />

também a inexistência de dicotomia entre eles.<br />

A despeito de não se ver razão nem para uma “dicotomia” (entendida como<br />

contraposição) entre o interesse público e o privado nem, muito menos, para sua<br />

superação, não se ignora a necessidade da técnica da ponderação em casos de<br />

5 Para mais informações, consultar o ensaio intitulado “Repensando o princípio da supremacia do<br />

interesse público sobre o particular”, de Humberto Ávila, que aponta limites conceituais e normativos<br />

ao qualificativo de princípio atribuído à supremacia do interesse público.


A relação entre dignidade humana e interesse público 75<br />

colisão, dada a diversidade de fundamentos dos interesses envolvidos, medida essa<br />

que se justifica para que a persecução de um interesse não se converta no seu<br />

exercício egoístico, violador da noção de comunidade.<br />

Foi atentando para esse detalhe que a Constituição de 1988 erigiu à condição<br />

de princípio a máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais, constante do<br />

artigo 5º, §1º, da CR/88, e, conforme se notou, torna-se impossível pré-afirmar a<br />

existência de um “princípio da supremacia do interesse público”, considerada a<br />

noção de unidade material e formal da Constituição (ideias respectivas de relação<br />

total e de a-hierarquia entre os dispositivos constitucionais).<br />

Em termos amplos, a questão da dignidade humana e a supremacia do<br />

interesse público chega a ter pontos de contato com a discussão sobre a legitimação<br />

do poder político pelo direito, ou seja, a relação entre Têmis e Leviatã, tão bem<br />

desenvolvida por Marcelo Neves (2008) em sua obra, que coloca a conciliação<br />

entre poder eficiente e direito legitimador como um dos problemas do Estado<br />

democrático de direito 6 .<br />

Em termos específicos, lida com a elevação do princípio da dignidade humana<br />

à condição de fundamento do Estado democrático de direito e a nova roupagem<br />

que se dá ao interesse público no constitucionalismo contemporâneo, que se<br />

concentra na pessoa concreta.<br />

6 Segundo Neves (2008: XVIII), “nesse tipo de Estado, Têmis deixa de ser um símbolo abstrato de<br />

justiça para se tornar uma referência real e concreta de orientação da atividade de Leviatã. Este, por<br />

sua vez, é rearticulado para superar a sua tendência expansiva, incompatível com a complexidade<br />

sistêmica e a pluralidade de interesses, valores e discursos da sociedade moderna.”


76<br />

REFERÊNCIAS<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio<br />

de Janeiro: Campus, 1992. 240 p.<br />

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas,<br />

2004. 751p.<br />

GRANDE JÚNIOR, Cláudio. A proporcionalização do interesse público no Direito<br />

Administrativo brasileiro. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região,<br />

v. 18, n. 6, p. 55-70, Brasília, junho, 2006. Disponível em: .<br />

Acesso em: 10 de dezembro de 2009.<br />

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do Direito. 17. ed. Rio de<br />

Janeiro: Forense, 1995. 476p.<br />

HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Minidicionário da Língua Portuguesa.<br />

3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 185.<br />

MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. O princípio ético do bem comum e a concepção<br />

jurídica do interesse público. Jus Navigandi, ano 5, n. 48, Teresina, dezembro,<br />

2000. Disponível em: . Acesso em:<br />

10 de dezembro de 2009.<br />

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 2. ed. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 2008. 354p.<br />

SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. 1. ed.<br />

Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003. 220p.


Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 77<br />

6<br />

Contratos internacionais de seguro<br />

marítimo de mercadorias: uma análise<br />

comparativa entre a legislação<br />

brasileira e a inglesa<br />

International marine insurance<br />

contracts of goods: a<br />

comparative analysis between<br />

english and brazilian legislation<br />

JOSÉ CARLOS DE CARVALHO FILHO<br />

Advogado; mestrando em Direito, pela Universidade Católica de Santos – Unisantos;<br />

pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil, pela Universidade Estadual Paulista –<br />

Unesp, de Franca. E-mail para correspondência: jcfilholaw@gmail.com.<br />

RESUMO<br />

O presente estudo possui como objetivo uma análise comparativa entre a legislação<br />

inglesa e a brasileira com relação aos contratos internacionais de seguro de mercadorias<br />

no âmbito do Direito Marítimo. Serão traçados casos históricos relevantes que<br />

interligam ambas as legislações, demonstrando que uma será originária da outra, mas<br />

cada qual com sua característica peculiar. O interesse em contratar esse serviço protegerá<br />

toda negociação, bem como terceiros interessados, o que se atém ao fato de que o<br />

transporte marítimo é um dos mais econômicos quando se fala em logísticas<br />

intercontinentais, mas também é o que mais oferece risco em seu trânsito.<br />

Palavras-chave: contratos internacionais de seguro marítimo, legislações,<br />

mercadorias, risco.


78<br />

ABSTRACT<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

The aim of this study is to make a comparative analysis between english and brazilian<br />

laws in international marine insurance contracts of goods. It will be traced historical cases<br />

that connect both laws and demonstrate the origin from one another, but each with its<br />

peculiar characteristic. The interest of contracting this service is based on the protection<br />

of all negotiations, the parties who are tied, and, even though shipping is one of the most<br />

economical intercontinental logistics it also offers the most risk in transit.<br />

Keywords: international marine insurance contracts, laws, goods; risk.<br />

1. INTRODUÇÃO<br />

O Direito Marítimo surgiu como um ramo especial para as relações jurídicas,<br />

pois, sendo um dos meios de transporte precursores para a expansão comercial<br />

mundial, é tido como direito autônomo, mas conectado a demais códigos de leis.<br />

Os contratos de seguro colocam em pauta uma crescente preocupação com a<br />

segurança não só dos navios, mas também das mercadorias nele existentes, pois<br />

aqui se fala em milhões de dólares em produtos e meses de trabalho para a realização<br />

de uma negociação.<br />

A evolução das cláusulas dos contratos internacionais de seguro marítimo<br />

revela o esforço da indústria seguradora em acompanhar e responder, da melhor<br />

forma, ao desenvolvimento, à concorrência e à complexidade da navegação e do<br />

comércio marítimo. Tanto a legislação brasileira quanto a inglesa possuem alguns<br />

pontos de divergência a respeito de como a lei vigora sobre esse vínculo jurídico;<br />

entretanto, ambas terão o mesmo objetivo, ou seja, a harmonização entre as<br />

partes envolvidas.<br />

2. FATOS HISTÓRICOS RELEVANTES<br />

O Direito Marítimo fundou-se a partir de códigos medievais, com destaque<br />

para Os rolos de Oléron (Julgamentos de Oléron) e Consulado do mar; a<br />

primeira publicação doutrinária – Ancient law merchant, escrita pelo inglês Gerard<br />

Malynes – consistiu num resumo das práticas marítimas realizadas em alguns países<br />

, que tratava sobre os contratos de seguro marítimo intitulado Guidon de la mer<br />

(Guia do mar).<br />

Alguns casos históricos de incidentes marítimos servem para ilustrar melhor<br />

a importância desses contratos nas relações de negócios entre as partes. Foi a<br />

partir de fatos reais que as legislações, principalmente a inglesa, inspiraram-se<br />

para a criação de leis que vigorarão sobre sua corrente doutrinária.


Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 79<br />

Pode-se mencionar, como exemplo, o incidente do navio Torrey Canyon,<br />

um dos superpetroleiros mundiais 1 , de bandeira inglesa, que encalhou, derramando<br />

milhares de toneladas de petróleo em alto-mar. Como consequência, catástrofes<br />

ambientais incalculáveis, o que desvendou uma série de deficiências no sistema<br />

jurídico internacional e inglês, mais especificamente, pois este era considerado, até<br />

aquele momento, um dos mais aperfeiçoados. Esse fato marcou-se como o estopim<br />

para diversas convenções – destaque para a Convenção de Bruxelas e a de Tóquio<br />

–, que também colaboraram para a formação de regras para o seguro marítimo.<br />

Mais recentemente, um caso, que demonstra a importância dos seguros<br />

marítimos para ocorrências recentes de ataques piratas a mercadorias de navios,<br />

foi noticiado por um site nacional, onde a matéria destacava:<br />

Japoneses protegem navios na Somália<br />

Uma missão antipirataria está sendo comandada pela Japan Maritime Self Defense<br />

Force’s na região do Golfo do Áden, na Somália. Uma frota com 81 navios<br />

mercantes está sendo escoltada pela instituição para protegê-los dos constantes<br />

ataques piratas, colocando em prática uma lei que entrou em vigor em julho<br />

passado, informou o governo japonês na última terça, dia 1/09/2009 2 .<br />

Esses incidentes, como se observa, servem como fontes para que os juristas<br />

atentem a cada caso específico e colaborem para a evolução dos contratos<br />

internacionais de seguro marítimo de mercadorias e suas cláusulas, como no primeiro<br />

exemplo citado, que repercutiu internacionalmente entre os ecologistas e alterou<br />

toda a legislação ecológica mundial na questão dos impactos ambientais e nos<br />

casos de pirataria que, pela tendência moderna, se incluem como risco de guerra e,<br />

portanto, foram inseridos em cláusulas nos contratos internacionais, principalmente<br />

na legislação inglesa.<br />

3. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA<br />

3.1. Histórico brasileiro<br />

Os interesses marítimos no Brasil são históricos e amplos. O mar foi via de<br />

seu descobrimento, de colonização, de invasões e de comércio. Do ponto de vista<br />

1 CALIXTO, Robson José. Incidentes marítimos: história, Direito Marítimo e perspectivas num mundo<br />

em reforma da ordem internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2004. p. 46.<br />

2 GUIA MARÍTIMO NEWS. Japoneses protegem navios na Somália. Matéria publicada em 03/09/2009.<br />

Disponível em: . Acesso em: 03<br />

de setembro de 2009.


80<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

econômico, a maior parte de todo o comércio exterior brasileiro é realizada por<br />

meio de transportes marítimos. Além disso, devem ser considerados os fatores<br />

estratégicos, científicos, ecológicos, tecnológicos e geográficos que a matéria possui.<br />

Nesse instante, surge, também, a preocupação com a segurança dos navios,<br />

mercadorias e tripulantes, pois “despesas extraordinárias feitas a bem do navio ou<br />

da carga, conjunta ou separadamente, e todos os danos acontecidos àquele ou a<br />

esta, desde o embarque e partida até a sua volta e desembarque, são reputadas<br />

avarias” (artigo 761 do Código Comercial – CCom).<br />

Todo contrato internacional de seguro marítimo de mercadorias realizado<br />

entre segurado e segurador tem como objetivo proteger a carga contra danos<br />

inesperados, mas que possam ocasionar problemas homéricos nas relações. Em<br />

regra, nem todos estão obrigados a contratar os seguros de mercadorias, uma vez<br />

que o mesmo surge em decorrência dos Incoterms acordados. Entretanto, a sua<br />

realização amenizará os impactos negativos gerados por possíveis avarias.<br />

3.2. Legislação<br />

Atualmente, convenções e tratados internacionais servem como embasamento<br />

para a utilização de princípios legais na aplicação do Direito Marítimo. O<br />

Brasil, por não adotar legalmente o princípio da autonomia da vontade, normatiza<br />

as relações marítimas por meio do Código Civil e do Código Comercial, da própria<br />

Constituição Federal de 1988 e do Decreto-Lei n. 73/66 3 . Mesmo caminhando<br />

para tornar-se um Direito autônomo, as diretrizes do Direito Marítimo ainda estão<br />

umbilicalmente ligadas a esses sistemas normativos, tratando-se de um direito<br />

privado, mas com fortes influências do direito público.<br />

O artigo 9º, caput, da Lei de Introdução do Código Civil destina-se às regras<br />

aplicáveis aos contratos internacionais. Esse artigo legisla que as partes envolvidas<br />

se submeterão às leis do país de celebração do contrato, mesmo que haja disposição<br />

específica ou omissão da lei aplicável.<br />

O ordenamento jurídico nacional legisla sobre informações necessárias para<br />

se compor um contrato internacional de seguro marítimo de mercadorias e, para<br />

isso, é importante que haja a descrição completa da mercadoria, a sua natureza,<br />

além de peso, embalagem, valor, número de volumes, locais de embarque e<br />

desembarque, riscos, veículo de transporte, valor do seguro e outras informações<br />

3 Dispõe sobre o Sistema Nacional de Seguros Privados, regula as operações de seguros e resseguros<br />

e dá outras providências.


Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 81<br />

relevantes 4 . Tudo faz parte de uma burocracia que, ao mesmo tempo, protegerá os<br />

interesses do segurador, do segurado e de terceiro interessado.<br />

3.3. Artigos e sociedades legislativas<br />

O Decreto-Lei n. 73, de 21 de novembro de 1966, juntamente com o Código<br />

Civil vigente, em seus artigos 757 a 802, e o Código Comercial, entre os artigos 666<br />

e 730, formam a base da legislação brasileira de seguros marítimos. Criaram-se,<br />

portanto, sociedades anônimas e cooperativas de seguro por intermédio dos órgãos<br />

integrantes do Sistema Nacional de Seguros Privados, como o Conselho Nacional<br />

de Seguros Privados (CNSP), a Superintendência de Seguros Privados (Susep),<br />

como já mencionado, e o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), que controlam e<br />

disciplinam o mercado nacional.<br />

Dispõe o artigo 666 do Código Comercial:<br />

O contrato de seguro marítimo, pelo qual o segurador, tomando sobre si a fortuna<br />

e riscos do mar, se obriga a indenizar ao (sic) segurado da perda ou dano que<br />

possa sobrevir ao objeto do seguro, mediante um prêmio ou soma determinada,<br />

equivalente ao risco tomado, só pode provar-se por escrito, a (sic) cujo<br />

instrumento se chama apólice; contudo, julga-se subsistente para obrigar<br />

reciprocamente ao segurador e ao segurado desde o momento em que as partes<br />

se convierem, assinando ambas a minuta, a qual deve conter todas as declarações,<br />

cláusulas e condições da apólice.<br />

O Código de Defesa do Consumidor surge nesse campo, destacando a<br />

questão contratual ao assegurar o equilíbrio entre os direitos e obrigações das<br />

partes envolvidas, ou seja, reforça o comprometimento com a equidade de interesses<br />

entre as partes a partir dessa intervenção regulamentadora, o que pode ser uma<br />

garantia e uma fonte argumentativa a possíveis contratos abusivos.<br />

Dispõe o Código de Defesa do Consumidor sobre os seguros:<br />

CAPÍTULO III<br />

Das Ações de Responsabilidade do Fornecedor de Produtos e Serviços<br />

Artigo 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e<br />

serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão<br />

observadas as seguintes normas:<br />

(...)<br />

4<br />

OCTAVIANO, Eliane Maria Martins. Curso de Direito Marítimo. Volume II. Barueri: Manole, 2008. p.<br />

466-467.


82<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

II – o réu que houver contratado seguro de responsabilidade poderá chamar ao<br />

processo o segurador, vedada a integração do contraditório pelo Instituto de<br />

Resseguros do Brasil. Nesta hipótese, a sentença que julgar procedente o pedido<br />

condenará o réu nos termos do art. 80 do Código de Processo Civil. (...).<br />

3.4 .Características legais dos contratos nacionais de seguro<br />

Como qualquer contrato, os seguros marítimos possuem características<br />

específicas de acordo com sua aplicação. Assim, o seu início ocorre no momento<br />

em que as mercadorias deixam o cais para ser carregadas a bordo, e seu<br />

término ocorrerá no momento em que são colocadas em terra no porto de<br />

destino, tendo um limite de 30 dias para que o navio inicie viagem e 30 dias<br />

para descarga após o navio chegar ao ponto de destino. Trata-se de um padrão,<br />

o que não impede que contratos adicionais sejam realizados entre as partes<br />

para a extensão de sua validade.<br />

Para que a seguradora fique obrigada a indenizar as partes pelas avarias<br />

ocorridas às mercadorias, é necessário que a porcentagem do prejuízo seja igual<br />

ou superior ao que foi estipulado na apólice, caso contrário essa franquia torna-se<br />

inviável.<br />

Os contratos de seguro nacionais devem possuir as seguintes características<br />

legais para sua validação: (I) onerosidade, pois gera benefícios e vantagens para<br />

um e outro; (II) bilateralidade, porque origina obrigações tanto para o segurado<br />

como para o segurador, sendo tais obrigações o pagamento do prêmio pelo segurado<br />

e a garantia prestada pelo segurador; (III) consensualidade, pois não mais se exige<br />

a redução por escrito para formação do vínculo; (IV) adesão, por meio da qual o<br />

segurado aceita cláusulas impostas pelo segurador na apólice impressa, não<br />

ocorrendo discussão entre as partes.<br />

O proprietário, seu representante legal, ou armadores em geral de embarcações<br />

com bandeiras nacional ou internacional, que farão suas inscrições ou seus<br />

registros nas capitanias dos portos e órgãos subordinados – bem como as já inscritas<br />

e registradas –, estão obrigados a contratar “o seguro obrigatório de danos pessoais<br />

causados por embarcações ou por suas cargas 5 ”.<br />

O Guia de orientação e defesa do segurado, de 2006, elaborado pela<br />

Susep, em seu glossário, lista as denominações dadas às partes e aos atos realizados<br />

em um contrato de seguro: apólice; avaria; aviso de sinistro; condições gerais;<br />

cosseguro; endosso; franquia; indenização; prêmio; proposta; resseguro; retro-<br />

5 Dpem – Seguro obrigatório de danos pessoais causados por embarcações ou por suas cargas.


Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 83<br />

cessão; risco; salvado; segurado; sinistro; e a descrição da própria Susep são os<br />

termos adotados a fim de identificar as ações realizadas em um contrato.<br />

Para todo seguro, busca-se garantir os direitos das partes envolvidas a fim<br />

de prevenir o resultado de um evento inesperado quando existem duas ou mais<br />

possibilidades, o que aqui se fala em “riscos 6 ”. Dessa forma, as seguradoras são<br />

contratadas para garantir a compensação desses eventos.<br />

Naufrágio, encalhe, varação, abalroação/colisão da embarcação com qualquer<br />

corpo fixo ou móvel; explosão, incêndio, raio e suas consequências; ressacas,<br />

tempestades e trombas marinhas; alijamento e arrebatamento pelo mar; queda de<br />

lingada, nas operações de carga, descarga e transbordo; fortuna do mar, caso<br />

fortuito ou de força maior são alguns dos exemplos de “riscos” cobertos pelos<br />

contratos de seguro marítimo já que outra grande maioria de contratos securitários<br />

não possui esse benefício.<br />

Vale mencionar uma peculiaridade sobre os seguros marítimos para o caso<br />

de mercadorias importadas, pois, por intermédio da Resolução CNSP 7<br />

n. 03, de 18<br />

de janeiro de 1971, foram estipuladas como preferenciais as seguradoras estabelecidas<br />

no País. Assim, não só fica garantido o entendimento das leis como também<br />

se evitam transtornos na conexão de competências, o que, por final, na prática,<br />

facilita todo o desenvolvimento do processo.<br />

3.5. Julgamentos<br />

O Brasil já realizou julgamentos a respeito do assunto seguros marítimos<br />

sobre mercadorias, como foi o caso da Apelação com Revisão CR 997938006 SP<br />

(TJSP) 8 . Esse processo teve a Comarca de Santos como cenário, a apelante<br />

Bradesco Seguros S/A e a empresa NST Terminais e Logísticas Ltda. No desfecho,<br />

o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não reconheceu o recurso de regresso<br />

da apelante. São peculiaridades como esta que marcam os acontecimentos dentro<br />

do Judiciário nacional quando o tema em questão se refere ao seguro marítimo de<br />

mercadorias.<br />

6 Evento incerto ou de data incerta que independe da vontade das partes contratantes e cuja ocorrência<br />

dará direito à indenização descrita na apólice. Guia Susep, 2006, glossário.<br />

7 Conselho Nacional de Seguros Privados.<br />

8 Dados: 35ª Câmara de Direito Privado. Relator: José Malerbi. Julgamento: 13/10/2008. Publicação:<br />

20/10/2008. Partes. Ementa: TRANSPORTE MARÍTIMO DE MERCADORIAS. SEGURO. AÇÃO REGRESSIVA. AVARIAS<br />

NA CARGA. DEPÓSITO. INDENIZAÇÃO. COMPETÊNCIA. Disponível em: . Acesso em: 29 de setembro<br />

de 2009.


84<br />

4. LEGISLAÇÃO INGLESA<br />

4.1. Histórico inglês<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Ao dar continuidade a essa análise, busca-se agora o estudo sobre os contratos<br />

de acordo com a legislação inglesa, onde se verificará a sua influência na<br />

construção das dos contratos internacionais de seguro marítimo nos demais países.<br />

É relevante esse estudo, pois, a partir de experiências e casos concretos, formularam-se<br />

os primeiros contratos e se julgam os casos atuais.<br />

O Reino Unido, mais especificamente a Inglaterra, possui uma legislação<br />

originária conhecida como Common Law 9 (Lei Comum), ou seja, um direito<br />

costumeiro, de convenções constitucionais, casos práticos e jurisprudenciais. A<br />

elaboração de uma legislação marítima, no que tange a assuntos de seguro, ocorreu<br />

a partir de 1690, quando foi fundada a inglesa Lloyd’s 10 , a mais tradicional companhia<br />

de seguros do mundo nos assuntos marítimos. Foi efetuado com ela o seguro do<br />

transatlântico Titanic.<br />

A fundação da Lloyd’s proporcionou à sociedade inglesa uma base jurídica<br />

formal que lhe permitiu adquirirproperty and make byelaws with the full authority of<br />

Parliament behind them. propriedade e fazer leis com plena autoridade parlamentar.It<br />

confirmed Lloyd’s as a business institution with guidelines that can be seen Confirmamse,<br />

então, as regras de Lloyd’s, que se consolidou como uma instituição de negócios<br />

com as orientações que podem ainda hoje ser trabalhadas com sucesso.<br />

4.2. International marine insurance<br />

Nesse contexto, a legislação inglesa adotaria, anos depois, como regra para<br />

os seguros marítimos, as leis provenientes do English Marine Insurance Act<br />

1906 (MIA 1906), ou Seguros Marítimos Ingleses – Ato de 1906, que regularizou<br />

as ações no campo dos seguros marítimos. O MIA 1906 consiste numa codificação<br />

de cerca de 200 anos de decisões judiciais, sendo que, ainda hoje, não há nenhum<br />

documento equivalente a ela. Tal codificação também se tornou conhecida por ser<br />

9 “A Common Law provém do Direito inglês não escrito que se desenvolveu a partir do século XII.<br />

É a lei ‘feita pelo juiz’: a primeira fonte do direito é a jurisprudência. Elaborados por indução, os<br />

conceitos jurídicos emergem e evoluem ao longo do tempo: são construídos pelo amálgama de<br />

inúmeros casos que, juntos, delimitam campos de aplicação. A Common Law prevalece no Reino<br />

Unido, nos EUA e na maioria dos países da Commonwealth. Influencia mais de 30% da população<br />

mundial.” Panorama mundial do Direito. O Correio da Unesco, 2000, v. 28, n. 1, p. 26. Disponível<br />

em: . Acesso em: 29 de setembro de 2009.<br />

10 SOCIETY OF LLOYD’S. Cronologia sobre História de Lloyd’s. Disponível em: . Acesso em: 05 de setembro de 2009.


Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 85<br />

“the mother of all marine insurance statutes 11 ” (ou “a mãe de todos os estatutos<br />

de seguros marítimos”).<br />

De acordo com a palestra proferida pelo Professor Dr. Marko Pavliha:<br />

(…) the contract of marine insurance is a special (insurance) contract of<br />

indemnity which protects against physical and other losses to moveable<br />

property and associated interests, as well as against liabilities occurring or<br />

arising during the course of a sea voyage (R. Thomas). S. 1 of MIA 1906: A<br />

contract of marine insurance is a contract whereby the insurer undertakes to<br />

indemnify the assured, in manner and to the extent thereby agreed, against<br />

marine losses, that is to say, the losses incident to marine adventure 12 .<br />

Isso demonstra o quão importante se faz a análise crítica de casos vivenciados<br />

pela sociedade inglesa na elaboração de leis que irão assegurar os interesses das<br />

partes, bem como os interesses da sociedade.<br />

O Ato de 1906 é utilizado nos casos de ausência de acordos das partes em<br />

contrário. Todos os contratos marítimos de seguro subscritos na Inglaterra<br />

encontram-se governados por vários conjuntos de cláusulas, também chamados<br />

de Standard Marine Clauses, que, muitas vezes, eliminam o poder dos pressupostos<br />

estabelecidos pela lei. Esse ato aprovou o uso da Lloyd’s Ship and Goods Form<br />

of Policy (Formas de Política de Lloyd’s Navios e Mercadorias), anteriormente já<br />

aprovado pela Lloyd’s, em 1779. O que fez o MIA 1906 foi elaborar cláusulas<br />

anexas às políticas a fim de lidar com áreas determinadas de ineficácia da política<br />

de Lloyd’s. Contudo, em 1983, aboliu-se a política de Lloyd’s, sendo esta substituída<br />

por uma formulação mais simples, que age como uma folha de rosto para as cláusulas<br />

relativas ao instituto.<br />

Há a ideia de abolição também do MIA 1906, tendo em conta o estabelecimento<br />

de um código mais moderno. Entretanto, codificar novas regras não é<br />

tarefa fácil para um país que tem como lei-mãe a Common Law. O funcionamento<br />

real desta lei tem sido bastante satisfatório, dado que muitas das questões de fato<br />

suscitadas são resolvidas por referência à evidência do mercado e também devido<br />

11 Palestra: PAVHLIHA, Dr. Marko. Lecture on Marine Insurance Law. The course outline. IMO<br />

International Maritime Law Institute. Malta, January 2004. Disponível em: . Acesso em: 08 de setembro de 2009.<br />

12 O contrato de seguro marítimo é um contrato especial de indenização que protege contra perdas<br />

físicas outros bens móveis e os interesses associados, bem como contra passivos que surjam ou<br />

ocorram durante o curso de uma viagem pelo mar (R. Thomas). S. 1 de MIA 1906: um contrato de<br />

seguro marítimo é um contrato pelo qual a seguradora se compromete a indenizar o segurado, na<br />

forma e na medida acordada, em caso de perdas marítimas, ou seja, os prejuízos do incidente à<br />

aventura marítima.


86<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

ao fato de os tribunais desempenharem um importante papel ao esclarecer as lides<br />

sem dispor da lei.<br />

O Judiciário inglês possui um papel fundamental ao esclarecer até onde a lei<br />

pode ou não alcançar. Os tribunais já estão conseguindo desenvolver princípios<br />

para situações novas aplicando a lei de forma mais flexível, de modo a refletir as<br />

tendências do mercado. Assim, verifica-se que os tribunais ingleses conseguiram,<br />

por intermédio de suas decisões, modernizar o Direito Marítimo de seguros.<br />

O mercado de Londres Joint Hull Committee, formado pela Lloyd’s Underwriters’<br />

Association – Associação de Seguradores Marítimos de Lloyd’s – em<br />

consulta com as associações de armadores, seguradoras e corretores, desenvolveram<br />

a International Hull Clauses (IHC) – cláusulas internacionais do casco –<br />

como um novo conjunto de cláusulas. O IHC entrou em vigor em 1º de novembro<br />

de 2002.<br />

No Institute Voyage Clauses of Hulls (ou Instituto de Viagem das Cláusulas<br />

do Casco), surgem pontos destacados que dizem respeito apenas a matérias de<br />

aplicação ao Direito inglês, ou seja, para uso apenas na política atual do mar.<br />

Assim, destacam-se pontos que serão interpretados ao avaliar conflitos na órbita<br />

dos seguros marítimos realizados com empresas de navios com bandeira inglesa.<br />

As cláusulas da International Hull são divididas em três partes, sendo uma<br />

parte a que contém as principais condições de seguro; a segunda parte, que apresenta<br />

uma série de cláusulas adicionais que foram exigidas pelos assegurados e<br />

adicionadas ao ITC (Institute Time Clauses) separadamente; e a terceira, que<br />

contém provisões para sinistros e define os direitos e responsabilidades dos<br />

seguradores e assegurados.<br />

4.3. Cláusulas contratuais inglesas<br />

Dentre os contratos de seguro, conforme a lei inglesa, algumas cláusulas<br />

são mais utilizadas e têm como objetivo beneficiar o importador em caso de avarias<br />

que possam ocorrer. Estas também estão divididas em três e serão definidas como<br />

A, B e C. Cada cláusula terá uma característica específica e, assim, cada uma<br />

atenderá a uma necessidade originária.<br />

A cláusula A trata sobre o All risk (AR). Essa cláusula cobre riscos totais<br />

ou parciais especificamente no objeto, possuindo uma cobertura mais completa<br />

dentre as demais no seguro marítimo, salvo algumas exceções.<br />

Na cláusula B, será tratado o Will average (WA). Cobrirá danos totais e<br />

parciais já referentes ao volume, seja na carga, seja na descarga, avaria grossa e


Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 87<br />

despesas de salvamento, colisão onde ambos são culpados, avarias simples e alguns<br />

casos fortuitos de força maior. A Will Average excluirá algumas causas externas,<br />

como embarques e desembarques, manipulação portuária, derrames e extravios,<br />

contudo permitirá que cláusulas especiais e adicionais a complementem.<br />

Por fim, a cláusula C, conhecida como FPA (Free of particular average),<br />

refere-se à cobertura de perda total em decorrência de avaria grossa. Em situações de<br />

avaria simples ou particular, a possibilidade de cobertura total fica restrita aos casos de<br />

encalhe, naufrágio, soçobramento 13 , descarrilhamento de veículo terrestre ou<br />

tombamento, colisão. Assim, ficam excluídas quaisquer hipóteses de cobertura em<br />

avarias particulares, roubos ou extravios de mercadorias, exceto negociação anterior.<br />

Desde 1996, consultas internacionais vêm sendo realizadas de modo a<br />

aprimorar essas cláusulas e, no ano de 2009, algumas modificações foram realizadas<br />

no que diz respeito às cláusulas de guerra e greve (Institute Cargo Clauses War<br />

and Institute Cargo Clauses Strikes). Dentre outras modificações, destacam-se<br />

as seguintes: (a) cláusula 4.3 – exclusão de preparação e embalagem; (b) cláusula<br />

4.6 – exclusão de insolvência; (c) cláusula 7.3 – terrorismo; (d) cláusula 8 – cláusula<br />

de trânsito; (e) cláusula 10 – alteração de viagem (novo).<br />

Existirão as chamadas cláusulas acessórias e as de coberturas especiais.<br />

Como o próprio nome diz, são pontos que não podem ser aplicados sem que cláusulas<br />

básicas sejam utilizadas, e sua contratação dependerá, basicamente, de necessidades<br />

do segurado, variando de acordo com legislações secundárias. Essas cláusulas<br />

adicionais servem para completar os contratos de seguro em fatores específicos,<br />

mediante negociação e pagamento de valores extras.<br />

Convém citar algumas, devido à sua relevância para o transporte de<br />

mercadorias. Nesse caso, têm-se as seguintes: a cláusula adicional transit in clause,<br />

que trata da prevenção quanto ao porto de origem e destino, se ele não estiver<br />

especificado no contrato; a cláusula held covered (omissões cobertas), segundo a<br />

qual, não havendo má-fé, possíveis omissões do contrato ficam seguradas; a cláusula<br />

adicional em trânsito, incluída a cláusula de depósito a depósito, o que segura a<br />

mercadoria quanto ao transporte do depósito do exportador até o embarque no<br />

navio; a cláusula de lucros esperados para seguros de importação, o que ampara<br />

os casos de lucros não realizáveis devido a sinistros; finalmente, cláusula para<br />

seguros de impostos sobre mercadorias importadas e cláusula de Direito Aduaneiro,<br />

que previne o exportador quanto a possíveis problemas fiscais ao longo de<br />

desembaraços aduaneiros, dentre outras.<br />

13 Emborcar; virar de borco. Disponível em: .<br />

Acesso em: 05 de setembro de 2009.


88<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Sob esse enfoque, a legislação inglesa se destaca como uma das precursoras<br />

nessa temática, não só pela longa experiência em navegações, mas também por<br />

ter suas leis originadas a partir de casos concretos, visando ao bem comum.<br />

5. PARALELOS COMPARATIVOS<br />

O que se identifica a partir dos estudos sobre os contratos dos dois países é<br />

uma legislação brasileira que possui uma união de interpretação entre o Código<br />

Civil e o Código Comercial, regulamentando, especificamente, a aplicação das leis<br />

securitárias marítimas. Em seu Título III, o Código Comercial se encontrará<br />

totalmente dedicado às normas que regem a formulação de um seguro marítimo,<br />

definindo desde a estrutura de formação de um contrato até peculiaridades que<br />

devem ser atentadas.<br />

No caso da legislação inglesa, a sua estrutura, por mais que esteja fomentada<br />

em demais leis e casos práticos, se limitará a um único estatuto, o MIA 1906, o que<br />

não impede que outros acordos sirvam de embasamento para o próprio contrato. A<br />

partir dessa análise, pode-se verificar que, mesmo existindo para cada legislação<br />

uma peculiaridade e forma estrutural, ambas tratarão de pontos em comum.<br />

Os contratos internacionais de seguro marítimo nascem de uma mesma<br />

fonte, e a legislação inglesa representa um papel importante nessa influência. As<br />

diferenças surgem apenas quando o ordenamento nacional trata de prazos para<br />

cumprimentos de obrigações e restrições à prática de atos dentro dos princípios<br />

legais, enquanto os ingleses prezam o interesse coletivo e a interpretação de cada<br />

caso específico.<br />

6. CONCLUSÃO<br />

Os meios de transporte marítimos destacam-se como sendo os primeiros<br />

passos para a globalização e a industrialização dos países. Por esse motivo, os<br />

contratos de seguro das mercadorias surgem como garantia para as relações<br />

comerciais entre as partes. Tanto para a Inglaterra quanto para o Brasil, o comércio<br />

marítimo é o grande colaborador para a expansão econômica de cada um.<br />

A necessidade de adotar seguros para prevenir os riscos que o transporte<br />

propicia e o interesse de buscar o melhor custo-benefício remetem os futuros<br />

segurados a contratar empresas sem consultar a sua idoneidade, o que colocará<br />

em risco toda a mercadoria existente. Com o aumento de seguradoras que buscam<br />

lucros rápidos num mercado em franca expansão, os interesses se voltam para<br />

contratos mal formulados e sem nenhum conhecimento quanto às leis a serem


Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 89<br />

aplicadas. É na legislação inglesa que se encontrará a lei-mãe para os seguros de<br />

mercadoria marítima e é nela que os demais países se basearão, com o propósito<br />

de legislar sobre o tema.<br />

Com um código de leis amparado pela Common Law, os doutrinadores<br />

ingleses e seus juristas buscam fundamentos em casos práticos e julgados ao longo<br />

da história, de modo a produzir soluções para controvérsias que beneficiem o<br />

interesse comum, e não apenas uma parte. A partir da longa experiência inglesa,<br />

os brasileiros, que possuem leis codificadas, criaram órgãos securitários com a<br />

finalidade de elaborar normas específicas para os casos do Direito Marítimo, que,<br />

mesmo com ares de Direito autônomo, possui laços estreitos com o Código Civil e<br />

o Código Comercial.<br />

Assim, reforça-se o ponto mencionado no início desse artigo, segundo o<br />

qual, mesmo se tratando de países com ordenamentos jurídicos diferentes, os<br />

contratos internacionais de seguro marítimo possuem a mesma fonte – o Direito<br />

inglês – e o mesmo propósito: garantir a harmonia das relações entre as partes<br />

envolvidas e prevenir riscos que possam afetar não só as referidas partes, mas<br />

toda a coletividade.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BARROS, José Fernando Cedeño. Direito do mar e do meio ambiente – proteção<br />

de zonas costeiras e litorais pelo Acordo Ramoge: contribuições para o povo<br />

do Brasil e Mercosul. São Paulo: Lex, 2007.<br />

BRASIL, Ávio. Transportes e seguros marítimos e aéreos. Rio de Janeiro: Oficinas<br />

Gráficas do Jornal do Brasil, 1955.<br />

CALIXTO, Robson José. Incidentes marítimos: história, Direito Marítimo e<br />

perspectivas num mundo em reforma da ordem internacional. São Paulo:<br />

Aduaneiras, 2004.<br />

CASTRO, Luiz Augusto de Araújo. O Brasil e o novo direito do mar: mar territorial<br />

e zona econômica exclusiva. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1989.<br />

GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria prática do Direito Marítimo. 2. ed.<br />

Rio de Janeiro: Renovar, 2005.<br />

GUIA MARÍTIMO NEWS. Japoneses protegem navios na Somália. Matéria publicada<br />

em 03/09/2009. Disponível em: . Acesso em: 03 de setembro de 2009.<br />

MATTOS, Adherbal Meira. O novo direito do mar. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.


90<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

NAZO, Georgette Nacarato. Curso de difusão cultural. São Paulo: Soamar, 1996.<br />

OCTAVIANO, Eliane Maria Martins. Curso de Direito Marítimo. Volume I. 2. ed.<br />

Barueri: Manole, 2005.<br />

______. Curso de Direito Marítimo. Volume II. Barueri: Manole, 2008.<br />

PAVHLIHA, Dr. Marko. Lecture on marine insurance law. The course outline. IMO<br />

International Maritime Law Institute. Malta, January, 2004. Disponível em: . Acesso<br />

em: 08 de setembro de 2009.<br />

SOCIETY OF LLOYD’S. Cronologia sobre História de Lloyd’s. Disponível em: . Acesso em: 05 de setembro<br />

de 2009.<br />

SUPERINTENDÊNCIA DE SEGUROS PRIVADOS – SUSEP. Guia de orientação e defesa do<br />

segurado. 2. ed. Rio de Janeiro: Susep, 2006. 55p. Disponível em: . Acesso em: 05 de<br />

setembro de 2009.<br />

THE INSTITUTE OF LONDON UNDERWRITERS. Institute Voyage Clauses Hulls. Disponível<br />

em: . Acesso em: 05 de setembro de 2009.


El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 91<br />

7<br />

El embrión humano o nasciturus<br />

como sujeto de derechos<br />

The human embryo or nasciturus<br />

as subject of rights<br />

DORA GARCÍA FERNÁNDEZ<br />

Profesora investigadora en la línea de Bioética y Derecho del Instituto de Investigaciones Jurídicas,<br />

Coordinadora de Investigación y Publicaciones de la Facultad de Derecho de la Universidad Anáhuac<br />

México Norte. Directora Editorial de la Revista Iuris Tantum. Miembro del Sistema Nacional de<br />

Investigadores del CONACYT, México. Autora de varias obras jurídicas. www.doragarciaf.com.<br />

RESUMEN<br />

El análisis de la cuestión del comienzo de la persona humana es de vital importancia.<br />

Es preciso reconocer el carácter de persona del embrión humano desde el momento<br />

mismo de la fecundación. Es así que a partir de que el espermatozoide penetra el<br />

óvulo comienza la existencia de la persona humana y desde entonces el embrión<br />

debe ser sujeto de derechos que la legislación de cada país le debe reconocer.<br />

Palabras claves: embrión humano, nasciturus, embriogénesis, derechos del embrión<br />

humano.<br />

ABSTRACT<br />

The analysis of the moment that human life begins is of vital importance. It is<br />

necessary to recognize that human embryos are persons since fecundation. In that<br />

sense, since the sperm penetrates the ovum, a human being exists, and since that<br />

point the embryo should be subject to rights that each and every country must<br />

recognize.<br />

Keywords: human embryo, nasciturus, embryogenesis, human embryo rights.


92<br />

1. EL EMBRIÓN HUMANO: NASCITURUS<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

El hombre es un ser muy complejo. Su cuerpo está formado por millones de<br />

células que se multiplican constantemente para sustituir a las que mueren por concluir<br />

su ciclo de vida o por alguna otra causa. Pero, ¿desde cuando es ser humano?<br />

Al respecto el profesor Jerôme Lejeune, catedrático de Genética de la<br />

Universidad de la Sorbona, afirma que existe un ser humano:<br />

[…] desde el momento mismo de la fecundación, desde el instante en que a la<br />

célula femenina le llega toda la información que se contiene en el espermatozoide. 1<br />

En el preciso instante de la unión de los gametos femenino y masculino , inicia<br />

la formación de un nuevo ser, individual y autónomo. Se debe descartar la posibilidad<br />

de un antes y un después, ya que no existe ninguna transformación esencial por la<br />

cual el cigoto, embrión o el feto se convierta en algo que no fue desde el momento de<br />

su concepción. Se es ser humano desde la concepción hasta la muerte.<br />

En este mismo sentido, el Consejo de Europa estableció lo siguiente:<br />

La ciencia y el sentido común prueban que la vida humana comienza en el acto<br />

de la concepción y que en este mismo momento están presentes en potencia<br />

todas las propiedades biológicas y genéticas del ser humano. 2<br />

Pero, para entender estas afirmaciones es importante repasar someramente<br />

el proceso de fecundación o concepción de un ser humano.<br />

Cada célula humana cuenta con un núcleo en donde contiene 46 cromosomas,<br />

formados por millones de genes o caracteres de la herencia. De la combinación de<br />

estos genes dependen las características que nos hacen únicos e irrepetibles. A<br />

toda esta información, contenida en las células de nuestro cuerpo, se le denomina<br />

genoma o código genético.<br />

El espermatozoide, la célula germinal 3 masculina, y el óvulo, la célula germinal<br />

femenina, están programados naturalmente para unirse y formar un nuevo ser<br />

humano. Cada uno de ellos contiene la mitad de la información genética necesaria<br />

para formar un hombre o mujer con sus características físicas y psicológicas propias,<br />

distinto de todos los demás. Gracias a la unión de los gametos femenino y masculino,<br />

1 LEJEUNE, Jerome, ¿Qué es el embrión humano?, Documentos del Instituto de Ciencias para la<br />

Familia, Ediciones Rialp, Madrid, 1993.<br />

2 Consejo de Europa, Resolución Núm. 4376, Asamblea del 4 de octubre de 1982.<br />

3 Células germinales: Células reproductoras masculinas y femeninas capaces de dar origen a un<br />

embrión. Art. 314, Ley General de Salud (LGS), dirección en Internet: http://www.scjn.gob.mx/<br />

Legilación/, fecha de consulta: 23 de mayo de 2009.


El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 93<br />

la célula que resulta de esta unión tendrá una dotación normal de 46 cromosomas:<br />

23 proporcionados por el padre y 23 por la madre.<br />

El conocimiento biogenético actual demuestra indiscutiblemente que el<br />

embrión humano es tal desde el momento de la fecundación. Cuando un<br />

espermatozoide (gameto masculino) fecunda un óvulo (gameto femenino) se<br />

constituye un nuevo ser humano que técnicamente se llamará cigoto. Inmediatamente<br />

después de la fusión de ambos gametos se dan una serie de eventos científicos<br />

sucesivos y encadenados, que lleva al desarrollo del embrión humano.<br />

Estos eventos científicos son:<br />

1) La fusión de membranas de ambos gametos y la penetración del núcleo del<br />

espermatozoide al óvulo: en la fecundación, el núcleo del espermatozoide<br />

penetra el citoplasma del óvulo, en forma casi inmediata a la fusión de las<br />

membranas. El núcleo, portando los 23 cromosomas paternos, constituye el<br />

pronúcleo masculino.<br />

2) El recambio de proteínas del ADN del espermatozoide: el ADN paterno<br />

está contenido en el núcleo del espermio mediante unas moléculas de<br />

proteínas, llamadas protaminas. Estas proteínas, después de la fecundación,<br />

son rápidamente recambiadas por otras proteínas llamadas histonas que<br />

están presentes en el citoplasma del óvulo.<br />

3) Duplicación de los cromosomas en cada pronúcleo masculino y femenino,<br />

por separado: el pronúcleo masculino y el femenino NO se fusionan. En<br />

cada pronúcleo por separado sucede una duplicación de todos los<br />

cromosomas. Estos núcleos se acercan, se interdigitan y desaparecen sus<br />

envolturas nucleares y los 46 cromosomas duplicados se ordenan en el<br />

cigoto, iniciándose la primera división celular.<br />

4) Se originan las dos primeras células o blastómeros: la primera división celular<br />

del cigoto da origen a las dos primeras células o blastómeros, evento que<br />

ocurre horas después de la fecundación. Esta división separa a los 46<br />

cromosomas duplicados (23 paternos dobles y 23 maternos dobles), de modo<br />

que cada célula hija o blastómero recibe una copia de cada uno de los 46<br />

cromosomas.<br />

5) Primeros estadios del desarrollo embrionario: los dos blastómeros se<br />

dividen a su vez en cuatro células y posteriormente en ocho y así<br />

sucesivamente, hasta formar el embrión humano y luego el feto y finalmente<br />

el recién nacido. 4<br />

4 SANTOS, Manuel, Revista Universitaria, Vol. 58, págs. 9-13, 1997, en “ Qué es lo sustativamente<br />

nuevo que ha revelado la investigación moderna biogenética”, dirección en Internet: www.bio.puc.cl/<br />

cursos/bio027/revuni1.htm, fecha de consulta: 16 de enero de 2003.


94<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

El óvulo es una célula muy importante ya que lleva consigo el alimento necesario<br />

para la subsistencia del nuevo individuo durante los primeros días de su existencia.<br />

Durante la etapa fértil de la mujer, después de realizado el acto sexual, los<br />

millones de espermatozoides depositados por el hombre en la vagina de la mujer<br />

viajan varias horas con el fin de llegar y conquistar el óvulo que se encuentra<br />

descendiendo por las trompas de falopio. La mayoría de los espermatozoides mueren<br />

en el intento de llegar al óvulo y sólo los más fuertes logran encontrarlo para<br />

fusionarse definitivamente con él y formar un cigoto 5 .<br />

Este cigoto es un ser humano constituido por una sola célula que en su<br />

interior contiene toda la información y la capacidad necesaria para desarrollarse<br />

por sí mismo durante nueve meses con ayuda de su madre, hasta poder nacer. A<br />

partir del momento de la concepción hay una serie de eventos que son una clara<br />

evidencia de que los gametos ya no actúan como dos sistemas independientes<br />

entre sí, sino como un nuevo sistema.<br />

El cigoto tiene información genética que caracteriza a los organismos de la<br />

especie homo sapiens y así se ha distinguido:<br />

Capacidad informacional: información que puede dirigir el desarrollo de un ser<br />

humano. El cigoto no posee todas las moléculas informativas para su desarrollo,<br />

pero tiene las moléculas con potencial de adquirir capacidad de información,<br />

cosa que se logra con el tiempo mediante interacciones con otras moléculas.<br />

Contenido informacional: información que se puede usar para desarrollar un ser<br />

humano, aunque no esté disponible en un determinado momento para hacerlo.<br />

En este sentido, la mayoría de las células de un adulto tienen contenido<br />

informacional pero únicamente usan una parte. 6<br />

Algunas horas después de la fecundación, el cigoto avanza por la trompa<br />

mientras va multiplicando el número de sus células: 2, 4, 8, 16, hasta llegar a constituir<br />

un ser de miles de millones de células, todas con un mismo código genético y cada<br />

una de ellas con determinada información especializada 7 . Es durante este proceso<br />

que los científicos llaman al nuevo individuo: embrión. 8<br />

5 Se le llama cigoto o zigoto a la célula huevo resultante de la fusión de dos gametos, uno masculino<br />

y otro femenino. Diccionario de la Lengua Española, Océano, México, 1997, pág. 165.<br />

6 “El estatuto del embrión”, en Cátedra de Biotecnología, Biodiversidad y Derecho, dirección en<br />

Internet: www.biotech.bioetica.org, fecha de consulta: 1º de abril de 2008.<br />

7 A este fenómeno se le llama diferenciación celular.<br />

8 SÁNCHEZ SÁNCHEZ, Homero, El derecho a la vida del concebido no nacido, Tesis de la Facultad de<br />

Derecho, Universidad Anáhuac, México, 2000, págs. 1-5.


El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 95<br />

Entonces, se puede deducir de lo anterior que el embrión humano es la<br />

fusión de dos células altamente especializadas, extraordinariamente dotadas,<br />

estructuradas y programadas, llamadas gametos: el óvulo y el espermatozoide.<br />

Esta fusión se lleva a cabo durante el proceso de fecundación. El embrión humano<br />

está caracterizado por una nueva y exclusiva estructura informativa que comienza<br />

a actuar como una unidad individual. Se puede afirmar que el embrión es la forma<br />

más joven de un ser humano.<br />

Algunos sostienen que para poder hablar de vida humana se deben tener en<br />

cuenta cuatro procesos básicos en el desarrollo del embrión:<br />

1. La fusión de los gametos o fecundación, ya que aparece un genotipo<br />

diferenciado del padre y de la madre.<br />

2. La segmentación o proceso a través del cual se da la individuación.<br />

3. La implantación en el útero, momento en el que se da una realidad nueva con<br />

unidad y unicidad.<br />

4. Aparición de la corteza cerebral, a la que se le considera como el sustrato<br />

biológico de la racionalización. 9<br />

Muchos investigadores piensan que para que se dé la individualización de un<br />

ser humano se precisan dos propiedades que ya se mencionaron antes: la unidad y<br />

la unicidad. La unidad se refiere a la realidad positiva que se distingue de otra y la<br />

unicidad es la calidad de ser único (e irrepetible). 10<br />

Otros autores opinan que el embrión carece de personeidad, la cual implica<br />

una interioridad de autoconciencia y autoposesión, de tal modo que no puede ser<br />

considerado una persona. Pero ¿qué pasa con aquellos individuos que por algún<br />

accidente caen en coma y ya no poseen esta autoconciencia y autoposesión de la<br />

que se habla? ¿Acaso ya no son personas?<br />

Otra postura, contraria a la anterior es la que apoya Zubiri, quien opina que<br />

la personeidad es lo constitutivo del ser humano, la raíz de su actuar, por lo cual<br />

considera que el embrión sí tiene personeidad y por tal motivo es persona. 11<br />

Lejeune, en cambio, no habla del concepto de persona, simplemente sostiene<br />

que el embrión es, sin ninguna duda, un ser humano y lo que lo define como tal es<br />

9<br />

JUNQUERA DE ESTEFANÍ, Rafael, Reproducción asistida, filosofía ética y filosofía jurídica, Tecnos,<br />

Madrid, España, 1998, pág. 45.<br />

10 Ibid, págs. 45-46.<br />

11 X. ZUBIRI, El hombre y Dios, citado por JUNQUERA ESTEFANÍ, Rafael, pág. 46.


96<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

su pertenencia a la especie humana. La protección del embrión y su rango especial<br />

no dependen de cuándo se convierte en persona sino de las posibilidades de alcanzar<br />

la situación de persona humana. 12<br />

Para determinar cuando es que comienza la vida humana, existen divergencias<br />

entre los especialistas. Algunos consideran que los embriones humanos son<br />

entidades que se encuentran en un estado de desarrollo donde no poseen más que<br />

un simple potencial de vida y durante los primeros 14 días posteriores a la<br />

fecundación se le considera un “pre-embrión” 13 y una vez anidado en el útero es<br />

un embrión. Actualmente la ciencia ha dado la más rotunda razón al argumento de<br />

que en cuanto ha concluido la fecundación (ya sea de forma natural o artificial) se<br />

ha concebido un ser humano único e irrepetible (que no puede tener otro carácter<br />

que el de persona) y nos encontramos, por lo tanto, ante un ser humano con derecho<br />

a ser protegido por el ordenamiento jurídico. 14 En efecto, las investigaciones de los<br />

equipos de Richard Gardner y Magdalena Zernicka-Goetz concluyen lo siguiente:<br />

El cigoto, la fase unicelular y primera de todo organismo, tiene ya una organización<br />

individual. El término de la fecundación es un nuevo ser: una realidad viva<br />

celular (cigoto) diferente de cualquier otra célula, puesto que posee polaridad y<br />

asimetría, mostrando así que se ha constituido mediante un proceso de<br />

autoorganización de la célula “híbrida” resultado de la fusión de los gametos<br />

paterno y materno. El cigoto tiene los componentes moleculares nuevos (no<br />

presentes en el óvulo ni en el espermio) que le hacen poseer ya el plano de<br />

crecimiento según los ejes del cuerpo. La manifestación directa de la organización<br />

embrionaria es que ya la primera división celular da lugar a la aparición de dos<br />

células diferentes del cigoto, desiguales entre sí y con destino diferente en el<br />

embrión. La interacción célula-célula activa informan a cada una de las células<br />

de su identidad como parte de un todo bicelular. 15<br />

Retomando lo anteriormente citado, el cigoto tiene carácter individual pues<br />

está organizado de forma asimétrica, y de tal forma que en la primera división se<br />

producen dos células distintas que se organizan en una unidad orgánica al interactuar<br />

entre ellas. Cada ser humano, a lo largo de su vida, guarda memoria de esta primera<br />

12<br />

LEJEUME, J., op.cit., págs. 65-76.<br />

13 En realidad “pre-embrión” es un término reductivista de la persona que lo acerca más a ser un<br />

material biológico.<br />

14 “Carta de una experta española a los Senadores de la República Oriental del Uruguay”, Natalia<br />

López Moratalla, Universidad de Navarra, Departamento de Bioquímica y Biología Molecular,<br />

dirección en Internet: http://www.bioeticaweb.com/Comentarios_juridicos/Moratalla_uruguay.htm,<br />

fecha de consulta: 11 de junio de 2003.<br />

15 H. PEARSON, “Your destiny from day one”, en Revista Nature, citado por LÓPEZ MORATALLA,<br />

Natalia.


El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 97<br />

división por lo que pasa de ser un individuo unicelular a ser un organismo de dos<br />

células y en consecuencia no existe lo que algunos llaman “pre-embrión”, es decir,<br />

no se trata de una realidad diferente del embrión sino que se está ante este mismo<br />

embrión pero en su etapa preimplantatoria. 16 Más adelante este embrión se<br />

convertirá en feto, luego en niño, adolescente, adulto y anciano. Desde el momento<br />

de la concepción nos encontramos ante el mismo ser humano que pasará por todas<br />

estas etapas durante su vida.<br />

Ahora bien, en el ámbito jurídico, a este embrión, se le llama nasciturus,<br />

que significa: “Ser humano como sujeto de derecho que ha sido concebido, pero<br />

que no ha nacido aún.” 17<br />

2. CONDICIÓN JURÍDICA DEL NASCITURUS<br />

Tradicionalmente la doctrina ha sostenido la idea de que la persona física<br />

nace para el Derecho a partir de su nacimiento, es decir, a partir de que es expulsado<br />

del vientre materno.<br />

Para Jesús Ballesteros, en el plano jurídico hay que distinguir tres sistemas:<br />

A. El sistema anglosajón, que niega la condición de sujeto de derechos al embrión<br />

y le considera objeto de experimentación, material biológico disponible, simple<br />

objeto y favorable a la clonación sin fines reproductivos. En una postura<br />

parecida hay que considerar a la legislación española de 1989 y a la sentencia<br />

del 2000, que autorizan la congelación de embriones y la utilización científica<br />

de los mismos previo consentimiento informado de los padres, así como el<br />

diagnóstico preimplantatorio, lo que tiene claro carácter eugenésico.<br />

B. El modelo alemán, que ocupa una posición intermedia después de establecer<br />

que las técnicas de fecundación asistida únicamente son lícitas si no hay<br />

otro modo de combatir la infertilidad, o contra enfermedades hereditarias.<br />

Asimismo, prohíbe tales técnicas a efectos de investigación. En la FIV sólo<br />

se pueden fecundar los embriones que serán implantados.<br />

C. El modelo iberoamericano, que defiende abiertamente el carácter personal<br />

del embrión y por tanto lo considera sujeto de derechos. El estatuto del<br />

embrión humano es la cuestión central de la Bioética. 18<br />

16 Ibid.<br />

17<br />

PALOMAR DE MIGUEL, Juan, Diccionario para Juristas, Mayo Ediciones, México, 1981, pág. 901.<br />

18<br />

BALLESTEROS, Jesús, “El estatuto del embrión”, en http:// :www.mercaba.org/Filosofia/ética/BIO/<br />

estatuto_del_embrion.htm, fecha de consulta: 29 de julio de 2009.


98<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

En México, el jurista Rafael Rojina Villegas establece que el nasciturus<br />

tiene personalidad antes de nacer, para ciertas consecuencias de derecho, como<br />

son: capacidad para heredar, para recibir legados y donaciones. Y para ser heredero,<br />

legatario o donatario se requiere tener personalidad jurídica ya que por tales calidades<br />

se adquieren derechos patrimoniales. Se pudiera decir que el nasciturus está<br />

representado por sus padres pero esta representación descansa en la existencia<br />

del representado, de manera que se admite que el embrión humano es persona y<br />

que tiene una capacidad mínima para considerarlo sujeto de derechos. 19<br />

Para fundamentar lo anteriormente expuesto, nuestro Código Civil otorga al<br />

concebido y no nacido los siguientes derechos:<br />

19<br />

ROJINA VILLEGAS, Rafael, Derecho Civil Mexicano, Tomo I: Introducción y Personas, 7ª edición,<br />

Porrúa, México, 1996, págs. 434-437.<br />

20 Ibid.<br />

21 Ibid.<br />

1) Derecho a heredar y a recibir donaciones<br />

Artículo 1314. Son incapaces de adquirir por testamento por intestado, a causa<br />

de falta de personalidad, los que no estén concebidos al tiempo de la muerte del<br />

autor de la herencia, o los concebidos cuando no sean viables, conforme a lo<br />

dispuesto en el artículo 337.<br />

Artículo 2357. Los no nacidos pueden adquirir por donación, con tal que hayan<br />

estado concebidos al tiempo en que aquélla se hizo y sean viables conforme a lo<br />

dispuesto en el artículo 337.<br />

Artículo 337. Para los efectos legales, sólo se tendrá por nacido al que,<br />

desprendido enteramente del seno materno, vive veinticuatro horas o es<br />

presentado vivo ante el Registro Civil. Faltando alguna de estas circunstancias,<br />

no se podrá interponer demanda sobre la paternidad o maternidad. 20<br />

2) Detener y modificar las obligaciones alimentarias de la sucesión hasta su<br />

nacimiento.<br />

Artículo 1638. Cuando a la muerte del marido la viuda crea haber quedado encinta,<br />

lo pondrá en conocimiento del juez que conozca de la sucesión, dentro del<br />

término de cuarenta días, para que lo notifique a los que tengan a la herencia un<br />

derecho de tal naturaleza que deba desaparecer o disminuir por el nacimiento del<br />

póstumo.<br />

Artículo 1643. La viuda que quedare encinta, aun cuando tenga bienes, deberá<br />

ser alimentada con cargo a la masa hereditaria. 21


El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 99<br />

22 Ibid.<br />

3) Suspender la partición de la herencia.<br />

Artículo 1648. La división de la herencia se suspenderá hasta que se verifique el<br />

parto o hasta que transcurra el término máximo de la preñez, mas los acreedores<br />

podrán ser pagados por mandato judicial. 22<br />

De acuerdo a lo anterior, la legislación civil reconoce, implícitamente, la<br />

existencia del nasciturus como persona y no como cosa, en consecuencia es<br />

inadmisible atentar contra su vida o su dignidad.<br />

En cuanto a la condición jurídica del nasciturus, antes de las reformas, la<br />

Ley General de Salud (LGS) establecía tres distintas etapas del desarrollo del<br />

nasciturus:<br />

Artículo 314. Para efectos de este título se entiende por:<br />

[…] IV. Pre-embrión: el producto de la concepción hasta el término de la segunda<br />

semana de gestación.<br />

V. Embrión: el producto de la concepción a partir del inicio de la tercera semana<br />

de gestación y hasta el término de la duodécima semana gestacional.<br />

VI. Feto: el producto de la concepción a partir de la decimotercera semana de<br />

edad gestacional, hasta la expulsión del seno materno […] 23<br />

Por otro lado, en el artículo 6º del Reglamento de la Ley General de Salud<br />

en Materia de Control Sanitario de Disposición de Órganos, Tejidos y<br />

Cadáveres de Seres Humanos 24 (RLGSDOTC), sólo se reconocen dos etapas<br />

del desarrollo del nasciturus, que son embrión y feto y no enuncia una fase “preembrionaria”<br />

como lo hacía la LGS.<br />

La Ley General de Salud fue reformada en el año 2000 y en ella sólo se<br />

reconocen dos fases del desarrollo del nasciturus:<br />

Artículo 314. Para efectos de este título se entiende por:<br />

[…] VIII. Embrión, al producto de la concepción a partir de ésta, y hasta el<br />

término de la duodécima semana gestacional;<br />

23 Art. 314, LGS.<br />

24 Reglamento de la Ley General de Salud en Materia de Control Sanitario de Disposición de<br />

Órganos, Tejidos y Cadáveres de Seres Humanos (RLGSDOTC), dirección en Internet: http://<br />

www.scjn.gob.mx/Legilación/, fecha de consulta: 28 de mayo de 2009.


100<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

IX. Feto, al producto de la concepción a partir de la decimo-tercera semana<br />

de edad gestacional, hasta la expulsión del seno materno[…] 25<br />

El concepto de “pre-embrión” no tenía razón de ser ya que como argumenta<br />

el genetista francés Jerome Lejeume, no se necesita ninguna subclase a la que<br />

llamar “pre-embrión” porque no hay nada antes del embrión. Antes de éste hay un<br />

óvulo y un espermatozoide que cuando se unen forman un cigoto que cuando se<br />

divide se convierte en embrión o lo que él llama, un “jovencísimo ser humano”. 26 Y<br />

tal como lo afirma Robert Spaemann, filósofo alemán: “algo no puede llegar a ser<br />

alguien”. El embrión, con independencia de si fue procreado por los medios naturales<br />

o por los artificiales, es un ser humano, con su propia carga genética, alguien con<br />

características que lo hacen único e irrepetible de entre los demás seres humanos.<br />

3. AUTONOMÍA INTRÍNSECA DEL NASCITURUS<br />

Para José Carlos Abellán, las personas gozan de una autonomía que permite<br />

que se desarrollen como tales. Esto se logra mediante una sucesión de actos<br />

voluntarios y, la mayoría de las veces, libres.<br />

El embrión humano es una persona y por lo tanto posee, como los demás<br />

seres humanos, una autonomía intrínseca.<br />

En caso de conflicto de dos voluntades autónomas como lo es la de la madre<br />

y la del embrión que se encuentra en su vientre, el Derecho hace prevalecer la<br />

autonomía de la madre con un valor autárquico, es decir, con un poder para<br />

“gobernarse” a sí misma.<br />

Ante esta situación, es indispensable reivindicar el valor objetivo que<br />

representa la autonomía que posee el embrión humano, la cual se deriva de su<br />

dignidad como ser humano. 27<br />

Y así, aunque este embrión se encuentre en el vientre de su madre, ella no<br />

debe pasar por encima de su autonomía y tomar decisiones, con respecto a ese<br />

embrión, que no le corresponden, ya que el embrión humano representa una vida<br />

biológica distinta de la madre, única e irrepetible.<br />

25 Art. 314, Decreto por el que se reforma la Ley General de Salud, publicado en el Diario Oficial de<br />

la Federación el 28 de abril de 2000.<br />

26<br />

LEJEUNE, Jerome, op.cit.,pág. 44.<br />

27<br />

ABELLÁN SALORT, José Carlos, “La autonomía del embrión humano”, en El inicio de la vida (Identidad<br />

y estatuto del embrión humano), 2ª edición., Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1999, págs.<br />

231 y 232.


El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 101<br />

Con respecto a esto, Rodríguez Luño-R. y López Mondéjar expresan lo<br />

siguiente:<br />

Se habla –con razón– de una dependencia del embrión respecto de la madre. Es,<br />

sin embargo, una dependencia puramente extrínseca: la madre nutre al feto, que<br />

no podría vivir sin ella, igual que sucede con el recién nacido. Pero el nuevo<br />

organismo se forma bajo el influjo directivo y perfectamente ordenado de esa<br />

especie de “centro de control” que constituye el genotipo. Estamos frente a un<br />

caso de “autogobierno biológico”. 28<br />

4. PROTECCIÓN DEL NASCITURUS EN LA LEGISLACIÓN MEXICANA<br />

De la protección del nasciturus se desprende cuál será la protección del<br />

ser humano en sus etapas de niño, adolescente, adulto, anciano y moribundo 29 , de<br />

ahí la importancia de que toda legislación reconozca los derechos del ser humano<br />

desde el momento de la concepción.<br />

En México, además de la Ley General de Salud y de su reglamento,<br />

mencionados en el punto anterior, se encuentra el Reglamento de la Ley General<br />

de Salud en materia de Investigación para la Salud (RLGSIS) 30 , en el que<br />

también se distinguen sólo dos etapas del desarrollo del nasciturus (embrión y<br />

feto) pero además lo protege de investigaciones que pudieran afectar su desarrollo<br />

o que lo expongan a un riesgo, exceptuando la intervención que se tenga que hacer<br />

para salvar la vida de la madre.<br />

Nuestra Constitución en su artículo 4º (párrafo cuarto) establece que “Toda<br />

persona tiene derecho a la protección de la salud”, y esto da a entender que el<br />

embrión y el feto, al ser personas, también tienen derecho a la protección de su<br />

salud y de su bienestar. Así, cualquier manipulación del nasciturus debe perseguir<br />

siempre su bienestar y la procuración de su salud.<br />

La vida del embrión se infiere es protegida por los artículos 14 y 16<br />

constitucionales, en los que se establece lo que sigue: “Art. 14. …Nadie podrá ser<br />

privado de la libertad o de sus propiedades, posesiones o derechos 31 , sino mediante<br />

juicio seguido ante los tribunales previamente establecidos”. Y “Art. 16. Nadie<br />

28<br />

RODRÍGUEZ LUÑO-R y LOPEZ MONDÉJAR, La fecundación in vitro, citados por ABELLÁN SALORT, José<br />

Carlos, pág. 241.<br />

29<br />

LOMBARDI, Luigi, citado por BALLESTEROS, Jesús, página de Internet citada anteriormente.<br />

30 Reglamento de la Ley General de Salud en materia de Investigación para la Salud (RLGSIS) Arts. 45-<br />

47, dirección en Internet: http://www.scjn.gob.mx/Legilación/, fecha de consulta: 28 de mayo de 2009.<br />

31 En este caso el derecho a la vida.


102<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

puede ser molestado en su persona, familia, domicilio, papeles o posesiones, sino<br />

en virtud de mandamiento escrito de la autoridad competente, que funde y motive<br />

la causa legal del procedimiento”. 32 En este sentido, un ser humano –y el embrión<br />

lo es– se entiende que está incluido en la protección constitucional que ofrecen los<br />

artículos 4º, 14 y 16.<br />

Ahora bien, la controversia que genera la inclusión del concebido no nacido<br />

en el término de “persona” fue resuelta por el propio constituyente cuando por<br />

motivo de las reformas a los artículos 30, 32 y 37 en materia de nacionalidad,<br />

señaló expresamente, en el artículo tercero transitorio de la Constitución, que “las<br />

disposiciones vigentes con anterioridad a la fecha en que el presente decreto entre<br />

en vigor, seguirán aplicándose, respecto a la nacionalidad mexicana, a los nacidos<br />

o concebidos durante su vigencia”. 33<br />

Por lo tanto, esta mención hecha por el constituyente en la que se les reconoce<br />

derechos constitucionales a los concebidos, deja fuera de discusión legal si el<br />

concebido no nacido es persona o no lo es. 34<br />

Por otro lado, la Suprema Corte de Justicia de la Nación, en su papel de<br />

intérprete última de nuestra Constitución estableció en su tesis jurisprudencial 13/<br />

2002 que “… el producto de la concepción se encuentra protegido desde ese momento<br />

y puede ser designado como heredero o donatario. Se concluye que el derecho a la<br />

vida del producto de la concepción, deriva tanto de la Constitución Política de los<br />

Estados Unidos Mexicanos, como de los tratados internacionales y las leyes<br />

federales y locales”.<br />

Entonces, el embrión humano, desde el momento de su concepción, tiene el<br />

derecho a la protección que debe ser dada por nuestras leyes a toda persona, es<br />

decir, tiene derecho a la vida, a que se respete su dignidad como ser humano, a la<br />

libertad y a preservar su salud. Y no obstante que su vida dependa biológicamente<br />

de la madre, el embrión tiene su propia individualidad, su propio código genético,<br />

que lo hace un ser humano único e irrepetible cuya existencia debe protegerse.<br />

5. PROTECCIÓN JURÍDICA DEL NASCITURUS<br />

EN EL DERECHO COMPARADO<br />

En las legislaciones de los países europeos no existe una definición legal del<br />

concepto de embrión, tampoco en el Convenio del Consejo de Europa sobre Derechos<br />

32 Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, Editorial Porrúa, México, 2009.<br />

33 Diario Oficial de la Federación, 20 de marzo de 1997, citado por INCHAURRANDIETA SÁNCHEZ MEDAL,<br />

Jaime, “Sobre el aborto...”, en revista El Mundo del Abogado, mayo 2007, pág. 36.<br />

34 Ibid, pág. 36.


El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 103<br />

Humanos y Biomedicina. Este convenio no fue firmado por el Reino Unido por<br />

considerarlo muy restrictivo y tampoco fue adoptado por Austria y Alemania por<br />

considerarlo demasiado permisivo. Este instrumento no prohíbe la investigación<br />

con embriones y no define lo que es una “adecuada protección” para el embrión en<br />

el caso de que se permita la investigación. Sólo el Reino Unido permite la creación<br />

de embriones con fines de investigación, en cambio Alemania y Austria prohíben la<br />

investigación en sus ordenamientos jurídicos. 35<br />

En España, el artículo 15 de su Norma Fundamental establece que “Todos<br />

tienen derecho a la vida y a la integridad física y moral…” 36 Y es en este término<br />

“todos” dónde se podría incluir el nasciturus quien queda entonces protegido por la<br />

Constitución aún cuando no afirma explícitamente que sea titular del derecho<br />

fundamental. Si nos ajustamos literalmente al texto parece que es suficiente su<br />

redacción, pero existen diversas posiciones al respecto. Unos consideran que el término<br />

“todos” incluye al concebido no nacido, otros, se inclinan por pensar que este término<br />

sólo incluye a quienes hayan nacido y señalan que “todos” significa “todas las<br />

personas”. Aunque los derechos no pueden ser ejercidos por alguien que todavía no<br />

ha nacido, el derecho a la vida es un derecho inherente al embrión humano. 37<br />

En su Ley 14/2006 de 26 de mayo sobre Técnicas de Reproducción<br />

Humana Asistida, se permite la investigación con embriones humanos. En este<br />

ordenamiento no se le da al embrión el carácter de ser humano pues puede ser<br />

utilizado en investigaciones con fines terapéuticos y reproductivos.<br />

Ahora bien, en este país el aborto es un delito salvo en tres supuestos:<br />

violación denunciada, graves taras físicas o psíquicas del feto (previo dictamen de<br />

dos especialistas) y grave peligro para la vida o para la salud física o psíquica de<br />

la madre (con el informe de un médico). Los médicos que emiten los dictámenes<br />

deben ser distintos a los que practiquen el aborto. En la violación y la malformación<br />

fetal los plazos para llevar a cabo el aborto son 12 semanas para el primer supuesto<br />

y 22 para el segundo. Sin embargo, no hay límite de tiempo en caso de que exista<br />

grave riesgo para la salud física o psíquica de la madre.<br />

35 IAÑEZ PAREJA, Enrique, “Ética del uso de embriones humanos”, Departamento de Microbiología e<br />

Instituto de Biotecología de la Universidad de Granada, España, en: http://www.ugr.es/~eianez/<br />

Biotecnologia/clonetica.htm#_Toc3656107, fecha de consulta: 22 de octubre de 2009.<br />

36 Art. 15, Constitución Española, en: http://narros.congreso.es/constitucion/constitucion/indice/<br />

index.htm, fecha de consulta: 19 de octubre de 2009.<br />

37 SANCHEZ BARRAGÁN, Rosa de Jesús, “Protección jurídica de la vida prenatal, con especial relevancia<br />

en el Derecho Constitucional Español”, en: http://www.bioeticaweb.com, fecha de consulta: 30 de<br />

septiembre de 2009.


104<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Por último, el Código Civil Español expresa que el nacimiento determina la<br />

personalidad, pero el concebido no nacido se tiene por nacido para todos los efectos<br />

que le sean favorables. 38 Estos efectos favorables se enfocan principalmente a<br />

intereses económicos o de filiación, ya que este ordenamiento permite las donaciones<br />

a los concebidos no nacidos. 39<br />

En Argentina se considera al nasciturus como una persona por nacer, por<br />

ello, su derecho positivo reconoce que la existencia de la persona comienza en el<br />

momento de la concepción. A nivel constitucional, el artículo 75 reconoce la<br />

personalidad del niño por nacer durante toda la extensión del embarazo. Asimismo,<br />

su Código Civil consagra el comienzo de la persona física desde el momento de la<br />

concepción en el seno materno, siendo, desde ese momento, titular de un conjunto<br />

de derechos. El artículo 51 de este ordenamiento establece que “todos los entes<br />

que presentasen signos característicos de humanidad, sin distinción de cualidades<br />

o accidentes, son personas de existencia visible”. 40<br />

En Brasil existen disposiciones que protegen los derechos del concebido,<br />

pero que introducen una distinción entre el concebido y el nacido. En este país<br />

existen tres posturas al respecto: Una es que la personalidad comienza desde la<br />

concepción, otra es que el nasciturus posee una personalidad condicional y la<br />

última es que el nasciturus tiene personalidad a partir de su nacimiento. 41 Es así<br />

que el Novo Código Civil Brasileiro expresa lo siguiente: “Art. 2º. A personalidade<br />

civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei poe a salvo,<br />

desde a concepção, os direitos do nascituro” que traducido al español significa:<br />

“La personalidad civil del hombre comienza con el nacimiento con vida; más la ley<br />

pone a salvo los derechos del nasciturus desde la concepción.” 42<br />

En 2005, fue aprobada por el Senado brasileño la Ley de Bioseguridad. Fue<br />

una decisión muy polémica que enfrentó a la comunidad científica y religiosa de<br />

Brasil, ya que dicho ordenamiento permite el uso de embriones generados a partir de<br />

la fecundación in vitro y que están congelados desde hace más de tres años en<br />

clínicas de fertilización en investigaciones y terapias médicas. Según los miembros<br />

que avalaron dicha ley, ésta no viola el derecho a la vida, pero la Procuraduría General<br />

38 Art. 29, Código Civil Español, en http://www.ucm.es, fecha de consulta: 1º de octubre de 2009.<br />

39 Art. 627, ibid.<br />

40<br />

LAFFERRIERE, Jorge Nicolás, “El derecho ante la manipulación embrionaria”, en http://www.uca.edu.ar,<br />

fecha de consulta: 1º de octubre de 2009.<br />

41 Ibid.<br />

42 Novo Código Civil Brasileiro, Cámara Municipal de Curitiba,en: http://www.cmc.pr.gov.br, fecha<br />

de consulta: 1º de octubre de 2009.


El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 105<br />

de la República denunció que constituye una violación al principio constitucional que<br />

asegura la protección de la vida humana ya presente el en embrión. 43<br />

En Chile, su Código Civil hace una distinción entre la existencia natural y la<br />

legal de la persona, estableciendo que la existencia natural principia con la concepción<br />

y se prolonga hasta el nacimiento, en cambio, la existencia legal de toda persona<br />

principia al nacer, es decir, al separarse completamente de su madre. 44 Pero, aunque<br />

al nasciturus no se le reconozca existencia legal, la Constitución Política de Chile<br />

asegura a todas las personas “el derecho a la vida y a la integridad física y<br />

psíquica…” y establece también que “la ley protege la vida del que está por nacer”. 45<br />

Cabe resaltar que en Chile está prohibido el aborto en todas sus formas, aunque<br />

sea por razones médicas. 46<br />

6. A MANERA DE CONCLUSIÓN<br />

Es un hecho que el embrión humano es una realidad biológica que representa<br />

el inicio de la vida humana, con su propia carga genética que lo distingue como un<br />

ser único e irrepetible. Desde el mismo momento de la concepción posee plena<br />

dignidad humana y por lo tanto, posee también el derecho fundamental de la vida,<br />

por lo cual se le debe otorgar la protección jurídica necesaria.<br />

El tema concerniente a la protección jurídica del embrión humano requiere de<br />

un constante estudio derivado del vertiginoso avance de la investigación en las ciencias<br />

de la salud, avance que muchas veces atenta contra la dignidad del nasciturus.<br />

La desvalorización que algunas personas hacen a la vida humana en sus<br />

primeros estadios es un grave atentado al embrión humano y a su dignidad como<br />

persona, por ello es de suma importancia que la legislación de cada país lo reconozca<br />

como sujeto de derechos.<br />

43 Constitución de la República Federativa de Brasil, Artículo 5º, en: http://www.bibliojuridica.org/<br />

libros/4/1875/2.pdf, fecha de consulta: 22 de octubre de 2009.<br />

44 Art. 74, Código Civil Chileno, en: http://www.nuestroabogado.cl/codcivil.htm#primero, fecha de<br />

consulta: 9 de octubre de 2009.<br />

45 Art. 19 -1º de la Constitución Política de la República de Chile, en: http://www.leychile.cl, fecha de<br />

consulta: 9 de octubre de 2009.<br />

46 “La política y el aborto terapéutico en Chile”, en: http://www.spanish.xinhuanet.com, fecha de<br />

consulta: 17 de marzo de 2009.


106<br />

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Ius cogens 109<br />

8<br />

Ius cogens<br />

Ius cogens<br />

EBER BETANZOS<br />

Director General de Política Criminal de la Fiscalía Especializada para la Atención de Delitos<br />

Electorales. Estudió la carrera de abogado en la Escuela Libre de Derecho (ELD),<br />

teología en la Escuela de Ciencias Religiosas de la Universidad LaSalle y filosofía en la Universidad<br />

Panamericana. Es maestro en Estudios Humanísticos por el Instituto Tecnológico de Estudios<br />

Superiores de Monterrey. Obtuvo el diploma de estudios avanzados en el Doctorado en Derechos<br />

Humanos de la UNED. Profesor de argumentación jurídica en el Instituto Nacional de Ciencias<br />

Penales y de historia del derecho patrio en la ELD. Es autor del libro Discordia Constitucional:<br />

Benito Juárez y la Constitución de 1857. E-mail: miterceraletra@gmail.com.<br />

RESUMEN<br />

Durante mucho tiempo el tema del ius cogens fue sólo tópico de discusiones<br />

académicas, pero adquirió gran actualidad desde que la Comisión de Derecho<br />

Internacional de la ONU hizo referencia a él, en su proyecto de artículos acerca del<br />

derecho de los tratados (1966). Por tal motivo en este artículo intentaremos delimitar<br />

la noción de ius cogens, que no siempre es abordado por todos los estudiosos del<br />

derecho internacional de la misma manera.<br />

Palabras claves: Ius cogens, derecho internacional, derecho interno, coercibilidad.<br />

ABSTRACT<br />

For long time the topic of ius cogens in the international law was only for academic<br />

purposes; but since the International Law Commission of the United Nations make<br />

reference to them in the project of articles on international treaties (1966), the topic<br />

gained a lot of relevance. For that reason this article tries to build elements for the<br />

notion of ius cogens, which is not always, explained in the same way by the authors<br />

of international law.<br />

Keywords: ius cogens, international law, internal law, constraint.


110<br />

1. LOS CARACTERES DE LAS NORMAS<br />

PERTENECIENTES AL IUS COGENS<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Para dar una idea más patente de lo que sería el ius cogens algunos autores<br />

lo vincularon con nociones similares a su contenido normativo tomadas del derecho<br />

interno, tales como las de orden público, como del derecho público o de derecho<br />

constitucional; sin embargo, estas analogías utilizadas, en lugar de aclarar la noción<br />

de ius cogens –al olvidar que existen diferencias considerables entre el orden<br />

jurídico internacional y el estatal– más bien presentan obstáculos para la clarificación<br />

de su concepto.<br />

Esto no significa que el ius cogens sea necesariamente una noción exclusiva<br />

del derecho internacional, ya que puede pertenecer en común al orden jurídico<br />

internacional y al estatal –entendiendo el derecho como un todo jurídico que integra<br />

reglas de conducta de observancia obligatoria de distinta naturaleza–, al mismo<br />

tiempo que presenta caracteres muy diferentes según se le considere en uno o el<br />

otro de estos ordenes.<br />

Definido en el artículo 50 del Proyecto de Artículos acerca del Derecho de<br />

los Tratados elaborado por la Comisión de Derecho Internacional de la Organización<br />

de las Naciones Unidas se dispone:<br />

Es nulo todo tratado en conflicto con una norma imperativa de derecho<br />

internacional general de la que ninguna derogación es permitida y que no puede<br />

ser modificada más que por una nueva norma de derecho internacional general<br />

que tenga el mismo carácter.<br />

Cabe tomar en cuenta que esta definición tomó en consideración tres elementos:<br />

para tener la calidad de ius cogens; una norma debe ser al mismo tiempo:<br />

1. Imperativa.<br />

2. Pertenecer al derecho internacional general.<br />

3. Anular los tratados concertados que violan sus disposiciones.<br />

Por otra parte, en la Convención de Viena sobre el Derecho de los Tratados,<br />

se establece en la Parte V. Nulidad, terminación y suspensión de la aplicación de<br />

tratados, sección 2. Nulidad de los tratados, artículo 53:<br />

Tratados que estén en oposición con una norma imperativa de derecho<br />

internacional general (ius cogens). Es nulo todo tratado que, en el momento de<br />

su celebración, esté en oposición con una norma imperativa de derecho<br />

internacional general.


Ius cogens 111<br />

Para los efectos de la presente Convención, una norma imperativa de derecho<br />

internacional general es una norma aceptada y reconocida por la comunidad<br />

internacional de Estados en su conjunto como norma que no admite acuerdo en<br />

contrario y que sólo puede ser modificada por una norma ulterior de derecho<br />

internacional general que tenga el mismo carácter.<br />

En tal sentido, la académica mexicana, Loretta Ortiz Ahlf (1999), deduce de<br />

este artículo elementos que identifica como característicos del ius cogens:<br />

1. Debe tratarse de una norma de derecho internacional general que obligue a<br />

todos los estados.<br />

2. Ha de ser una norma imperativa, que no admite acuerdo en contrario.<br />

3. Debe ser reconocido por la comunidad internacional en su conjunto.<br />

4. Será modificable por otra norma que tenga el mismo carácter.<br />

En otro parámetro, el ius cogens también ha sido definido por Erik Suy<br />

(1967) como:<br />

El cuerpo de reglas generales de derecho cuya inobservancia puede afectar la<br />

esencia misma del sistema legal al que pertenecen a tal punto que el sujeto de<br />

derecho no puede, bajo la pena de nulidad absoluta, apartarse de ellas por medio<br />

de convenios particulares.<br />

A partir de estos primeros elementos introductorios podemos explorar sus<br />

elementos principales: a) ser una norma imperativa; b) tener carácter de una norma<br />

de derecho internacional general. 3. Anular los tratados concertados que violan<br />

sus disposiciones.<br />

1.1. Norma imperativa<br />

Con base en los elementos anteriores podemos partir de la idea de que una<br />

norma imperativa no es sinónimo de norma obligatoria.<br />

Todas las normas de derecho internacional son en principio obligatorias; sin<br />

embargo, si bien el hecho de que se cree una obligación para a cargo de un Estado<br />

significa que otro estado tendrá derecho de exigir su aplicación.<br />

En este sentido, también es cierto, que por regla general, un sujeto de derecho<br />

puede renunciar al derecho de exigir su aplicación y aceptar que la obligación que<br />

respecto a él existe no se aplique.


112<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Por tanto, es posible que dos Estados soberanos decidan que en lo que se<br />

refiere a sus relaciones mutuas, no se apliquen ciertas normas del derecho<br />

internacional que les imponen obligaciones mutuas, o decidan aplicar normas distintas<br />

a las previstas por el derecho internacional general.<br />

En contraposición, el ius cogens se caracteriza porque un Estado no puede<br />

liberarse de las obligaciones que le impone una norma de ius cogens con respecto<br />

a otro Estado ni siquiera mediante un tratado; es decir, con el consentimiento de<br />

ese otro Estado (no puede renunciar por sí mismo a sus derechos).<br />

De lo visto, podemos colegir que el ius cogens -como su nombre lo indicapresenta<br />

un carácter prohibitivo, pero en un sentido muy particular, ya que el alcance<br />

de esta prohibición es inhabilitar cualquiera de sus disposiciones.<br />

El ius cogens introduce una limitante a la autonomía de la voluntad de los<br />

estados, a su libertad contractual, considerada tradicionalmente absoluta al<br />

representar una faceta muy importante de la soberanía de los Estados, de tal manera<br />

que el ius cogens puede ser considerado en prejuicio de la soberanía de los Estados.<br />

Sin embargo, se contra argumenta: la garantía suprema de la independencia<br />

política y económica de los pueblos no es la soberanía absoluta, sino el derecho<br />

internacional que garantiza su respeto, aunque ello sin duda no dejar de ser relativo,<br />

pues el imperio del derecho internacional también se relaciona con las condiciones<br />

fácticas de voluntad de cumplimiento en los estado soberanos.<br />

Un punto que merece recalcarse es que si las normas de ius cogens son<br />

normas fundamentales y de una gran importancia para la sociedad internacional,<br />

no por ello todas las normas fundamentales –es decir de inserción en el entramado<br />

constitucional de las naciones– del derecho internacional forman parte del ius<br />

cogens.<br />

Cabe tomar en cuenta que la prohibición de toda derogación de las normas<br />

de derecho internacional que conforman el ius cogens puede justificarse, de manera<br />

general, por dos hipótesis:<br />

a) Existencia de reglas destinadas a proteger intereses que superan a los intereses<br />

individuales de los estados, en el marco de las garantías fundamentales. Por<br />

ejemplo: normas relativas al respeto de los derechos del hombre a partir del<br />

supremo respeto a la dignidad humana, sobre todo en el caso de que se<br />

perjudique a todo un grupo de personas.<br />

b) Prohibición que garantice la protección del Estado en contra de sus propias<br />

debilidades o en contra de la excesiva fuerza de sus eventuales socios<br />

internacionales. Ello representa una protección en contra de las desigualdades


Ius cogens 113<br />

en el poder de negociación, tales como el establecimiento de cláusulas de<br />

garantía a sectores estatales en posición de desventaja.<br />

1.2. Norma de derecho internacional general<br />

El hecho de que el ius cogens conste exclusivamente de normas del derecho<br />

internacional general recalca su carácter de universalidad.<br />

Sí expresa valores de carácter ético, desde luego estos no pueden ser<br />

impuestos por medio de la fuerza imperativa que le pertenece más que si son<br />

absolutos y por consiguiente no conocen límites geográficos en su aplicación.<br />

Con base en lo anterior es posible formular esta pregunta: ¿Puede concebirse<br />

el ius cogens regional? Una concepción así no es imposible, por el momento no<br />

ésta reconocido, pero señalemos que si algunas reglas validas en el grupo particular<br />

de un estado son consideradas especialmente importantes, y deben por tanto<br />

prevalecer sobre otras, no resultará necesario que adquieran el carácter de ius<br />

cogens.<br />

Aún así, si se puede elaborar el ius cogens regional, estará subordinado al<br />

ius cogens mundial, tal como lo define la Comisión de Derecho Internacional, ya<br />

que éste prohíbe expresamente que un grupo de estados soberanos pueda derogar<br />

sus existencias, hasta en las relaciones mutuas de sus miembros.<br />

Es importante señalar que una noción en donde sí existe acuerdo amplio es<br />

en la idea de derecho internacional general, como el conjunto de las normas aplicables<br />

a todos los estados miembros de la sociedad internacional, por oposición a las<br />

normas internacionales aplicables sólo a algunos de ellos y que constituye el derecho<br />

internacional particular, ya sea en forma regional, local o bilateral.<br />

Debemos hacer énfasis en este punto: la definición del artículo 50 del Proyecto<br />

de Artículos acerca del Derecho de los Tratados da cuenta que toda norma de ius<br />

cogens puede ser modificada por una norma de la misma naturaleza, de donde<br />

descubrimos que se pueden encontrar normas imperativas, además de las que<br />

expresamente pertenecen al ius cogens.<br />

De esta forma se observa que las normas de ius cogens son normas de<br />

derecho positivo, y por lo tanto, se integran al orden jurídico por el juego del sistema<br />

de fuentes del que este orden consta.<br />

Sin embargo, todos los modos de formación del derecho internacional no<br />

pueden dar origen a normas de ius cogens. Sólo pueden hacerlo los que son el<br />

principio del derecho internacional general y sobre este punto el Proyecto de la<br />

Comisión de Derecho Internacional guardó silencio.


114<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

1.3. Anular los tratados concertados que violan sus disposiciones<br />

Este es el carácter esencial de la institución del ius cogens y deriva de la<br />

preminencia jerárquica que se establece sobre las fuentes del derecho internacional<br />

a favor de éste, una vez generados los consensos necesarios que generen un vínculo<br />

jurídico obligatorio en este sentido.<br />

Sin duda, en esta materia, la nulidad de una norma jurídica constituye la<br />

sanción más grave del derecho internacional, mismo que emana de manera muy<br />

directa de la importancia fundamental que adquieren las normas de ius cogens<br />

para la sociedad internacional.<br />

Por ello la violación del ius cogens no sólo provoca la nulidad de los tratados<br />

contrarios -salvo en el caso de que se aluda a un tratado que establezca una nueva<br />

norma de ius cogens, donde no habría derogación sino modificación de sus<br />

contenidos- sino que también involucra la nulidad de una regla consuetudinaria<br />

regional o local, interna o internacional, que conlleva a una derogación de sus<br />

disposiciones.<br />

2. CLASIFICACIÓN DE UNA NORMA DEL DERECHO INTERNACIONAL<br />

GENERAL EN EL IUS COGENS<br />

Si se parte de la idea, desde el punto de vista jurídico, de que el carácter<br />

específico del ius cogens obedece al hecho de que todo acto particular que provoca<br />

una derogación de sus disposiciones se anula, es este carácter el que debe ser<br />

establecido cada vez que se presuponga que una norma determinada del derecho<br />

internacional general forma parte de él.<br />

Cabe señalar que esta demostración es difícil de hacer en lo que se refiere<br />

a los principios generales del derecho, en el sentido del artículo 38 del Estatuto de<br />

la Corte Internacional de Justicia, de donde constituyen principios comunes a todos<br />

los órdenes jurídicos, por tanto no se imponen por las necesidades propias de la<br />

comunidad internacional, basados en principios de igualdad de derechos, la<br />

obligatoriedad de los pactos, igualdad soberana, solución de controversias por medios<br />

pacíficos –excluyendo en toda forma el uso de la fuerza–, la protección de los<br />

derechos humanos y la buena fe en los acuerdos.<br />

Tómese nota de que la aparición de normas con carácter de ius cogens es<br />

relativamente reciente en el debate, aunque el derecho internacional se encuentra<br />

en un proceso de rápida evolución.


Ius cogens 115<br />

Esto se nota con más claridad en el comentario al artículo 50 del Proyecto<br />

de Artículos acerca del Derecho de los Tratados (artículo 53, modificado por la<br />

Conferencia de la Convención de Viena de 1969) cuando nos dice:<br />

La comisión estimó conveniente establecer en términos generales que un tratado<br />

es nulo si es incompatible con una norma de ius cogens y dejar que el contenido<br />

de esta norma se forme en la práctica de los Estados y la jurisprudencia de los<br />

tribunales internacionales.<br />

De este modo, en su análisis, nos atendremos a las normas de derecho<br />

convencional y a las de derecho consuetudinario:<br />

2.1. En el derecho convencional internacional<br />

Adquirirá el carácter de ius cogens, si el tratado que la consagra dispone<br />

expresamente que toda derogación de sus disposiciones será sancionada con la anulación.<br />

Por ejemplo, el artículo 49 del Proyecto de la Comisión, que dispone que un tratado<br />

cuya concertación se obtuvo por medio de amenazas o del empleo de la fuerza es nulo.<br />

La consecuencia de esta disposición es dar el carácter de ius cogens a la<br />

norma que prohíbe la amenaza o el empleo de la fuerza con vistas a imponer a un<br />

Estado la aceptación de un tratado.<br />

2.2. En el derecho consuetudinario<br />

Hay que partir del consensus sobre el que se fundamenta la costumbre:<br />

existe la convicción de que la norma tiene tal importancia que no puede descartarse<br />

mediante un particular y que, por consiguiente, conlleva la anulación de todo convenio<br />

concertado convenido por los estados. Por ejemplo el no reconocimiento a<br />

situaciones de facto establecidas como violatorias al derecho internacional y a la<br />

inhabilitación del recurso de guerra.<br />

En el informe de 1966 de la Comisión de Derecho Internacional presentó<br />

algunos ejemplos de ius cogens:<br />

a. Un tratado internacional relativo a un caso de uso ilegítimo de la fuerza, con<br />

violación de los principios de la Carta de la ONU.<br />

b. Un tratado internacional relativo a la ejecución de cualquier otro acto delictivo<br />

en derecho internacional.<br />

c. Un tratado internacional destinado a realizar o tolerar actos tales como la<br />

trata de esclavos, la piratería o el genocidio, en cuya represión todo estado<br />

está obligado a cooperar.


116<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

d. Los tratados internacionales que violen los derechos humanos, la igualdad<br />

de los Estados o el principio de la libre determinación.<br />

En la doctrina también se mencionan como ejemplos de normas de ius<br />

cogens: las que prohíben la guerra de agresión, el genocidio, la piratería, el comercio<br />

de esclavos, el uso de la fuerza, las que protegen los derechos humanos, la no<br />

intervención, la autodeterminación de los pueblos.<br />

Además la jurisprudencia internacional ha echado mano de las normas de<br />

ius cogens para dar resolución a los conflictos planteados, como norma imperativa<br />

para los Estados (Casos de la plataforma continental del Mar del Norte fallo de 20<br />

de febrero de 1969, caso relativo a la Barcelona Traction, Light and Power Company<br />

Limited fallo de 24 de julio de 1964 y fallo de 5 de febrero de 1970, entre otros)<br />

Finalmente, a manera de comentario final, es conveniente tener en cuenta<br />

que la demostración de que una norma cualquiera del derecho internacional general<br />

posee el carácter de ius cogens requiere para cada caso una amplia investigación,<br />

en el que los caracteres centrales radicaran en la función de obligatoriedad entre<br />

los estados, sin admitir acuerdos en contrario.<br />

REFERENCIAS<br />

CASANOVAS Y LA ROSA, Oriol. Prácticas de Derecho Internacional Público. 2.<br />

ed. Madrid: Tecnos, 1978.<br />

ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS – ONU. Resúmenes de los fallos, opiniones<br />

consultivas y providencias de la Corte Internacional de Justicia. New York:<br />

ONU, 1992.<br />

ORTIZ AHLF, Loretta. Derecho Internacional Público. México: Oxford University<br />

Press, 1999.<br />

SEPÚLVEDA, César. Derecho Internacional. 20. ed. México, DF: Porrúa, 1998.<br />

SORENSEN, Max (compilador). Manual de Derecho Internacional Público. 6ª<br />

reimpresión. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.<br />

TRIGUEROS SARABIA, Eduardo. Trayectoria del Derecho mundial. México, DF:<br />

Porrúa, 1953.<br />

VILLARI, Michel. El devenir del Derecho Internacional. Ensayos escritos al correr<br />

de los años. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 117<br />

9<br />

Desbordamiento de los mínimos<br />

morales en los derechos humanos:<br />

exclusión y justicia<br />

Overpassing minimum moral principles<br />

in human rights: exclusion and justice<br />

DORA ELVIRA GARCÍA<br />

Profesora - investigadora de tiempo completo de la Escuela de Humanidades y Ciencias Sociales de<br />

Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Monterrey (ITESM), Campus Ciudad de México.<br />

Actualmente es Líder de Investigación de Proyectos de Humanidades de la institución señalada.<br />

Coordinadora de la Cátedra UNESCO-Tecnológico de Monterrey sobre Ética y Derechos humanos.<br />

Autora de Variaciones en torno al liberalismo, Ed. Galileo /Universidad de Sinaloa, 2001, México;<br />

El liberalismo hoy. Una reconstrucción crítica del pensamiento de John Rawls, Ed. Plaza y<br />

Valdés,2003, México; Del poder político al amor al mundo. Hannah Arendt; Ed. Porrúa, 2005,<br />

México; Perspectivas y aproximaciones en torno a la política, la ética y la cultura desde la<br />

hermenéutica analógica, Ed. Dúcere, 2004, México. Coordinadora y editora de varios libros, entre<br />

ellos El sentido de la política; Derechos humanos y hermenéutica analógica; Etica, persona y<br />

sociedad, ética, profesión y ciudadanía, Estudios de género y hermenéutica analógica.<br />

dora.garcia@itesm.mx.<br />

RESUMEN<br />

El presente texto lleva a cabo una reflexión en torno a situaciones que cotidianamente<br />

vivimos en nuestro mundo contemporáneo y que son generadoras de severas<br />

injusticias. Es preciso continuar con la defensa de los derechos humanos dado que<br />

su contravención rompe con los límites morales. Situaciones de clara injusticia por<br />

la exclusión que muchos seres humanos sufren, proceden de diversas causas, entre<br />

ellas, la absolutización de lo económico y su despreocupación generalizada en<br />

torno a la responsabilidad moral.<br />

Palabras claves: derechos humanos, mínimos morales, injusticia, responsabilidad.


118<br />

ABSTRACT<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

This text makes a reflection on some realities lived in our contemporary world which<br />

produces severe injustices. We have to continue the defense of human rights because<br />

the failure to do so destroys moral boundaries. Injustice is evident because human<br />

beings suffer exclusion, and this injustice is caused by the absolutization of<br />

economics and the forgetting of moral responsibility.<br />

Keywords: human rights, moral minimums, injustice, responsability.<br />

“La ética, enteramente autónoma, sigue proporcionando<br />

el referente normativo para juzgar el mundo y para abrigar<br />

una modesta esperanza respecto a su transformación, una<br />

esperanza ligada al imperativo del disenso, esto es, al<br />

imperativo moral de decir que no a cuanto se nos antoja<br />

intolerable por injusto e indigno”<br />

Javier Muguerza 1<br />

“Para quienquiera que fuera una vez excluido y destinado<br />

a la basura no existen sendas evidentes para recuperar la<br />

condición de miembro de pleno derecho. Tampoco existen<br />

caminos alternativos, oficialmente aprobados y proyectados,<br />

que cupiera seguir (o que hubiera de seguir a la fuerza)<br />

hacia un título de pertenencia alternativo. […]¿Se tiran<br />

las cosas por causa de su fealdad o son feas porque se las<br />

ha destinado al basurero?<br />

Zigmunt Bauman 2<br />

1. A MODO DE INTRODUCCIÓN: EL SUSTRATO<br />

HUMANO SIGUE SIENDO LO MORAL<br />

¿Por qué seguir pensando en la necesidad de la ética en nuestros días?¿Por<br />

qué continuar con las consideraciones en torno a los derechos humanos? Preguntas<br />

como éstas son recurrentes y han de vislumbrarse de manera obligada porque<br />

existen personas que están en situaciones absolutamente inaceptables e injustas<br />

en diversos aspectos humanos.<br />

1 MUGUERZA, J, citado en GUERRA, M.J. y ARAMAYO, R. Los laberintos de la responsabilidad. España:<br />

CSIC/Plaza y Valdés Editores, 2007, p. 12.<br />

2 BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, pp. 30 y 13.


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 119<br />

Es preciso repensar qué es lo que hemos venido haciendo para con ello<br />

evitar repetir y reproducir, en la medida de lo posible, los graves problemas que<br />

generan tales situaciones que responden a modelos que necesariamente tenemos<br />

que repensar. Sólo así podremos cambiarlos y combatirlos para humanizarlos.<br />

Dentro de tales modelos, uno de los grandes equívocos que ha persistido en<br />

el pensamiento contemporáneo y que se ha reforzado por la intención constante de<br />

pensar en el “crecimiento” de la producción de recursos únicamente desde el<br />

marco de la economía. Ésta ha sido una pretensión persistente de reducir todos los<br />

problemas humanos únicamente al ámbito económico. Como sabemos además,<br />

tales formas reduccionistas son las que han generado la debacle que se está<br />

sucediendo en el mundo, porque se deja de lado un terreno fundamental en la vida<br />

humana: el ámbito moral.<br />

Las realidades como las que apuntamos han propiciado situaciones de violencia<br />

que apreciamos en cada instante en nuestro país. Ellas van más allá de los límites de<br />

lo moral, de modo que esta transgresión se evidencia como forma de destrucción de<br />

lo humano y por ende resulta ser profundamente injusta para quienes la sufren.<br />

Es precisamente este desbordamiento moral el que ha generado el desmoronamiento<br />

de los ámbitos humanos, desde los mismísimos derechos humanos hasta<br />

los elementos de carácter económico y político que constituyen el andamiaje humano.<br />

Se han recrudecido las formas de relación humana de cuño violento que<br />

avasallan recurrentemente los derechos humanos. Una de esas formas de violencia<br />

es la exclusión, –hermanada generalmente a situaciones de pobreza– que con sus<br />

diversas cartas de presentación y expresión ocasiona –en los segmentos relegados<br />

y repudiados de la humanidad– la cancelación de esos derechos, con la consecuente<br />

deriva de las diversas formas de abyección humana provocada por instancias de<br />

dominio, de abuso y arbitrariedad de unos seres humanos sobre otros.<br />

Esto marca la significación de los que están fuera, es decir, de los excluidos<br />

como residuos de la humanidad, como desechos que no hay por qué incluir. Las<br />

consideraciones que se hagan en torno a ellos están generalmente impregnadas de<br />

desprecio, sin pensar que son consecuencias de una sociedad injusta que no les ha<br />

procurado ni permitido tener lo necesario para ser apreciados y por ende incluidos<br />

dentro de esa sociedad.<br />

Quisiera destacar a lo largo de este escrito, que desde la existencia de una<br />

conciencia moral es posible atestiguar cómo la ruptura de los límites morales<br />

expresados en estos fenómenos de exclusión, significa la destrucción de lo humano.<br />

Desde ahí es que la tarea que ha de llevar a cabo una ética crítica es abordar los<br />

problemas de carácter ético que se articulan con su dimensión social, que es la


120<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

justicia 3 . Tal faena crítica “empieza cuando el sujeto se distancia de las formas de<br />

moralidad existentes, de sus usos “normales”, y se pregunta por la validez de sus<br />

reglas y comportamientos” 4 poniéndolos en tela de juicio, sobre todo cuando tal<br />

moralidad permite situaciones inaceptables tales como la exclusión inhumana, que<br />

hace de los derechos humanos recursos fútiles. De ahí que tenga que pensarse en<br />

la defensa de lo humano como algo debido por su raigambre moral, sobre todo ante<br />

situaciones amenazantes y desde ahí se apele a la urgente responsabilidad moral.<br />

Esta última se tiene que enfrentar a las identidades rotas de aquellos que son dejados<br />

fuera de los beneficios de los que sí se ubican dentro. El fenómeno de la pobreza tan<br />

complicado hoy día –porque no sólo tiene que ver con recursos materiales– es un<br />

ejemplo que constituye causa y efecto del fenómeno de la exclusión.<br />

Las situaciones de injusticia y de falta de consideración a los derechos<br />

humanos se derivan de causales que generalmente –aunque no únicamente– son<br />

del dominio económico, y a la par, tienen efectos tan destructivos que dejan a<br />

quienes resultan excluidos, como simples residuos humanos.<br />

El tema es evidentemente moral, y aunque el punto de partida ha de tener<br />

ese mismo tinte –por lo que tiene que ver con los derechos humanos– sin embargo,<br />

sus implicaciones son de carácter social, político, económico y legal. Éstas últimas<br />

han de ser consideradas para la reconstrucción de los elementos propios de lo<br />

humano, elementos que han sido recurrentemente desdeñados y pisoteados por<br />

quienes muestran una faz de dominio generadora de enorme injusticia.<br />

2. LA DEFENSA DE LO HUMANO FRENTE A LOS PARADIGMAS<br />

DEL CONTINUO CRECIMIENTO ECONOMICISTA. Y, ¿LA<br />

RESPONSABILIDAD?<br />

Hoy día, por desgracia nos encontramos sometidos a múltiples intereses que<br />

destruyen lo humano que nos es propio, al violentarlo y reducirlo a mero instrumento<br />

sujeto a diversos tipos de dominio. Como apuntábamos antes, uno de ellos es<br />

innegablemente de carácter prevalentemente económico, ámbito el que ha venido<br />

extendiéndose de manera incesante en todos los espacios humanos, inundando y<br />

tiñendo con su fuerza las demás áreas humanas. Este reduccionismo de carácter<br />

económico ha hecho que todos los terrenos de lo humano contengan una tonalidad<br />

económica, con lo que se evidencia una reificación de lo humano con los demoledores<br />

resultados que ya conocemos en el horizonte actual, por la ruina de las personas.<br />

3 VILLORO, L. Sobre el principio de la injusticia: la exclusión, en Isegoría, 22, 2000, p. 103.<br />

4 Ibid, p. 111.


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 121<br />

Cabe entonces una obligada reflexión en torno a la relevancia de la<br />

responsabilidad de las acciones. Es preciso advertir “los vericuetos, a veces<br />

pobremente iluminados, de los laberintos de la responsabilidad: el incremento de la<br />

desigualdad fruto de la globalización económica,” 5 entre otros graves fenómenos<br />

que conllevan formas de violencia y de exclusión en los diferentes campos humanos.<br />

Todas estas situaciones han sido favorecidas por el mismo ser humano y las<br />

diversas fuerzas que lo amenazan son generadas por quienes pretenden los beneficios<br />

individuales sin apreciar el colectivo y propiciadas por quienes buscan el dominio<br />

de todos los espacios posibles, sin estimar las consecuencias. Así, en general el ser<br />

humano contemporáneo ha buscado –sin contención alguna– una infinita<br />

omnipotencia, así como un crecimiento incesante y perpetuo de un “cada vez más”. 6<br />

Con ello, la ruptura de los límites –en todos sentidos– ha provocado la creación de<br />

nuevos mercados, dado que los existentes no satisfacen la voracidad de muchos<br />

seres humanos. Las consecuencias han sido de gran alcance y han tenido efectos<br />

en toda la sociedad, pero por obvias razones han recaído sobre los más débiles, que<br />

quedan fuera de cualquier oportunidad de participación, y los que difícilmente son<br />

parte de los pocos beneficios.<br />

La crisis que vivimos hoy día tiene relación con esa desmesura 7 , así como<br />

con el debilitamiento de de aquello que humanamente es valioso. Y en esta misma<br />

coloratura podemos preguntar –hoy– con Arendt ¿cómo se va a resolver el enorme<br />

problema de “una sociedad de trabajadores sin trabajo” 8 construida en una sociedad<br />

que ha sido pensada para el crecimiento, pero que no tiene crecimiento?<br />

El problema es que, aun estando en plena recesión, no se han cambiado los<br />

paradigmas de crecimiento, lo cual hace que la situación sea en realidad muy<br />

dramática. ¿Podríamos pensar que lo importante es crecer en humanidad –teniendo<br />

en cuenta todas las dimensiones que conforman la vida humana– y no sólo en una<br />

5<br />

GUERRA, M.J. y ARAMAYO, R. Los laberintos de la responsabilidad. España: CSIC/Plaza y Valdés<br />

Editores, 2007, p. 10.<br />

6<br />

RIDOUX, N. Menos es más. Introducción a la Filosofía del Decrecimiento, Barcelona; Los Libros del<br />

Lince, Barcelona, 1999, p. 10.<br />

7 Ibid, p. 11.<br />

8 Cfr., ARENDT, H. La Condición Humana. Barcelona: Paidós, 1998, pp. 138-142 y 181-185; algo<br />

similar piensa Bauman cuando afirma que hoy día “uno de cada tres empleados ha ocupado el<br />

mismo puesto en la misma empresa en menos de un año. Dos de cada tres han estado en el mismo<br />

puesto menos de cinco años. En Gran Bretaña, hace veinte años, el 80% de los empleos eran del tipo<br />

40/40 (semana laboral de 40 años durante 40 años de vida) y estaban protegidos por una compacta<br />

red de contención sindical, jubilatoria y de derechos compensatorios. Hoy solo el 30% de los<br />

empleados entra en esa categoría y el porcentaje sigue disminuyendo y velozmente”, p. 27, en<br />

BAUMAN, Z. En busca de la política, Buenos Aires: FCE, 2003, p. 27.


122<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

de ellas, como lo ha pretendido la filosofía del decrecimiento? 9 , en donde tal<br />

decrecimiento significa “desacostumbrarnos a nuestra adicción al crecimiento,<br />

de esta ideología productivista desconectada<br />

del programa humano y social” 10 . El proyecto del decrecimiento pasa por un cambio<br />

de paradigma y de criterios para generar una transformación de las instituciones, y<br />

desde ella una incorporación de los más desfavorecidos a los proyectos comunes y<br />

con ello una posibilidad de que no queden soslayados.<br />

Es necesario hacer decrecer la desigualdad de algún otro modo, ya que,<br />

desde el modelo que ya conocemos –del crecimiento económico– se ha demostrado<br />

que a pesar de sus intenciones, no ha reducido las desigualdades existentes. Con<br />

estas desigualdades llevadas a su máxima expresión, se han violentado los límites<br />

de aceptación del daño humano, y de esa manera se ha forzado la aceptación de lo<br />

inaceptable e inadmisible por injusto.<br />

Desde aquí no se puede negar la existencia de un desbordamiento de los<br />

mínimos morales en lo relacionado con los derechos humanos. Tal “sobrepasamiento”<br />

ha sido recurrentemente vivido por quienes están y han estado en situaciones de<br />

permanente exclusión y heredada pobreza que resulta a todas luces injusta e<br />

inaceptable. De ahí que sea preciso la búsqueda de superación de tal realidad para<br />

dar cuenta de la responsabilidad que tenemos ante los perjuicios que la humanidad ha<br />

generado tanto en las personas directamente como en su hábitat..<br />

De nuevo podemos decir que la filosofía del decrecimiento (que significa<br />

decrecer en lo que no nos es propio y crecer en lo humano) nos invita a pensar que<br />

estamos en un mundo de recursos limitados, por lo que no es posible un crecimiento<br />

indefinido. Además, frente a las crisis –como la que vivimos actualmente– es preciso<br />

reconocer la necesidad de compartir, de agrandar la responsabilidad hacia los otros 11 ,<br />

así como la obligación de actuar con sobriedad y evitar el sobreconsumo.<br />

9 La filosofía del decrecimiento es un movimiento que nació a finales de los años 70’s del Siglo XX. Su<br />

portavoz ha sido Serge Latouche quien conjuntamente con otros pensadores críticos del desarrollo<br />

y la sociedad del consumo como Ivan Illich, André Gorz, Cornelius Castoriadis o Francois Partant<br />

se ha opuesto a las adicciones del consumo. Hoy día este movimiento ha logrado repuntar como<br />

proyecto social, político y económico frente a las sociedades del “perpetuo crecimiento” y defienden<br />

que no es necesario crecer para vivir bien. Ellos señalan que este sistema del crecimiento camina<br />

hacia el colapso, como puede evidenciarse en el cambio climático, la extinción de las especies, la<br />

propagación de las enfermedades relacionadas con la contaminación, etc. Latouche señala que los<br />

pilares del decrecimiento son revaluar, reconceptualizar, reestructurar, relocalizar, redistribuir, reducir,<br />

reutilizar y reciclar. Ridoux –a quien citamos recurrentemente en este escrito– es asimismo quien ha<br />

elaborado un libro en donde se presentan estas apuestas de la filosofía del decrecimiento.<br />

10<br />

RIDOUX, N. Menos es más. Introducción a la Filosofía del Decrecimiento, Barcelona: Los Libros<br />

del Lince, 1999, p. 11.<br />

11 Análogamente con el modo agrandado de pensar de corte kantiano y retomado por Arendt.


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 123<br />

Siguiendo la misma lógica del exceso podemos apreciar cómo los valores<br />

dominantes vigentes se plasman en un cada vez más, y se traducen en “cada vez<br />

más rápido”, “cada vez más cosas”, “cada vez más poder”, “cada vez más rentable”.<br />

Estas formas de vivir nos han conducido a las encrucijadas en las que estamos en<br />

todos niveles y en casi todos los sentidos, y han hecho que, en el ánimo de la<br />

constante e incesante ambición material se malogre la humanidad. Ese quebranto<br />

se ubica: desde el mismo descompuesto habitat hasta la recurrente generación de<br />

violencia que no respeta la dignidad; ahí en donde todo está en venta y en una<br />

lógica de apropiación infinita, por la que se favorece una mayor producción que<br />

por desgracia –como podemos verlo actualmente– no logra subsanar las necesidades<br />

de trabajo limitado para quienes lo demandan en vistas de poder tener recursos<br />

para apropiarse de cosas, de consumir sin pensar 12 .<br />

Por ello, hemos de exigir que los valores humanistas se consideren de manera<br />

seria y se refuercen en aras de la defensa y atrincheramiento del espacio moral<br />

para evitar su desvanecimiento. Si todavía hubiera quienes desearan la defensa del<br />

concepto ilustrado de progreso, habríamos de hacerle entender que tal progreso no<br />

puede ser de otro modo sino en lo humano, en el engrandecimiento de los recursos<br />

morales que son los que defenderán a la humanidad de su extinción.<br />

Desde los años 30´s (1931) Keynes en sus Perspectivas económicas para<br />

nuestros nietos apuntaba que sus nietos –es decir nuestra generación–, deberíamos<br />

de liberarnos de la coacción económica de modo tal que trabajáramos únicamente 15<br />

horas a la semana. Esta reducida jornada semanal de trabajo –articulada con una<br />

mayor solidaridad– nos posibilitaría compartir el nivel de producción logrado en la<br />

jornada de trabajo, lo cual nos salvaría de las situaciones tan cotidianas de<br />

que invaden a casi todo el mundo. Esta propuesta significa<br />

“trabajar menos para vivir mejor”, que se antoja sumamente deseable. Resulta muy<br />

grave que se trabaje para obtener satisfactores superficiales, y en ese proceso de su<br />

alcance vamos demoliendo nuestra vida, nuestra salud y la posibilidad de vivir mejor<br />

con menos cosas. Y esa es la gran cuestión, porque con una forma de vivir así nos<br />

reducimos a ser meros consumidores, pero no sólo, además nos esclavizamos por la<br />

angustia por pagar, cuestión que se resuelve si trabajamos más. Construimos con ello<br />

un círculo vicioso y destructivo de lo humano, nos consumimos para “tener” y ese<br />

“tener” se solventa únicamente con exceso de trabajo; no se deja tiempo para nada<br />

más porque es fundamental trabajar para soportar los gastos.<br />

Con una reducción de las jornadas de trabajo se buscaría una vida con un<br />

equilibrio mayor y en aras de la realización personal, no únicamente en la vida<br />

12 CORTINA, A. Por una ética del consumo, Madrid: Taurus, 2003, pp. 30-40.


124<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

profesional sino también en la vida familiar, en las cuestiones del barrio, en la<br />

búsqueda una vida asociativa, así como la participación en actividades políticas, en<br />

la práctica o incursión en las cuestiones de arte, o cualquier actividad que cada<br />

quien quisiera desarrollar.<br />

Esta propuesta nos presenta la posibilidad de un tipo de vida más frugal, una<br />

vida moderada y sobria que considere sobre todas las cosas los valores humanistas.<br />

La reducción en la producción se compensaría viviendo mejor. Los empleos serían<br />

más en número y serían más gratificantes 13 ; podría equilibrarse el trabajo intelectual<br />

y el manual, con lo que se combatiría por ejemplo, la obesidad, una de las epidemias<br />

de nuestro siglo.<br />

Con esta apuesta se estaría proponiendo una relocalización de la economía<br />

y esto significaría un mayor desarrollo humano para todos, además de la superación<br />

de las barreras que generan situaciones de desventaja, de exclusión y de pobreza.<br />

Por eso, el decrecimiento no es regresión, ni la frugalidad es desigualdad, como<br />

tampoco hay una renuncia al progreso. Se pretende más bien su resignificación<br />

como progreso humano, progreso moral y espiritual.<br />

Decrecimiento significa la recuperación del espíritu crítico que se requiere<br />

para ir por el camino de un verdadero desarrollo humano 14 , y también quiere decir<br />

el retorno a una moderación que favorezca el desarrollo humano en su sentido más<br />

profundo e integral: en sus dimensiones cultural, filosófica, política, relacional y<br />

contemplativa. Es un “desarrollo que por su sencillez y profundidad pueda ser<br />

compartido por todas las personas” 15 . Es una nueva forma de vida que es preciso<br />

construir individual y colectivamente y en la que se el compartir se convierte en<br />

una de las características fundamentales.<br />

Mientras el crecimiento económico siga siendo considerado como referente<br />

absoluto, y se busque que sea infinito, no podrá ser alcanzado, sino que seguirá generando<br />

exclusión, además de que continuará amenazando el medio en el que vivimos.<br />

Tendremos que centrarnos en lo que somos, y en ese sentido podremos “ser<br />

sensibles a la profundidad de los instantes más sencillos […] (así como) “menos<br />

bienes pero más vínculos” 16 .<br />

13<br />

RIDOUX, N. Menos es más. Introducción a la Filosofía del Decrecimiento, Barcelona; Los Libros<br />

del Lince, Barcelona, 1999, p. 16.<br />

14 Ibid, p. 18.<br />

15 Ibid, p. 18.<br />

16 Ibid, p. 21.


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 125<br />

Una forma de vida pensada desde lo humano nos permitirá un futuro más<br />

humanizado, más justo y con opciones más viables para el oscuro panorama que se<br />

nos presenta en torno a los fenómenos diversos que constituyen la exclusión y<br />

violentan a su vez a los derechos humanos. Frente a estos problemas tenemos una<br />

enorme responsabilidad.<br />

La responsabilidad tiene que emerger de las acciones sociales y políticas<br />

bien planteadas y en disposición a mantenernos fieles al aquello que constituye el<br />

fin que persigue tal acción social y respecto de la cual nuestras acciones son<br />

valoradas.<br />

Con Arendt diríamos que debemos responder por el mundo, que involucra<br />

una trama intersubjetiva, y desde ahí que hable de responsabilidad colectiva que<br />

implica responder ante otros. Además este responder ante otros tiene que ver con<br />

el pensamiento representativo y de la imaginación que nos posibilita “ponernos en<br />

el lugar del otro” para evitar el mal y con ello evidenciar la responsabilidad. Pero<br />

además de esta responsabilidad intersubjetiva podemos señalar la que tiene una<br />

caracterización objetiva y fue propuesta por Hans Jonas en su apuesta por la<br />

obligada preservación del planeta y del aseguramiento de las condiciones de la<br />

vida humana libre y digna en el futuro.<br />

Estar instalados de manera confortable en una cultura de la autocomplacencia<br />

y de la autoindulgencia hace que los deberes que emanan de la responsabilidad<br />

queden oscurecidos e invisibilizados 17 .<br />

Toda esta ceguera ante lo otro tiene como consecuencia la exclusión de las<br />

personas, por los efectos que se generan desde la violencia al mundo y a la naturaleza<br />

que impacta finalmente en aquellos que están situados en los peores lugares del<br />

campo social.<br />

Tenemos que dar cuenta sobre nuestras acciones en la práctica vital a través<br />

del razonamiento práctico aristotélico, o de la sagesse pratique ricoeuriana que<br />

significan la responsabilidad de la moral vivida enfrentada a los “otros” abandonados<br />

en situaciones de violencia, miseria e injusticia que se expresan cuando quedan<br />

excluidos y etéreos.<br />

17 GUERRA, M.J. “Responsabilidad y juicio moral”, en GUERRA, M.J. y ARAMAYO, R.<br />

Los laberintos de la responsabilidad. España: CSIC/Plaza y Valdés Editores, 2007, p. 105.


126<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

3. IDENTIDADES ROTAS: LA INVISIBILIDAD DE LOS EXCLUIDOS<br />

“La política occidental se constituye<br />

sobre todo por medio de la exclusión”<br />

G. Agamben 18<br />

La identidad logra construirse en los espacios compartidos, ahí es también<br />

en donde se cimenta el reconocimiento mutuo, pero es asimismo el lugar en el que<br />

se lleva cabo su contraparte: la exclusión.<br />

La exclusión significa el rechazo a una persona o cosa que queda fuera del<br />

lugar que ocupaba 19 , así como la situación de desventaja en los diversos ámbitos<br />

económico, político, social y profesional. Es asimismo la no inclusión de un sujeto,<br />

su sustracción, descarte y marginación del grupo al que pertenece.<br />

Las diversas formas de exclusión expresan la ceguera de aquellos no<br />

reconocidos a quienes les queda únicamente una tarea de sobrevivencia y que<br />

quienes no pueden realizar sus acciones en lo público no podrán tampoco ejercer la<br />

libertad propia de este ámbito y no podrán alcanzar los fines colectivos ni los medios<br />

para su logro. Con ello la buscada participación colectiva se cancela y se revoca<br />

también el alcance de lo común. La condición que permitiría tal búsqueda está en<br />

el juicio prudencial al dejar de absolutizar las condiciones privadas subjetivas y las<br />

idiosincrasias determinantes de las perspectivas individuales para incluir a los que<br />

están más allá, es decir, a “los otros”. El recurso del modo amplio de pensar 20<br />

nos hace trascender las propias limitaciones individuales con lo que se exige la<br />

presencia de los demás. Al rescatar esta habilidad kantiana de ver las cosas no<br />

sólo desde nuestro propio punto de vista sino en la perspectiva de todos los que<br />

acontezca que estén presentes 21 se posibilita compartir el mundo con todos ellos.<br />

Este compromiso de carácter moral intenta anular las posibilidades de la exclusión.<br />

Los efectos de la exclusión evidencian la ruina de los campos de lo político,<br />

lo social y lo económico al no poder defender la ruptura de las identidades, la<br />

pérdida de la dignidad y el menoscabo de la honorabilidad humana. Este maltrecho<br />

escenario es el detonador recurrente para las diversas formas de exclusión y se<br />

acompaña –generalmente– por la desconfianza en la administración de la justicia y<br />

18<br />

AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p. 16.<br />

19 Según la definición de la Según la definición del Diccionario de la Real Academia, www.rae.es.<br />

20 Recurso kantiano propuesto por ARENDT en ARENDT, H. Lectures on Kant’s political philosophy,<br />

United States of América: University of Chicago Press, 1995, p. 75.<br />

21<br />

ARENDT, H. Between Past and Future, Eight Excercises in Political Thought, USA: Penguin Books,<br />

1993, p. 221.


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 127<br />

la recurrente negligencia oficial. Si a estas realidades les añadimos la cultura del<br />

miedo y del silencio en que vivimos hoy día, así como la discordancia entre las<br />

legislaciones protectoras de los derechos humanos, tenemos como resultado un<br />

ambiente de oportunidad para quienes se aprovechan de estas circunstancias, (como<br />

ha pasado hoy día con aquellos que se dedican por ejemplo, a la trata de personas.)<br />

Estos grupos vulnerables se conforman como los excluidos, ellos cargan con la<br />

mácula de ser quienes no tienen derecho a nada. Son aquellos que “constituyen la<br />

otra cara de la sociedad que ella misma se niega a mirar” 22<br />

Quien está excluido se encuentra aislado en alguno de los sentidos vitales,<br />

esto significa que puede tener algunas desventajas en cuanto al reconocimiento ya<br />

sea de sus derechos legales o a su ejercicio efectivo, a también a la cuestión<br />

material que robustece las desventajas a tal grado que constituya como algo<br />

irreversible. Desde ahí es que como afirma Levinas, mirar el rostro del otro “cara<br />

a cara” quiere decir que lo comprendo desde su otredad, y no desde mi posición ya<br />

que esto último significa violentarlo.<br />

Asimismo, se puede suponer la exclusión social con un enfoque de carácter<br />

institucional y desde esa perspectiva la exclusión se aprecia cuando la misma<br />

sociedad condesciende en aceptar diferentes formas de discriminación, al negar el<br />

acceso a bienes y servicios, a los espacios de intercambio y a los recursos requeridos<br />

para llevar a cabo el papel de ciudadanos.<br />

Excluir a los conciudadanos significa ubicarlos en una situación de carencia<br />

de satisfacción de las necesidades humanas básicas, en tanto otros grupos tienen<br />

mucho más de lo necesario. De ahí que se indaguen los procesos estructurales que<br />

dan lugar a estas situaciones de exclusión, así como los elementos culturales<br />

ideologizados y los mecanismos que han generado la exclusión en relación a los<br />

recursos personales y comunes.<br />

Como lo ha señalado Amartya Sen 23 , es necesario desbrozar los factores y<br />

elementos que generan la pobreza, así como su conformación generada mediante<br />

los procesos sociales que posibilitan o niegan las oportunidades de trabajo y el<br />

acceso a políticas públicas.<br />

Por desgracia, la exclusión social se reproduce debido a que quienes están<br />

en las instancias socio-político-económicas no incorporan en su seno a los grupos<br />

y a las personas peor ubicadas en la escala social, dejándolos a la deriva, ya sea<br />

22<br />

SUTTON, S. “La exclusión social y el silencio discursivo” en Voces y contextos, México: Otoño, núm.<br />

II, año I, 2006, p. 7.<br />

23<br />

SEN, A. Desarrollo y libertad, Planeta, España, 2000.


128<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

soslayándolos de manera explícita, o simplemente negándose a plantear avances<br />

que se permeen en los diferentes ámbitos de lo social, lo cultural y lo político. El<br />

problema es que estas exclusiones de carácter social, cultural y político conllevan<br />

la exclusión ética que está subyaciendo bajo las primeras.<br />

La exclusión ética violenta la dignidad humana plural y anula la presencia de<br />

las personas. Por ello, la pluralidad como modelo de inclusión ha de propiciar los<br />

puntos en común en las sociedades para evitar la marginación, la exclusión, la<br />

discriminación o la masificación al destruir la esfera de lo común y con ella cualquier<br />

posibilidad de libertad y de reconocimiento.<br />

Frente a estas amenazas se impone una reflexión en torno a la obligada<br />

pluralidad en es espacio de lo humano, para evitar los enormes problemas que<br />

genera la exclusión, entendida como el concepto que expresa una realidad en la<br />

que algunas personas o grupos quedan en situación de desventaja. Es los espacios<br />

limítrofes en donde aparecen las llamadas identidades negativas que se relacionan<br />

por lo general con las profundas desigualdades sociales, y se van generando desde<br />

el margen y el límite. Esta situación marginal se vuelve sinónima a las categorías<br />

de pobre, campesino y de obrero que están entre estos grupos contiguos y excluidos.<br />

Los que están afuera, los expulsados, los “otros irreductibles” se parecen a aquellos<br />

hombres “superfluos” a los que se refería Hannah Arendt cuando hablaba de quienes<br />

estaban simplemente de más. Esas identidades emergen de los márgenes,<br />

identidades que se van construyendo en el entramado de la exclusión, la pobreza y<br />

la ignorancia y que están a expensas del dominio quienes están en el centro, es<br />

decir quienes están en sociedades tan egoístas e individualistas que resultan ser<br />

tan “monstruosas” como los mismos criminales. Esas identidades casi borradas<br />

por excluidas, han emergido en la solicitud de reconocimiento para superar el<br />

desprecio, que se convierte en su peor enemigo, dado que en muchas ocasiones se<br />

aprovechan de esas circunstancias para el dominio, el provecho y el lucro con la<br />

dignidad de quienes hacen el papel de víctimas.<br />

En los espacios en los que se violentan todos los derechos de las personas no<br />

hay lugar, ni es posible pensar en la consideración de las apuestas humanizantes que<br />

concebimos en nuestras reflexiones, en torno a los ciudadanos con sus especificidades<br />

como las pensaban los clásicos. Las cosas son muy diferentes, y en esos espacios de<br />

violencia hay cuestiones muy complicadas que se han hecho indiscernibles.<br />

Hoy día, cuando las líneas divisorias entre lo público y lo privado son tan<br />

tenues y tan sutiles, la distinción que hacemos los ciudadanos entre la ciudad y la<br />

casa resulta muy complicada, así como la distinción entre nuestro cuerpo biológico y<br />

nuestro cuerpo político, o entre lo que es incomunicable y mudo y lo que es comunicable<br />

y expresable. Se trastocan los espacios propios de la realización biológica con los


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 129<br />

espacios públicos, y en éstos es en donde propiamente se llevan a cabo las acciones<br />

humanas que han de incluir el diálogo, el discurso y donde en todo caso, se tiene que<br />

actuar de manera concertada para garantizar el respeto y evitar la exclusión. Estas<br />

posibilidades han sido arrebatadas a quienes viven en sociedades en las que la ley no<br />

ha podido afincarse porque se ha puesto en entredicho la vida política de los ciudadanos<br />

en su integridad física por su expolio en el sentido más humano.<br />

El abandono y el despojo de lo humanamente debido, –tanto en lo que se<br />

refiere a la mera supervivencia y alude a lo económico, como a aquello que posibilita<br />

la palabra y el diálogo– deja a esas personas excluidas a su suerte, deambulando a la<br />

deriva, en los cobijos más ruines, menesterosos y decadentes que podamos pensar.<br />

Las agresiones han sido y son tales que los desbordamientos de las acciones<br />

con carácter de inhumanidad han extinguido el ámbito moral. Tales acciones han<br />

arrebatado aquello que procura “la última oportunidad de conservar la dignidad” 24<br />

y por ende el derecho a tener esos derechos humanos, como lo apuntó en su<br />

análogo momento Arendt. El contenido de esta frase es profundo, ya que hay una<br />

separación entre lo meramente humano y lo político que muestra la escisión de los<br />

derechos del hombre y los derechos del ciudadano. Por ello, hablar del “derecho a<br />

tener derechos” 25 da cuenta clara de la situación de los excluidos, porque siempre<br />

que haya quienes queden exceptuados de ciertas formas de ciudadanía se les está<br />

negando la posibilidad de tener derechos. Con esto se evidencia asimismo la<br />

exclusión del debate político. El término “excluidos” se relaciona necesariamente<br />

con el concepto de “víctimas” cuando hay violencia política, y cuando el enfoque<br />

que se lleva a cabo es moral 26 .<br />

Al destruir lo humano y reducirlo únicamente a lo biológico, se echa por<br />

tierra la conquista histórica de los derechos humanos. Desde estas preocupaciones<br />

es que surgieron y continúan presentes algunas reflexiones críticas que pretenden<br />

visualizar lo que sucede con la vida y con lo biológico en el espacio político. Fue<br />

“Michel Foucault [quien] comenzó a orientar sus investigaciones con una insistencia<br />

cada vez mayor en lo que definía como biopolítica, es decir, la creciente implicación<br />

de la vida natural del hombre en los mecanismos y los cálculos del poder”. 27 Esto<br />

significa que la vida se convierte en aquello que constituye lo central del espacio<br />

24<br />

KRALL, H., en TODOROV, T. Frente al límite. México: Siglo XXI, 2004, p. 24.<br />

25 Tal como lo pensó Arendt cuando acuñó su famosa y muy significativa frase de “derecho a tener<br />

derechos”, en ARENDT, H. Los Orígenes del Totalitarismo, 2. Imperialismo. Madrid: Alianza<br />

Universidad, 1987, p. 430.<br />

26<br />

REYES MATE, M. “La justicia de las víctimas” en Revista Portuguesa de Filosofía, Tomo LVIII,<br />

2002, pp. 299-318.<br />

27<br />

AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p. 151.


130<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

público y de la política, de modo que el engarce de zoe y bíos 28 es unas de las<br />

formas definitorias en la política de muchas partes del mundo. El cuerpo –el de la<br />

nuda vida- que se emplaza en el espacio político y se convierte en lo biopolítico, se<br />

reduce a la zoe dejando de lado la bios, que representa lo verdaderamente humano 29 .<br />

Los espacios de exclusión se constituyen en aquellos en los que la vida<br />

moral no es viable, ya que “un ser humano empujado hacia el extremo por formas<br />

de vida inhumana […] pierde gradualmente todas las nociones del bien y del mal” 30<br />

y esto, significa estar “sin duda, moralmente muertos”. 31<br />

Las preguntas en torno a la humanidad restante son oportunas, sobre todo cuando<br />

se ha vivido lo más terrible y execrable, y en donde la libertad se reduce a casi nada. Si<br />

esto es así, ¿en dónde queda la humanidad si no hay elecciones de ningún tipo?, ¿queda<br />

lugar para la vida moral cuando sus límites se han desbordado de manera absurda?<br />

La situación de exclusión constituye un estado de sitio continuo en donde la<br />

sociedad está a la deriva en un espacio que parece agrandarse como la tierra de<br />

nadie y en donde, si bien todos estamos, quienes son más frágiles son aquellos que<br />

están más marginados, dado que ellos son el blanco más susceptible para ser usados,<br />

vendidos, expoliados y un sin fin de los etcéteras más execrables a los que son<br />

sometidos a lo largo de su vida. Como hemos podido apreciar hasta aquí, el trato<br />

que se da a la exclusión parte desde una concepción de la justicia que permita la<br />

inclusión de todos los sujetos 32 . Sin embargo, la realidad nos evidencia y se nos<br />

muestra implacable, por lo que parece que el camino habría de ser al revés, tal<br />

como lo propone Villoro cuando apunta que “cabe pues explorar una alternativa:<br />

dar razón de la idea de justicia por la voluntad de disrupción de una situación<br />

percibida como injusta.” 33 Hemos de partir de nuestras propias experiencias en las<br />

que se evidencia la injusticia real así como la experiencia de la marginalidad para<br />

28 La bios alude a la vida en sentido humano y es la que puede permitir pensar en una biografía, y aquí<br />

la auténtica vida humana es la que para Arendt significa aquella que se lleva a cabo en la palabra y<br />

en la acción. Por su parte, zoé alude a la vida en un sentido meramente biológico, y es lo que<br />

Agamben entiende como nuda vida. En Arendt la verdadera vida es aquella que se da en el espacio<br />

público, en lo político en donde se realiza el discurso, el habla y la acción. Esta acción fue<br />

tergiversada después de los griegos y los romanos, en la Edad Media cuando la mayor importancia<br />

se le dio a la contemplación, y en la Edad Moderna se canceló por el surgimiento de lo social, de la<br />

burocracia y sus mecanismos de la ley de nadie.<br />

29<br />

AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p. 151.<br />

30<br />

TODOROV, T. Frente al límite. México: Siglo XXI, 2004, p. 38.<br />

31 Ibid, p. 38.<br />

32<br />

VILLORO, L. “Sobre el principio de la injusticia: la exclusión”, en Isegoría, 22, 2000, “Globalización<br />

y Derechos humanos”, p. 104.<br />

33 Ibid, p. 103.


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 131<br />

“proyectar lo que podría idealmente remediarla.” 34 Con ello, y como lo propone<br />

Javier Muguerza estaríamos generando una “alternativa del disenso” que es la que<br />

ha de fundar los derechos humanos. 35 Partamos entonces, desde las causas de la<br />

exclusión en la que vivimos.<br />

4. CAUSALES DE LA EXCLUSIÓN<br />

“Las causas de la exclusión pueden ser distintas para quienes las<br />

padecen, los resultados vienen a ser los mismos” 36 .<br />

Z. Bauman<br />

La fragmentación es por desgracia unos de los más grandes males de la<br />

humanidad y de la que desafortunadamente no estamos exentos en nuestro días,<br />

porque quienes perpetran los diversos modos de exclusión lo hacen desde una<br />

quiebra moral. Y esta ruptura se lleva a cabo sobre los seres humanos que son<br />

despojados de la confianza en sí mismos, así como de la autoestima necesaria para<br />

mantener también su supervivencia social. Todos ellos han devenido superfluos,<br />

inútiles, innecesarios, indeseados, despreciables. Son los declassés que no poseen<br />

ningún estatus definido y por ellos son considerados sobrantes.<br />

Por desgracia y como sabemos, la meta central que ha prevalecido –como<br />

ha sido durante los siglos– se adscribe fundamentalmente al interés y a la ganancia<br />

de carácter económico. La absolutización de lo económico –que no considera los<br />

valores, la ética y la cultura– en todos los ámbitos de la vida ha generado enormes<br />

problemas y hunde sus raíces ahí donde hay un menoscabo del orden gubernamental<br />

y una clara inaplicabilidad de la ley. Los efectos y las consecuencias conocidos y<br />

que ya hemos apuntado, generan la esclavización, la cosificación y aniquilación de<br />

los seres humanos en tanto personas. Es una de las consecuencias de la movilidad<br />

contemporánea y de las migraciones de quienes se trasladan de un sitio a otro en<br />

donde se convierten en . 37 Esta situación es, –a decir de<br />

Bauman– un efecto secundario de la misma construcción del orden, de modo<br />

que en este último hay quienes están dentro y quienes están ,<br />

que significa que son los indeseables y son los no aptos. Es también el efecto<br />

secundario del mismo “progreso económico” que no ha podido proceder sin humillar,<br />

sin degradar, sin devaluar las formas de “ganarse la vida”.<br />

34<br />

VILLORO, L. “Sobre el principio de la injusticia: la exclusión”, en Isegoría, 22, 2000, “Globalización<br />

y Derechos humanos”, p.104.<br />

35<br />

MUGUERZA, J. Ética, disenso y derechos humanos, Madrid: Argés, 1998.<br />

36<br />

BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, p. 58.<br />

37 Ibid, p. 16.


132<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Como sabemos, a partir de la Modernidad, las regiones atrasadas y<br />

subdesarrolladas se han convertido en reducto para la exportación de “ y conspicuos vertederos dispuestos para los residuos<br />

humanos de la modernización.” 38<br />

La pregunta obligada se dirige hacia un elemento central –señalado renglones<br />

arriba de este apartado, a saber: la aplicación de la ley. ¿Dónde está la ley que<br />

coarte los comportamientos destructivos de lo humano y que confine los tratos<br />

humillantes y desvalorizadores de quienes hay que proteger? Apreciar este mundo<br />

exige -como apunta Bauman– dirigir otra mirada a esta realidad que compartimos.<br />

La condición de aquellos seres humanos excluidos tiene efectos absolutamente<br />

destructivos porque generalmente las implicaciones de su utilización lo<br />

convierten en lo que Agamben llamó el homo sacer 39 –es decir, aquellos que son<br />

sacrificables en su nuda vida– 40 . Esta situación se lleva a cabo en un contexto<br />

político deteriorado y minado en lo más hondo.<br />

El paradigma del concepto de nuda vida está en los prisioneros de los<br />

campos de concentración que funge como un concepto modélico de la exclusión<br />

y el expolio en donde las vidas humanas simplemente no tienen valor alguno. Esos<br />

personajes, los más ruines y más sometidos y por ello nombrados por Primo Levi<br />

como el “musulmán” –término retomado por Giorgio Agamben– alude a aquellos<br />

seres humanos que perdieron toda dignidad e inutilizaron todo afán de resistencia y<br />

de honorabilidad humana. Al ser desvalijados de toda su humanidad se definen<br />

como aquellos que simplemente buscan no morirse de hambre, por lo que son “lo<br />

intestimoniable” 41 . Después de ver estas figuras casi subhumanas se puede afirmar<br />

con Arendt que en este mundo “todo es posible” y “todo está permitido” 42 .<br />

38 BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, p.16.<br />

39 Homo sacer que es la principal categoría de los residuos humanos según Giorgio Agamben.<br />

40 El concepto de nuda vida, se entiende como la vida natural o biológica es un concepto central en<br />

Agamben y se remite a Hannah Arendt en la distinción de Bios y zoe. ARENDT, H. La Condición<br />

Humana, Barcelona: Ed. Paidós, 1998, p.111. También cfr., FOUCAULT, M. Vigilar y Castigar,<br />

México: Siglo XXI, 1991, pp. 24ss.<br />

41 Este término tiene orígenes inciertos y parece que tiene que ver con el fatalismo que se atribuye al<br />

islamismo y a la posición de postración que tienen los árabes cuando están orando, posición en la<br />

que se veía a los prisioneros. Lo intestimoniable por sufrir las situaciones más abyectas e indecibles.<br />

42 Como lo señaló Arendt cuando afirmaba “allí donde estas nuevas formas de dominación asumen su<br />

estructura auténticamente totalitaria superan este principio, que sigue ligado a los motivos utilitarios<br />

y al interés propio de los dominadores y penetran en un terreno que hasta ahora nos resultaba<br />

completamente desconocido: el terreno donde . […] Lo que se rebela contra el<br />

sentido común no es el principio nihilista de que , que se hallaba ya<br />

contenido en la concepción utilitaria y decimonónica del sentido común. Lo que el sentido común y<br />

la se niegan a creer es que todo sea posible. ARENDT, H. Orígenes del totalitarismo:<br />

Totalitarismo, España: Alianza Editorial, 1987, p.656.


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 133<br />

Todo esto se acompaña de una situación de excepción, en donde la nuda<br />

vida –entendida como la vida a la que se puede dar muerte– es sustituible y<br />

superflua. Ahí se insertan también las Versuchenpersonen 43 , que son aquellas<br />

personas manejadas y consideradas –como diría Bauman 44 – como residuos<br />

humanos. Esos seres humanos quedan a-bandonados, de modo tal que en esa<br />

ambigüedad está excluido-incluido en la comunidad y por ende está dentro y está<br />

fuera de la ley. Aquéllos que están en tal situación de “excepción” resultan ser<br />

innecesarios para la sociedad que no los incluye, o como apunta Bauman, esos<br />

grupos son “desechables” al constituir un conjunto de residuos humanos a través<br />

de los cuales se evidencia ese ámbito en el que se suspende cualquier viso de<br />

legalidad, aún para quienes deberían ejercerla 45 . Lo más grave del asunto es que<br />

ese estado se perpetúa y se convierte en la regla, que sumado a la indiferencia<br />

hace que, –como apunta Primo Levi en Naufragés–: “para que el mal se realice<br />

no es suficiente que se produzca la acción de algunos; hace falta todavía que la<br />

gran mayoría esté a su lado, indiferente…” 46 como sucede con quienes sufren la<br />

extrema pobreza. Dentro de las esferas de la moralidad no cabría la posibilidad de<br />

pensar en la vida de algún individuo como una vida que “no merece ser vivida”.<br />

Por ello la existencia de vidas que resultan innecesarias y por lo tanto se pueden<br />

desechar porque están de más y no entran en el diseño de las formas de la convivencia<br />

humana. 47 Todos ellos son consumidores fallidos de nuestra sociedad de consumo,<br />

implican un costo y no involucran un apoyo; son, siguiendo a Bauman: “ del progreso económico, imprevistas y no deseadas.” 48 Por ello es que<br />

pueden ser excluidas, y en ese margen utilizadas y esclavizadas sin problema.<br />

Desde ahí es que si existe insatisfacción de las necesidades requeridas significa<br />

que además de la exclusión se precisa hablar de un concepto concomitante, al menos<br />

en el ámbito social: la pobreza. Dar cuenta de ella nos hace –según Sen- que reconozcamos<br />

su dimensión relativa que se compagina con el entorno social, pero además<br />

existe una dimensión absoluta, es decir, que hay condiciones mínimas indispensables<br />

–relacionadas con capacidades y funciones básicas– necesarias para perseguir y<br />

diseñar los planes de vida, en aquellas cuestiones que son posibles de alcanzar.<br />

43<br />

AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p.195 y<br />

ss. En el texto es traducido como cobayas, entendiéndolo según el Diccionario de la Real Academia<br />

como los “conejillos de Indias”, www.rae.es.<br />

44<br />

BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, pp. 24 y 25.<br />

45 Ibid.<br />

46<br />

LEVY, P. Les naufragés et les rescapés, París: Gallimard, 1989, citado en TODOROV, T. Frente al<br />

límite. México: Siglo XXI, 2004, p. 166.<br />

47<br />

BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, p. 46.<br />

48 Ibid, p.57.


134<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

El desbordamiento de lo moral del que hemos venido hablando, niega cualquier<br />

trazo deseable de justicia. De ahí que el fenómeno de la pobreza muestre que la<br />

desigualdad material entre las personas no sólo se queda ahí, sino que se extiende<br />

en graves diferencias en la posibilidad de participación y por ende, de la distribución<br />

del poder político. Esto hace posible la dominación de unos sobre otros 49 .<br />

Sen considera a las capacidades en tanto categorías generalmente no tomados<br />

en cuenta por la política de la justicia distributiva de los Estados. Desde esta<br />

consideración es importante apuntar que ni la riqueza, ni los bienes, ni los recursos<br />

se traducen automáticamente en bienestar y libertad de las personas.<br />

Pobreza y justicia social constituyen los ejes para una reflexión<br />

contemporánea en torno a una ciudadanía igualitaria, inclusiva y por ende<br />

participativa. El autorrespeto que significa “igualdad en igual reconocimiento, respeto<br />

y garantía de los derechos y libertades políticas” 50 . En este reconocimiento se<br />

implica el que sean seres humanos iguales pero lo que se insiste es que por serlo<br />

deben recibir justamente la distribución de la riqueza, de los recursos, de los bienes<br />

y las oportunidades. Todo esto posibilita llevar a cabo la libertad en el sentido de<br />

agencia y poder y toma enorme fuerza cuando se presenta ante los grupos<br />

sistemáticamente excluidos por la falta de reconocimiento. Esto se traduce en una<br />

acumulación de desventajas sociales en relación con los demás ciudadanos y que<br />

se convierten en “problemas prácticos relativos al ejercicio de las libertades civiles. 51<br />

Es importante insistir como lo ha hecho Nancy Fraser, que la dimensión<br />

política de los derechos básicos que ha de ser reconocida por todos y por ello es<br />

fundamental, para el alcance de la justicia que se lleve a cabo, además del<br />

reconocimiento, la redistribución.<br />

La pobreza imposibilita la participación, porque desde la desigualdad se niega<br />

su reconocimiento, y por ende se excluye y no se permite compartir la decisión<br />

pública. A su vez y por el otro lado, cerrando el círculo podemos ver que en lo<br />

político es en donde se generan las instituciones que van a propiciar y a defender<br />

tanto a los miembros de esa asociación política, y también se defenderán sus<br />

acciones, sus búsquedas en el espacio de la participación y decisión política. Sólo<br />

así podrán pensarse como verdaderos ciudadanos, como respetables.<br />

Por ello es que los programas asistencialistas poco ayudan dado que se<br />

centran en la mera distribución de bienes, como programas únicos y focalizados y<br />

49 SAHUÍ, A. Igualmente libres. Pobreza , justicia y capacidades, México: Ed. Coyoacán, 2009, p. 20.<br />

50 Ibid, p. 36.<br />

51 Ibid, p.58.


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 135<br />

no en la cuestión de la libertad como desarrollo centrada en las capacidades y en la<br />

posibilidad de acciones de aquellos que están peor ubicados en un tejido de las<br />

relaciones sociales.<br />

Amartya Sen no se equivocaba cuando al hablar del desarrollo como libertad<br />

apuntaba que quien carece de medios para tener una vida mejor no tiene la libertad<br />

para hacer muchas cosas para sí y para otros, que como un humano responsable<br />

podría realizar. Las sociedades que prosperan a costa del hambre, del sufrimiento,<br />

del escarnio, y de situaciones como la trata de personas no pueden ser aceptadas<br />

bajo ningún pretexto, de modo que ante la visualización de estos problemas es<br />

fundamental la toma de conciencia de la misma ciudadanía para la defensa continua<br />

de los derechos de estas personas de una manera responsable y solidaria.<br />

Así, si la exclusión significa la condición fundamental de la injusticia 52 ,<br />

significa que es preciso insertar a aquellos que juegan un papel de dentro-fuera,<br />

ya que los excluidos no están realmente fuera de la sociedad porque cooperan<br />

en ella. El problema es que no se les reconoce como iguales en los procesos y<br />

mecanismos de decisión. Sus voces discordantes no se toman en cuenta por no<br />

considerarse relevantes en la construcción de la agenda pública y en los procesos<br />

decisorios.<br />

Una forma de violencia es la corrupción que ha logrado el dominio de la<br />

sociedad traspasando el umbral de la política, como lo fue para Arendt el fenómeno<br />

del totalitarismo que tuvo como objetivo la dominación y el infierno construido por<br />

el hombre. 53<br />

Una de las ideas del nazismo fue precisamente que existían personas de<br />

diversas especies, unas superiores y otras inferiores. El efecto de esta consideración<br />

es de todos conocida, y ha sido deplorada basándonos en la apuesta contraria, a<br />

saber: que nuestra especie es una y está compuesta por individuos quienes merecen<br />

una idéntica consideración moral. 54 Esta intuición está incorporada en el lenguaje<br />

de los derechos humanos en el que la capacidad de considerar un número cada vez<br />

mayor de personas que pretenden que se les trate como nos gustaría a todos que<br />

nos trataran, de modo que con ello se pretendería la deseada universabilidad de<br />

tales derechos. La historia vivida nos ha mostrado que cuando los seres humanos<br />

gozan de derechos defendibles, es decir, cuando se protege y mejora su agencia<br />

como individuos, es menos probable que existan abusos sobre ellos.<br />

52 VILLORO, L. “Sobre el principio de la injusticia: la exclusión”, en Isegoría, 22, 2000, p. 104.<br />

53 ARENDT, H. Totalitarismo, 2, Imperialismo, Madrid: Alianza Editorial, 1987.<br />

54<br />

Ibid, p.30.


136<br />

5. A MODO DE CONCLUSIÓN<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

La destrucción de lo humano no es novedad, lo que sí lo es son las formas en<br />

que se destruye. Y para esto necesitamos refrendar e insistir en la realización e<br />

implementación de aquello que defiende lo humano, es decir, recurrir a los derechos<br />

humanos que han sido conquistas históricas importantísimas. Los matices que haya<br />

que hacer nos obligan a repensarlos, pero no a desecharlos. Desde ahí tenemos<br />

que pensar en lo que se constituye como propiamente humano para no soslayar su<br />

relevancia y mostrarnos responsables ante la violación de tales derechos.<br />

Afirmar que los derechos humanos son obligatorios y de alta prioridad,<br />

significa que han de ser considerados como normas que mandan y no meras metas,<br />

y esto significa que es preciso alcanzar sus demandas dado que obligan y han de<br />

prevalecer como normas de suprema prioridad. Por ello, frente a la experiencia de<br />

su recurrente violación, los defensores de estos derechos deberán ver estrategias<br />

para los cambios políticos para alcanzar tales estrategias, que se constituyen en<br />

metas. Una de las mediaciones que han de considerarse para el alcance de los<br />

fines es la urgencia en la implementación de leyes que impulsen la implementación<br />

de los derechos humanos. Sin embargo, a pesar nuestro, la promulgación de leyes<br />

parece no ser todavía suficiente para la realización de los derechos humanos; la<br />

implementación de leyes no garantiza su respeto y realización, por ello, como<br />

podemos ver, sólo pueden garantizarse en aquellas sociedades que tienen la suerte<br />

de haber generado actitudes en la gente y en los gobiernos que comprenden los<br />

derechos y su necesidad por sí mismos, y no necesitan de la obligatoriedad. Pero la<br />

solución no será completa si no hay una conjunción de esfuerzos que intervengan<br />

en los cambios reales.<br />

Por un lado, se busca alcanzar las metas legislativas en torno a los derechos<br />

humanos, pero además es preciso generar políticas apoyen fácticamente a través<br />

de intervenciones que generen cambios plausibles, desde las comunidades más<br />

pequeñas hasta comprender a toda la sociedad. Con ello se irá trabajando en círculos<br />

concéntricos, a la manera de los círculos de la Metáfora de Hierócles 55 para ir<br />

ampliando la comprensión y la comprehensión de los derechos humanos, de modo<br />

55 Mencionados en Martha C. Nussbaum. Hierócles el estoico planteó una teoría de “círculos morales”<br />

que consiste en que existen varios niveles de grupos humanos a los que se les aplica nuestra<br />

consideración moral, de modo que en los primeros círculos estamos nosotros mismos, luego los<br />

círculos de la familia, la ciudad, la patria y finalmente el círculo de la humanidad entera. Y el ser<br />

humano tiene como tarea el acercamiento de los círculos yu así considerar a quienes están más<br />

alejados tan digno de aprecio como nosotros mismos. NUSSBAUM, M.C. “Patriotismo y<br />

cosmopolitismo”, en NUSSBAUM, M.C. Identidad pertenencia y “ciudadanía mundial”, Barcelona:<br />

Paidós, 1999.


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 137<br />

que en todos los ámbitos se entienda y se asuma la defensa de la misma humanidad.<br />

Esto se realizaría mediante la generación de programas de inclusión, mediante<br />

educación y políticas que generen la mejora de los más empobrecidos, que<br />

generalmente son los excluidos. Y a la par de los programas formativos que insistan<br />

en el fundamental crecimiento humano alude a un crecimiento moral y no<br />

únicamente económico. Estos programas han de entenderse a toda la sociedad<br />

porque los que excluyen son los mejor situados. Es necesario ampliar los ámbitos<br />

de la responsabilidad humana y el desarrollo de una conciencia prudencial que<br />

pueda sopesar lo que es fundamental para los seres humanos para que así nos<br />

centremos en lo verdaderamente importante.<br />

Desde ahí es que el tema de la exclusión ha de formar parte de los debates<br />

políticos académicos, en donde se tienen que considerar la marginación, la privación<br />

y la pobreza, como cuestiones centrales. Quienes sufren exclusión sufren desventajas<br />

generalizadas en términos de educación, empleo, vivienda, recursos financieros,<br />

así como falta de oportunidades para tener acceso a la distribución de tales<br />

oportunidades y por ende son sustancialmente menores que las del resto de la<br />

población y la persistencia de tales desventajas permanece a lo largo del tiempo. 56<br />

La exclusión es un fenómeno social cultural ético-político que cuestiona y amenaza<br />

los valores de la sociedad 57 , por ello no es únicamente la insuficiencia de ingresos,<br />

sino que revela algo más que la desigualdad social, y tiene implicaciones que<br />

evidencian el peligro de una sociedad fragmentada, con lo que se amenaza la<br />

cohesión social de los Estados por la recurrente injusticia. De este modo, como<br />

algunos teóricos han señalado: la exclusión viene dada por la negación o<br />

inobservancia de los derechos sociales, que incide en el deterioro de los derechos<br />

políticos y económicos. Es cierto que la exclusión se relaciona generalmente con la<br />

pobreza, y se evidencia sobre todo en los países más pobres.<br />

Los derechos humanos han de ser más morales y consecuentemente sus<br />

implicaciones legales y políticas serán más humanizadas y desde ahí habrían de ser<br />

vistos como un lenguaje, no para la proclamación y la promulgación de verdades<br />

eternas, sino como un discurso para la mediación de los conflictos y amenazas en<br />

contra de la humanidad. El consenso que pueda generase puede ser una condición<br />

necesaria para un acuerdo deliberativo que presuponga un desarrollo del respeto y<br />

reconocimiento mutuo y la cancelación de cualquier forma de esclavitud, además<br />

de un compromiso común en relación con los universales morales, que nos hacen<br />

pensar en el alcance de los derechos humanos.<br />

56 ARAHAMSON, P. “Exclusión social en Europa:¿vino viejo en odres nuevos?” en MORENO, L. (comp.),<br />

Unión Europea y Estado de Bienestar, Madrid: CSIC, 1997, p.123.<br />

57 Ibid, p.123.


138<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Actualmente y en nuestro país la principal amenaza para los derechos<br />

humanos no proviene únicamente de la tiranía sino también de la anarquía y la<br />

indiferencia, y parece que ahí es donde se quedan esas brechas en las que se cuela<br />

la situación de exclusión. Por ello, la necesidad del orden estatal y de una ciudadanía<br />

consciente y pensante ya que ella que funge como garantía para los derechos.<br />

Esta situaciones nos obligan a buscar una transformación en la imaginación<br />

ético-política como señala Zizek 58 , que significa desarrollar una ética que habrá de<br />

generar cambios reales porque acepta la contingencia, pero que está “dispuesta a<br />

arriesgar lo imposible” en el sentido de romper posiciones estandarizadas. Por ello,<br />

podemos pensar que la ética sigue proporcionando el referente normativo para<br />

que, como dice Javier Muguerza podamos abrigar una modesta esperanza que<br />

lejos de ser pasiva, se liga al disenso en tanto nos neguemos a aceptar aquello que<br />

no es tolerable por injusto y por indigno. 59<br />

58 ZIZEK, S. Arriesgar lo imposible, Madrid: Trotta, 2004, p.25.<br />

59 MUGUERZA, J. Ética, disenso y derechos humanos, Madrid: Argés, 1998.


Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 139<br />

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Conceito de minorias e discriminação 141<br />

10<br />

Conceito de minorias<br />

e discriminação<br />

Concept of minorities<br />

and discrimination<br />

Concepto de las minorías<br />

y la discriminación<br />

JAMILE COELHO MORENO<br />

Advogada; bacharel em Direito, pela Instituição Toledo de Ensino – ITE, de Bauru, São Paulo;<br />

mestranda em Direito no Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino – ITE.<br />

E-mail para correspondência: jmoreno@cabg.com.br<br />

.<br />

RESUMO<br />

Sob qualquer aspecto, ao analisar-se o processo de formação da sociedade brasileira<br />

(e dos demais países do Novo Mundo), visualiza-se, como indispensável menção, o<br />

relevante papel dos grupos minoritários em relação ao restante da sociedade. Antes<br />

de se estudar a respeito dos direitos das minorias, é mister estudar mais acerca das<br />

chamadas minorias. É imprescindível que a defesa de tais grupos seja promovida não<br />

apenas no que tange aos direitos individuais e coletivos, mas também em face e em<br />

defesa dos interesses de todo o restante da população. Para tanto, há necessidade de<br />

uma prévia análise acerca da discriminação a que essa camada da população está<br />

sujeita. Nesse esteio, para que efetivamente se consiga promover a defesa de tais<br />

grupos, é importante conceituar o que seria essa discriminação, bem como apontar as<br />

diferenças existentes entre este ato da sociedade, o preconceito e a intolerância.<br />

Palavras-chave: conceito, minorias, discriminação.


142<br />

ABSTRACT<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

In any way, in analyzing the process of formation of Brazilian society (and other new<br />

world countries), we see as essential to mention the important role of minority<br />

groups in relation to the rest of society. Before studying the rights of minorities, it is<br />

necessary studying more about the so-called minorities. It is essential that the<br />

defense of such groups is promoted not only in terms of both individual and collective<br />

rights, but also in face and in the interests of the rest of the population. Therefore,<br />

there is need for a previous analysis about the discrimination that this population is<br />

subject. In this mainstay, to actually succeed in promoting the protection of such<br />

groups, it is important to conceptualize what would be this discrimination, and<br />

point out the differences between this act of society, prejudice and bigotry.<br />

Keywords: concept, minorities, discrimination.<br />

RESUMEN<br />

En todo sentido, para examinar el proceso de formación de la sociedad brasileña (y de<br />

otros países en el nuevo mundo), es esencial decir el importante papel de los grupos<br />

minoritarios en relación con el resto de la sociedad. Antes de estudiar los derechos de<br />

las minorías, importante estudiar más sobre las llamadas minorías. Es esencial para<br />

promover la protección de estos grupos no sólo en lo que respecta a los derechos<br />

individuales y colectivos, sino también en el interés del resto de la población. Por lo<br />

tanto, hay una necesidad de análisis previo de la discriminación que este sector de la<br />

población está sujeta. En esta línea, de manera que podamos promover la protección<br />

de esos grupos, es importante conceptualizar esta discriminación, y señalando las<br />

diferencias entre este acto de la sociedad, el sesgo y la intolerancia.<br />

Palabras clave: concepto, minorías, discriminación.<br />

1. INTRODUÇÃO<br />

Antes de se estudar a respeito dos direitos das minorias, da proteção<br />

constitucional, infraconstitucional e internacional ou, ainda, a respeito dos instrumentos<br />

para efetivação de tais direitos, é mister estudar mais acerca das chamadas minorias.<br />

Cabe a todos, enquanto estudantes e praticantes do Direito, promover a defesa de<br />

tais grupos não apenas no que tange aos direitos individuais e coletivos, mas também<br />

em face e em defesa dos interesses de todo o restante da população. Por isso, é<br />

fundamental analisar alguns aspectos básicos deste tema prévio.<br />

Historicamente, sempre se fez presente, no Brasil, uma cultura importada,<br />

baseada em valores estrangeiros, herdada dos colonizadores europeus que aqui pouco


Conceito de minorias e discriminação 143<br />

tencionavam investir, mas somente queriam extrair riquezas, fazendo do País um<br />

simples produtor de matérias-primas e produtos agrários (NASCIMENTO, 2005: 120).<br />

Com efeito, observou-se, desde a formação do País, uma cultura escravagista,<br />

iniciada com a mão de obra indígena, depois substituída pela negra e, por que não,<br />

já no começo do século XX, pela imigrante.<br />

Numa cultura escravagista, sabe-se que o trabalho era coisa para escravos<br />

e o valor das pessoas era aferido de acordo com as suas relações, seus parentescos<br />

e suas posses, sedimentando a cultura clientelística, cultura esta que, lamentavelmente,<br />

ainda está em vigência na política brasileira.<br />

Ao longo dos tempos, é certo que muito desta cultura se esvaiu, mas não o<br />

suficiente para que determinadas práticas discriminatórias não se façam presentes.<br />

Sabe-se que o legislador constituinte originário cuidou de vedar quaisquer tipos de<br />

preconceito ou discriminação, explicitamente. Todavia, na prática, tais vedações não<br />

se apresentam completamente eficazes, nem se resumem à previsão constitucional.<br />

Após os dramáticos acontecimentos na ex-União Soviética e na ex-Iugoslávia,<br />

ou seja, após o colapso dos regimes comunistas, o tema minorias voltou a se<br />

destacar na agenda internacional, situação que não ocorria desde o período<br />

entreguerras (quando o debate se deu no âmbito da Liga das Nações). Os condenáveis<br />

acontecimentos da Segunda Guerra Mundial ocasionaram o reconhecimento<br />

do vínculo existente entre o respeito à dignidade do ser humano e à paz.<br />

Da mesma forma, houve o reconhecimento de que as ordens jurídicas<br />

nacionais, sujeitas a alterações de acordo com o regime político atuante, não eram<br />

suficientemente eficazes para tutela dos direitos dos indivíduos. Nesse esteio, a<br />

Carta das Nações Unidas estampa tais considerações e pode ser considerada<br />

como vetor para o ulterior processo de universalização dos direitos humanos.<br />

Em prosseguimento, no ano de 1947, a Comissão de Direitos Humanos criou<br />

uma subcomissão com a finalidade de prevenção da discriminação e de proteção<br />

das minorias. Ao ver rejeitadas todas as propostas de definição do termo minoria,<br />

esta subcomissão decidiu, em meados da década de 1950, condensar suas atividades<br />

na prevenção da discriminação, restringindo-se a recomendar a inclusão de uma<br />

provisão referente à proteção de minorias nos instrumentos internacionais de direitos<br />

humanos a serem elaborados dali em diante.<br />

Então, a visão preponderante era a de que os direitos das minorias estariam<br />

suficientemente protegidos pelo enfoque individual e universal que os direitos<br />

humanos assumiram no período pós-guerra. Esta visão, ao seu turno, fez com que,<br />

em meados da década de 1950, o tópico minorias passasse a ser excluído da<br />

agenda internacional (WUCHER, 2000: 4).


144<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

De todo o contexto histórico de descolonização, que consagrou o princípio<br />

da não discriminação, foi somente a partir da inclusão do artigo 27 no Pacto<br />

Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, que novamente abordou-se<br />

acerca do tema minorias. Em 18 de dezembro de 1992, a Assembleia Geral das<br />

Nações Unidas adotou a Declaração sobre os Direitos de Pessoas Pertencentes a<br />

Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas.<br />

Apesar de seu caráter jurídico e não vinculativo, esta declaração é<br />

considerada o instrumento de abrangência global mais generoso em termos de<br />

“discriminação positiva”, vale dizer, a que mais confere direitos especiais às minorias<br />

(PIRES apud WUCHER, 2000: 03).<br />

A sobredita declaração proíbe a discriminação com base na raça, no sexo,<br />

na língua e na religião. Porém, é omissa em relação à efetiva proteção das minorias.<br />

Assim, após o fim da estrutura bipolar do mundo, no âmbito da ONU, a Declaração<br />

de 1992 pode e deve ser considerada como o marco inicial dos novos debates<br />

sobre as minorias.<br />

2. CONCEITO DE DISCRIMINAÇÃO<br />

Discriminação é a prática de ato de distinção contra pessoa do qual resulta<br />

desigualdade ou injustiça, sendo essa distinção baseada no fato de a pessoa<br />

pertencer, de fato ou de modo presumido, a determinado grupo. Discriminar é<br />

excluir, é negar cidadania e, via de consequência, a própria democracia. Todavia,<br />

para que a igualdade seja garantida a todos, não basta apenas a eliminação das<br />

diferenças, mas sim a obtenção da igualdade e, para tanto, torna-se necessário<br />

identificar as verdadeiras origens da desigualdade. Nessa linha, é importante<br />

colacionar as palavras de Elida Séguin:<br />

Inicialmente, deve-se procurar o sentido das palavras discriminação, preconceito<br />

e intolerância. Discriminar é diferençar, distinguir, discernir, separar, especificar<br />

(Aurélio Buarque de Holanda). Sérgio Abreu afirma que a palavra discriminação<br />

surgiu no fim do século XIX, na França e na Alemanha, “utilizada na Psicologia,<br />

sem a ideia de tratamento desigual”, somente no século XX passou a ser ligada,<br />

“em matéria econômica e sobretudo no Direito e na política, para as minorias e<br />

todas as formas de tratamento desigual”.<br />

No entender de Norberto Bobbio, por discriminação entende-se uma<br />

diferenciação injusta ou ilegítima porque vai contra o princípio fundamental de<br />

justiça, segundo o qual devem ser tratados de modo igual aqueles que são iguais<br />

(2002: 108-109). Nesse sentido, o renomado filósofo explicou que:


Conceito de minorias e discriminação 145<br />

Num primeiro momento, a discriminação se funda num mero juízo de fato, isto é,<br />

na constatação da diversidade entre homem e homem, entre grupo e grupo. Num<br />

juízo de fato deste gênero, não há nada reprovável: os homens são de fato<br />

diferentes entre si. Da constatação de que os homens são desiguais, ainda não<br />

decorre um juízo discriminante.<br />

O juízo discriminante necessita de um juízo ulterior, desta vez não mais de fato,<br />

mas de valor: ou seja, necessita que, dos dois grupos diversos, um seja<br />

considerado bom e o outro mau, ou que um seja considerado civilizado e o outro<br />

bárbaro, um superior (em dotes intelectuais, em virtudes morais etc.) e o outro<br />

inferior... Um juízo deste tipo introduz um critério de distinção não mais factual,<br />

mas valorativo (BOBBIO, 2002).<br />

Em prosseguimento, Bobbio concluiu que:<br />

A relação da diversidade, e mesmo a de superioridade, não implica as consequências<br />

da discriminação racial... Da relação superior-inferior podem derivar<br />

tanto a concepção de que o superior tem o dever de ajudar o inferior a alcançar<br />

um nível mais alto de bem-estar e civilização, quanto a concepção de que o<br />

superior tem o direito de suprimir o inferior. Somente quando a diversidade leva<br />

a este segundo modo de conceber a relação entre superior e inferior é que se<br />

pode falar corretamente de uma verdadeira discriminação, com todas as<br />

aberrações decorrentes (BOBBIO, 2002).<br />

A despeito da evolução das ciências, as pessoas quedaram-se silentes aos<br />

novos tempos, bem como à necessidade de aceitar segmentos especiais ou<br />

diferenciados da sociedade, surgindo, assim, o preconceito. Desta forma, preconceito<br />

pode ser conceituado como:<br />

Conceito ou opinião formado antecipadamente, sem maior ponderação ou<br />

conhecimento dos fatos, ideia preconcebida; julgamento ou opinião formada sem<br />

se levar em conta o fato que os conteste; prejuízo (ABREU apud SÉGUIN, 2002: 55).<br />

O preconceito, por sua vez, está associado não só aos que são diferentes,<br />

mas também àqueles cuja ação do tempo os modifica. Nessa esteira, é importante<br />

colacionar as palavras de Elida Séguin (2002) ao abordar o mesmo tema:<br />

[...] Para dar uma pálida ideia, o preconceito contra o idoso chegou a tal ponto<br />

que foi cunhada a expressão etarismo. Interessante observar que a questão<br />

está sendo revertida pelo mercado consumista: descobre-se que os menos jovens<br />

constituem uma possibilidade de consumo que deve ser explorada.<br />

Não se pode deixar de consignar que o próprio grupo social aceita e cria uma<br />

estigmatização positiva a determinados comportamentos, como os delitos de<br />

trânsito, típicos da classe média. O motorista amador que provoca acidentes,


146<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

muitas vezes evitáveis, é visto como uma vítima da fatalidade. São cidadãos<br />

respeitáveis que involuntariamente causaram danos, tão vítimas quanto suas<br />

vítimas, desconhecendo o grupo social que o comportamento gerador foi leviano,<br />

imprudente e inconsequente. É o grupo se autodefendendo. A postura dos<br />

Tribunais vem sendo alterada para enxergar nos delitos de circulação um dolo<br />

eventual (SÉGUIN, 2002: 57).<br />

O ilustre Professor Dalmo de Abreu Dallari (apud VIANA & RENAULT, 2000: 14) viu<br />

como raízes subjetivas do preconceito, a ignorância, a educação domesticadora, a<br />

intolerância, o egoísmo e o medo. Para ele, o preconceito não só acarreta a perda de<br />

respeito pela pessoa humana como introduz a desigualdade e a injustiça. O referido autor<br />

ressaltou, ainda, o preconceito da polícia e dos juízes em relação às camadas mais pobres<br />

da população. Afirmou, além disso, o renomado jurista que ninguém nasce com preconceitos<br />

e, para evitar o preconceito, propôs uma autofiscalização:<br />

É preciso estarmos sempre muito atentos quando for proferir julgamentos sobre<br />

uma pessoa, uma ideia, uma crença. Mas além disto acredito muito na educação<br />

libertadora de Paulo Freire... Acho que assim como o preconceito é incutido pela<br />

educação, ele pode ser eliminado pela educação (...). Eu acredito na existência de<br />

direitos universais. Resguardados estes direitos é indispensável que se resguarde<br />

também o direito à diferença. Aliás, é interessante, existe uma declaração contra<br />

o preconceito, aprovada pela Unesco e que acentua exatamente isto, o direito à<br />

diferença. Quer dizer, eu não posso exigir que todos sejam iguais, não posso<br />

valorizar mais um do que o outro (DALLARI apud VIANA & RENAULT, 2000: 14).<br />

Sobre esse aspecto, historicamente, desde o Código de Hamurabi, havia a<br />

previsão de castigos proporcionais ao mal causado, assim como se faziam distinções<br />

nas penas de acordo com a classe social da vítima. Ou seja, ferir ou matar um<br />

escravo era menos grave do que alguém do clero.<br />

Com o advento do Código de Manu, já não se levava em conta a classe<br />

da vítima, mas apenas a proteção dos valores dos brâmanes, cujo poder se<br />

encontrava no ápice dos demais poderes da sociedade hindu. A Lei das XII<br />

Tábuas, diferentemente dos demais códigos, estabeleceu, ainda que provisoriamente,<br />

uma igualdade social inédita, excluindo do Direito Penal toda e qualquer<br />

distinção de classes sociais.<br />

É importante distinguir o preconceito e a discriminação da intolerância. A<br />

intolerância deve ser compreendida de uma melhor forma através do estudo de<br />

seu antônimo, ou seja, do conceito de tolerância:<br />

Condescendência ou indulgência para com aquilo que não se quer ou não se<br />

pode impedir. Boa disposição dos que ouvem com paciência opiniões opostas


Conceito de minorias e discriminação 147<br />

às suas. Med. Faculdade ou aptidão que o organismo dos doentes apresenta<br />

para suportar certos medicamentos 1 .<br />

Nesse sentido, a Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no<br />

Campo do Ensino (UNESCO, 1960) adotou “princípios de tolerância”, conceituando<br />

o termo da seguinte forma:<br />

Tolerância é respeito, aceitação e apreciação da rica diversidade de nossas<br />

culturas mundiais, nossas formas de expressão e formas de ser humano. Isto é<br />

reforçado através do conhecimento, da abertura, da comunicação e da liberdade<br />

de pensamento, consciência e crença. Tolerância é harmonia na diferença. Não é<br />

apenas um dever moral, é também um requisito político e legal.<br />

A legislação brasileira, principalmente a Lei Maior, veda diversas práticas<br />

discriminatórias, baseadas em diferentes critérios. Ao final, a questão principal das<br />

vedações previstas tanto em normas constitucionais como infraconstitucionais é a<br />

garantia do princípio da igualdade, previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal.<br />

Todavia, não é suficiente a criação de novos tipos penais ou a majoração<br />

das penas já existentes. A sociedade deve atacar a discriminação e a intolerância<br />

no âmago da questão: através da educação, verdadeiro agente de modificação<br />

social (SÉGUIN, 2002: 59). Ao final, pode-se dizer que, em verdade, todos são<br />

diferentes, já que cada indivíduo é uno e irrepetível, um patrimônio da humanidade,<br />

sendo certo que só determinado indivíduo pode dar a sua pequena parcela de<br />

contribuição ao acervo humano.<br />

Por outro lado, os seres humanos são todos iguais. Para Hannah Arendt<br />

(apud VIANA & RENAULT, 2000: 19), filósofa e pensadora política que se preocupou<br />

não só em entender como explicar a política e a violência dos dias atuais, notadamente<br />

a partir do nazismo e do bolchevismo, as pessoas não nascem iguais, pois se<br />

tornam iguais como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão<br />

conjunta que garante a todos direitos iguais.<br />

A igualdade, na visão da referida filósofa, pressupõe uma sociedade onde<br />

prevaleça, necessariamente, um mínimo de igualdade no plano econômico (frisese,<br />

muito diferente da situação econômica atual do Brasil). Segundo a pensadora<br />

alemã, a igualdade resulta da organização humana, pois as pessoas não nascem<br />

iguais e não são iguais nas suas vidas.<br />

É a lei que torna (ou deveria tornar) os homens iguais, ou seja, as diferenças<br />

deveriam ser igualadas por meio das instituições e, da mesma forma, a igualdade<br />

1<br />

TOLERÂNCIA. In: PRIBERAM. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Priberam Informática, 2009.<br />

Disponível em: . Acesso em: 12 de junho de 2009.


148<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

deveria ser garantida e ter espaço na esfera pública (já que a diferença tem lugar<br />

na esfera privada). E, concluindo, Arendt afirmou que, se os homens fossem iguais,<br />

não poderiam entender-se; se não fossem diferentes, não precisariam nem da<br />

palavra, nem da ação para se fazer entender.<br />

Sabe-se, então, que tanto a não discriminação quanto as reivindicações por<br />

medidas positivas se baseiam no princípio da igualdade, tão consagrado e previsto<br />

inúmeras vezes (e tal repetição não é despicienda) na Lei Maior. Na medida em<br />

que a não discriminação se constitui num princípio já consagrado pelo Direito<br />

Internacional (deixar-se-á aqui de aprofundar o tema nesse âmbito, especificamente,<br />

eis que não se está tratando acerca dos direitos das minorias), a adoção de medidas<br />

positivas – discriminação positiva – continua sendo matéria controvertida.<br />

Após a Segunda Guerra Mundial, o princípio da interdição da discriminação,<br />

melhor dizendo, o princípio da não discriminação, passou a integrar, exaustiva e<br />

sucessivamente, a maioria dos instrumentos internacionais de direitos humanos no<br />

âmbito da ONU que tratam das diversas categorias de direitos e pessoas a serem<br />

protegidas. Portanto, dispositivos de não discriminação e de igualdade encontramse,<br />

atualmente, em vários documentos, desde a Carta das Nações Unidas até o<br />

Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.<br />

Com efeito, este princípio consagrou-se como universal do direito internacional<br />

de direitos humanos e, por assim ser, como cardeal de proteção das minorias,<br />

constituindo-se como respaldo normativo amplo às reivindicações das minorias.<br />

Já as medidas de discriminação positiva caracterizam-se por ser medidas<br />

especiais que permitem a preservação das características das minorias, que visam<br />

a assegurar a pessoas pertencentes a grupos particularmente desfavorecidos uma<br />

posição idêntica às dos outros membros da sociedade, proporcionando, portanto,<br />

uma igualdade no exercício de direitos.<br />

Diferentemente do que ocorreu com o princípio da não discriminação, estas<br />

medidas foram aos poucos complementadas pelo legislador internacional, em razão<br />

da constatação da insuficiência das regras de não discriminação em relação a<br />

determinados grupos de pessoas. Então, tanto o princípio de não discriminação<br />

quanto as medidas de discriminação positiva assentam-se no princípio da igualdade.<br />

Atualmente, o entendimento primeiro é fundamentado na concepção aristotélica<br />

de que deve ser dado tratamento igual ao que é igual e tratamento desigual ao que é<br />

diferente. Como já dito alhures, muito ao contrário do já consagrado princípio da não<br />

discriminação, a questão da discriminação positiva é altamente controversa.<br />

Deveras, a inércia dos Estados em aceitar as medidas positivas de<br />

discriminação em benefício de determinados grupos, quando previstas em


Conceito de minorias e discriminação 149<br />

instrumentos internacionais, é, na maioria das vezes, motivada por receios de que<br />

possa haver certa ingerência em assuntos internos por parte da comunidade<br />

internacional (WUCHER, 2000: 55).<br />

Todavia, aqui já se iniciou, de uma forma mais direta, a abordagem acerca<br />

do tema minorias. Mas, para abordar qualquer assunto sobre tal tema, é mister<br />

aprofundar mais as questões a respeito das chamadas minorias.<br />

3. CONCEITO DE MINORIAS<br />

No plano internacional, a falta de consenso em torno dos elementos centrais<br />

do conceito minoria impede êxito na elaboração de uma definição universalmente<br />

aceita. A atual problemática das minorias é, sem sombra de dúvidas, um tema mais<br />

do que amplo, eis que a complexidade da questão expressa-se, notadamente pelo<br />

seu caráter interdisciplinar, não só no âmbito internacional público, mas pelo fato<br />

de o tema transcender o campo jurídico.<br />

A questão mais relevante a ser considerada no momento de se conceituar<br />

minoria é saber identificar quais indivíduos pertencem à determinada minoria, em<br />

meio à diversidade de minorias e seus respectivos contextos em todo o mundo. É<br />

importante aqui ressaltar a impossibilidade da existência de dois contextos idênticos,<br />

envolvendo minorias de diferentes Estados, vez que cada minoria, da mesma forma<br />

que a situação em que se encontra, tem suas próprias características, diferenciandose,<br />

com efeito, em graus diferentes, de contextos a respeito dos grupos minoritários<br />

em cada Estado, quando analisado individualmente.<br />

A palavra minoria inúmeras vezes aparece acompanhada de um adjetivo<br />

indicativo da origem da própria destinação. Ou seja, as minorias “nacionais”,<br />

“étnicas”, “religiosas” e “linguísticas” estampam a própria proteção internacional<br />

das minorias e seus respectivos direitos. Referindo-se aos direitos atinentes a<br />

minorias, O’Donnel constatou que: “Sin embargo, su aplicación también se<br />

dificulta por la falta de una definición clara y universalmente aceptada del<br />

término minoría” (apud WUCHER, 2000: 43). Ou seja, os problemas de definição<br />

devem ser analisados na grande e considerável diversidade de minorias, bem<br />

como seus respectivos contextos em todo o mundo.<br />

O conceito de “minorias históricas”, segundo Gabi Wucher, portanto, ao se<br />

opor ao de “minorias novas”, exclui, a priori, “grupos vulneráveis” outros que as<br />

tradicionais minorias étnicas, linguísticas e religiosas (2000: 51). A fim de buscar<br />

um significado para minoria, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira definiu o termo<br />

como “inferioridade numérica; parte menos numerosa duma corporação deliberativa,<br />

e que sustenta ideias contrárias às do maior número” (1994: 11).


150<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Ou, ainda, pode-se encontrar o significado de minoria como inferioridade<br />

em número; a parte menos numerosa de um corpo deliberativo 2 . De fato, nem<br />

mesmo a Organização das Nações Unidas conseguiu chegar a um conceito<br />

universalmente aceito, já que sempre houve muita hesitação sobre o assunto: a<br />

Declaração Universal não tratou particularmente dos direitos das minorias, ficando<br />

esta tarefa ao encargo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU,<br />

1966), primeiro instrumento normativo internacional da ONU a tratar sobre o tema,<br />

mas que, ainda assim, não forneceu uma definição segura de minoria, pregando<br />

de modo genérico o respeito aos direitos dos grupos minoritários, como evidenciado<br />

em seu artigo 27, in verbis:<br />

Artigo 27 – Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas,<br />

as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito<br />

de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida<br />

cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.<br />

Nessa esteira, José Augusto Lindgren Alves (1997) salientou que as<br />

argumentações para tamanha hesitação têm origem na dificuldade de conciliação<br />

das posições assimilacionistas dos Estados do Novo Mundo (formados por<br />

populações imigrantes) e as dos Estados do Velho Mundo, com grande gama de<br />

grupos distintos em seus territórios nacionais.<br />

E, ainda, o mesmo autor advertiu que as razões mais profundas para as<br />

hesitações nessa área se acham expostas no prefácio de Francesco Capotorti em<br />

seu estudo sobre minorias, datado de 1977 (para a regulamentação do artigo 27 do<br />

Pacto dos Direitos Civis e Políticos), a saber: desconfianças dos Estados em relação<br />

aos instrumentos internacionais de proteção dos direitos das minorias, vistos como<br />

pretextos para interferência em assuntos internos; ceticismo quanto ao fato de se<br />

abordarem, em escala mundial, as situações distintas das diversas minorias; a crença<br />

na ameaça à unidade e à estabilidade interna dos Estados pela preservação da<br />

identidade das minorias em seu território e, finalmente, a ideia de que a proteção a<br />

grupos minoritários constituiria uma forma de discriminação.<br />

Diante da necessidade de uma definição de minoria, a Subcomissão para a<br />

Prevenção da Discriminação e a Proteção das Minorias, criada pela ONU,<br />

encomendou ao perito italiano Francesco Capotorti (anteriormente citado) um estudo<br />

que resultou na seguinte definição de minoria que, por sua vez, será a definição<br />

adotada no presente trabalho:<br />

2 MINORIA. In: PRIBERAM. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Priberam Informática, 2009.<br />

Disponível em: . Acesso em: 5 de junho de 2009.


Conceito de minorias e discriminação 151<br />

Um grupo numericamente inferior ao resto da população de um Estado, em<br />

posição não dominante, cujos membros – sendo nacionais desse Estado – possuem<br />

características étnicas, religiosas ou linguísticas diferentes das do resto da população<br />

e demonstre, pelo menos de maneira implícita, um sentido de solidariedade, dirigido<br />

à preservação de sua cultura, de suas tradições, religião ou língua (CAPOTORTI<br />

apud WUCHER, 2000: 78).<br />

Infere-se dessa definição que o citado autor elencou o elemento numérico,<br />

o da não dominância, da nacionalidade e da solidariedade entre os membros<br />

da minoria como constitutivo de uma minoria. Não há, todavia, consenso no que diz<br />

respeito ao elemento numérico, qual seja, o tamanho de uma minoria.<br />

De um lado, tem-se que as medidas especiais em benefício de uma minoria<br />

muito pequena seriam inversamente proporcionais à capacidade financeira do Estado.<br />

Por outro lado, tem-se que a titularidade ou o exercício propriamente dito de direito<br />

individual não poderia depender do tamanho do grupo ao qual o indivíduo pertence.<br />

Inegavelmente, o elemento numérico, por si só, não é suficiente para caracterizar<br />

uma minoria que necessite de proteção especial do Estado. Já o elemento<br />

nacionalidade, por sua vez, levanta outras controvérsias, na medida em que é<br />

questionável se, para reivindicar direitos, as pessoas pertencentes às minorias devem<br />

ser cidadãos do Estado em que, de fato, vivem. Nesse sentido, a subcomissão, em<br />

primeira sessão, afirmou que pessoas que pertencem às minorias precisam ser<br />

nacionais do Estado em que vivem (WUCHER, 2000: 47).<br />

Em prosseguimento, o elemento da solidariedade entre os membros da<br />

minoria, visando à preservação de sua cultura, suas tradições, sua religião ou seu<br />

idioma, tem grande importância, eis que implica critério subjetivo, vale dizer, na<br />

manifestação de vontade implícita ou explícita de preservação das próprias<br />

características. Com efeito, na visão do Tribunal Permanente de Justiça Internacional,<br />

pertencer a uma minoria é mais uma questão de fato que de vontade:<br />

No que respeita ao elemento subjectivo da noção de minoria, o Tribunal Permanente<br />

de Justiça Internacional rejeitou o argumento segundo o qual a declaração de<br />

pertença a uma minoria era o único factor que condicionava a possibilidade de<br />

exercício dos direitos previstos pelos Tratados [...]. O Tribunal declarou que as<br />

minorias eram definidas por elementos objectivos, como a raça ou a religião, e não<br />

por simples declarações de vontade das pessoas. Essa declaração deve constituir<br />

a constatação de um facto, e não a expressão de uma vontade, o que excluía assim<br />

o elemento subjectivo da noção de minoria (PIRES apud WUCHER, 2000: 48).<br />

A questão de maior relevância, neste aspecto, é determinar qual o indivíduo<br />

que, de fato, pertence a uma minoria, ou seja, que pode reivindicar direitos dados a


152<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

uma determinada minoria. É necessário salientar que há duas definições para<br />

caracterizar minorias, envolvendo as concepções sociológica e antropológica.<br />

Na sociologia, o termo “minoria” normalmente é um conceito puramente<br />

quantitativo, referindo-se ao subgrupo de pessoas que representa menos da metade<br />

da população total, sendo certo que, dentro da sociedade, ocupa uma posição<br />

privilegiada, neutra ou marginal.<br />

Todavia, no aspecto antropológico, a ênfase é dada ao conteúdo qualitativo,<br />

referindo-se aos subgrupos marginalizados, ou seja, minimizados socialmente no<br />

contexto nacional, podendo, inclusive, constituir uma maioria em termos quantitativos.<br />

Dessa forma, para ser objeto de tutela internacional, a minoria deve, necessariamente,<br />

ser caracterizada pela posição de não dominância que ocupa no âmbito<br />

do Estado em que vive.<br />

O elemento de não dominância, por si só, é o que caracteriza os chamados<br />

grupos vulneráveis. A despeito da confusão entre os conceitos de minorias e<br />

grupos vulneráveis (as primeiras caracterizadas por ocupar uma posição de<br />

minoria no país onde vivem, no sentido literal da palavra, enquanto os segundos<br />

podem se constituir de grande contingente numérico destituído de poder, mas que<br />

guarda certa cidadania e os demais elementos que poderiam transformá-los em<br />

minorias, como as mulheres, as crianças e os idosos), deixar-se-á aqui de ater-se à<br />

diferença existente, posto que, na prática, ambos sofrem sobremaneira de<br />

discriminação e intolerância por parte da sociedade.<br />

Via de regra, quando se fala em minorias e grupos vulneráveis, logo se<br />

pensa em crianças, mulheres, idosos, aidéticos, homossexuais, pessoas com<br />

deficiência. Todavia, a cada dia surgem novos grupos ou, ainda, reconhece-se<br />

tratamento diferenciado – e discriminatório – recebido por determinadas pessoas<br />

que apresentam alguma característica peculiar, como a população carcerária ou<br />

os egressos do sistema penitenciário.<br />

3.1. Critérios de classificação<br />

O Pacto dos Direitos Civis e Políticos, muitas vezes criticado, traz, em seu<br />

dispositivo já transcrito alhures, somente questões acerca das minorias étnicas,<br />

linguísticas e religiosas. As minorias étnicas são grupos que apresentam, entre seus<br />

membros, traços históricos, culturais e tradições comuns, diferentes dos verificados<br />

na maioria da população. Minorias linguísticas são aquelas que usam uma língua,<br />

sem levar em consideração se esta é escrita ou não, distinta da língua da maioria da<br />

população ou da adotada oficialmente pelo Estado. Por sua vez, minorias religiosas<br />

caracterizam-se por grupos que professam uma religião distinta da professada pela


Conceito de minorias e discriminação 153<br />

maior parte da população, mas não apenas uma outra crença, como o ateísmo. No<br />

entanto, não é possível ater-se somente a tais minorias, visto que o critério de<br />

identificação das minorias envolve aspectos tanto objetivos quanto subjetivos.<br />

O aspecto objetivo envolve a visualização da realidade das minorias, por<br />

meio de documentos históricos e testemunhas que corroborem os laços étnicos,<br />

linguísticos e culturais destes grupos. Já o critério subjetivo envolve o reconhecimento<br />

da minoria, da sua existência reconhecida pelo Estado. Vale ressaltar aqui<br />

que o não reconhecimento de uma minoria por parte do Estado não o dispensa de<br />

respeitar os direitos do grupo minoritário.<br />

A partir da distinção apontada, no que diz respeito ao elemento objetivo ou<br />

subjetivo, outra classificação de minorias é viabilizada segundo os objetivos das<br />

minorias e de seus membros: a diferenciação entre “minorities by force” e “minorities<br />

by will” (WUCHER, 2000: 50). No entender do autor, entende-se por by force aquelas<br />

minorias e seus membros que se encontram numa posição de inferioridade na sociedade<br />

em que vivem e que almejam, tão somente, não ser discriminados em relação ao<br />

resto da sociedade e, ato contínuo, querem adaptar e assimilar-se a esta.<br />

De outra sorte, as minorias by will e seus membros exigem, além de não ser<br />

discriminados, a adoção de medidas especiais as quais lhes permitam a preservação<br />

de suas características coletivas (culturais, religiosas e linguísticas). Tais minorias,<br />

visando a preservar as indigitadas características, não querem se assimilar à<br />

sociedade em que, de fato, vivem, mas sim integrar-se a ela (o que, diga-se de<br />

passagem, é muito diferente; todavia, não há o propósito de ater-se, no presente<br />

trabalho, a tais distinções, em virtude de não ser o foco do mesmo) como unidade<br />

distinta do restante da população. Gabi Wucher (2000) asseverou ainda que:<br />

Esta distinção é de suma importância para o presente trabalho, visto que a<br />

definição aqui adotada enfoca as minorias by will, ou seja, as minorias combativas<br />

e autoafirmativas que aspiram à preservação de suas próprias características e<br />

rejeitam ser assimiladas à maioria da população.<br />

É necessário, nessa linha, mencionar ainda a existência de outros grupos,<br />

tais como as pessoas portadoras de deficiência, os homossexuais e os transexuais,<br />

dentre outros que, em princípio, não se enquadrariam nos modelos étnicos, linguísticos<br />

e religiosos.<br />

4. CONCLUSÃO<br />

O conceito antropológico, que envolve o aspecto qualitativo e não quantitativo,<br />

parece mais adequado à situação do tema, tendo em vista que considera o real


154<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

quadro de submissão dos grupos minoritários aos majoritários. No Brasil, onde o<br />

preconceito é um elemento constante nas atitudes da sociedade, não podem de<br />

forma alguma ser deixadas de lado as comparações entre aqueles grupos conflitantes,<br />

visto que são necessárias à conscientização dos membros da própria minoria<br />

de que seus direitos estão sendo violados.<br />

Com referência às questões de definição, a ênfase conferida aos acordos<br />

bilaterais e, principalmente, àqueles programas de cooperação técnica, justamente<br />

pelo enfoque político, aponta uma solução bastante pragmática, tendo em vista que<br />

tais acordos já se referem a determinado grupo de minorias, o que impede uma<br />

maior abrangência quando da aplicação dos direitos destes grupos.<br />

Dessa forma, a proposta central deste trabalho se restringe em classificar<br />

minorias, ao invés de defini-las, a despeito de eventuais problemáticas de uma<br />

subsequente “escala de direitos”, conforme proposto por Gabi Wucher (2000: 136).<br />

Em relação ao princípio da não discriminação e a medidas positivas, a breve abordagem<br />

enfatizou a necessidade de se alcançar uma igualdade de fato para todos.<br />

Aliás, é de ressaltar que a própria Lei Maior desequipara as pessoas com<br />

base em múltiplos fatores, quais sejam, raça, cor, sexo, renda, situação funcional e<br />

nacionalidade, dentre outros. Assim, ao contrário do que se poderia supor à vista<br />

da literalidade da matriz constitucional da isonomia, o princípio, em muitas de suas<br />

incidências, não apenas não veda o estabelecimento de desigualdades jurídicas,<br />

como, ao contrário, impõe o tratamento desigual.<br />

Não obstante, ainda, as citações da legislação internacional sobre o tema, a<br />

falta de especificação do mesmo no ordenamento jurídico pátrio leva, muitas vezes,<br />

à impunidade e à omissão do Estado, sendo certo que é justamente nessa esteira<br />

que se faz necessário um trabalho de educação e respeito de toda a sociedade, que<br />

também tem o dever de resguardar os direitos do próximo.<br />

Dessa forma, mesmo considerando todas as dificuldades enfrentadas pelas<br />

minorias, bem como as barreiras impostas à modificação dessa situação, percebese<br />

a intensa luta desses grupos pela sua sobrevivência e pela manutenção dos seus<br />

costumes. Para ajudá-los na manutenção de sua identidade, é preciso que a própria<br />

sociedade, munida do poder de participação que possui, realize mudanças sociais<br />

que venham a preservar a cultura e os direitos de tais grupos, contribuindo para<br />

efetiva integração social de todos.


Conceito de minorias e discriminação 155<br />

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A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 157<br />

11<br />

A nova pirâmide jurídica: a prisão do<br />

depositário infiel vista pelo STF<br />

The new juridical pyramid: the unfaithful<br />

trustee prison on the STF view<br />

RESUMO<br />

CARLOS JOÃO EDUARDO SENGER<br />

Advogado; procurador de Justiça; doutor em Direito, pela Universidad del Museo Social<br />

Argentino – UMSA, em Buenos Aires; professor e consultor do curso de<br />

Direito da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – <strong>USCS</strong>.<br />

WALLACE C. DIAS<br />

Bacharelando em Direito, pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul – <strong>USCS</strong>.<br />

E-mail para correspondência: wallace-dias@superig.com.br<br />

.<br />

A pirâmide jurídica, proposta na obra de Hans Kelsen, recebeu um novo patamar a<br />

partir do julgamento sobre prisão do depositário infiel. O Supremo Tribunal Federal<br />

refez sua posição clássica de escalonar os tratados internacionais como lei ordinária,<br />

de sorte que, na visão hodierna, os pactos de direitos humanos merecem um status<br />

supralegal, posição esta não prevista pelo constituinte de 1988. Neste trabalho,<br />

serão estudados os reflexos desta decisão e como ela pode alterar o Direito como<br />

um todo, seja na esfera internacional, seja na nacional.<br />

Palavras-chave: direitos humanos, depositário infiel, pirâmide jurídica.<br />

ABSTRACT<br />

The juridical pyramid proposal in the work of Hans Kelsen received a new level from<br />

the trial on arresting of an unfaithful trustee. The Supreme Court has remade his<br />

classic position to scale the international treaties and statutory law, in view of<br />

today’s human rights pacts worth a supra-status, position not foreseen for the<br />

constituent in 1988. This work will study the consequences of this decision and<br />

how it can alter the law as a whole, within the international or national sphere.<br />

Keywords: human rights, unfaithful trustee, juridical pyramid.


158<br />

1. HISTÓRICO DO CASO<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

O caso estudado por este trabalho é especificamente o Habeas Corpus n.<br />

87.585-8/TO, tendo como relator o Ministro Marco Aurélio de Mello, que foi julgado<br />

em 03/12/2008, representando verdadeira inovação no Direito brasileiro.<br />

O processo refere-se à legitimidade da prisão do depositário infiel, positivada pelo<br />

Código Penal no inciso III do parágrafo 1º do artigo 168. O referido Código, em vigor<br />

desde a década de 1940, estabelece a pena de reclusão de um a quatro anos e multa.<br />

Em 1988, com o advento da Constituição cidadã, novamente destacou-se a<br />

possibilidade da prisão do depositário infiel. Aliás, impende destacar que isto ocorre<br />

sob amparo de cláusula pétrea, vez que é no artigo 5º, inciso LXVII, que se<br />

encontra a positivação, in verbis: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a<br />

do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação<br />

alimentícia e a do depositário infiel” (grifou-se).<br />

O egrégio Superior Tribunal Federal já havia se posicionado em matéria<br />

sumulada de número 619, constatando que: “A prisão do depositário judicial pode<br />

ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente<br />

da propositura de ação de depósito”.<br />

Os tribunais estaduais também conferiam vigência e eficácia à prisão do<br />

depositário, pois nada obstava a aplicação da pena tão bem fixada nos ordenamentos<br />

nacionais e amplamente aceita pelos juristas à época.<br />

Quando tudo indicava pacificação do tema em aceitar a prisão do depositário<br />

infiel, perfez-se conflito normativo quando o Brasil ratificou o Pacto de São José<br />

da Costa Rica (ou Convenção Americana de Direitos Humanos) pelo Decreto n.<br />

678/92. Tal pacto tornou expressamente defesa a prisão por dívida, apenas<br />

permitindo no caso de pensão alimentícia:<br />

Artigo 7º<br />

(...)<br />

7 – Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados<br />

de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de<br />

obrigação alimentar1 .<br />

Poucos anos depois da ratificação, em 1997, o pacto já gerava efeitos na<br />

jurisprudência. O Tribunal de Justiça de São Paulo, 7ª Câmara de Direito Público,<br />

julgou o Habeas Corpus n. 059.816-5/9-00, tendo como relator o Desembargador<br />

Barreto Fonseca, e por votação unânime proferiu a seguinte ementa: “Em face da<br />

1 Disponível em: . Acesso em: 21 de outubro de<br />

2009.


A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 159<br />

adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica, não subsiste mais a prisão<br />

civil de depositário infiel” 2 .<br />

Os ínclitos desembargadores do julgado entenderam que o referido pacto<br />

havia obstado tacitamente o instrumento normativo constitucional que declarava a<br />

prisão civil do depositário.<br />

Apesar de não haver manifestação expressa sobre a recepção do pacto<br />

como parte integrante da Constituição, há indícios disso quando se trata do artigo<br />

5º, LXVII: “É que no caput do artigo estão declaradas garantias constitucionais<br />

mínimas, que podem ser ampliadas por tratados constitucionais (parágrafo 2º do<br />

artigo 5º da Constituição da República)” 3 .<br />

A jurisprudência caminhava no entendimento de o pacto ter força constitucional,<br />

aceitando-no como parte integrante do rol das garantias individuais tuteladas<br />

por cláusulas pétreas, porém um novo fato incidiria no tema. Mais adiante, no ano<br />

de 2004, atribulando ainda mais a já tormentosa questão, o Congresso, por meio de<br />

Emenda Constitucional n. 45, redefiniu o artigo 5º da Constituição, acrescentandolhe<br />

o parágrafo 3º. Tal parágrafo permitiu força constitucional a todo tratado de<br />

direito humano aprovado em votação de 3/5 de ambas as Casas Legislativas.<br />

Por certo que o Pacto de São José da Costa Rica não havia sido votado<br />

nestes termos; contudo, ele já recebia os benefícios da aplicação assegurada pelo<br />

parágrafo 2º do mesmo artigo constitucional. Estaria tal pacto escalonado como<br />

norma constitucional pelo parágrafo 2º ou, por uma interpretação sistemática, só<br />

com aprovação do Congresso adquiriria tamanha força? A Emenda n. 45 poderia<br />

afetar a vigência constitucional de pacto constituído outrora?<br />

Estas são questões de direito que tornaram ainda mais complexa a prisão do<br />

depositário infiel, de tal modo que a submeteram até o grau máximo de jurisdição<br />

nacional, o Supremo Tribunal, protetor dos elementos constitucionais com repercussão<br />

geral. Já era chegada a hora de uma definição concreta delimitar os ditames<br />

do Pacto de São José da Costa Rica.<br />

Um tema de tanta relevância clamava por pacificação, de maneira que não<br />

é mera coincidência o fato de a doutrina posicionar-se e observar atentamente o<br />

resultado que traria a concepção do Supremo. Os institutos do Direito internacional<br />

e direitos humanos estavam em avaliação. Estes elementos enfrentados pelo<br />

Supremo foram transcritos em linha temporal para melhor didática:<br />

2 Disponível em: . Acesso em: 31<br />

de setembro de 2009.<br />

3 HC n. 059.816-5/9-00. Rel. Desembargador Barreto Fonseca, julgado em 03/11/1997.


160<br />

1940<br />

1988<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

1992<br />

2004<br />

2008<br />

○ ○<br />

○ ○ ○ ○ ○ ○<br />

○ ○ ○<br />

○<br />

Código<br />

Penal<br />

CF/88 Ratificação<br />

do Pacto de<br />

São José<br />

Emenda<br />

n. 45/2004<br />

Posição<br />

do STF<br />

Com facilidade, nota-se quão complexo foi o julgado, que teve a missão de<br />

definir um conjunto de abordagens jurídicas das mais diversas áreas: Direito<br />

Constitucional, Internacional, Penal, Civil e, até mesmo, Filosofia e Teoria Geral<br />

do Direito.<br />

De maneira resumida, pode-se afirmar que os caminhos dos votos cruzaram<br />

os aspectos jurídicos descritos abaixo.<br />

a) Prevalência de norma: Direito nacional X Direito internacional.<br />

b) Eficácia de normas constitucionais (plena ou limitada).<br />

c) Hermenêutica constitucional do inciso LXVII do artigo 5º e parágrafos.<br />

d) Escalonamento de normas na pirâmide kelseniana 4 .<br />

e) Valores dos direitos humanos.<br />

f) Direito comparado.<br />

2. O PACTO NO ORDENAMENTO NACIONAL<br />

Diante da ratificação, em 1992, é refutável questionar sobre a inclusão do<br />

Pacto de São José da Costa Rica no Direito brasileiro. A problemática está em<br />

qual escala do Direito nacional encontra-se este instrumento, ou seja, não se<br />

questiona se ele faz parte, mas como faz parte.<br />

O Supremo defendeu, na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 1.480-<br />

3/DF, a paridade dos pactos com leis ordinárias, mantendo-as como normas<br />

igualmente escalonadas. Todavia, no julgamento focado por este trabalho, os<br />

ministros estudaram duas posições totalmente diversas para o Pacto de São José:<br />

4 Hans Kelsen não utilizava a expressão “pirâmide” em sua teoria. Aqui, fez-se uso do termo de<br />

maneira puramente pragmática.


A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 161<br />

a) com força constitucional imediata, pelos parágrafos 1º e 2º do artigo 5º<br />

da CF;<br />

b) com força supralegal, em virtude de não ter sido votado nos termos do<br />

parágrafo 3º do artigo 5º da CF, podendo, contudo, tornar-se constitucional<br />

caso esta votação seja feita.<br />

Abandonou-se, desta forma, para os instrumentos internacionais de direitos<br />

humanos, a clássica posição de que os tratados são leis ordinárias. Posição esta<br />

que seria a terceira hipótese não defendida no julgado, como se demonstra abaixo<br />

na pirâmide jurídica:<br />

Constituição<br />

Lei complementar<br />

Lei ordinária (Código Penal)<br />

Resoluções, decretos, portarias<br />

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○<br />

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○<br />

5<br />

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○<br />

Constitucional<br />

Supralegal<br />

Ordinário<br />

○ ○<br />

○ ○ ○ ○<br />

○ ○<br />

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○<br />

Pacto<br />

São José<br />

da Costa<br />

Rica<br />

A figura acima demonstra as possíveis soluções para escalonar o pacto, das<br />

quais prevaleceu a inovadora tese defendida pelo Ministro Gilmar Mendes: classificálo<br />

como supralegal. Assim, cria-se um novo “degrau” que supera as leis, mas não<br />

alcança o salutar título de norma constitucional até que seja votado como emenda.<br />

No curso do processo, o Ministro Gilmar Mendes frisou que, caso os pactos<br />

tornem-se dispositivos impreterivelmente com força constitucional, haveria o risco<br />

de “revogação de normas constitucionais com o advento dos tratados” 6 . O referido<br />

jurista destacou, também, que seria trabalhoso definir quando a Constituição<br />

absorveu ou não o instrumento internacional: “(...) fico a imaginar a confusão, diria<br />

até a babel que nós poderíamos instaurar. Primeiro, com a pergunta sobre se<br />

determinado tratado é tratado de direitos humanos (...)” 7 .<br />

5 Nem todos os doutrinadores aceitam a supremacia da lei complementar sobre a ordinária. Para estes,<br />

ambas estão no mesmo patamar, em igualdade.<br />

6 HC n. 87.585/TO. Rel. Ministro Marco Aurélio de Mello, julgado no dia 03/12/2008, publicado no<br />

dia 26/06/2009.<br />

7 Idem.


162<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Por outro lado, o Ministro Celso de Mello, defensor da constitucionalidade<br />

dos tratados de direitos humanos, argumentava que o parágrafo 2º do artigo 5º da<br />

Constituição Federal é “(...) – verdadeira cláusula geral de recepção – autoriza o<br />

reconhecimento de que os tratados internacionais de direitos humanos possuem<br />

hierarquia constitucional (...)” 8 . Além disso, destacava, também, que, na dúvida de<br />

classificação e aplicação dos tratados humanos, sob a perspectiva hermenêutica,<br />

“valorizar-se-á o sistema de proteção aos direitos humanos (...)” 9 , conferindo, desta<br />

forma, força de norma constitucional.<br />

O Ministro Sepúlveda Pertence lembrou, em ocasião oportuna, que o egrégio<br />

Supremo estaria por refazer sua posição quando disse: “Temos decisões posteriores<br />

à ratificação do Pacto San José, insistindo na legitimidade da prisão” 10 .<br />

Inquestionavelmente um empecilho obstaria a solução do Ministro Gilmar<br />

Mendes: o pacto em questão, enquanto supralegal, está acima do Código Penal;<br />

contudo, ainda submete-se à Constituição (que autoriza a prisão do depositário<br />

infiel). Como, então, não o tornar inconstitucional? Isto é o que demonstra o próximo<br />

item deste trabalho, trazendo a solução do próprio ministro para o caso.<br />

3. EFICÁCIA DO ARTIGO 5º, INCISO LXVII, DA CONSTITUIÇÃO<br />

Antes de verificar a argumentação para resolver o conflito do Pacto de São<br />

José da Costa Rica com a Constituição, é preciso observar a diferença entre vigência<br />

e eficácia.<br />

O tema não é moderno: a diferença entre vigência e eficácia encontrou grande<br />

teorização com o célebre Hans Kelsen. Este jurista (KELSEN, 2006) definia a vigência<br />

como a existência formal da lei dentro do ordenamento jurídico, enquanto que a<br />

eficácia era a existência fundada na aplicabilidade concreta das leis. Segundo ele:<br />

Como vigência da norma pertence à ordem do dever-ser e não à ordem do ser,<br />

deve também distinguir-se a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato<br />

real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta<br />

humana conforme a norma se verificar na ordem dos fatos 11 .<br />

Assim sendo, a vigência relaciona-se com o conflito normativo constitucional;<br />

já a eficácia, ao fiel cumprimento e vontade de aplicação normativa. Entretanto, é<br />

8 HC n. 87.585/TO. Rel. Ministro Marco Aurélio de Mello, julgado no dia 03/12/2008, publicado no<br />

dia 26/06/2009.<br />

9 Idem.<br />

10 Idem.<br />

11<br />

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. p. 11.


A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 163<br />

errado imaginar que basta a vigência para a norma ser válida; para isto, é necessário<br />

que, além de obedecer às exigências formais da lei, esta contenha, no mínimo,<br />

certa eficácia, de maneira que não seja letra morta válida tão somente na abstração.<br />

Este foi o fato atestado por Kelsen (2006):<br />

Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma<br />

norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não será<br />

considerada como norma válida (vigente) 12 .<br />

Já para Miguel Reale, a norma possui três elementos: validade formal ou<br />

técnico-jurídica (vigência), validade social (eficácia) e validade ética (fundamento<br />

da norma) 13 .<br />

A parte técnica formal da norma é definida por agente competente para<br />

legislar (e.g. norma federal), pela competência material (e.g. norma de trânsito),<br />

bem como pela legitimidade de procedimento (e.g. votação em quórum de 3/5) 14 .<br />

Cumpridos estes três pressupostos, a norma é válida no plano de vigência.<br />

Este insigne jurista brasileiro, embora de doutrina tridimensionalista,<br />

coadunou-se com Kelsen na importância da eficácia, dizendo de forma semelhante<br />

a ele: “O certo é, porém, que não há norma jurídica sem um mínimo de eficácia, de<br />

execução no seio do grupo” 15 .<br />

Quando se estudam normas, é preciso estar atento para ambos os elementos<br />

– os dois possuem igual importância para o jurista, obviamente que o sociólogo<br />

está mais próximo da eficácia na medida em que o jurista está da vigência; contudo,<br />

só por meio de um mutualismo científico pode-se estruturar a validade da norma.<br />

Perfazendo de maneira mais visualizável estas ideias defendidas por Reale e Kelsen,<br />

poder-se-ia estruturá-las no seguinte esquema:<br />

Norma<br />

supostamente<br />

válida<br />

12 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. p. 12.<br />

13 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. p. 105.<br />

14 Ibidem, p. 110.<br />

15 Ibidem, p. 113.<br />

Vigência Validade formal<br />

Eficácia Validade material<br />

Norma<br />

válida


164<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

O caso aqui estudado, referente ao Pacto de São José da Costa Rica, é de<br />

matéria constitucional. Tais normas não costumam enfrentar problemas de vigência,<br />

vez que são de escalonamento mais alto; estando no topo da pirâmide jurídica, só<br />

podem conflitar com outras normas constitucionais.<br />

No plano constitucional, as normas possuem a máxima vigência (constituem o<br />

topo da pirâmide), porém apresentam diversos tipos de eficácia. Esta divisão dos<br />

tipos de eficácia não é matéria pacífica porquanto José Afonso da Silva, Celso Ribeiro<br />

Bastos e Maria Helena Diniz formularam teorias diferentes de classificação 16 .<br />

Insta dizer que a divisão de José Afonso da Silva (2002) é mais utilizada e<br />

conhecida, inclusive pelo Superior Tribunal Federal em julgamento do Mandado de<br />

Injunção n. 438-2-GO, publicado no DJU, em 16 de agosto de 1995 17 . Esta divisão<br />

é feita da seguinte forma 18 :<br />

a) normas de eficácia plena: autoaplicáveis, efeitos imediatos;<br />

b) normas de eficácia limitada: sem eficácia até regulamentação<br />

infraconstitucional posterior;<br />

c) normas de eficácia contida: sujeitas às restrições de aplicabilidade por<br />

meio de norma infraconstitucional.<br />

Estas informações foram essenciais para o Supremo Tribunal Federal<br />

caracterizar a supralegalidade do Pacto de São José da Costa Rica sem gerar<br />

conflito com o artigo 5º, LVXII, da Constituição.<br />

Caracterizando o artigo 5º, LVXII, como norma de eficácia limitada, entendeu<br />

o Ministro Marco Aurélio de Mello que o legislador regulou a prisão civil do<br />

depositário infiel de forma permissiva e não vinculada, ou seja, permitiu à norma<br />

infraconstitucional tornar crime o depositário infiel, mas apenas se desejasse, pois<br />

é ato discricionário.<br />

O Pacto de São José agora proíbe tornar eficaz a prisão civil por meio do<br />

Código Penal; contudo, não proíbe a Constituição de autorizá-lo. A prisão do<br />

depositário é vigente na Constituição, mas sem eficácia por não contar com norma<br />

infraconstuticional que torne possível a pena. Sendo o Código Penal lei ordinária, o<br />

pacto proíbe os seus dispositivos contrários.<br />

16 ARAUJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. p. 18-24.<br />

17 Disponível em: . Acesso em: 23 de agosto de 2009.<br />

18 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. Revista dos Tribunais, p. 89-91.


A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 165<br />

Manifestou-se, neste sentido, o Ministro Marco Aurélio de Mello, valendose<br />

da teoria da eficácia das normas para que o Pacto de São José, mesmo estando<br />

abaixo da Constituição, tenha efeitos jurídicos plenos. Segundo ele: “(...) a<br />

Constituição Federal continua a prever a possibilidade (...). Só que esta norma,<br />

para ter eficácia e concretude, depende da regulamentação da prisão, inclusive<br />

quanto ao instrumental, para alcançar-se esta mesma prisão” 19 .<br />

O Ministro Celso de Mello, em análise hermenêutica da intenção do legislador,<br />

definiu que a eficácia infraconstitucional da pena é discricionária ao legislador:<br />

Na realidade, as exceções à cláusula vedatória da prisão civil por dívida devem<br />

ser compreendidas como um afastamento pontual da interdição constitucional<br />

dessa modalidade extraordinária de coerção, em ordem a facultar, ao legislador<br />

comum, a criação desse meio instrumental nos casos de inadimplemento<br />

voluntário e justificável de obrigação alimentar e de infidelidade depositária 20 .<br />

E também frisou, em concordância com o Ministro Marco Aurélio de Mello,<br />

que “(...) a regra inscrita no inciso LXVII do artigo 5º da Constituição não tem<br />

aplicabilidade direta, dependendo, ao contrário, da intervenção concretizadora do<br />

legislador (...)” 21 .<br />

Em síntese, o Pacto de São José não impede que a Constituição autorize,<br />

mas impede que norma ordinária torne aplicável a prisão, incidindo no momento<br />

em que o Código Penal concederia eficácia, e não quando a Constituição permitiu.<br />

Por estar acima da lei ordinária, o referido pacto tem poder de intervir na aplicação<br />

do Código Penal, mas jamais poderia fazer isto no texto constitucional. O<br />

procedimento ocorre, portanto, desta forma:<br />

19 HC n. 87.585/TO. Rel. Ministro Marco Aurélio de Mello, julgado no dia 03/12/2008, publicado no<br />

dia 26/06/2009.<br />

20 Idem.<br />

21 Idem.<br />

Constituição<br />

Autoriza a prisão<br />

Norma ordinária<br />

(Código Penal)<br />

○ ○ ○ ○ ○<br />

Pacto de São José<br />

Veta a eficácia<br />

infraconstitucional<br />

Norma<br />

aplicável


166<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

4. A CONSEQUÊNCIA DO JULGAMENTO (NOVOS VALORES)<br />

Os direitos humanos, que já foram e ainda hoje são negados por muitos<br />

juristas, consistem numa destas questões tão complexas que retornam quando se<br />

presume já estarem superadas.<br />

Michel Villey, jurista francês, lutou arduamente contra o conceito de direito<br />

humano. Chegou até mesmo a dizer que “o aparecimento dos direitos humanos atesta<br />

a decomposição do conceito do direito” 22 . Mais adiante, confirmando esta posição,<br />

ressaltou-a com mais vigor, condenando: “Esses não juristas, que foram os inventores<br />

dos direitos humanos, sacrificaram-lhe a justiça, sacrificaram o direito” 23 .<br />

Desde os jusnaturalistas, há uma luta para listar os direitos inerentes do<br />

homem, aqueles que o acompanham enquanto ser existente, e não somente na<br />

qualidade de cidadão – valores que constituem a supremacia da racionalidade e do<br />

amor e preocupação ao próximo.<br />

O problema foi encontrar uma paridade de direitos: o homem não é o mesmo<br />

em todos os tempos e em todos os espaços. A ideia de normas transcendentais, que<br />

parecia uma falácia coberta por argumentos sofismáveis, sofreu inúmeras críticas<br />

de Kelsen: “Os seus representantes não proclamam um único Direito natural, mas<br />

vários Direitos naturais, muito diversos entre si e contraditórios uns com os outros” 24 .<br />

Cada vez mais, via-se a impossibilidade de atingir um direito do homem. Este<br />

é ser biologicamente constituído como tal, enquanto que o Direito apresenta maior<br />

interesse no cidadão, ou seja, no indivíduo juridicamente vinculado a algum preceito<br />

normativo. Alegou, de forma semelhante à Kelsen, o jurista francês Villey (2008):<br />

Ó medicamento admirável! – capaz de tudo curar, até as doenças que ele mesmo<br />

produziu! Manipulados por Hobbes, os direitos do homem são uma arma contra<br />

anarquia, para a instauração do absolutismo; por Locke, um remédio contra o<br />

absolutismo, para a instauração do liberalismo; quando se revelam os malefícios<br />

do liberalismo, foram a justificação dos regimes totalitários e dos hospitais<br />

psiquiátricos 25 .<br />

Talvez não existam os “direitos” humanos, mas valores internacionais existem,<br />

conforme o próprio Villey confessou 26 . Transformados em pactos, eles possuem<br />

uma maior aplicabilidade, são positivados, recebem eficácia e vigência no ordenamento.<br />

22<br />

VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. p. 163.<br />

23 Idem. p. 164.<br />

24<br />

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. p. 245.<br />

25<br />

VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. p. 162.<br />

26 Ibidem. p. 94.


A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 167<br />

O Pacto de São José da Costa Rica trouxe para o Direito nacional novos<br />

valores que não só auxiliaram o constituinte (pois o pacto é anterior à Constituição),<br />

como também alterou toda a ideia clássica da pirâmide kelseniana.<br />

O Supremo Tribunal Federal convenceu-se da relevância do pacto em questão<br />

quando o escalonou em nível totalmente novo: a supralegalidade, em outras palavras,<br />

aquilo que não é constitucional por vigência, mas com tão grande eficácia axiológica<br />

que supera as leis comuns.<br />

Os instrumentos internacionais de direitos humanos demonstram iniciar o<br />

caminho indireto para o constitucionalismo mundial proposto por Luigi Ferrajoli<br />

(2007) 27 , célebre jurista italiano. Na medida em que constituições são revistas para<br />

melhor se adequarem aos valores formalizados pelos pactos, tem-se uma inversão<br />

na antiga ordem social: a sacramental soberania interna, que era comumente<br />

defendida no século XVIII, está enfraquecendo e cedendo espaço para uma<br />

soberania pactual-valorativa internacional.<br />

A prisão do depositário infiel gera muitas suscitações não apenas nas mais<br />

altas cortes, mas em todo o Judiciário nacional. A doutrina debruça sobre o tema:<br />

Álvaro Villaça Azevedo (1993), por exemplo, criticou a efetividade da prisão civil 28 ,<br />

mesmo ressaltando o poder intimidatório que exerce.<br />

Em que pesem os benefícios advindos, a interpretação da Suprema Corte<br />

não foi totalmente recepcionada nos círculos acadêmicos. O jurista Ingo Wolfgang<br />

Scarlet, durante uma palestra do XXIX Congresso Brasileiro de Direito Constitucional,<br />

disse que: “A prevalência da Constituição possibilitaria a prisão. Nesse<br />

caso, o Supremo está afirmando a supraconstitucionalidade dos tratados” 29 .<br />

Este jurista acredita que o Supremo esvaziou o poder infraconstitucional,<br />

impedindo-o de receber um poder regulamentar que a Constituição emitiu. Disse,<br />

ainda, que esta decisão foi política porquanto o STF alargou a competência quando<br />

não tornou o pacto um dispositivo com força constitucional (permitindo ao STJ<br />

também julgar tais casos) 30 .<br />

Outros doutrinadores argumentam que a vedação do pacto não atinge todo<br />

tipo de depositário infiel, mas tão somente os oriundos de alienação fiduciária. De<br />

encontro a isso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro proferiu em ementa: “(...)<br />

27 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. passim.<br />

28 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão por dívida. p. 159-160.<br />

29 Disponível em: .<br />

Acesso em: 29 de setembro de 2009.<br />

30 Idem.


168<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Porém, tendo o STF estendido a vedação constitucional à hipótese de infidelidade<br />

no deposito de bens, inclusive nos casos de alienação fiduciária (...)” 31 . Notadamente,<br />

ao valer-se da palavra “inclusive”, o Tribunal do Rio de Janeiro incluiu<br />

todos os casos de depósito infiel, e não apenas os de alienação fiduciária.<br />

A jurisprudência cada vez mais se mostra inclinada a aceitar a posição do<br />

STF, e o mesmo tribunal tornou explícita a concordância em outra ementa:<br />

Habeas Corpus. Decreto de prisão de depositário infiel. Inadimissibilidade.<br />

Entendimento do Supremo Tribunal Federal. Concessão da ordem 32 .<br />

A tendência é que, devido à grande aceitação do Pacto de São José, o<br />

Congresso convoque votação para conferir-lhe força constitucional, elevando ainda<br />

a importância dos pactos no Direito brasileiro e resolvendo de vez certa dúvidas<br />

que ainda existem.<br />

5. CONCLUSÃO<br />

Em suma, O Pacto de São José foi mais do que recepcionado pelo<br />

ordenamento jurídico brasileiro, ele foi valorizado, posto em posição extremamente<br />

vantajosa, ainda que não atinja o ápice da constitucionalidade.<br />

A decisão do acórdão conferiu grande aplicabilidade para os instrumentos<br />

internacionais, configurando verdadeira segurança jurídica para a assinatura destes.<br />

Além disto, reestruturou o escalonamento normativo, reavaliou os valores clássicos<br />

da jurisprudência e, até mesmo, refez o posicionamento da Suprema Corte.<br />

Não se pode, contudo, escusar-se de destacar os problemas que permanecem:<br />

se os tratados de direitos humanos são supralegais, qual é o critério para<br />

caracterizar um tratado como sendo de direito humano? Tal controle será feito de<br />

forma discricionária pelo Judiciário até que o Supremo defina-se sobre a matéria? É<br />

mesmo possível confirmar a existência de direitos humanos? Estaria o STF atestando<br />

que há jusnaturalismo, vez que aceita o termo “direitos humanos” e até utiliza-o?<br />

A questão propedêutica de o Direito provir da razão humana ou das normas<br />

estatais, ou melhor, do jusnaturalismo contra o positivismo não terminou e está<br />

longe de terminar. Contudo, é inegável perceber que o positivismo está perdendo a<br />

sua força, que possuía desde o início do século XX.<br />

31 TJ-RJ. Apelação n. 2009.001.48179. Rel. Paulo Maurício Pereira. Julgado em 23/09/2009.<br />

32 TJ-RJ. HC n. 2009.144.00302. Rel. Antonio Carlos Esteves Torres. Julgado dia 13/10/2009.


A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 169<br />

Os tempos hodiernos revelam que o constitucionalismo não é tão inflexível; aliás,<br />

sequer é sinônimo de normativismo. Os valores conduzem o Judiciário atual de tal forma<br />

que os pactos de direitos humanos receberam força superior à própria norma interna do<br />

país, àquela elaborada na Casa Legislativa do povo e dos Estados-membros.<br />

Há, de fato, a possibilidade de que, fortificando os valores comuns das nações,<br />

torna-se tangível uma norma mundial geral, uma constituição das constituições<br />

(nas linhas de Ferrajoli). Por certo que este é um tema futuro, mas o caminho já<br />

mostra sinais de possibilidade.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ARAUJO, Luiz Alberto David & NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito<br />

Constitucional. 9. ed., rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2005.<br />

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão civil por dívida. São Paulo: RT, 1993.<br />

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição.<br />

Coimbra: Almedina, 1998.<br />

FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. 2. ed. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2007.<br />

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:<br />

Milenium, 2003.<br />

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.<br />

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.<br />

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional.<br />

3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997.<br />

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27. ed., ajustado ao novo Código<br />

Civil. São Paulo: Saraiva, 2002.<br />

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 22. ed. São<br />

Paulo: Malheiros, 2002.<br />

______. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista dos<br />

Tribunais, 1982.<br />

VILLEY, Michael. O Direito e os direitos humanos. São Paulo: Martins Fontes,<br />

2008.


170<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Anotações


Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 171<br />

12<br />

Exegese sobre a “relativização”<br />

da coisa julgada: o que há por trás<br />

desta tendência?<br />

Exegesis about the “relativization”<br />

of res judicata: what’s<br />

behind this tendency?<br />

RAFAEL JOSÉ NADIM DE LAZARI<br />

Advogado; mestrando em Direito, pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília/SP – Univem;<br />

pesquisador do Grupo de Iniciação Científica “Novas Perspectivas no<br />

Processo de Conhecimento”, sob orientação do Prof. Dr. Gelson Amaro de Souza.<br />

E-mail para correspondência: rafa_scandurra@hotmail.com.<br />

GELSON AMARO DE SOUZA<br />

Procurador do Estado de São Paulo aposentado; mestre em Direito, pela Instituição Toledo de Ensino<br />

– ITE, de Bauru, São Paulo; doutor em Direito das Relações Sociais – com área de concentraçã<br />

o em Direito Processual Civil–, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP;<br />

integrado ao corpo docente do Mestrado em Direito e na graduação em Direito da Universidade<br />

Estadual do Norte do Paraná – Uenp; ex-diretor e atual professor dos cursos de graduação e pósgraduação<br />

em Direito, das Faculdades Integradas “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente<br />

– Fiaetpp, São Paulo. Leciona também na graduação das Faculdades Adamantinenses Integradas – FAI,<br />

de Adamantina, São Paulo; é professor convidado da Escola Superior de Advocacia – ESA, de São<br />

Paulo e da pós-graduação das Faculdades Integradas de Ourinhos – FIO, São Paulo, da<br />

Escola Superior de Direito de Mato Grosso – Esud, de Cuiabá, e das Faculdades Integradas de Três<br />

Lagoas – Aems, Mato Grosso do Sul; advogado militante em Presidente Prudente, São Paulo.<br />

E-mail para correspondência: advgelson@yahoo.com.br.<br />

RESUMO<br />

Por intermédio dos métodos lógico e dedutivo, o presente ensaio trata da<br />

relativização da coisa julgada e de seus desdobramentos na esfera constitucional<br />

da segurança jurídica. Isto porque se mostra como medida plausível e consciente<br />

saber até que ponto tal instituto pode ser mitigado em prol do anseio por um<br />

pronunciamento não ofensivo aos ditames da justiça e da constitucionalidade.<br />

Palavras-chave: coisa julgada, relativização, segurança jurídica, inconstitucionalidade,<br />

injustiça.


172<br />

ABSTRACT<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Through logical and deductive methods, this essay discusses the relativization of<br />

the res judicata and its consequences to legal security. In this sense, will compare<br />

reviews favorable and contrary about the application this institutes.<br />

Keywords: res judicata, relativization, legal security, unconstitutionality, injustice.<br />

1. LINHAS PREAMBULARES<br />

O homem é fruto da sua contradição. Ao passo que se perfilha a proposições<br />

benéficas que lhe são judicialmente reconhecidas, inclusive invocando-as e valendose<br />

de tais como “escudo protetor” ante a possibilidade de sua ofensa (como deve<br />

ser, na verdade), busca incansavelmente desconstituir o que lhe é desfavorável,<br />

mesmo que isso importe negar o que outrora já foi absolutamente revestido de<br />

imutabilidade a bem de outrem.<br />

Sem circunlóquios, é assim que funciona com a coisa julgada e sua<br />

relativização: após um dilatado período de batalhas nos tribunais, através das querelas<br />

judiciais e da “guerra de nervos” que apelações, agravos, embargos etc.<br />

proporcionam, o “combatente” se vê diante de um pronunciamento judicial que<br />

encerra a lide e proclama a “paz entre as partes”. Todavia, mesmo após o “fechar<br />

das cortinas”, mas antes ainda do “apagar das luzes”, há a possibilidade de “atos<br />

extras” que desconstituam a res judicata – quais sejam: a ação rescisória, nos<br />

termos dos artigos 485 e seguintes do Código de Processo Civil; a impugnação (ou<br />

embargos) sobre título judicial fundado em lei ou ato normativo declarado<br />

inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou<br />

interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo STF como incompatíveis com a<br />

Constituição Federal, com base no artigo 475-L, parágrafo 1º, e artigo 741, parágrafo<br />

único, da Lei Adjetiva; e a possibilidade de revisão da coisa julgada por denúncia<br />

de violação à Convenção Americana de Direitos Humanos, formulada pela Corte<br />

Interamericana de Direitos Humanos 1 – para que o vencedor possa, enfim,<br />

tranquilizar-se acerca da decisão proferida.<br />

Então, suplantados todos os entreveros, quando menos se espera, acena-se<br />

pela possibilidade de injustiça ou inconstitucionalidade em um julgamento e<br />

surge a proposta de “relativizar” a coisa julgada por meios não convencionais,<br />

porém lícitos.<br />

1 Acrescentou-se às duas convencionais modalidades de desconstituição da coisa julgada esta terceira<br />

modalidade, lembrada por Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (2008: 579).


Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 173<br />

Quando se fala em decisão “inconstitucional”, parece clarividente que faz<br />

alusão àquela que fere os ditames da Lei Max brasileira. Mas, quando se fala em<br />

decisão injusta, o que seria ela afinal? Sintetizando e “relativizando” uma definição<br />

– assim como se quer relativizar a coisa julgada –, uma decisão injusta seria aquela<br />

que não atende aos anseios de um indivíduo, embora ela seja justa para outro, que<br />

propôs uma ação contra o primeiro e obteve êxito.<br />

Ademais, falar em “relativização da coisa julgada” remonta à nominação<br />

questionável: afinal, ou “é” ou “não é” coisa julgada; e não “pode ser” coisa julgada 2 .<br />

Até mesmo porque “relativizar” a coisa julgada é inviabilizar, de plano, a segurança<br />

jurídica que uma decisão imutável proporciona. Ao que parece, este “sopro processual<br />

nos ouvidos ansiosos por novidades” acompanha a moda de relativizar tudo, seguindo<br />

a ideia “einsteniana” de que tudo no mundo é relativo. Nem tudo é relativo, contudo.<br />

É com base na questão envolvendo a segurança jurídica ao ordenamento<br />

material-processual, bem como atentando a uma suposta “mitigação” deste instituto,<br />

que este ensaio quer se debruçar sobre a matéria.<br />

2. DA COISA JULGADA MATERIAL E A QUESTÃO<br />

ENVOLVENDO A SEGURANÇA JURÍDICA<br />

Preceitua o artigo 467 do Código de Processo Civil acerca da coisa julgada<br />

substancial, espécie de coisa julgada que interessa a bem da formulação deste<br />

ensaio: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e<br />

indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.<br />

Como bem se vê, trata-se da hipótese em que foi proferida, nos autos, decisão<br />

definitiva, nos termos do artigo 269 do Diploma Processual, e contra este pronunciamento<br />

não mais cabe qualquer tipo de recurso que permita a manifestação da<br />

parte irresignada.<br />

2 É importante deixar no papel, para efeitos de análise e crítica à nominação “relativização da coisa<br />

julgada”, a opinião, diferente e complementar àquela formulada pelo autor desta exegese, de José<br />

Carlos Barbosa Moreira (2008: 225): “É que, quando se afirma que algo deve ser ‘relativizado’,<br />

logicamente se dá a entender que se está enxergando nesse algo um absoluto: não faz sentido que se<br />

pretenda ‘relativizar’ o que já é relativo. Ora, até a mais superficial mirada ao ordenamento jurídico<br />

brasileiro mostra que nele está longe de ser absoluto o valor da coisa julgada material: para nos<br />

cingirmos, de caso pensado, aos dois exemplos mais ostensivos, eis aí, no campo civil, a ação<br />

rescisória e, no penal, a revisão criminal, destinadas ambas, primariamente, à eliminação da coisa<br />

julgada. O que se pode querer – e é o que no fundo se quer, com dicção imperfeita – é a ampliação<br />

do terreno ‘relativizado’, o alargamento dos limites da ‘relativização’”.


174<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Melhor explicando-a, asseverou Câmara (2004: 469):<br />

Por tal motivo, as sentenças definitivas, as quais contêm resolução do objeto do<br />

processo [...], devem alcançar também a coisa julgada material (ou substancial).<br />

Esta consiste na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo (declaratório,<br />

constitutivo, condenatório) da sentença de mérito, e produz efeitos para fora do<br />

processo. Formada esta, não poderá a mesma matéria ser novamente discutida,<br />

em nenhum outro processo.<br />

“Imutabilidade” e “indiscutibilidade”. São estas as duas palavras-chave pelas<br />

quais tanto se almeja quando se ingressa numa peleja judicial, as quais estão contidas<br />

no universo constitucional da chamada “segurança jurídica”, nobre axioma alçado<br />

à esfera de cláusula pétrea no 36º inciso do artigo 5º da Constituição Federal<br />

pátria, e que expressamente trata, em seu terceiro item, da “coisa julgada” 3 .<br />

Neste prumo, conveio a Didier Jr., Braga & Oliveira (2008: 552) conciliar o<br />

instituto da coisa julgada com a questão envolvendo a segurança jurídica:<br />

A coisa julgada é instituto jurídico que integra o conteúdo do direito fundamental<br />

à segurança jurídica, assegurado em todo Estado Democrático de Direito,<br />

encontrando consagração expressa, em nosso ordenamento, no artigo 5º,<br />

XXXVI, da CF. Garante ao jurisdicionado que a decisão final dada à sua demanda<br />

será definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou desrespeitada – seja<br />

pelas partes, seja pelo próprio Poder Judiciário 4 (grifou-se).<br />

Entretanto, em que pese o status de “porto seguro” adquirido pela res judicata<br />

ao longo dos tempos, o que permitiu sua acoplagem ao princípio da segurança<br />

jurídica num “casamento” perfeito, parece haver uma temerária tendência em<br />

desconsiderá-la como tal, em razão de possíveis decisões injustas ou inconstitucionais<br />

cristalizadas, o que teria colocado em xeque a soberania da coisa julgada.<br />

3 “Artigo 5º: [...] XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa<br />

julgada” (grifou-se). Fica clarividente, pois, que a Carta de 1988 recepcionou o parágrafo 3º do<br />

artigo 6º do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil), o<br />

qual prevê: “Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba mais<br />

recurso”. Assim, apesar de sua definição se dar no plano infraconstitucional (tanto no CPC como na<br />

LICC), a essência da res judicata encontra-se “petrificada” no quinto artigo da Constituição Federal,<br />

o que lhe garante a condição de direito fundamental explícito.<br />

4 Também relacionando a coisa julgada ao princípio da segurança jurídica, Teresa Arruda Alvim<br />

Wambier e José Miguel Garcia Medina (2003: 21) definiram a res judicata como um “[...] instituto<br />

cuja função é a de estender ou projetar os efeitos da sentença indefinidamente para o futuro. Com<br />

isso, pretende-se zelar pela segurança extrínseca das relações jurídicas, de certo modo em<br />

complementação ao instituto da preclusão, cuja função primordial é garantir a segurança intrínseca<br />

do processo, pois que assegura a irreversibilidade das situações jurídicas cristalizadas<br />

endoprocessualmente” (grifou-se).


Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 175<br />

Acerca deste processo de “desconsideração”, bem observou Baptista da<br />

Silva (2008: 307):<br />

Vivemos um tempo singular, que alguém qualificou de a “era da incerteza”. [...] As<br />

coisas que pareciam perenes, mesmo as coisas sagradas, ou aquelas tidas como<br />

naturais, como a família, acabam desfazendo-se ante a voracidade das transformações<br />

culturais. [...] Neste quadro natural, não deve surpreender que a instituição da coisa<br />

julgada, tida como sagrada na “primeira modernidade”, entre em declínio 5 .<br />

Em verdade, tal posicionamento tem se tornado crescente em razão de um<br />

“processo de esquecimento” acerca da real função da coisa julgada, qual seja, a<br />

de fornecedora de “garantia de segurança”, e não de “justiça”, como idealizam os<br />

“relativizadores”. Neste diapasão, coube a Didier Jr., Braga & Oliveira (2008:<br />

552) fazer tal distinção:<br />

A coisa julgada não é instrumento de justiça, frise-se. Não assegura a justiça<br />

das decisões. É, isso sim, garantia da segurança, ao impor a definitividade da<br />

solução judicial acerca da situação jurídica que lhe foi submetida (grifou-se).<br />

Sublinham-se, na citação supra, as assertivas de que “[...] a coisa julgada<br />

não assegura a justiça [...]”, mas sim “[...] a garantia da segurança das decisões”.<br />

Neste prumo, convém dissecar a frase para melhor entendê-la: com relação à<br />

primeira afirmativa, há que se considerar que o conceito de “justiça” é<br />

demasiadamente complexo para uma definição final e objetiva. Há um pluralismo<br />

de fatores que a norteiam, mas, de certa forma, todos eles estão ligados à questão<br />

da vulnerabilidade humana a possíveis falhas que possam transformar o justo em<br />

injusto num “piscar de olhos” 6 . Assim, às vezes, diante de um deslize do litigante<br />

5 Na mesma direção, Eduardo Talamini (2005: 61) tratou este processo mitigatório como um “ciclo<br />

natural das coisas”, ao afirmar que: “A íntima vinculação entre coisa julgada e o princípio da<br />

segurança jurídica comporta ainda outra indagação. Trata-se de saber em que medida a própria<br />

segurança jurídica, no Estado moderno, não teria perdido seu relevo sistemático em prol de outros<br />

valores – hipótese em que a coisa julgada poderia ter tido o mesmo destino”.<br />

6 Tal asserção encontra guarida nas palavras de Donaldo Armelin (2008: 99). Veja-se: “A desarmonia<br />

entre a decisão judicial transitada em julgado e o valor Justiça pode ocorrer em razão de várias<br />

circunstâncias. Algumas podem ser suscitadas por serem consideravelmente mais frequentes e<br />

podem ser reconhecidas, tal como supra examinado, até mesmo no rol das hipóteses de cabimento<br />

da ação rescisória de sentença. São elas: (a) o erro, dolo ou fraude do órgão judicante; (b) a fraude da<br />

parte ou dos órgãos auxiliares da Justiça; (c) o erro ou a inércia da parte no seu desempenho<br />

processual, nisso compreendido o erro, dolo ou omissão de seu representante técnico; (d) a evolução<br />

do estado da técnica, em se tratando de meio de prova; (e) má aplicação do direito à espécie sub<br />

judice”. Observa-se, portanto, que as causas enumeradas pelo ilustre doutrinador como capazes de<br />

influir no resultado de uma decisão, e que são, segundo ele, “consideravelmente mais frequentes”;<br />

amoldam-se à questão da vulnerabilidade do homem a possíveis falhas, sejam elas acidentais,<br />

intencionais, ou até mesmo inevitáveis, como é o caso do item “d”, acima elencado.


176<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

em sua empreitada na busca pela verdade, como a ausência de um documento ou<br />

a perda de um prazo, o Estado-juiz profere decisão que não reflete o real direito<br />

daquele, mas, mesmo assim, esta decisão terá sido justa, vez que um pronunciamento<br />

final deve estar isento de benevolências ou malevolências quanto à falha que o<br />

ensejou; caso contrário, estar-se-ia manchando a imparcialidade do órgão julgador.<br />

Da mesma maneira, a injustiça pode advir do outro lado. A título ilustrativo,<br />

a falibilidade pode se dar na figura de um médico que não consegue salvar seu<br />

paciente mesmo na mais corriqueira das cirurgias. Às vezes, pode se dar na pessoa<br />

de um alpinista que falha em sua empreitada ao cume de uma montanha. E como<br />

não podia deixar de ser, ela também pode se dar na figura de um magistrado que<br />

peca em sua decisão, proferindo-a contra a forma ou contra matéria dispositiva.<br />

Em ambos os casos, em não sendo percebido o vício, o pronunciamento proferido<br />

pelo juiz pode convalidar caso se esgote a via recursal ou a via de ação (leiase<br />

ação rescisória). Verifica-se, assim, que mesmo uma sentença eivada de vícios<br />

pode fazer coisa julgada. Por isso, diz-se que a coisa julgada não assegura a justiça.<br />

Já com relação à segunda afirmativa, começa-se a explicá-la com um<br />

questionamento: afinal, o que a coisa julgada objetiva garantir então? Com efeito, a<br />

coisa julgada vem oferecer respaldo à segurança jurídica das partes, de maneira<br />

que visa a evitar o desrespeito a um pronunciamento judicial. Assim, se o<br />

pronunciamento é injusto e já está cristalizado, que se valham as partes dos típicos<br />

meios processuais desconstituidores da coisa julgada já enumerados no primeiro<br />

capítulo deste ensaio.<br />

Por fim, para reforçar a necessidade de manutenção da soberania da res<br />

judicata, insta acrescentar que a coisa julgada não é somente questão de<br />

segurança jurídica às partes; é também instrumento de manutenção da supremacia<br />

do Judiciário como poder solucionador de conflitos, como bem observou Barbosa<br />

Moreira (2008: 233):<br />

A estabilidade das decisões é condição essencial para que possam os<br />

jurisdicionados confiar na seriedade e na eficiência da máquina judicial. Todos<br />

precisam saber que, se um dia houverem de recorrer a ela, seu pronunciamento<br />

terá algo mais que o fugidio perfil nas nuvens. Sem essa confiança, crescerá<br />

fatalmente nos que se julguem lesados a tentação de reagir por seus próprios<br />

meios, à margem dos canais oficiais. Escusado sublinhar o dano que isso causará<br />

à tranquilidade social.<br />

Sob este ângulo, pode-se dizer que a coisa julgada é o “carimbo” que confere<br />

o rótulo de “obrigatório” ao pronunciamento concluso; caso contrário, a peleja terá<br />

sido em vão.


Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 177<br />

Desta forma, as três modalidades revisoras da coisa julgada que foram<br />

singelamente citadas no capítulo anterior, na qualidade de medidas excepcionais que são,<br />

não visam a comprovar a fragilidade da res judicata, mas sim o compromisso que o<br />

Judiciário assume de tentar ser o mais perfeito possível quando de sua resposta jurisdicional.<br />

Logo, se fosse possível sintetizar todos os parágrafos acima em um só,<br />

poder-se-ia dizer que a coisa julgada não guarda qualquer relação com a justiça,<br />

embora seja esse seu objetivo. Quanto à segurança jurídica, contudo, ambas são<br />

absolutamente interdependentes. Assim, quando se fala na abstratização da coisa<br />

julgada, isto se dá pelo lapso memorial de que o compromisso da coisa julgada é<br />

com a segurança jurídica, e não com a justiça.<br />

3. DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA:<br />

INADMISSIBILIDADE OU PERTINÊNCIA?<br />

Como bem dito anteriormente, ao longo dos tempos a coisa julgada edificouse<br />

sobre as pilastras da segurança jurídica às partes e ao processo. Trata-se de<br />

ícone absoluto, imperioso, de maneira que, ao contrário do que se pensa, os três<br />

institutos revisores vistos no primeiro capítulo não são a possibilidade de mitigá-lo,<br />

mas sim de preservá-lo soberano.<br />

Doutrinariamente, contudo, há quem transpasse a tríade reformuladora da res<br />

judicata, abrindo uma “cláusula geral de revisão”, a qual proporciona que a decisão<br />

judicial jamais se solidifique quando injusta ou inconstitucional. Esta proposta apregoa<br />

a possibilidade atemporal de reaver uma decisão, portanto, por meios que não os<br />

processualmente reconhecidos. Trata-se da “relativização da coisa julgada atípica”.<br />

Adepto da possibilidade de desconstituição em havendo dissonância com a Lei<br />

Max pátria, Nascimento (2003: 13) propôs o “banimento” da sentença cristalizada com<br />

essa qualidade, por intermédio da decretação de sua nulidade, conforme se pode observar:<br />

A coisa julgada é intocável, tanto quanto os atos executivos e legislativos, se,<br />

na sua essência, não desbordar do vínculo que deve se estabelecer entre ela e o<br />

texto constitucional, numa relação de compatibilidade para que possa revestirse<br />

de eficácia e, assim, existir sem que contra a mesma se oponha qualquer<br />

mácula de nulidade. Essa conformação de constitucionalidade tem pertinência,<br />

na medida em que não se pode descartar o controle do ato jurisdicional, sob<br />

pena de perpetuação de injustiças. Por esse motivo, nula é a sentença que não<br />

se adequa ao princípio da constitucionalidade, porquanto impregnada de carga<br />

lesiva à ordem jurídica. Impõe, desse modo, sua eliminação do universo processual<br />

com vistas a restabelecer o primado da legalidade. Assim, não havendo a<br />

possibilidade de sua substituição no mundo dos fatos e das ideias, deve ser<br />

decretada sua irremediável nulidade (grifou-se).


178<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Por sua vez, Delgado (2003: 46) foi fenomenológico ao defender a<br />

possibilidade de abstratização. Veja-se:<br />

O avanço das relações econômicas, a intensa litigiosidade do cidadão com o<br />

Estado e com o seu semelhante, o crescimento da corrupção, a instabilidade das<br />

instituições e a necessidade de se fazer cumprir o império de um Estado de<br />

Direito centrado no cumprimento da Constituição que o rege e das leis com ela<br />

compatíveis, a necessidade de um atuar ético por todas as instituições políticas,<br />

jurídicas, financeiras e sociais, tudo isso submetido ao controle do Poder<br />

Judiciário, quando convocado para solucionar conflitos daí decorrentes, são<br />

fatores que têm feito surgir uma grande preocupação, na atualidade, com o<br />

fenômeno produzido por sentenças injustas, por decisões que violam o círculo<br />

da moralidade e os limites da legalidade, que afrontam princípios da Magna<br />

Carta e que teimam em desconhecer o estado natural das coisas e das relações<br />

entre os homens. A sublimação dada pela doutrina à coisa julgada, em face dos<br />

fenômenos instáveis supracitados, não pode espelhar a força absoluta que lhe<br />

tem sido dada, sob o único argumento (sic) que há de se fazer valer o império da<br />

segurança jurídica.<br />

Valendo-se dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para<br />

justificar a mitigação da segurança jurídica e, consequentemente, da res judicata,<br />

asseveraram Theodoro Júnior e Cordeiro de Faria (2003: 112):<br />

Não há de se objetar que a dispensa dos prazos decadenciais e prescricionais na<br />

espécie poderia comprometer o princípio da segurança das relações jurídicas.<br />

Para contornar o inconveniente em questão, nos casos em que se manifeste<br />

relevante interesse na preservação da segurança, bastará recorrer-se ao salutar<br />

princípio constitucional da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o Tribunal,<br />

ao declarar a inconstitucionalidade do ato judicial, poderá fazê-lo com eficácia<br />

ex nunc, preservando os efeitos já produzidos como, aliás, é comum no direito<br />

europeu em relação às declarações de inconstitucionalidade.<br />

Em posição intermediária, Freitas Câmara (2008: 32) perfilhou-se à possibilidade<br />

de abstratização, sobretudo quando a questão relacionar-se à inconstitucionalidade<br />

(e não à injustiça) da decisão, formulando uma espécie de “relativização<br />

condicional da coisa julgada”:<br />

É, pois, possível relativizar a coisa julgada, afastando-a, sempre que o conteúdo<br />

da sentença firme contrariar norma constitucional. Deste modo, não havendo<br />

qualquer fundamento constitucional para impugnação da sentença transitada<br />

em julgado, será impossível relativizar-se a coisa julgada material, podendo<br />

esta ser afastada apenas nos casos previstos em lei como geradores de<br />

rescindibilidade (artigo 485 do Código de Processo Civil), no prazo e pela<br />

forma legais (grifou-se).


Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 179<br />

No extremo oposto, há aqueles que pendem pela inaceitabilidade da<br />

abstratização da res judicata. Assim, contrariamente à hipótese de relativização<br />

da coisa julgada pela utilização de instrumentos metajurídicos, podem-se utilizar os<br />

argumentos de Marinoni (2008: 282-283):<br />

A “tese da relativização” contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas<br />

surpreendentemente não diz o que entende por “justiça” e sequer busca amparo<br />

em das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema.<br />

Aparentemente parte de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser<br />

descoberto por qualquer cidadão médio (l’uomo della strada), o que torna<br />

imprestável ao seu propósito, por sofrer de evidente inconsistência [...]. O<br />

problema da falta de justiça não aflige apenas o sistema jurídico. Outros sistemas<br />

sociais apresentam injustiças gritantes, mas é equivocado, em qualquer lugar,<br />

destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida.<br />

Por sua vez, Nery Júnior (2006: 598) implodiu a ideia de desconstituição da<br />

coisa julgada por uma suposta causa maior, qual seja, a inquebrantabilidade da<br />

Constituição Federal, ao alegar que:<br />

A supremacia da Constituição é a própria coisa julgada, enquanto manifestação<br />

do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF, 1º caput), não<br />

sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo<br />

de qualquer outro instituto constitucional. Quando se fala na intangibilidade da<br />

coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera<br />

figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o<br />

reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é<br />

própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito, que<br />

não pode ser apequenado por conta de algumas situações, velhas conhecidas<br />

da doutrina e da jurisprudência [...].<br />

Sem extremismos, mas não menos legalista, Santos Lucon (2008: 345) partiu<br />

para um interessante posicionamento, qual seja:<br />

[...] é o caso de se ampliar casos para a ação rescisória. No caso de descoberta<br />

científica apta a demonstrar o erro na solução dada ao caso concreto quando era<br />

impossível valer-se de determinada prova, seria o caso de admitir a ação rescisória<br />

a partir do momento em que o interessado obtém o laudo, em vez do trânsito em<br />

julgado da sentença rescindenda (grifou-se) 7 .<br />

7 A opinião do autor em muito se assemelha à do processualista José Maria Rosa Tesheiner (. Acesso em: 21/10/2003),<br />

segundo Alexandre Freitas Câmara (2008: 27), o qual afirmou, em análise às palavras de Tesheiner,<br />

que “[...] há um tendência, bem moderna, de desdenhar, senão de eliminar o instituto da coisa<br />

julgada”. Sustentou o autor, então, que o melhor seria, para os casos – relativamente raros – de<br />

sentenças “objetivamente desarrazoadas”, abrir-se a possibilidade de sua rescisão a qualquer tempo.


180<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Ademais, jurisprudencialmente, a questão está longe de ser pacificada. O<br />

Superior Tribunal de Justiça tem decidido tanto pela possibilidade como pela vedação<br />

à abstratização da coisa julgada, senão veja-se:<br />

Processual civil. Recurso especial. dúvidas sobre a titularidade de bem imóvel<br />

indenizado em ação de desapropriação indireta com sentença transitada em<br />

julgado. Princípio da justa indenização. Relativização da coisa julgada.<br />

1. Hipótese em que foi determinada a suspensão do levantamento da última<br />

parcela do precatório (artigo 33 do ADCT), para a realização de uma nova perícia<br />

na execução de sentença proferida em ação de desapropriação indireta já<br />

transitada em julgado, com vistas à apuração de divergências quanto à localização<br />

da área indiretamente expropriada, à possível existência de nove superposições<br />

de áreas de terceiros naquela, algumas delas objeto de outras ações de<br />

desapropriação, e à existência de terras devolutas dentro da área em questão.<br />

2. Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a<br />

própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente<br />

juridicamente. Se a sentença sequer existe no mundo jurídico, não poderá ser<br />

reconhecida como tal, e, por esse motivo, nunca transitará em julgado.<br />

3. “A coisa julgada, enquanto fenômeno decorrente de princípio ligado ao Estado<br />

Democrático de Direito, convive com outros princípios fundamentais igualmente<br />

pertinentes. Ademais, como todos os atos oriundos do Estado, também a coisa<br />

julgada se formará se presentes pressupostos legalmente estabelecidos. Ausentes<br />

estes, de duas, uma: (a) ou a decisão não ficará acobertada pela coisa julgada, ou<br />

(b) embora suscetível de ser atingida pela coisa julgada, a decisão poderá, ainda<br />

assim, ser revista pelo próprio Estado, desde que presentes motivos preestabele-<br />

E concluiu: “O que absolutamente não pode prevalecer é a ideia de que possa qualquer juiz ou<br />

tribunal desrespeitar a coisa julgada decorrente de decisão proferida por outro órgão judiciário, de<br />

igual ou superior hierarquia, a pretexto de sua nulidade ou erronia”. Já José Carlos Barbosa Moreira<br />

(2008: 248) não entendeu que seja o caso de se “ampliar as hipóteses de ação rescisória”. Contudo,<br />

o autor debruçou-se especialmente sobre a questão da precisão técnica que se consubstancia quando<br />

já há pronunciamento consolidado e afirmou: “O mais importante, ao menos do ponto de vista<br />

prático, é o da descoberta científica suscetível de demonstrar a erronia da solução dada anteriormente<br />

ao litígio, em época na qual não era possível contar com determinada prova. Para a hipótese do<br />

exame de DNA, como registrado, a jurisprudência já vem atenuando, por via interpretativa, o rigor<br />

do texto do Código (artigo 485, VII), para admitir a rescisória com fundamento no laudo pericial,<br />

incluído no conceito de ‘documento novo’. O socorro hermenêutico tem, contudo, alcance limitado:<br />

não serve para o caso de já haver decorrido o biênio decadencial (artigo 495) quando da realização do<br />

exame. Atenta a relevância da matéria, julgamos conveniente modificar aí a disciplina, não para<br />

abolir o pressuposto temporal – pois, com a ressalva que se fará adiante, relutamos em<br />

deixar a coisa julgada, indefinidamente, a mercê de impugnações -, mas para fixar o termo<br />

inicial do prazo no dia em que o interessado obtém o laudo, em vez do trânsito em julgado<br />

da sentença rescidenda” (grifou-se).


Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 181<br />

cidos na norma jurídica, adequadamente interpretada.” (WAMBIER, Tereza Arruda<br />

Alvim & MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de<br />

relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 25).<br />

4. “A escolha dos caminhos adequados à infringência da coisa julgada em cada<br />

caso concreto é um problema bem menor e de solução não muito difícil, a partir<br />

de quando se aceite a tese da relativização dessa autoridade – esse, sim, o<br />

problema central, polêmico e de extraordinária magnitude sistemática, como<br />

procurei demonstrar. Tomo a liberdade de tomar à lição de Pontes de Miranda e<br />

do leque de possibilidades que sugere, como: (a) a propositura de nova demanda<br />

igual à primeira, desconsiderada a coisa julgada; (b) a resistência à execução,<br />

por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes ao próprio processo<br />

executivo; e (c) a alegação incidenter tantum em algum outro processo, inclusive<br />

em peças defensivas.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Coisa julgada inconstitucional<br />

Coordenador Carlos Valder do Nascimento. 2. ed.. Rio de Janeiro: América<br />

Jurídica, 2002. p. 63-65). 5. Verifica-se, portanto, que a desconstituição da coisa<br />

julgada pode ser perseguida até mesmo por intermédio de alegações incidentes<br />

ao próprio processo executivo, tal como ocorreu na hipótese dos autos.<br />

6. Não se está afirmando aqui que não tenha havido coisa julgada em relação à<br />

titularidade do imóvel e ao valor da indenização fixada no processo de<br />

conhecimento, mas que determinadas decisões judiciais, por conter vícios<br />

insanáveis, nunca transitam em julgado. Caberá à perícia técnica, cuja realização<br />

foi determinada pelas instâncias ordinárias, demonstrar se tais vícios estão ou<br />

não presentes no caso dos autos.<br />

7. Recurso especial desprovido.<br />

(REsp n. 622.405/SP. Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em<br />

14/08/2007, DJ 20/09/2007, p. 221) – cabimento.<br />

Agravo regimental. Recurso especial. Precatório complementar. Juros moratórios.<br />

Incidência até o depósito da integralidade da dívida. Coisa julgada. Relativização<br />

da coisa julgada. Não aplicação.<br />

I – Havendo expressa determinação na sentença exequenda, já transitada em<br />

julgado, da inclusão dos juros moratórios no precatório complementar, não há<br />

mais espaço para discussão sobre os referidos juros, em virtude do princípio da<br />

coisa julgada.<br />

II – Esta c. Corte entende que estão fora do alcance do parágrafo único do artigo<br />

741 do CPC as sentenças transitadas em julgado anteriormente a sua vigência,<br />

ainda que eivadas de inconstitucionalidade. Precedente (EREsp n. 806.407/RS,<br />

DJU de 14/4/2008). Agravo regimental desprovido.<br />

(AgRg nos EDcl no REsp n. 1012068/RS. Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta<br />

Turma, julgado em 17/06/2008, DJe 04/08/2008.)


182<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Postos todos os posicionamentos, em que pese o tecnicismo em exteriorizálos<br />

aos olhos do leitor, aquele que veda incondicionalmente o fenômeno da<br />

abstratização é o que deve prosperar.<br />

Com efeito, desconsiderar a coisa julgada “inconstitucional” ou “injusta” parece<br />

uma fidalga tentativa a princípio, mas cuja boa vontade dos que a defendem não<br />

sopesa uma consequência temerária em segundo instante. Isto porque, se há uma<br />

decisão inconstitucional, como “último suspiro” do litigante inconformado, há a<br />

possibilidade de recurso extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal, de modo<br />

que, se por algum motivo não houver tal possibilidade, é porque a decisão não é de<br />

fato inconstitucional ou a parte não foi capaz de utilizar em seu “leque de cartas” o<br />

recurso extraordinário por desídia própria. Desta forma, desconsiderar atipicamente<br />

a res judicata inconstitucional não seria a “atividade saneadora ao julgado aviltante”,<br />

como se subintitula a relativização, mas sim um prêmio à incompetência daquele que<br />

esteve diante de uma suposta decisão inconstitucional e, quando realmente pôde,<br />

nada fez. É mais fácil jogar a culpa no Judiciário. Ou, ainda, alegar-se-ia que mesmo<br />

o STF, guardião da Constituição pátria, pode equivocar-se em seu posicionamento?<br />

Porque, se afirmativa a resposta, pode-se dizer que o povo estará diante de uma<br />

grave situação: nem mais na mais alta cúpula judicial do País poder-se-á confiar nas<br />

palavras de um pronunciamento final.<br />

Por outro lado, o ato de abstratizar uma decisão injusta se daria meramente<br />

por motivos metajurídicos, principiológicos, fenomenológicos ou, simplesmente, não<br />

legislados; ao passo que, caso se modificasse a decisão antes cristalizada, a injustiça<br />

ficaria “trocando de lado” infindavelmente; ou alguém discorda de que, se for<br />

possível relativizar a coisa julgada uma vez, este mesmo pronunciamento relativizado<br />

não poderá sê-lo novamente, e novamente, enquanto houver argumentos das partes?<br />

Com maestria, sobre a questão opinou Barbosa Moreira (2008: 245-246):<br />

Suponhamos que um juiz, convencido da incompatibilidade entre certa sentença<br />

e a Constituição, ou da existência, naquela, de injustiça intolerável, se considere<br />

autorizado a decidir em sentido contrário. Fatalmente sua própria sentença<br />

ficará sujeita à crítica da parte agora vencida, a qual não deixará de considerála,<br />

por sua vez, inconstitucional ou intoleravelmente injusta. Pergunta-se: que<br />

impedirá esse litigante de impugnar em juízo a segunda sentença, e outro juiz<br />

de achar possível submetê-la ao crivo de seu próprio entendimento? O óbice<br />

concebível seria o da coisa julgada; mas, se ele pôde ser afastado com relação<br />

à primeira sentença, por que não poderá sê-lo quanto à segunda? É claro que<br />

a indagação não se porá uma única vez: a questão poderá repetir-se, em princípio,<br />

ad infinitum, enquanto a imaginação dos advogados for capaz de descobrir<br />

inconstitucionalidades ou injustiças intoleráveis nas sucessivas sentenças<br />

(grifou-se).


Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 183<br />

Ademais, “abrir” o artigo 485 do Código de Processo Civil a novos incisos,<br />

contrariando sua condição de numerus clausus, pode tornar a ação rescisória<br />

mais um “recurso” da parte derrotada contra o que lhe é desfavorável, e não é<br />

esse seu objetivo. Pode-se observar que o artigo 485 é situacional, e apenas para<br />

situações esporádicas que eventualmente possam ocorrer. Assim, a única<br />

modificação que este autor entende plausível, reiterando as palavras do brilhante<br />

doutrinador José Carlos Barbosa Moreira, é admitir, no caso da precisão técnica<br />

que somente se torna possível após já existir decisão consolidada, que o prazo da<br />

rescisória seja contado a partir da obtenção desse laudo “saneador”. A modificação,<br />

portanto, seria no artigo 495, e não no artigo 485 do Diploma Adjetivo.<br />

Em epítome, admitir a ação rescisória contra decisões “injustas” ou “inconstitucionais”<br />

a transformaria em mais um “recurso” (se é que assim se pode dizer)<br />

relutante e/ou meramente protelatório, ou seja, a título ilustrativo, admite-se a<br />

modificação da coisa julgada injusta ou inconstitucional no artigo 485 do CPC, e<br />

quando acabarem as armas da parte perdedora, ainda lhe sobrará a ação rescisória<br />

como chance derradeira.<br />

Isto é, senão arriscado demais à supremacia do Judiciário como poder, mais<br />

um duro golpe na luta da Justiça pelo processo civil teleológico e contra a morosidade<br />

processual.<br />

4. LINHAS DERRADEIRAS<br />

Por todo o explanado, apesar da demonstração de posicionamentos diversos<br />

(o da possibilidade irrestrita de relativização, o da possibilidade da relativização<br />

somente ante um pronunciamento inconstitucional, o pendor pela inclusão de novos<br />

incisos no artigo 485 do Código de Processo Civil, e o que defende a vedação absoluta<br />

às hipóteses de relativização), perfilha-se este autor ao último posicionamento.<br />

Isto porque, em primeiro lugar, do contrário, fica a impressão da possibilidade<br />

de criação de um “mecanismo revisor amplíssimo”. Ora, em observando tal hipótese,<br />

verifica-se a existência de uma situação espectral: a coisa julgada, antes atributo<br />

de tranquilidade (em regra) ao litigante vencedor e de resignação ao perdedor,<br />

perderia este efeito diante da possibilidade de desconstituição.<br />

Em que pesem as melhores intenções dos que a defendem, parece um tanto<br />

abstrata sua admissão no ordenamento jurídico. Fala-se hodiernamente em “processo<br />

civil teleológico (ou finalístico)” e em “função social do processo”, de maneira que,<br />

pelo primeiro, deve-se zelar pela evicção de protelações desnecessárias e por um<br />

resultado o mais próximo possível do status quo ante; e pela “função social”, temse<br />

que é preciso observar a condução do processo da maneira mais equânime


184<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

possível. Falar em flexibilização da coisa julgada parece, por critério de exclusão,<br />

mais próximo do segundo item, ou seja, os valores “celeridade processual” e<br />

“segurança pelo resultado” são substituídos pelo valor “justiça social”.<br />

Contudo, a ideia da função social deve ser acoplada ao processo civil de<br />

resultado, para que ambos sejam interpretados harmoniosamente. Do contrário,<br />

admitir o casualismo da coisa julgada pode levar à seguinte situação: revisa-se a<br />

decisão transitada em julgado por ela ter ferido o princípio da razoabilidade, por<br />

exemplo, mas fere-se a ideia contemporânea do processo civil teleológico, vez que<br />

mesmo o resultado, pelo qual tanto se busca, não é mais absoluto.<br />

Ademais, valer-se de elementos fenomenológicos e “empossá-los” na<br />

condição de desestruturadores da res judicata pode ser arriscado, vez que, por<br />

não estarem previstos em codificação alguma, são passíveis de interpretações<br />

diversas, e nem sempre a diversidade é positiva. Isto porque os próprios conceitos<br />

de “justiça” e “constitucionalidade” são relativizados. Assim, na opinião deste autor,<br />

um instituto somente pode ser relativizado quando esta metamorfose for<br />

unicamente benéfica. Para que isto ocorra, é preciso que o “elemento relativizador”<br />

seja absoluto, o que não ocorre na hipótese da relativização da coisa julgada, pois<br />

os conceitos de “justiça” e “constitucionalidade”, elementos relativizadores da coisa<br />

julgada, são relativos, e não absolutos como necessitariam ser.


Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 185<br />

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A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 187<br />

13<br />

A reserva legal como<br />

instrumento de efetividade da<br />

proteção da biodiversidade<br />

The environmental legal reserve<br />

as a tool on effective protection<br />

of biodiversity THIAGO FELIPE S. AVANCI<br />

Advogado; mestrando em Direito, pela Universidade Católica de Santos – Unisantos, área de<br />

concentração em Direito Ambiental; bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de<br />

Instituições Privadas de Ensino Superior, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal<br />

de Nível Superior Prosup/Capes. E-mail para correspondência: thiagoavanci@terra.com.br.<br />

RESUMO<br />

O debate sobre restringir ou não o direito de propriedade continua atual: a quem<br />

cabe suportar este ônus? O presente artigo objetiva expor argumentos favoráveis à<br />

reserva legal, bem como rebater alguns argumentos contrários a esta. Este estudo<br />

tem o propósito, ainda, de demonstrar a importância deste instituto como garantidor<br />

da biodiversidade.<br />

Palavras-chave: reserva legal, função social da propriedade, limitação da propriedade,<br />

biodiversidade.<br />

ABSTRACT<br />

Is it possible to restrict the right of property? And, if it is so, who shall bear this<br />

burden? This manuscript’s objective is to expose pros of the Environmental Legal<br />

Reserve, and, as well, to confront some arguments against this institute. Finally, the<br />

objective is to demonstrate the importance of this institute as a tool that guarantees<br />

the biodiversity.<br />

Keywords: environmental legal reserve, social function of property, restrictions on<br />

property, biodiversity.


188<br />

1. INTRODUÇÃO<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

A importância – ou não – da reserva legal sempre foi objeto de muitos<br />

estudos sob os mais diversos embasamentos: biológicos, ecológicos, jurídicos e,<br />

neste caso, com preponderância de direitos individuais, tais como sociais e coletivos.<br />

Objetiva-se demonstrar que este instrumento de efetividade do direito ao meio<br />

ambiente ecologicamente equilibrado é, sem sombra de dúvida, um dos mecanismos<br />

pelo qual a proteção à biodiversidade (ou diversidade biológica) será preservada.<br />

A reserva legal (RL) constitui um grupo constitucionalmente chamado de<br />

espaços especialmente protegidos (artigo 225, parágrafo 1º, III), neste podendo<br />

se enquadrar, ainda, as áreas de preservação permanente (APPs) e as unidades<br />

de conservação (UC). É necessário, contudo, distinguir a função jurídica de cada<br />

um destes espaços especialmente protegidos.<br />

Ao contrário das unidades de conservação, que objetivam a conservação ou<br />

a preservação 1 de áreas maiores ou menores de um determinado ecossistema<br />

dentro de um bioma 2 , a reserva legal possui esta mesma função de proteção, porém<br />

disseminada por todas as propriedades rurais do País. Em assim sendo, por mais<br />

que o Poder Público se esforce na criação de unidades de conservação (que<br />

demandam verbas para sua criação e manutenção), nunca será capaz de criar<br />

tanto desta modalidade de espaço especialmente protegido quanto o necessário<br />

para a manutenção da biodiversidade e do equilíbrio ecológico no Brasil. Reside<br />

nesta necessidade a reserva legal.<br />

Em linhas gerais, o artigo 225 da Constituição declara que o direito ao meio<br />

ambiente ecologicamente equilibrado é um direito e dever de todos. A reserva<br />

legal, enquanto faceta da função social da propriedade, constitui-se em efetiva<br />

limitação desse direito em benefício da coletividade.<br />

Mediante isto, a reserva legal será analisada como sendo um instrumento de<br />

garantia à conservação da biodiversidade.<br />

1 Em fortes cores e apertada síntese, o conservacionismo de Gifford Pichot (século XIX) estabeleceu<br />

como meta o uso racional dos recursos naturais, procurando benefício para a maioria, inclusive para<br />

as gerações futuras; o preservacionismo de Aldo Leopold (século XX) objetivava a natureza intocável<br />

pela ação humana, preservando-a como ela é. Assim sendo, no presente artigo, a palavra<br />

“preservação” foi utilizada com o sentido de manutenção integral e a palavra “conservação”, com o<br />

sentido de usar os recursos da natureza de forma racional.<br />

2 Bioma é um conjunto de ecossistemas com características similares em função de clima, altitude,<br />

latitude, regime hidrográfico, solo etc.


A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 189<br />

2. BIODIVERSIDADE<br />

2.1. Análise conceitual<br />

Há, ainda hoje, uma dificuldade de comunicação entre os cientistas do Direito e<br />

os cientistas da Biologia e Ecologia. Em função desta dificuldade, os conceitos sobre<br />

biodiversidade tendiam a ser limitativos, uma vez que não abarcavam todos os aspectos<br />

deste objeto. Antes da Convenção da Diversidade Biológica (CDB) – Rio/92, não era<br />

incomum ler que biodiversidade é ou a variedade de vida existente na Terra ou a<br />

variedade de vida, em diferentes aspectos, existente na Terra 3 . Mesmo após a CDB,<br />

ainda permanecia uma tendência da comunidade científica de, tal e qual seus<br />

antecessores, estabelecer conceitos semelhantes, mas puramente quantitativos 4 .<br />

Rompendo com esta tendência conceitual, a CDB alargou o leque de<br />

elementos componentes do conceito de biodiversidade, nos termos do artigo 2º:<br />

Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de todas as<br />

origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e<br />

outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte;<br />

compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de<br />

ecossistemas.<br />

Em verdade, este conceito revela que a ausência de diálogo entre os cientistas<br />

pode levar a uma impropriedade etimológica. Ao observar a parte final do conceito<br />

apresentado pela CDB, tem-se que há a inclusão da expressão “diversidade (...)<br />

de ecossistemas” 5 . Ainda no artigo 2º da CDB, que foi reproduzido pela Lei do<br />

Sistema Nacional de Unidades de Conservação – Snuc (Lei n. 9.985/00, artigo 2º,<br />

inciso III), é dado o conceito como sendo “um complexo dinâmico de comunidades<br />

vegetais, animais e de microorganismos e o seu meio inorgânico que interagem<br />

como uma unidade funcional”. Eis a impropriedade. Etimologicamente, biodiversidade<br />

(biodiversidade, contração de diversidade biológica = do grego bios, vida;<br />

oikus, casa/lugar) necessariamente deve estar associada à vida, ao passo que<br />

incluir em um conceito de biodiversidade o termo “ecossistema” automaticamente<br />

se inclui, também, “o seu meio inorgânico”.<br />

3 Neste sentido: GASTON, Kevin J. & SPICER, John I. Biodiversity: an introduction. 2. ed. Malden, MA:<br />

Blackwell Publishing. 2004. p. 3-4; e WILSON, Edward O. Biodiversity. Washington: National Academy<br />

Press, 1988.<br />

4 “Andy Dobson (1996: 132) definiu biodiversidade como sendo a “soma de todos os diferentes tipos<br />

de organismos que habitam uma região, tal como o planeta inteiro, o continente africano, a Bacia<br />

Amazônica, ou nossos quintais” (tradução do autor). Apud MAGALHÃES (2006: 24).<br />

5 No original, em inglês: “Biological diversity” means the variability among living organisms from all<br />

sources including, inter alia, terrestrial, marine and other aquatic ecosystems and the ecological<br />

complexes of which they are part; this includes diversity within species, between species and of ecosystems.


190<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Afora esta pequena impropriedade que a CDB cometeu 6 , seria possível dizer,<br />

acertadamente, que podem ser percebidos três elementos no conceito de<br />

biodiversidade, os quais, somados, servem de conceito a este objeto: variedade genética;<br />

variedade de espécies; variedade de vida em ecossistemas. Com isto, fica abarcada<br />

a variabilidade: de indivíduos, de espécies e de indivíduos e espécies na comunidade.<br />

Neste sentido, Wilson (1988), revendo o conceito quantitativo dado em 1988, agora<br />

forneceu um conceito qualitativo que permite a visualização dos três elementos acima<br />

descritos, em que biodiversidade pode ser definida como toda a variação hereditária,<br />

em todos os níveis de organização, desde os genes de uma determinada<br />

população ou espécie, passando pelas espécies dentro de um todo ou<br />

de parte de uma comunidade e, finalmente, englobando as próprias comunidades<br />

que compõem a parte viva dos multivariados ecossistemas do mundo 7 .<br />

2.2. Aspectos da biologia e ecologia acerca da biodiversidade<br />

Muito se fala em biodiversidade e em sua importância em função de um<br />

valor intrínseco 8 . Se analisada sob um ponto de vista biocêntrico, a manutenção<br />

da biodiversidade é fundamental como medida de manutenção da própria<br />

biodiversidade, ou melhor, da vida como um todo no planeta Terra. Explicando<br />

melhor: a extinção de espécies é um evento que ocorre naturalmente. Todavia, a<br />

extinção de espécies por fatores naturais (salvo eventos esporádicos de extinção<br />

em massa) ocorre gradativamente, permitindo que espécies dependentes daquela<br />

espécie em processo de extinção consigam se adaptar às novas condições.<br />

É a amplitude da biodiversidade que faz com que estas espécies, em processo<br />

de adaptação, consigam fazê-lo de modo eficaz. Esta biodiversidade é importante,<br />

neste caso, sob duas perspectivas distintas: a primeira é a biodiversidade genética,<br />

garantindo que indivíduos mais bem adaptados às novas condições possam perpetuar<br />

a espécie; a segunda, a biodiversidade de espécies, em que se verifica uma maior<br />

probabilidade de substituição daquela espécie em extinção nos processos ecológicos<br />

e na cadeia alimentar.<br />

Sob um ponto de vista jurídico e, pelo fato mesmo, necessariamente, antropocêntrico,<br />

tem-se que é por meio da conservação da biodiversidade, que se permitirá a<br />

6 Neste sentido, MAGALHÃES (2006: 24).<br />

7 REAKA-KUDLA; WILSON & WILSON (1997: 1): “(…) is defined as all hereditarily based variation at all<br />

levels of organization, from the genes within a single local population or species, to the species<br />

composing all or part of a local community, and finally to the communities themselves that compose<br />

the living parts of the multifarious ecosystems of the world.”<br />

8 Preâmbulo da CDB.


A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 191<br />

continuidade da existência do animal Homo sapiens no planeta Terra, uma vez que<br />

serão mantidos processos ecológicos necessários à agricultura, pecuária e pesca –<br />

base da alimentação humana – e até mesmo processos regulatórios do clima<br />

(temperatura, pluviosidade etc.). O equilíbrio dos diversos processos é tênue, de maneira<br />

que a menor alteração que resulte em extinção de espécies na base da cadeia alimentar<br />

ou na base dos processos naturais fará ruir toda a pirâmide sobre a qual se ergue.<br />

Como já foi dito, o processo de extinção de espécies é algo natural, que,<br />

independentemente da vontade humana, sempre ocorreu e sempre ocorrerá. No<br />

entanto, com a efetiva ação humana, os processos de extinção de espécies aumentaram<br />

drasticamente e de maneira muito mais acentuada. Repetindo o já dito acima,<br />

quanto mais rápido um processo de extinção, maior a probabilidade de que as espécies<br />

dependentes daquela não consigam se adaptar, o que gera um efeito dominó, com<br />

danos possivelmente irremediáveis ao bioma de que fazem parte.<br />

O impacto antrópico hodierno vai além da extinção de uma espécie apenas.<br />

Com o desenvolvimento tecnológico, necessidades de expansão da civilização<br />

(fronteira agrícola, avanço desenfreado urbano, busca de matérias-primas), há<br />

extinção de ecossistemas e biomas inteiros em questão de anos ou décadas.<br />

Quer por seu valor intrínseco, sob uma perspectiva ética, filosófica ou<br />

religiosa, quer sob um prisma jurídico e antropocêntrico, é por meio da biodiversidade<br />

que há maior probabilidade de a vida se sustentar no planeta Terra.<br />

2.3. Biodiversidade e Direito nacional<br />

Todo o ordenamento jurídico, nacional e internacional desenvolveu uma série<br />

de normas que visam a proteger a biodiversidade pelos motivos já expostos no item<br />

anterior. É necessário frisar que um instrumento normativo não necessariamente<br />

mencionará a expressão “biodiversidade” ou “diversidade biológica”, mas, ainda<br />

sim, esta será objeto de sua tutela, direta ou indiretamente. Por óbvio, é possível<br />

afirmar que todo instrumento normativo que tutele a proteção ambiental resultará<br />

em proteção à biodiversidade, visto que é parte essencial e fundamental à manutenção<br />

de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.<br />

Mediante isto, é necessário encontrar nas normas nacionais e internacionais<br />

objetos de tutela específicos da biodiversidade. Reporta-se ao conceito de biodiversidade<br />

para encontrar estes objetos específicos: variedade genética, variedade de<br />

espécies e variedade de vida em ecossistemas. Bem assim, qualquer norma nacional,<br />

tratado ou declaração internacional que verse sobre proteção genética, proteção<br />

de espécies e proteção da vida ou da vida em ecossistemas estará, por força de<br />

consequência, tutelando a biodiversidade, independentemente de citar esta palavra.


192<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Eis que, quando a Constituição Federal declara, no artigo 225, caput, que<br />

é direito de todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o qual deve ser<br />

preservado para as presentes e futuras gerações, pressupõe-se que, para a<br />

prevalência deste direito, deve ser assegurada a biodiversidade. Neste mesmo<br />

sentido, quando o parágrafo 1º, incisos I, III e IV, determina que é obrigação do<br />

Poder Público preservar e restaurar os processos ecológicos e prover o manejo<br />

ecológico das espécies e dos ecossistemas; definir espaços especialmente<br />

protegidos; exigir estudo prévio de impacto ambiental; bem como o parágrafo 4º<br />

daquele mesmo artigo define diferentes biomas e ecossistemas como patrimônio<br />

nacional, enfim, todos são uma faceta da biodiversidade, qual seja, a “diversidade<br />

de vida em ecossistemas”. Por outro lado, ficaria bem representada a faceta<br />

“variedade genética” no artigo 225, parágrafo 1º, inciso II, no qual consta a<br />

preocupação com o patrimônio genético nacional. Finalmente, a faceta “variedade<br />

de indivíduos” pode ser encontrada no inciso VII do mesmo parágrafo 1º, em<br />

que se determina ser obrigação do Poder Público proteger a fauna e a flora,<br />

vedando práticas que possam extinguir espécies ou que submetam animais a<br />

maus-tratos.<br />

Nota-se, com isto, que, muito embora a Constituição Federal não tenha, em<br />

momento algum, usado a expressão biodiversidade, ainda sim é um excelente<br />

exemplo de instrumento de sua tutela. E, para citar algumas outras leis que também<br />

lidam com o tema e não necessariamente o nomeiam, encontram-se os seguintes<br />

dispositivos legais: o Código Florestal (Lei n. 4.771/65); a Lei de Proteção à Fauna<br />

ou Código de Caça (Lei n. 5.197/67); Lei das Estações Ecológicas e das Áreas de<br />

Proteção Ambiental (Lei n. 6.902/81); Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n.<br />

6.938/81); Lei de Proteção aos Cetáceos (Lei n. 7.643/87); Decreto sobre Medidas<br />

de Proteção à Mata Atlântica (Decreto n. 750/93); Lei do Sistema Nacional de<br />

Unidades de Conservação (Lei n. 9.985/00); a Política Nacional da Biodiversidade<br />

(Decreto n. 4.339/02); a Lei das Florestas Públicas (Lei n. 11.284/06).<br />

3. RESERVA LEGAL COMO INSTRUMENTO<br />

DE EFETIVIDADE DA PROTEÇÃO DA BIODIVERSIDADE<br />

3.1. Conceito de reserva legal e diferenciação com área<br />

de preservação permanente e com unidade de conservação<br />

“Reserva legal”, “área de preservação permanente” e “unidade de conservação”<br />

são, indubitavelmente, exemplos de áreas especialmente protegidas a que se<br />

refere o inciso III do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição. Esses três institutos<br />

jurídicos têm finalidade comum mediata de garantir um meio ambiente ecologica-


A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 193<br />

mente equilibrado, sendo instrumento de manutenção da biodiversidade e,<br />

consequentemente, dos processos ecológicos. O que diferencia cada um destes<br />

institutos é seu fim imediato. Neste artigo, a análise dos outros dois institutos se<br />

dará de modo superficial, dado que o objeto central é a reserva legal.<br />

Do conceito dado às “áreas de preservação permanente” no artigo 1º,<br />

parágrafo 2º, inciso II, do Código Florestal (incluído pela MP n. 2.166-67, de 2001),<br />

podem-se extrair alguns aspectos conceituais: é uma área protegida; pode estar<br />

coberta ou não por vegetação nativa, ou seja, pode encontrar-se desmatada, com<br />

vegetação exótica ou com vegetação nativa, mas ainda sim será APP; possui a<br />

função específica (ou imediata) de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a<br />

estabilidade geológica, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações<br />

humanas; e apresenta função auxiliar de preservar a biodiversidade, o fluxo gênico<br />

de fauna e flora.<br />

Muito embora o legislador não tenha especificado ou diferenciado as funções<br />

da APP, é necessária uma análise dentro de um contexto legislativo. Da leitura do<br />

artigo 2º e do artigo 3º do mesmo Código Florestal 9 , percebe-se um fim específico<br />

da APP: preservar uma parte inorgânica frágil de um ecossistema por meio da<br />

preservação de sua parte orgânica, com o fim de se garantir o bem-estar das<br />

populações humanas. Não parece correto dizer que a preservação de uma montanha<br />

por meio de uma APP vise, imediatamente, à conservação da biodiversidade. Mais<br />

acertado será dizer que a preservação da biodiversidade é um instrumento que<br />

dará estabilidade geológica à referida montanha. E, da mesma forma, nascentes,<br />

mata ciliar, dunas, restingas, enfim, toda a biodiversidade que sustém os sistemas<br />

inorgânicos de um ecossistema.<br />

A Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, tal e qual as APPs<br />

e a reserva legal, também possui um fim mediato de garantir a existência de um<br />

meio ambiente ecologicamente equilibrado, manter a biodiversidade e proteger<br />

espécies ameaçadas, dentre outros aspectos (artigo 4º, incisos I e II, da Lei n.<br />

9.985/00). Seu fim específico, no entanto, será conservar 10 um determinado espaço<br />

territorial e seus recursos ambientais com características naturais relevantes, nele<br />

9 Com exceção do artigo 3º, alíneas “g” e “f”, que atribuem às APPs a função de proteger sítios de<br />

excepcional beleza e de asilar exemplares da fauna ou da flora ameaçados de extinção, o que se<br />

explica devido à falta de áreas especialmente protegidas – a lei do Snuc é de 2000 – quando da edição<br />

original do código, em 1965.<br />

10 O legislador andou bem ao utilizar a expressão “conservar” ao invés de “preservar”. Deveras, o<br />

Snuc lida com preservação e com conservação, porém o instituto mais amplo abarca o mais específico,<br />

sendo certo que, dentro da ideia de conservação, há necessidade de preservação para manutenção do<br />

desenvolvimento sustentável.


194<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

incluindo as águas jurisdicionais (artigo 2º, inciso I, da mesma lei). Deveras, esta<br />

ideia de conservação de um determinado ecossistema e bioma por meio do<br />

estabelecimento de um local dotado de relevantes características naturais é o que<br />

difere “unidades de conservação” da “reserva legal”. Nas unidades de conservação,<br />

a atuação será feita em escala reduzida, uma vez que é impossível ao Poder Público<br />

criar, administrar e manter de unidades de conservação em quantidade necessária<br />

à manutenção de todos os processos ecológicos e climáticos. Eis aí a necessidade<br />

da reserva legal.<br />

Conforme já foi dito, a função imediata da reserva legal é similar à das<br />

unidades de conservação, no que tange à conservação de um determinado<br />

ecossistema e bioma. Difere, no entanto, a maneira como esta conservação se<br />

dará num e noutro instituto: nas unidades de conservação, muito embora possam<br />

ter área maior do que a reserva legal de uma propriedade, se somadas as reservas<br />

legais de todas as propriedades, tem-se que a área total deste instituto será,<br />

certamente, maior. Assim, conclui-se que a reserva legal promove uma proteção<br />

em maior escala aos ecossistemas e biomas.<br />

É interessante notar que a reserva legal não é fruto de uma simples<br />

“delegação” do Poder Público aos particulares de um dever que lhe competia. O<br />

artigo 225, caput, da Constituição Federal impõe concomitantemente ao Poder<br />

Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente<br />

ecologicamente equilibrado para a atual e futuras gerações. Em virtude disso, o<br />

legislador infraconstitucional está exercitando norma constitucional ao estabelecer<br />

a restrição da propriedade com a reserva legal.<br />

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito e dever de<br />

todos, constituindo-se em verdadeiro direito difuso ou direito fundamental de terceira<br />

geração. Em função disso, é necessária a imposição de limites à propriedade,<br />

direito típico de primeira geração de direitos fundamentais, de modo que esta esteja<br />

condizente com sua função social (direito fundamental de segunda geração) e com<br />

sua função ecológica (direito fundamental de terceira geração). O direito individual<br />

perde força em detrimento do direito social e do direito da coletividade. Bem assim,<br />

a reserva legal é uma limitação do direito de propriedade, situada em uma terceira<br />

geração de direitos fundamentais.<br />

Em suma, a reserva legal possui função mediata de realização do direito<br />

fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e função imediata de<br />

garantir o uso sustentável dos recursos naturais; conservar e reabilitar os processos<br />

ecológicos; conservar a biodiversidade e abrigar e proteger a fauna e a flora nativas<br />

(artigo 1º, parágrafo 2º, inciso III, do Código Florestal).


A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 195<br />

3.2. A coletividade e a reserva legal:<br />

constitucionalidade ou a tragédia dos comuns?<br />

Muitos autores, dentre eles Gandra S. Martins (2009), defendem que a<br />

reserva legal é inconstitucional porque transfere a um grupo muito pequeno – qual<br />

seja, o de proprietários rurais – o dever de manter a reserva legal 11 . O argumento<br />

utilizado é que o artigo 225 da Constituição Federal impõe o dito dever ao Poder<br />

Público e à coletividade. Ocorre que coletividade, no entender de Gandra S. Martins,<br />

não se constitui apenas em “um pequeno número de proprietários. Coletividade<br />

representa, no País, a comunidade geral, ou seja, 175 milhões de brasileiros, e não<br />

umas poucas centenas de milhares de grandes, médios e pequenos proprietários” 12 .<br />

O argumento é quase convincente, porém os defensores desta tese não levam em<br />

consideração que a interpretação da Constituição e de princípios gerais de direito<br />

deve ser feita em bloco, e não isoladamente. Três são os contrapontos que devem<br />

ser observados quando o tema é reserva legal e coletividade: enriquecimento ilícito<br />

dos proprietários, isonomia aristotélica e restrição justificada de um direito individual.<br />

A tragédia dos comuns ensinou a todos que existe uma tendência humana<br />

em se apropriar do lucro, transferindo os prejuízos à coletividade (ubi emolumentum,<br />

ibi onus) e cuja resposta jurídica foi a teoria do risco. Se assim não fosse, estarse-ia<br />

utilizando um modelo que prima pelo enriquecimento ilícito, ou seja, um modelo<br />

por meio do qual a sociedade arcaria com o ônus e o proprietário, apenas com o<br />

gozo. Tendo em vista que o Direito pátrio veda o enriquecimento ilícito, tem-se, por<br />

força de consequência, que aquele que irá receber os lucros também deverá arcar<br />

com o ônus. Com a reserva legal, a situação é a mesma. Senão veja-se: é fato que<br />

toda a coletividade, nela inclusa os próprios proprietários, irá se beneficiar com a<br />

instituição da reserva legal; porém, também é fato que os proprietários de terra são<br />

os únicos da coletividade que retiram daquela terra os lucros de sua exploração.<br />

Assim sendo, se existe uma porção da coletividade que recebe um único gozo (o<br />

meio ambiente ecologicamente equilibrado) e existe outra porção da mesma<br />

coletividade que obtém mais do que um gozo (o lucro da exploração da terra e o<br />

meio ambiente ecologicamente equilibrado), é compatível com a vedação ao<br />

enriquecimento ilícito que esta última porção da coletividade receba o ônus de<br />

arcar com a instituição e a manutenção da reserva legal.<br />

11 Ainda neste sentido, VIEIRA DUTRA, Ozório. O discurso ideológico e a ilegalidade da “reserva<br />

legal”. Disponível em: . Acesso em: 09 de novembro<br />

de 2009.<br />

12 GANDRA S. MARTINS, Ives. A defesa do meio ambiente. Valor Econômico, 25/03/2004. Disponível<br />

em: . Acesso em: 09 de novembro de 2009.


196<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Deveras, tal princípio está muito ligado à isonomia aristotélica, defendida na<br />

Constituição brasileira. Aquele que possui maiores condições deve arcar com um<br />

ônus maior e, em contrapartida, aquele que possui condições mais limitadas deve<br />

arcar com um ônus menor. Não parece associado à ideia de isonomia o fato de um<br />

trabalhador urbano, que ganha muitas vezes um salário igual ou inferior a um salário<br />

mínimo, tenha que arcar com um novo tributo ou tenha que ver uma parcela de<br />

seus tributos ser destinada à criação e à manutenção de reserva legal de um<br />

latifúndio em que nunca sequer sonhou estar. Muito embora este trabalhador, citado<br />

no exemplo, receba o gozo do meio ambiente ecologicamente equilibrado, a solução<br />

de sobretaxá-lo mostra-se absolutamente incompatível com a isonomia jurídica (e<br />

até mesmo tributária). Caberá ao referido trabalhador urbano promover o meio<br />

ambiente ecologicamente equilibrado por outros meios, e não arcando com o ônus<br />

deste instrumento, a reserva legal.<br />

Sempre que se fala em restrição de um direito individual, automaticamente se<br />

associa tal aspecto à ideia de Estado autoritário. Não é o caso. É princípio básico de<br />

direito que o interesse público prepondera sobre o particular. 13,14 Para a construção<br />

de uma sociedade igualitária, livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da<br />

marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do<br />

bem de todos (artigo 3º, incisos I, III e IV, da Constituição Federal), é necessário que<br />

direitos limitem direitos. Bem assim, os direitos coletivos limitam os direitos sociais<br />

que limitam, por sua vez, os direitos individuais. Aqui surge um paradoxo: muitos<br />

proprietários de terra estão dispostos a respeitar os direitos do trabalhador rural<br />

(direito social ou direito fundamental de segunda geração), aceitando arcar com os<br />

ônus decorrentes da relação de emprego; paralelamente, muitos destes mesmos<br />

proprietários de terra não reconhecem e, por conseguinte, não estão dispostos a<br />

arcar com os ônus decorrentes da manutenção do meio ambiente ecologicamente<br />

equilibrado (direito coletivo ou direito fundamental de terceira geração).<br />

Assim sendo, em resumo, não há inconstitucionalidade alguma na reserva<br />

legal. Trata-se de um instrumento de proteção ambiental, um ônus, destinado a<br />

quem é proprietário de terra, que recebe, além do gozo, que é o meio ambiente<br />

ecologicamente equilibrado, o lucro pela utilização daquela terra.<br />

13 Ao contrário do afirmado por Vieira Dutra: “Não existe mais prevalência do interesse público e<br />

coletivo sobre o interesse particular”. Op. cit.<br />

14 O Projeto de Lei n. 5.397/09 propõe uma solução interessante: a remuneração por serviços ambientais.<br />

Esta solução, da forma como apresentada, não parece contrária ao sistema jurídico nacional, já que<br />

“os instrumentos econômicos serão concedidos sob a forma de créditos especiais, recursos, deduções,<br />

isenções parciais de impostos, tarifas diferenciadas, prêmios, financiamentos” etc. Porém, entendese<br />

que esta remuneração deve ser feita no que diz respeito às realizações que vão além das obrigações,<br />

ou seja, as realizações voluntárias. Disponível em: . Acesso em: 03 de novembro de 2009.


A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 197<br />

3.3. Peculiaridades sobre a reserva legal<br />

3.3.1. Estabelecimento de porcentagens em biomas<br />

Apontou Granziera (2009) que a ideia do estabelecimento da reserva legal<br />

não é nova. O Código Florestal de 1934 (Decreto n. 23.793/34) estabelecia a<br />

proibição de derrubada de 25% (um quarto) de vegetação nativa da área da<br />

propriedade, sendo passível o infrator, inclusive, de detenção e multa (artigo 86<br />

daquela lei) 15<br />

. O Código Florestal de 1965 revogou a referida lei de 1934, e, em sua<br />

redação original, não havia a disciplina deste instituto. Com o advento da Lei n.<br />

7.803/89, o termo reserva legal foi instituído e o instituto foi revivificado, já que a<br />

antiga redação do artigo 16 do Código Florestal de 1965 apenas havia instituído a<br />

proteção às “florestas particulares”. Nela, foram fixados valores de reserva legal<br />

em 50% para as regiões Norte e para a parte norte da região Centro-Oeste (antiga<br />

redação do artigo 44 do Código Florestal) e 20% para o restante do Brasil (antiga<br />

redação do parágrafo 2º do artigo 16 da mesma lei).<br />

Com a edição da Medida Provisória n. 1.511, de 25 de julho de 1996, a<br />

porcentagem de reserva legal relativamente ao bioma Amazônia foi mantida nos<br />

50% estabelecidos pela Lei n. 7.803/89. Esta porcentagem se manteve até a edição<br />

da Medida Provisória n. 2.080/00, quando foi fixada nova porcentagem àquele<br />

bioma, 80% (redação então dada ao artigo 44 do Código Florestal). Com a edição<br />

da Medida Provisória n. 2.166/01 e a efetivação legislativa das medidas provisórias<br />

por meio da Emenda Constitucional n. 32, este valor de 80% é o vigente para<br />

aquele bioma (artigo 16, I, do Código Florestal) 16 .<br />

No que tange ao cerrado, com o advento da Medida Provisória n. 1.736/99,<br />

o legislador excepcionou o cerrado localizado na chamada Amazônia Legal.<br />

Estabeleceu, assim, 50% de reserva legal para o bioma Amazônia e 20% para o<br />

bioma Cerrado, localizados na Amazônia Legal. Com a edição da Medida Provisória<br />

n. 2.080/00, foi fixada nova porcentagem àquele bioma, os atuais 35% (artigo 16,<br />

inciso II, do Código Florestal).<br />

Com a Exposição de Motivos n. 19/96, apresentada por Luiz Felipe Lampreia,<br />

então Ministro das Relações Exteriores, e por José Israel Vargas, então Ministro<br />

da Ciência e Tecnologia, o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso<br />

15 In: Direito Ambiental. São Paulo: Atlas, 2009. p. 355.<br />

16 O Projeto de Lei n. 1.876/99 objetiva a redução da reserva legal do bioma Amazônia da Amazônia<br />

Legal para 50% (e, possivelmente, o aumento da reserva legal para o bioma Cerrado, na mesma<br />

região, para o mesmo valor): “Artigo 6º. A reserva legal respeitará a seguinte proporção em relação<br />

à área de cada imóvel: I – cinquenta por cento na Região Amazônica; II – vinte por cento nas demais<br />

regiões.”. Disponível em: . Acesso<br />

em: 03 de novembro de 2009.


198<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

passou a observar a necessidade de aumento da área de reserva legal no bioma<br />

Amazônia situado na Amazônia Legal. A referida exposição de motivos levou em<br />

conta um extenso estudo realizado principalmente na região Norte do País, no que<br />

dizia respeito ao avanço desenfreado da fronteira agropastoril, bem como à<br />

derrubada de árvores para a indústria madeireira.<br />

Assim, a referida exposição de motivos afirmou que:<br />

(...) para reverter o quadro de crescimento do ritmo do desflorestamento na<br />

Amazônia, é necessária não apenas a adoção de um conjunto de medidas que<br />

permitam, de um lado, intensificar o monitoramento e vigilância, em especial<br />

nas áreas críticas, e de outro lado, reduzir a pressão antrópica sobre o meio<br />

ambiente com a fiscalização dirigida e eficiente, como, também, promover a<br />

reorientação da atividade produtiva para um modelo de uso sustentável dos<br />

recursos naturais da região 17<br />

.<br />

Por esta razão, seria necessária, dentre outras medidas, a “alteração do<br />

artigo 44 do Código Florestal, ampliando a reserva legal para, no mínimo, 80% de<br />

cada propriedade rural da região amazônica constituída de fitofisionomias florestais,<br />

onde não será permitido o corte raso; (...)” 18 .<br />

O bioma Amazônia possui uma característica de fragilidade muito peculiar.<br />

Apesar da exuberância de vida, a densa vegetação se sustenta em um solo<br />

excessivamente pobre e ácido. Com o passar de milhares de anos e decomposição<br />

vegetal, o solo amazônico ganhou uma relativamente fina camada de solo rica em<br />

nutrientes. Esta camada de solo se sustenta por conta da fixação das raízes vegetais<br />

e em função do ciclo de vida das formações vegetais. Com a eliminação das<br />

formações vegetais nativas, a região passaria a sustentar uma savana e,<br />

posteriormente, o processo resultaria na desertificação. O solo daquela região é<br />

muito diferente dos solos das regiões Nordeste, Sul e Sudeste que, há 500 anos,<br />

sustentam lavouras plantadas em regime contínuo.<br />

De uma forma ou de outra, o legislador não objetiva a inviabilidade econômica<br />

da terra quando estabelece uma reserva legal de 80%. Objetiva, sim, que o<br />

proprietário de terra adote medidas de preservação integradas com o seu<br />

desenvolvimento econômico. É possível a utilização econômica da área de reserva<br />

legal desde que previsto e observado o plano de manejo. O que não é possível para<br />

este bioma, em função de suas características frágeis, é o corte raso da mata<br />

17 Disponível em: “Código Florestal Brasileiro – Blog” . Acesso em: 03 de novembro de 2009.<br />

18 Idem.


A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 199<br />

nativa. O bioma Amazônia, afora sua importância em termos de biodiversidade, é<br />

determinante no clima do Brasil e da América do Sul, de maneira que, se for<br />

relegado à desertificação, todo o continente e o mundo irão padecer.<br />

Nesta mesma época, percebeu-se a importância do bioma Cerrado, como<br />

sendo fonte de biodiversidade muito peculiar e de equilíbrio igualmente delicado.<br />

Além do mais, o bioma Cerrado mostra-se como importante área de transição<br />

entre o bioma Amazônia e os demais biomas do Brasil. Por estas razões, o Executivo<br />

estabeleceu proteção ligeiramente maior do que a ordinariamente atribuída ao<br />

restante do País, fixando a porcentagem de 35% de reserva legal.<br />

3.3.2. Posse e averbação<br />

O artigo 1º, parágrafo 2º, inciso III, do Código Florestal determina que a<br />

reserva legal deve existir tanto em caso de posse quanto no caso de propriedade.<br />

Neste último caso, a reserva legal deverá ser averbada à margem da matrícula do<br />

imóvel. Tendo em vista a óbvia ausência de documentação de detentores de posse<br />

rural, o legislador resolveu a questão determinando que o possuidor se comprometa<br />

com a manutenção da reserva legal mediante assinatura de termo de ajustamento<br />

de conduta – TAC. Por meio do referido documento, com força de título executivo,<br />

é estabelecida a localização da reserva legal, suas características ecológicas básicas<br />

e a proibição de supressão de sua vegetação, tudo conforme consta no artigo 16,<br />

parágrafo 10, do Código Florestal.<br />

A averbação, prevista no parágrafo 8º do artigo 16 do Código Florestal,<br />

possibilita a fixação e consequente estabilidade da reserva legal em uma determinada<br />

área da propriedade rural. A exigência da averbação é imediata 19 , porém somente<br />

será punida administrativamente após 11 de dezembro de 2009, nos termos do<br />

artigo 152 do Decreto n. 6.514/08 20 . Assim, o equilíbrio biológico propiciado pela<br />

reserva legal será mantido, independentemente da transmissão, do desmembramento<br />

ou da retificação de área. Alguns magistrados interpretaram que há apenas a<br />

necessidade de averbação da reserva legal em áreas onde seja encontrada formação<br />

19 Muito embora o Código Florestal não estipule prazo, isto não significa a desobrigação de averbar<br />

a reserva legal. No item 4, “a”, deste artigo, será visto que a Lei n. 7.803/89 reinstituiu a reserva legal<br />

no País. Assim, ao contrário, significa que a reserva legal deverá ser averbada imediatamente à<br />

vigência daquela lei ou, quando muito, dentro de um prazo razoável. Passados 20 anos daquela lei,<br />

ainda se discute a necessidade de averbação ou não deste instituto...<br />

20 O governo sinaliza possibilidade de prorrogação do prazo para imposição da referida multa<br />

administrativa pela não averbação da reserva legal para 11 de junho de 2010. Último Segundo, 28/10/<br />

2009. Disponível em: . Acesso em: 10 de novembro<br />

de 2009.


200<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

vegetal nativa. Porém, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, sobre a averbação<br />

da reserva legal, que “é dever do proprietário ou possuidor de imóveis rurais, mesmo<br />

em áreas onde não houver florestas, adotar as providências necessárias à<br />

restauração ou à recuperação das formas de vegetação nativa” 21 , sendo certo que<br />

“a exigência de averbação da reserva legal à margem da inscrição de matrícula do<br />

imóvel, no ofício de registro de imóveis competente, não se aplica somente às<br />

áreas onde haja florestas, campos gerais ou outra forma de vegetação nativa” 22 .<br />

3.3.3. Localização<br />

Eis aqui outra diferença fundamental entre as APPs e a reserva legal, recapitulando<br />

os conceitos de ambos os institutos. A APP, pelo fato de ter uma função<br />

imediata de garantir a preservação de um determinado recurso natural inorgânico,<br />

é automaticamente fixada por força do conteúdo dos artigos 2º e 3º do Código<br />

Florestal. Diferentemente, o artigo 16, parágrafo 4º, do Código Florestal, por interpretação<br />

inversa, confere ao proprietário da terra escolher o local em que será<br />

constituída a reserva legal, desde que aprovada pelo órgão ambiental competente,<br />

atendidos alguns critérios. Com isto, deve ser observado o plano de bacia hidrográfica,<br />

o plano diretor municipal, o zoneamento ecológico-econômico e outras categorias<br />

de zoneamento ambiental. Além disto, a reserva legal deve estar em<br />

proximidade com outras reservas legais, APPs, UC ou outra área legalmente protegida,<br />

com o fim de criar os chamados “corredores ecológicos”, que possibilitam a<br />

conservação da biodiversidade por meio do fluxo gênico.<br />

3.3.4. Plano de manejo florestal sustentável<br />

Tendo em vista a conservação da biodiversidade, dos recursos naturais, dos<br />

processos ecológicos e a proteção da fauna e da flora nativas, o legislador impôs a<br />

impossibilidade de supressão em corte raso das formações vegetais dentro da<br />

reserva legal (artigo 16, parágrafo 2º, do Código Florestal e artigo 10 do Decreto n.<br />

5.975/06). No entanto, isto não significa que o proprietário da terra irá ficar impedido<br />

de utilizar aquela área de reserva legal. Em verdade, o mesmo artigo 16, parágrafo<br />

2º, do Código Florestal impõe ao proprietário a elaboração de um plano de manejo<br />

florestal sustentável – PMFS. Nos termos o artigo 2º, parágrafo único, do Decreto<br />

n. 5.975/06, é o documento técnico que determinará as diretrizes para a administra-<br />

21 RMS n. 22.391/MG. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 2006/0161522-1. Relator(a)<br />

Ministra Denise Arruda (1.126). Órgão julgador T1 – Primeira Turma, data do julgamento, 04/11/<br />

2008, data da publicação/Fonte DJe, 03/12/2008.<br />

22 Idem.


A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 201<br />

ção daquela reserva legal, visando à obtenção de benefícios econômicos, sociais e<br />

ambientais. Assim sendo, manejo florestal sustentável é, nos termos do artigo 3º,<br />

inciso VI, da Lei n. 11.284/06:<br />

(...) a administração da floresta para a obtenção de benefícios econômicos,<br />

sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do<br />

ecossistema objeto do manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente,<br />

a utilização de múltiplas espécies madeireiras, de múltiplos produtos<br />

e subprodutos não madeireiros, bem como a utilização de outros bens e serviços<br />

de natureza florestal; (...)<br />

Tem-se, pois, que o PMFS constitui-se em um verdadeiro estatuto destinado<br />

àquela determinada área de reserva legal, elaborado com o fim de estabelecer<br />

normas de conduta do proprietário, possibilidade de extração vegetal, possibilidade<br />

de corte, possibilidade de exploração turística, tudo levando em conta a capacidade<br />

de absorção de impactos do referido ecossistema. De fato, constitui-se infração<br />

administrativa, prevista nos artigos 48, 51 e 51A do Decreto n. 6.686/08: impedir<br />

ou dificultar a regeneração natural de reserva legal; destruir, desmatar, danificar<br />

ou explorar qualquer tipo de vegetação nativa em área de reserva legal; executar<br />

manejo florestal sem autorização prévia do órgão ambiental competente, enfim,<br />

infrações puníveis com multa que variam de R$ 1.000,00 a R$ 5.000,00 por hectare<br />

ou fração, dependendo da infração.<br />

3.3.5. A pequena propriedade e a reserva legal<br />

O artigo 1º, parágrafo 2º, inciso I, conceitua pequena propriedade rural (ou<br />

posse rural familiar) como sendo aquela explorada por força do trabalho pessoal do<br />

proprietário ou posseiro e de sua família. A atuação de outros trabalhadores nestas<br />

áreas é admitida, o que normalmente ocorre em épocas de colheita. Porém, esta<br />

ajuda de terceiro deve necessariamente ser eventual. A definição restringe, ainda, no<br />

tocante à renda bruta, que esta deverá ser proveniente, no mínimo, 80% de atividade<br />

agroflorestal ou do extrativismo. Finalmente, há limitação da área da propriedade:<br />

• cento e cinquenta hectares, se localizada nos Estados do Acre, Pará,<br />

Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e nas regiões<br />

situadas ao norte do paralelo 13ºS, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao<br />

oeste do meridiano de 44ºW, do Estado do Maranhão ou no pantanal matogrossense<br />

ou sul-mato-grossense;<br />

• cinquenta hectares, se localizada no polígono das secas ou a leste do<br />

meridiano de 44ºW, do Estado do Maranhão; e<br />

• trinta hectares, se localizada em qualquer outra região do País.


202<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Nota-se que o legislador procurou privilegiar os proprietários de terra que<br />

foram, nas décadas de 1950, 1960, 1970 e 1980, para a região Norte, atendendo<br />

aos incentivos de ocupação promovidos pelos programas governamentais de<br />

desenvolvimento da Amazônia e da região Norte (Sudam 23 etc.). Por este motivo,<br />

houve ampliação da área da pequena propriedade para aqueles Estados. No chamado<br />

“polígono das secas”, a motivação é clara: o legislador objetiva promover incentivos<br />

para que o proprietário permaneça em sua terra, gozando do status de pequena<br />

propriedade terras com até 50 hectares ou 350 mil metros quadrados.<br />

Mais uma vez mostrando sensibilidade, o legislador estabeleceu permissivo<br />

para as pequenas propriedades incluírem o plantio de espécies arbóreas frutíferas<br />

ornamentais ou, mesmo, espécies exóticas industriais, tudo com o fim de facilitar a<br />

viabilidade econômica da terra. O parágrafo 3º do artigo 16 do Código Florestal<br />

exige, no entanto, que o plantio destas espécies seja feito de modo intercalado ou<br />

em consórcio com as espécies nativas.<br />

Com efeito, apesar do permissivo para aumento e manutenção da viabilidade<br />

econômica da terra, o legislador não afastou o fim da reserva legal, determinando<br />

que haja, de modo intercalado ou em consórcio, a existência de espécies nativas.<br />

Em sede de interpretação lógico-linguística, os sistemas intercalar e consorcial<br />

pressupõem que haja, pelo menos, metade de um grupo principal e outra metade de<br />

outro grupo. Assim, deve ser respeitada pelo menos a metade de espécies nativas,<br />

uma vez que é o grupo principal, posto que o fim da reserva legal é a conservação de<br />

um ambiente natural 24 . Nada obstante, se o órgão ambiental entender que determinada<br />

área, de extrema sensibilidade ecológica, não pode ser alterada, sob pena de grave<br />

prejuízo ambiental, poderá e deverá estabelecer porcentagem superior ao mínimo de<br />

50%, decisão que deve prevalecer. No entanto, o órgão ambiental não poderá conceder<br />

autorização para manejo com espécies exóticas em porcentagem que ultrapasse o<br />

mínimo de 50% para a cobertura vegetal nativa.<br />

Outro exemplo de proteção que a legislação ambiental fornece ao pequeno<br />

proprietário encontra-se na questão da recomposição de área de reserva legal,<br />

situação em que o órgão ambiental estadual deverá oferecer suporte técnico para<br />

implementação desta medida (artigo 44, parágrafo 1º, do Código Florestal). Além<br />

desta, pode-se citar outro exemplo de proteção ao pequeno proprietário no que<br />

23 Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia.<br />

24 Neste sentido, o Projeto de Lei n. 4.524/2004 e o Projeto de Lei n. 4.091/2008 objetivam a fixação<br />

de porcentagem de manutenção de 50% de vegetação nativa em áreas protegidas exploráveis<br />

economicamente. Disponível em: .<br />

Acesso em 03 de novembro de 2009.


A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 203<br />

tange à averbação graciosa da reserva legal, nos temos do parágrafo 9º do artigo<br />

16 da mesma lei.<br />

3.3.6. Cômputo de APP como RL<br />

Mais uma vez mostrando interesse pela manutenção da viabilidade econômica<br />

de uma área rural, o legislador estabeleceu determinados limites a extensões de<br />

terra especialmente protegidas que, se somadas, não poderão ultrapassar determinada<br />

porcentagem. Em outras palavras, estas áreas especialmente protegidas, mais<br />

especificamente as APPs, poderão ser computadas como reserva legal em determinadas<br />

situações. Bem assim, o parágrafo 6º do artigo 16 do Código Florestal autoriza<br />

o cômputo de áreas de preservação permanente como reserva legal em propriedades<br />

rurais em que aquelas primeiras, somadas, atinjam porcentagem superior a 25 :<br />

• 80% sobre a propriedade rural situada na Amazônia Legal;<br />

• 50% sobre a propriedade rural situada no restante do País;<br />

• 25% sobre a pequena propriedade rural com menos 50 hectares, localizada<br />

no polígono das secas;<br />

• 25% sobre a pequena propriedade rural com menos 30 hectares, localizada<br />

em qualquer outra região do País.<br />

No entanto, esta exceção não muda o regime jurídico de uso e proteção<br />

nas APPs computadas como reserva legal: o parágrafo 7º do artigo 16 do Código<br />

Florestal institui uma reserva legal com regime jurídico de uso e proteção de<br />

APP. Exemplificando, uma propriedade rural situada em qualquer lugar do Brasil<br />

(exceto na Amazônia Legal) que possua APPs em porcentagem de 45% de sua<br />

área terá que instituir uma reserva legal de 5,1% pelo menos. Neste exemplo, as<br />

APPs naquela área rural (45% da área) serão consideradas reserva legal, porém<br />

com regime diferenciado de APP; deverá o referido proprietário instituir reserva<br />

legal propriamente dita em porcentagem de 5,1% de sua área, reserva legal esta<br />

que terá regime tradicional. Com isto, esta propriedade terá uma área de reserva<br />

legal de 50,1%.<br />

25 Neste caso, muito embora o legislador não tenha especificado, trata-se de porcentagem superior, e<br />

não igual e superior. Isto porque as propriedades rurais situadas na Amazônia Legal já possuem<br />

reserva legal de 80%. Assim, se fosse incluído o valor inicial (por exemplo, 80%), automaticamente<br />

todas as propriedades na Amazônia Legal teriam 1% pelo menos de sua área enquadrada nesta<br />

exceção de cômputo de áreas protegidas, o que seria ilógico dentro do contexto legal.


204<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Se uma determinada propriedade, por outro lado, contiver APPs que totalizem<br />

área superior àquelas instituídas no parágrafo 6º do artigo 16 do Código Florestal,<br />

por exemplo, 90%, ainda assim deverão ser mantidas tanto as APPs quanto a<br />

reserva legal com regime de APP. Neste exemplo, 50,1% da propriedade será<br />

considerada reserva legal com regime jurídico de APP e o restante, 39,9%, continuará<br />

sendo APP propriamente dita. Este mecanismo de compensação especial não<br />

autoriza, por exemplo, que o proprietário desta fazenda mantenha apenas 50,1%<br />

da área de sua propriedade que constitui APP e derrube para utilização o restante.<br />

3.3.7. Possibilidades ao proprietário no caso de RL inferior ao mínimo:<br />

recomposição, regeneração, compensação (condomínio e<br />

servidão) e doação de áreas para o Estado para desapropriação<br />

nas unidades de conservação? 26<br />

A lei ambiental federal prevê quatro hipóteses para o restabelecimento da<br />

área de reserva legal em porcentagem inferior à legalmente exigida. Estas medidas<br />

podem ser adotadas isolada ou conjuntamente, todas previstas no artigo 44 do<br />

Código Florestal. Em uma primeira análise, poder-se-ia interpretar que a legislação<br />

federal não estabelece uma ordem de preferência na aplicação destes<br />

mecanismos, uma vez que, no caput do artigo 44 da citada lei, consta a expressão<br />

“deve adotar as seguintes alternativas, isoladas ou conjuntamente”. Entrementes,<br />

não é o caso. Em uma análise contextual da lei, observando o fim precípuo da<br />

reserva legal como sendo instrumento de manutenção da biodiversidade e<br />

resguardo de uma parte de um ecossistema e bioma, observa-se ser necessário<br />

o respeito à ordem imposta pela lei, ou seja, preferencialmente recomposição e<br />

regeneração, secundariamente compensação e, por fim, a doação de áreas para<br />

regularização fundiária 27 . Já que não houve estabelecimento claro na ordem de<br />

26 O Projeto de Lei n. 1.876/99 apresenta algumas soluções interessantes, como oferecer “incentivo” à<br />

recomposição da reserva legal bem como assegurar de seu registro, previstas em seu artigo 7º: o parágrafo<br />

1º do referido projeto decreta que são nulos todos os atos notariais relativamente àquele imóvel que não<br />

averbou sua reserva legal; o parágrafo 2º consolida o que a jurisprudência já vinha julgando, ao efetivamente<br />

declarar que as áreas de reserva legal não recompostas são tributadas normalmente pelo Imposto sobre a<br />

Propriedade Territorial Rural – ITR; o parágrafo 3º apresenta uma das melhores soluções para o problema,<br />

pois estabelece que todos os estabelecimento oficiais ficam proibidos de fornecer crédito aos proprietários<br />

que não tenham regularizado sua reserva legal. Disponível em: . Acesso em: 03 de novembro de 2009.<br />

27 O Projeto de Lei n. 6.424/05 propõe a reforma do Código Florestal, permitindo a recuperação de<br />

reservas legais com espécies exóticas, anistia para os desmatamentos realizados antes de julho de<br />

2006 (sem obrigatoriedade de recuperação) e definição das áreas de preservação permanentes pelos<br />

poderes locais. Disponível em: .<br />

Acesso em: 03 de novembro de 2009.


A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 205<br />

aplicação destes mecanismos, cabe ao órgão ambiental responsável estipular a<br />

melhor solução ao bioma e ecossistema, não cabendo a escolha do mecanismo<br />

apenas pela vontade do proprietário.<br />

A recomposição é o processo pelo qual se restaura um determinado pedaço<br />

devastado de um ecossistema. O inciso I do artigo 44 estabelece que a recomposição<br />

se dará com o plantio de espécies nativas, de forma que, a cada três anos, a<br />

décima parte da área total da reserva legal da propriedade seja recuperada. Esta<br />

recuperação é dificultosa, uma vez que as espécies vegetais se dividem de acordo<br />

com suas características e capacidade de sobrevivência ante as condições. Assim,<br />

existem espécies pioneiras (ou formações pioneiras), ou seja, espécies melhor<br />

adaptadas às condições de terreno e clima propiciam condições mais favoráveis<br />

para que outras formações vegetais tenham condições de ali se instalar. O legislador<br />

observou esta necessidade natural e estabeleceu o concessivo de que, para a criação<br />

da mata secundária, sejam utilizados, em um primeiro momento, formações<br />

pioneiras, mesmo que exóticas (caso em que serão utilizadas de modo temporário),<br />

as quais irão propiciar condições às demais formações vegetais nativas (artigo 44,<br />

parágrafo 2º, do Código Florestal).<br />

A regeneração, por sua vez, diferentemente da recomposição, pressupõe a<br />

existência de vegetação nativa, a qual se encontra mais ou menos atingida ou<br />

devastada. Este mecanismo também tem como objetivo a recondução daquela<br />

determinada área ao status quo ante o impacto (normalmente antrópico), de forma<br />

a restabelecer o ecossistema original. A sua viabilidade será observada pelo órgão<br />

ambiental competente, o qual poderá determinar o isolamento da área em regeneração,<br />

tudo nos termos do parágrafo 3º do artigo 44 do Código Florestal. Esta<br />

legislação federal ainda protege áreas em regeneração, estabelecendo a proibição<br />

da “implantação de projetos de assentamento humano ou de colonização para fim<br />

de reforma agrária, ressalvados os projetos de assentamento agroextrativista,<br />

respeitadas as legislações específicas” (parágrafo 6º do artigo 37A) e a criminalização<br />

das ações de “impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e<br />

demais formas de vegetação”, contravenção passível de pena de três meses a um<br />

ano ou multa (artigo 26 e alínea “g”).<br />

A compensação prevista no artigo 44, inciso III, do Código Florestal implica<br />

a não instituição da reserva legal em uma dada propriedade rural mediante o<br />

estabelecimento desta mesma reserva legal em “outra área equivalente em<br />

importância ecológica e extensão, desde que pertença ao mesmo ecossistema e<br />

esteja localizada na mesma microbacia”.<br />

A importância da localização da área em que será instituída a reserva<br />

legal compensada está em consonância com a finalidade daquele instituto. Ora,


206<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

se a reserva legal tem como função a conservação ambiental de uma determinada<br />

fatia de um ecossistema de um bioma, seria ilógico promover a conservação de<br />

outro ecossistema ou, ainda, de outro bioma. Assim, o legislador optou por<br />

estabelecer como critério o estabelecimento dentro de uma microbacia, já que<br />

os cursos de água e formações lacustres são determinantes para a formação de<br />

um ecossistema. Outro motivo para a instituição da reserva legal compensada<br />

na mesma microbacia encontra-se na (delicada) relação floresta-solo-água, ou<br />

seja, no equilíbrio do ciclo hidrológico que somente se dá com o estabelecimento<br />

de formação da vegetação nativa. Na absoluta impossibilidade de compensação<br />

na mesma microbacia, o legislador concede permissivo de o órgão ambiental<br />

estabelecer a reserva legal na “maior proximidade possível entre a propriedade<br />

desprovida de reserva legal e a área escolhida para compensação, desde que na<br />

mesma bacia hidrográfica e no mesmo Estado” (parágrafo 4º do artigo 44 do<br />

Código Florestal), e desde que também respeitadas as demais condicionantes<br />

fixadas no inciso III do artigo 44.<br />

A servidão florestal (artigo 44A) e o condomínio (parágrafo 11 do artigo 16)<br />

são exemplos legalmente previstos de medidas de compensação 28 . Sem que haja<br />

aprofundamento incompatível com o conteúdo deste artigo, é necessário destacar<br />

alguns pontos acerca destes dois institutos, todos observados por normativa do<br />

Código Florestal. Assim, se forem estabelecidos, deverão se encontrar dentro de<br />

uma mesma microbacia (artigo 44, III); respeitar a reserva legal e a APP da<br />

propriedade que receberá, por compensação, a reserva legal da outra propriedade<br />

(artigo 44-A); ser aprovados pelo órgão ambiental (artigo 16, parágrafo 11); e ser<br />

averbados no Registro de Imóveis (artigo 16, parágrafo 8º).<br />

A última medida para restabelecimento da área de reserva legal em<br />

porcentagem inferior à legalmente exigida é a doação de áreas para o Estado<br />

para regularização fundiária das unidades de conservação, prevista no artigo<br />

44, parágrafo 6º. Inicialmente, a Medida Provisória n. 2.166-67/01 desonerava<br />

o proprietário da necessidade da reserva legal pelo período de 30 anos. Porém,<br />

com a Lei n. 11.428/06, a referida norma foi alterada para uma desoneração<br />

definitiva. Por este mecanismo, o proprietário que não possui reserva legal<br />

poderá comprar uma determinada área equivalente à sua reserva legal em<br />

uma unidade de conservação que, muito embora de domínio público, ainda<br />

possua processos de expropriação pendentes de regularização. Em outras<br />

28<br />

Tecnicamente, a doação de áreas para o Estado para regularização das unidades de conservação<br />

também seria uma medida de compensação, porém, dadas as suas características peculiares, será<br />

observada como categoria separada.


A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 207<br />

palavras, o Estado delegou ao particular a permissão de não instituir a reserva<br />

legal (em suas próprias terras) se “ajudar” o Poder Público a pagar as<br />

indenizações de expropriação das terras particulares situadas no interior das<br />

unidades de conservação de domínio público.<br />

A problemática é a seguinte: muito embora unidades de conservação tenham<br />

fim mediato idêntico à reserva legal, sua função imediata é diferenciada.<br />

Hodiernamente, não há respeito a uma ordem dos processos de restabelecimento<br />

da reserva legal, ou seja, o órgão ambiental dificilmente impõe que primeiramente<br />

seja estudada a possibilidade de recomposição ou de regeneração da área. Desta<br />

feita, em não havendo benefício de ordem para tentativa de aplicação da<br />

recomposição e da regeneração de uma área, a doação de áreas pendentes de<br />

regularização fundiária pode vir a ser utilizada em larga escala como permissivo<br />

para a não implementação da reserva legal. Não há, aqui, um posicionamento<br />

contrário a esta medida: se por um lado esta medida pode (e deve) ser mantida, por<br />

outro lado deve ser utilizada apenas na mais absoluta impossibilidade de se<br />

restabelecer a reserva legal por outras formas. Assim, cabe ao órgão ambiental o<br />

bom senso em sua utilização.<br />

4. CONCLUSÃO<br />

Foi visto exaustivamente que a reserva legal é instrumento de consecução<br />

da conservação da biodiversidade. Sua função peculiar é distinta das outras<br />

modalidades de espaços especialmente protegidos. Toda vez que um determinado<br />

direito individual é limitado para a realização de um direito social ou coletivo<br />

(transindividual), haverá comoção dos detentores do referido direito individual.<br />

Historicamente, mutantis mutandi, um bom exemplo desta comoção é aquela<br />

efetuada pelos ricos industriais no período anterior às leis trabalhistas. Em um<br />

primeiro momento, aqueles se opuseram às tentativas de estabelecimento de<br />

condições de trabalho humanamente aceitáveis, uma vez que isto implicaria a<br />

diminuição do lucro (mais-valia marxista). Contudo, posteriormente, estes mesmos<br />

industriais perceberam que o empregado satisfeito com seus ganhos e com seu<br />

ambiente de trabalho é capaz de fornecer um lucro ainda maior.<br />

No caso da proteção ambiental, a sistemática é a mesma. Neste primeiro<br />

momento, os empresários, agricultores e pecuaristas se opõem ao estabelecimento<br />

de medidas ambientais que irão reduzir prima facie o seu lucro. Contudo, ainda<br />

não houve o insight de que o “fim do mundo com as condições de suportar a vida<br />

humana” (o que certamente se dará com a devastação dos recursos naturais) não<br />

é lucrativo... O que as gerações passadas diziam ser um evento que, se ocorresse,


208<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

o seria em um futuro longínquo, a geração presente observa que o futuro longínquo<br />

não é tão distante assim: o futuro é agora.<br />

A reserva legal é um dos mecanismos necessários ao impedimento da perda<br />

da biodiversidade, mediante a manutenção de uma pequena área de um determinado<br />

ecossistema. Mesmo nos casos em que a área de reserva legal é substancialmente<br />

grande (como ocorre no bioma Amazônia), a conservação de um bioma frágil<br />

prepondera sobre os interesses econômicos da exploração das atividades<br />

agropastoris. Ao contrário do afirmado por alguns autores 29 , o interesse público<br />

(mais precisamente o interesse da coletividade) prepondera sobre o interesse privado,<br />

já que o Brasil ainda é um Estado democrático de direito, e não uma anarquia ou<br />

um sistema político-econômico liberalista que se pauta em “laissez faire, laissez<br />

aller, laissez passer”.<br />

29 Vide nota 13.


A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 209<br />

REFERÊNCIAS<br />

DOBSON, Andrew P. Conservation and biodiversity. New York: Scientific<br />

American Library, 1996.<br />

GANDRA S. MARTINS, Ives. A defesa do meio ambiente. Valor Econômico, 25/03/<br />

2004. Disponível em: . Acesso<br />

em: 09 de novembro de 2009.<br />

GASTON, Kevin J. & SPICER, John I. Biodiversity: an introduction. 2. ed. Malden,<br />

MA: Blackwell Publishing, 2004. Disponível em: . Acesso em: 03 de novembro de 2009.<br />

GRAZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. São Paulo: Atlas, 2009.<br />

LEME MACHADO, Paulo Afonso. Direito Ambiental brasileiro. São Paulo: RT, 1982.<br />

MAGALHÃES, Vladimir Garcia. Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB): a<br />

necessidade da revisão do seu texto, substituindo o termo “recursos genéticos” por<br />

“recursos biológicos” nos artigos 1º, 9º, 15, 16 e 19. Revista Eletrônica do Curso<br />

de Direito da UFSM, v. 1, n. 1, p. 16-32, Santa Maria, março, 2006. Disponível<br />

em: . Acesso em: 03 de<br />

novembro de 2009.<br />

REAKA-KUDLA, Marjorie L.; WILSON, Don E. & WILSON, Edward O. Biodiversity<br />

II: understanding and protecting our biological resources. Washington: Joseph Henry<br />

Press, 1997. Disponível em: . Acesso em: 03 de novembro de 2009.<br />

SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994.<br />

VIEIRA DUTRA, Ozório. O discurso ideológico e a ilegalidade da “reserva legal”.<br />

Disponível em: . Acesso em: 09 de<br />

novembro de 2009.<br />

WILSON, Edward O. Biodiversity. Washington: National Academy Press, 1988.


210<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Anotações


RESENHA 211<br />

BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito.<br />

Apresentação de Celso Lafer. 1. ed. Barueri: Manole, 2007. 285 páginas.<br />

Da estrutura à função:<br />

novos estudos da teoria do direito<br />

From structure to function: new<br />

studies of the theory of law<br />

JOÃO OTÁVIO BENEVIDES DEMASI<br />

Advogado; mestrando em Direito Internacional, pela Faculdade de Direito da Universidade<br />

de São Paulo – Fdusp; membro do Fórum Latino-Americano de Jovens Árbitros da<br />

International Chamber of Commerce – ICC; membro efetivo da Comissão de Comércio<br />

Exterior da Ordem dos Advogados do Brasil/seção São Paulo – Comex-OAB-SP.<br />

O objetivo desta resenha é extrapolar as análises meramente descritivas e<br />

expressar a essência da obra em referência pela síntese dos valores encontrados,<br />

de modo a deixar latitude analítica a cada leitor.<br />

O livro Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito, de<br />

Norberto Bobbio, foi traduzido para o português e lançado no Brasil pela Editora<br />

Manole em seminário realizado na Bovespa, 1 com a presença da ilustre flor<br />

acadêmica tributária do filósofo do Direito e sociólogo italiano. Na composição da<br />

mesa do seminário, estavam Celso Lafer, apresentador da obra; Mario Losano,<br />

seu prefaciador, discípulo direto de Bobbio; Tércio Sampaio Ferraz Júnior, um<br />

admirador da obra de Bobbio; e Carlos Mariano, presidente da Bovespa e acolhedor<br />

da ideia de criação do espaço Norberto Bobbio na respectiva entidade, celebrado<br />

com o lançamento desta tradução no Brasil.<br />

Os dez ensaios abordam aspectos variados sob os seguintes títulos: A função<br />

promocional do Direito; As sanções positivas; Direito e as ciências sociais; Em<br />

direção a uma teoria funcionalista do Direito; A análise funcional do Direito:<br />

tendências e problemas; Do uso das grandes dicotomias na teoria do Direito; A<br />

grande dicotomia; Teoria e ideologia na doutrina de Santi Romero; Estrutura e<br />

função na teoria do Direito de Kelsen; Tullio Ascarelli. Os 10 ensaios de caráter<br />

jurídico, histórico, sociológico e filosófico examinam temas jurídicos vistos pelo<br />

prisma da Sociologia, mas sempre fundamentados na Filosofia do Direito.<br />

1 Bolsa de Valores de São Paulo. A partir de 2008, passou a se chamar Bolsa de Valores, Mercadorias<br />

e Futuros – BM&FBovespa.


212<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Bobbio fez uma leitura transdisciplinar e pôs de lado a visão estritamente<br />

jurídico-sistemática do Direito, criada pela obra de Kelsen, para expressar o Direito<br />

inserido na Sociologia de tal modo que traz à tona a finalidade e a função do<br />

Direito, não só como instrumento de manutenção e propagação de sistemas sociais,<br />

mas também como institucionalizador jurídico de atividades econômicas sob a fumaça<br />

do bom Direito.<br />

Imbuído desta ideia, o autor em tela serviu seus ensaios de uma franqueza e<br />

de uma variedade de autores de linhas ideológicas distintas para somar, em um mosaico<br />

integrativo, não discriminatório e sempre acolhedor da melhor razão, demonstrativo<br />

de uma liberdade de pensamento singular para uma realidade na qual imperava a<br />

guerra fria. A escritura dos ensaios transmite uma pessoalidade do referido autor que<br />

faz com que se sinta Bobbio em um diálogo constante com o leitor.<br />

Bobbio, aliás, é um gênio: construiu e reconstruiu a teoria kelseniana do<br />

ponto de vista histórico, jurídico e sociológico e filosófico; expôs uma polivalência<br />

e multiplicidade de leituras raras aos juristas para, finalmente, implodir Kelsen e,<br />

entre a neblina e os escombros, expressar visões de tal modo que realizou o adágio:<br />

o aluno supera o mestre. Na metáfora da palavra, Bobbio fez como a série de<br />

quadros de Picasso sobre “Las meninas”, de Velásquez, ou traduziu para o piano e<br />

orquestra “Quadros de uma exposição”, de Mussorgsky. Bobbio peneirou a<br />

eternidade de Kelsen, Hart ou Vivante, mas foi além, como Debussy, e deixou uma<br />

impressão pessoal de Ascarelli e de sua magna opera jurídica modelar, capaz de<br />

fazer dos leitores filhos e irmãos de um mesmo espírito acadêmico, atos à moda de<br />

Ascarelli, tal qual um moto perpetuo de Paganini – inquietante, dilacerante do<br />

Direito posto nacional e comparado, procurador e legador de uma verdade d’alma<br />

científica não só jurídica, mas também humana. Uma lição de vida.<br />

O livro é um cume e um ponto de inflexão bobbiano. A cada capítulo, o<br />

Direito é posto dentro da sociedade sob o escrutínio de ser um fenômeno dinâmico,<br />

promocional de uma humanidade melhor destinada ao bem comum e à realização<br />

individual promovida pelo Estado bonificador, e não mais sancionador e repressor.<br />

Bobbio perscrutou e promoveu um Direito destinado a atender, cada vez mais,<br />

às paulatinas e difíceis e complexas necessidades de um Estado nacional não mais<br />

regulador de todos os direitos e obrigações individuais e coletivas, mas obrigado a dar<br />

liberdade às relações contratuais privadas individuais e empresariais, perante uma<br />

estrutura jurídica estanque a se transformar para promover interesses gerais maiores.<br />

Imagina-se haver, nesta obra, uma solução para a crise do Estado de bemestar<br />

social que se avizinhava na década de 1970, com o aumento do preço do barril<br />

de petróleo, tendo em vista não mais se aceitar, implicitamente, que setores sociais se


RESENHA 213<br />

beneficiassem do Estado sem nada contribuir com o que estimulava a reforma do<br />

edifício jurídico então vigente para a multiplicação das normas de condutas bonificadas,<br />

com o fito de estimular o gênio criador do ser humano em sua esfera empreendedora.<br />

Tais valores estão realmente a ser vistos, a exemplo do que ocorre na maioria das<br />

nações. A França está a superar esta questão há mais de 20 anos. No Brasil, a<br />

Constituição de 1988 é garantidora, mas ainda pouco promotora de um direito<br />

bonificador. Como Bobbio disse, somente a partir de 1960 o Direito deixou de ser um<br />

fenômeno repressivo e sancionador para ser promotor e bonificador.<br />

Quem faz boas ações vai para o céu. De acordo com Bobbio, cabe ao Estado<br />

estimular que sejam dadas ao cidadão condições de boas ações. Bobbio pensou que<br />

deve o Estado instrumentalizar a estrutura jurídica com a função de conduzir o homem<br />

a fazer boas ações. São exemplos disso: a diminuição geral do valor cobrado sobre a<br />

renda empresarial e individual; a criação de leis com alíquotas menores para pesquisa<br />

e desenvolvimento de firmas de nanotecnologia e biotecnologia, de modo a estimular,<br />

bonificar e conduzir ações privadas com a função de promover o bem-estar individual<br />

pelo lucro obtido e, consequentemente, o bem comum.


214<br />

1. Os trabalhos devem ser inéditos no Brasil.<br />

The papers must be unpublished in Brazil.<br />

2. Na análise dos trabalhos, será levada em conta<br />

a pesquisa, a linguagem, a relevância do tema<br />

e a contribuição do autor para o tema.<br />

On the papers analysis, it will be taken on<br />

relevance the research, the language, the<br />

relevance of the subject and the author’s<br />

contribution for the theme.<br />

3. Os textos devem ser digitados em fonte Times<br />

New Roman, corpo 12 (doze),<br />

espaçamento 1,5 (um e meio) e recuo na primeira<br />

linha de 1 cm (um centímetro).<br />

The papers must be keyed on Times New Roman<br />

12, 1,5 space (between lines) and 1 cm<br />

paragraph.<br />

4. A configuração da página deve ser papel tamanho<br />

A4, com margem superior e esquerda<br />

de 3 cm (três centímetros) e margem inferior<br />

e direita de 2 cm (dois centímetros).<br />

The configuration page is 3cm (superior and<br />

left) and 2 cm (bottom and right), on A4 size.<br />

5. Junto com o trabalho, deve ser enviada, por email,<br />

uma autorização simples de publicação<br />

na Revista do Direito da <strong>USCS</strong>.<br />

With the paper, must be sent, by e-mail, a<br />

publishing authorization, specially for the<br />

<strong>USCS</strong> Law Magazine.<br />

6. Os artigos devem possuir de 10 (dez) a 15<br />

(quinze) laudas. Excepcionalmente, poderão<br />

ser aceitos trabalhos acima de 15 (quinze)<br />

laudas. Não serão aceitos trabalhos com menos<br />

de 10 (dez) laudas.<br />

The articles have to content 10 to 15 pages.<br />

Exceptionally, could be accepted bigger<br />

papers. Paper with less than 10 pages won’t<br />

be accepted.<br />

7. As avaliações dos trabalhos enviados são de<br />

competência exclusiva do Conselho Editorial<br />

da revista, sendo que sua decisão é soberana e<br />

irrecorrível.<br />

The paper evaluation is a exclusive<br />

prerogative of the magazine council and its<br />

decision is sovereign.<br />

8. As citações devem se restringir ao estritamente<br />

necessário e ser feitas segundo o determinado<br />

pela ABNT, no estilo nota de rodapé.<br />

<strong>REVISTA</strong> DE DIREITO DA <strong>USCS</strong><br />

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

The quotes could be used only when strictly<br />

necessary e have to obey the ABNT rules<br />

(www.abnt.com.br), on footnote style.<br />

Exemplo/Example:<br />

CHIAVENATO, I. Administração nos novos tempos.<br />

São Paulo: Atlas, 1999. p. 32.<br />

Para citações maiores (superiores a três linhas,<br />

segundo a ABNT), deve-se fazer um recuo e alterar<br />

o espaçamento entre linhas, mantendo-se o<br />

tamanho da letra (12). Ver o exemplo abaixo:<br />

For bigger quotes (above 3 lines), it have to do<br />

a retreat and change the space between lines,<br />

keeping the letter size (see the example below):<br />

De outra parte, em análise econômica do direito,<br />

com base no princípio da “reserva do<br />

possível”, pois a efetivação do direito à saúde<br />

importa gastos financeiros e recursos de outra<br />

ordem (material humano e equipamentos), poder-se-ia<br />

defender que somente o administrador,<br />

dentro de sua discricionariedade, poderia<br />

implementar as políticas públicas que dizem<br />

com o direito à saúde; no entanto, o Supremo<br />

Tribunal Federal, já deixou assente que<br />

(...) a cláusula da “reserva do possível – ressalvada<br />

a ocorrência de justo motivo objetivamente<br />

aferível – não pode ser invocada, pelo<br />

Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente,<br />

do cumprimento de suas obrigações<br />

constitucionais, notadamente quando, dessa<br />

conduta governamental negativa, puder resultar<br />

nulificação ou, até mesmo, aniquilação de<br />

direitos constitucionais impregnados de um<br />

sentido de essencial fundamentalidade” (cf. RE<br />

n. 410.715-AgR / SP, Rel. Min. Celso de Melo,<br />

unânime, J. 22.11.2005, p. 11/12).<br />

9. A referência bibliográfica deve ser inserida ao<br />

final do artigo, segundo o disposto no item<br />

anterior.<br />

The bibliography reference mus be insert at the<br />

end of the paper, just like the number 8 above.<br />

10. Os artigos devem trazer, obrigatoriamente, em<br />

português e inglês, título, resumo (máximo de<br />

50 palavras) e palavras-chave (máximo de quatro),<br />

bem como sumário, somente em português.<br />

Articles, in a mandatory way, have to show a<br />

title – if the text is in english, the title is only in<br />

english – abstract (50 words maximum) and<br />

a summary.


RESENHA 215<br />

Segue exemplo./ See the example.<br />

A questão dos portadores de deficiência<br />

e sua concreta inserção no mercado de<br />

trabalho: o caso do Posto Ecobrasil em<br />

São Sebastião, SP<br />

The handicapped people issue and its concrete<br />

insertion on the work market: the EcoBrasil<br />

Gas Station case in São Sebastião, SP<br />

Antonio Celso Baeta Minhoto<br />

RESUMO<br />

A caracterização de um grupo social como<br />

minoria; as peculiaridades da situação do<br />

portador de deficiência como grupo<br />

minoritário; o caso do Posto EcoBrasil em<br />

São Sebastião e a inserção dos portadores de<br />

deficiência no mercado de trabalho local.<br />

Palavras-chave: portadores; deficiência;<br />

inserção social; trabalho.<br />

ABSTRACT<br />

The characterization of a social group as a<br />

minority; the handicapped people particular<br />

situation as a minority group; the EcoBrasil gas<br />

station case in São Sebastião and the<br />

handicapped people insertion on the local work<br />

market.<br />

Keywords: handicapped people; deficiency;<br />

social insertion; work.<br />

12. Serão aceitos artigos em português, espanhol, inglês<br />

e italiano. Nos textos em português, as citações<br />

em língua estrangeira deverão ser traduzidas pelo<br />

autor, sob sua responsabilidade pessoal.<br />

It will be accepted articles in portuguese,<br />

spanish, english and italian. Quotes in other<br />

languages must be translated by the author,<br />

under his-her personal responsibility.<br />

13. Logo ao final de seu nome, lançado no artigo, o<br />

autor deverá inserir uma nota de rodapé e, nesta,<br />

relatar seu currículo de modo sucinto, destacando<br />

formação acadêmica em nível de pós,<br />

atividades profissionais e acadêmicas e referência<br />

a, no máximo, um livro de sua autoria.<br />

As a first footnote, the author have to indicate<br />

his-her resume, in a brief version, with his-her<br />

principal and professional occupations and,<br />

if is the case, a reference of a book of his-her<br />

authorship.<br />

14. Todos os artigos devem ser enviados por email<br />

ao seguinte endereço eletrônico:<br />

antonio@baetaminhoto.com.br.<br />

All the papers must be sent to:<br />

antonio@baetaminhoto.com.br.<br />

15. Para os artigos publicados, constará, ao lado<br />

do(s) nome(s) do(s)(as) autor(es)(as), seu(s)<br />

respectivo(s) e-mails.<br />

For the published papers and beside the<br />

author(s) name(s), will be registered his(her)<br />

e-mail(s).<br />

17. O desatendimento de quaisquer dos requisitos<br />

aqui dispostos implicará a recusa liminar do<br />

trabalho.<br />

The non-observation of any of this<br />

requirements involves the immediately papers<br />

refusal.


216<br />

Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />

Anotações

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