REVISTA - USCS
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Universidade Municipal de São Caetano do Sul - Ano X - n. 17 - jul./dez. 2009 - ISSN 1518-594X<br />
Arbitraje de inversión y America Latina<br />
Francisco González de Cossío<br />
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?<br />
Taís Nader Marta e Henata Mariana de Oliveira Mazzoni<br />
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito<br />
Joana Teixeira de Mello Freitas<br />
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas<br />
Zilda Mara Consalter e Vinicius Dalazoana<br />
A relação entre dignidade humana e interesse público<br />
Zuenir de Oliveira Neves<br />
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias:<br />
uma análise comparativa entre a legislação brasileira e a inglesa<br />
José Carlos de Carvalho Filho<br />
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos<br />
Dora García Fernández<br />
Ius cogens<br />
Eber Betanzos<br />
<strong>REVISTA</strong><br />
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia<br />
Dora Elvira García<br />
Conceito de minorias e discriminação<br />
Jamile Coelho Moreno<br />
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF<br />
Carlos João Eduardo Senger e Wallace C. Dias<br />
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?<br />
Rafael José Nadim de Lazari e Gelson Amaro de Souza<br />
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade<br />
Thiago Felipe S. Avanci<br />
RESENHA<br />
Da estrutura à função: novos estudos da teoria do direito<br />
João Otávio Benevides Demasi
A Ratio do tipo Penal Ambiental e os Fundamentos da Constituição da República... I<br />
<strong>REVISTA</strong><br />
Antonio Celso Baeta Minhoto<br />
Coordenador Editorial<br />
ano X - n. 17 – jul./dez. 2009
II<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 16 – jan./jun. 2009<br />
Revista <strong>USCS</strong> Direito<br />
Uma publicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul<br />
Reitor<br />
Silvio Augusto Minciotti<br />
Pró-Reitores<br />
José Turíbio de Oliveira<br />
(Graduação)<br />
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(Pós-Graduação e Pesquisa)<br />
Joaquim Celso Freire Silva<br />
(Extensão)<br />
Marcos Sidnei Bassi<br />
(Administrativo e Financeiro)<br />
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(Educação à Distância)<br />
Coordenador Editorial<br />
Antonio Celso Baeta Minhoto<br />
Conselho Editorial<br />
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(<strong>USCS</strong>, São Caetano do Sul, Brasil)<br />
Antonio Celso Baeta Minhoto<br />
(<strong>USCS</strong>, São Caetano do Sul, Brasil)<br />
Dora García Fernández<br />
(Universidade Anahuac, México)<br />
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(Universidade Complutense de Madri, Espanha)<br />
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(USP, São Paulo, Brasil)<br />
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Miguel Reale Junior<br />
(USP, São Paulo, Brasil)<br />
Ano X – n. 17 - jul./dez. 2009<br />
Nilson Tadeu Reis Campos Silva<br />
(UEM, Maringá, Brasil)<br />
Pedro Correia Gonçalves<br />
(Universidade Católica de Lisboa,<br />
Lisboa, Portugal)<br />
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(UNITOLEDO,<br />
Presidente Prudente, Brasil)<br />
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(USP, São Paulo, Brasil)<br />
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(<strong>USCS</strong>, São Caetano do Sul, Brasil)<br />
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Coordenador do Curso de Direito<br />
Vander Ferreira de Andrade<br />
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de Publicações Acadêmicas<br />
Marcos Antonio Gaspar<br />
Jornalista Responsável<br />
Roberto Elísio dos Santos<br />
MTb 15.637<br />
Revisão<br />
Páginas & Letras Editora e Gráfica<br />
Produção e Impressão Gráfica<br />
Páginas & Letras Editora e Gráfica Ltda.<br />
Tiragem<br />
500 exemplares<br />
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A <strong>USCS</strong>, em suas revistas, respeita a liberdade intelectual dos autores, publica integralmente os originais que<br />
lhe são entregues, sem, com isso, concordar, necessariamente, com as opiniões expressas.
A Ratio do tipo Penal Ambiental e os Fundamentos da Constituição da República... III<br />
NOTA DA COORDENAÇÃO<br />
EDITORIAL<br />
A presente edição da Revista de Direito da Universidade Municipal de<br />
São Caetano do Sul será a última na modalidade impressa. Buscando um<br />
alinhamento com as práticas e os procedimentos mais atuais, a Coordenação, num<br />
trabalho conjunto envolvendo a gestão do curso e a Reitoria da Universidade,<br />
decidiu por bem veicular a revista em foco exclusivamente por meio eletrônico.<br />
Na próxima chamada de artigos (call of papers), procurar-se-á inserir as<br />
informações necessárias para que os autores e o público em geral possam acessar<br />
o endereço eletrônico da revista e, assim, viabilizar a submissão de seus artigos.<br />
A linha editorial foi mantida, havendo sempre uma atenção especial com a<br />
interdisciplinaridade e também com a transdisciplinaridade, o que, de acordo com<br />
esta Coordenação Editorial, enriquece as pesquisas dentro do universo jurídico e<br />
possibilita um debate mais extenso no âmbito do Direito que, sabidamente, enfrenta<br />
desafios contemporâneos cada vez mais amplos e profundos.<br />
Outro aspecto a ser mantido, uma característica da revista, é a busca pela<br />
divulgação de pesquisas de todas as partes do Brasil e também do exterior. Visões<br />
diferenciadas, muitas vezes acerca de um mesmo tema ou de temas semelhantes,<br />
conduzem a um tratamento igualmente mais abrangente dos assuntos estudados,<br />
o que parece ser um interessante benefício do ponto de vista científico.<br />
Para este número, com expressiva contribuição de vários autores, brasileiros<br />
e estrangeiros, constata-se a abordagem de muitos temas de interesse permanente<br />
para a área do Direito. Arbitragem, assassinos em série, dignidade humana e<br />
biodiversidade são algumas das questões abordadas nesta edição.<br />
Espera-se que os leitores aproveitem as reflexões de alto nível<br />
proporcionadas pelos artigos dos colaboradores aqui presentes, a quem se oferta<br />
um especial agradecimento.<br />
Coordenação Editorial
IV<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 16 – jan./jun. 2009
A Ratio do tipo Penal Ambiental e os Fundamentos da Constituição da República... V<br />
SUMÁRIO<br />
1. Arbitraje de inversión y America Latina<br />
Investment arbitration and Latin America<br />
Francisco González de Cossío........................................................... 7<br />
2. Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica?<br />
Serial killers: a legal or psychological matter?<br />
Taís Nader Marta e Henata Mariana de Oliveira Mazzoni .................... 21<br />
3. O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado<br />
democrático de direito<br />
The moral reasonable disagreement in plural society of the<br />
democratic state<br />
Joana Teixeira de Mello Freitas .......................................................... 39<br />
4. Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas<br />
Disregard of legal entity: an analysis under three perspectives<br />
Zilda Mara Consalter e Vinicius Dalazoana ........................................ 53<br />
5. A relação entre dignidade humana e interesse público<br />
The relationship between human dignity and public interest<br />
Zuenir de Oliveira Neves ..................................................................... 67<br />
6. Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias:<br />
uma análise comparativa entre a legislação brasileira e a inglesa<br />
International marine insurance contracts of goods: a comparative analysis<br />
between english and brazilian legislation<br />
José Carlos de Carvalho Filho ............................................................ 77<br />
7. El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos<br />
The human embryo or nasciturus as subject of rights<br />
Dora García Fernández....................................................................... 91<br />
8. Ius cogens<br />
Ius cogens<br />
Eber Betanzos ................................................................................... 109
VI<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 16 – jan./jun. 2009<br />
9. Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos:<br />
exclusión y justicia<br />
Overpassing minimum moral principles in human rights:<br />
exclusion and justice<br />
Dora Elvira García ............................................................................. 117<br />
10. Conceito de minorias e discriminação<br />
Concept of minorities and discrimination<br />
Concepto de las minorías y la discriminación<br />
Jamile Coelho Moreno ....................................................................... 141<br />
11. A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF<br />
The new juridical pyramid: the unfaithful trustee prison on the STF view<br />
Carlos João Eduardo Senger e Wallace C. Dias ............................... 157<br />
12. Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás<br />
desta tendência?<br />
Exegesis about the “relativization” of res judicata: what’s behind this<br />
tendency?<br />
Rafael José Nadim de Lazari e Gelson Amaro de Souza ................. 171<br />
13. A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da<br />
biodiversidade<br />
The environmental legal reserve as a tool on effective protection<br />
of biodiversity<br />
Thiago Felipe S. Avanci .................................................................... 187<br />
RESENHA<br />
Da estrutura à função: novos estudos da teoria do direito<br />
From structure to function: new studies of the theory of law<br />
João Otávio Benevides Demasi ........................................................ 211
Arbitraje de inversión y America Latina 7<br />
1<br />
Arbitraje de inversión y America Latina<br />
Investment arbitration and Latin America<br />
FRANCISCO GONZÁLEZ DE COSSÍO<br />
GONZÁLEZ DE COSSÍO ABOGADOS, S.C. (www.gdca.com.mx) Árbitro y abogado en casos nacionales e<br />
internacionales. Profesor de Arbitraje, Arbitraje de Inversión y Arbitraje Deportivo,<br />
Universidad Iberoamericana y Escuela Libre de Derecho. Anterior Coordinador del<br />
Comité de Arbitraje de la Barra Mexicana, Colegio de Abogados. Representante alterno de México<br />
ante la Comisión de las Naciones Unidas para el Derecho Mercantil Internacional.<br />
Miembro del INSTITUTO MEXICANO DEL ARBITRAJE, LONDON COURT OF INTERNATIONAL ARBITRATION,<br />
INTERNATIONAL ARBITRATION INSTITUTE y el Comité de Arbitraje y Solución de Controversias del<br />
Artículo 2022 del Tratado de Libre Comercio para América del Norte.Árbitro del Tribunal Arbitral du<br />
Sport, Lausanne, Suiza. E-mail para correspondência: fgcossio@gdca.com.mx.<br />
ABSTRACT<br />
From a corner of international law hails a discipline which has historically caused<br />
mischief: international investment law. The last few decades have witnessed an<br />
interesting development: the channeling of disputes stemming there from through a<br />
private dispute resolution mechanism: arbitration. Albeit successful in other realms,<br />
its luck in Latin American is still an open question. And as history would have it, the<br />
(incipient) Latin American flavor is becoming a matter of concern. This paper<br />
comments on it, providing insight as to the right course of action and the implications<br />
of failing to follow it.<br />
Keywords: arbitration, international law, investment disputes.
8<br />
1. INTRODUCCIÓN 1<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
El humano produce muchas cosas. Produce arte. Produce música. Produce<br />
cultura. Produce historia. Produce inventos y objetos para satisfacer sus necesidades.<br />
En general, produce bienes y, lamentablemente, también males.<br />
Una de sus producciones más importantes son las ideas. El motivo es doble;<br />
uno filosófico y uno práctico. Primero, al hacerlo, responde a sus inquietudes más<br />
profundas. Segundo, busca soluciones a problemas que enfrenta.<br />
La importancia de esta producción no debe subestimarse. Las ideas han<br />
mostrado ser las fuerzas más importantes de la historia de la humanidad.<br />
El arbitraje de inversión es una idea –y del género práctico. Busca resolver los<br />
problemas derivados del flujo internacional de activos, los cuales han mostrado ser serios.<br />
Sin embargo, la idea tiene detractores. No sólo eso, tiene implicaciones<br />
importantes para América Latina. A continuación se tratarán.<br />
2. EL ARBITRAJE COMO MÉTODO PARA RESOLVER<br />
LAS CONTROVERSIAS DE INVERSIÓN<br />
A. ¿Porqué el arbitraje?<br />
No es claro que el arbitraje sea la solución apropiada para resolver los problemas<br />
que derivan de la inversión internacional. Tres motivos vienen a la mente. Primero,<br />
constituye un acto de delegación en manos de particulares de la solución de problemas<br />
que involucran a soberanos. Segundo, por su historia. El fenómeno ha propiciado<br />
explotación, intervenciones, uso de la fuerza, presión diplomática y política. Y la<br />
historia quiere repetirse. Tercero, los temas ventilados tienen implicaciones públicas.<br />
Al ventilar la legalidad de actos de entes públicos se afecta una sociedad. Ante ello,<br />
la utilización de un mecanismo in natura privado levanta cejas.<br />
No debe. El motivo es triple:<br />
1. La ausencia de una alternativa;<br />
2. Es un contrapeso jurídico –no político– de actos gubernamentales;<br />
3. Su ausencia resultaría en:<br />
a) Impunidad;<br />
b) Escenarios perder-perder; y<br />
c) Presión política y diplomática.<br />
Explicaré porqué.<br />
1 Esta nota se nutre de GONZÁLEZ DE COSSÍO, F. Arbitraje de Inversión, Ed. Porrúa, México, D.F., 2009.
Arbitraje de inversión y America Latina 9<br />
B. Ausencia de alternativa<br />
La plausibilidad de la disciplina obedece al counterfactual. Sin la misma,<br />
existe un universo importante de problemas que no encontrarían una solución<br />
jurídica, sino política. Y la historia muestra que las soluciones políticas han tendido<br />
a ser desafortunadas, en ocasiones bélicas. Pero inclusive sin llegar a extremos, en<br />
ausencia de un cause jurídico, la única opción sería intervencionismo, presiones<br />
diplomáticas y menos flujos internacionales. 2<br />
Un resultado en el que todos pierden.<br />
Existe cierto paralelismo entre el derecho humanitario internacional y el<br />
derecho de la inversión. No sólo porque ambos son excepciones en que otorgan<br />
derecho de acción internacional a entes privados, 3<br />
sino por que ambos encuentran<br />
su raison d’être en una (lamentable) circunstancia: el uso incorrecto del poder<br />
público. Por ello, el arbitraje es un contrapeso internacional al poder. Sin el mismo<br />
no existirían desincentivos contra cierto tipo de conducta que la historia muestra<br />
que tiende a suceder. Su ausencia dejaría un vacío: cierto tipo de delitos<br />
internacionales quedarían impunes.<br />
Es cierto que éstas preocupaciones no carecen de respuesta. Podría por<br />
ejemplo citarse la disponibilidad de una reclamación ante la Corte Internacional de<br />
Justicia. A su vez, la política y presión internacional ofrecen una alternativa<br />
realpolitik. Sin embargo, son insuficientes. El recurso ante la Corte Internacional<br />
de Justicia requiere de consentimiento, el cual el Estado anfitrión puede simplemente<br />
negar –¡y sin reproche alguno! Y la alternativa fáctica (diplomacia) tiende a no ser<br />
adecuada. Sea por que el inversionista carezca de la suficiente influencia con su<br />
Estado como para persuadirlo de llevarla acabo, 4 o no se realice con la forma,<br />
energía o diligencia que el inversionista hubiera preferido. O por que se a efectuada<br />
por motivos distintos a los méritos del caso. Es decir, con la finalidad de lograr<br />
otros fines. Y ello sin olvidar que, si bien el Estado de origen podría bajo derecho<br />
internacional consuetudinario enderezar una reclamación internacional, lo cierto es<br />
que no tienen que hacerlo. 5 Luego entonces, por técnica jurídica, es necesario que<br />
sea el interesado quien pueda recurrir.<br />
2 Admito que el nexo régimen de inversión-existencia de la inversión aún es discutido por economistas.<br />
3 Tradicionalmente, bajo derecho internacional sólo los Estados y organismos internacionales tienen<br />
derecho de acción. Las personas (físicas o morales) son destinatarios del mismo, como lo son los<br />
mares, espacio aéreo, el territorio, ríos, etcétera.<br />
4 Los motivos de ello pueden ser diversos. Por ejemplo, mientras que los grupos de interés grandes<br />
tendrán fácil acceso, los pequeños no. A su vez, el Estado cuya nacionalidad comparte el inversionista<br />
puede ser renuente a querer friccionar su relación con el Estado receptor de la inversión. Etcétera.<br />
5 Lo que es más, en ocasiones se han presentado reclamaciones internacionales por motivos que en<br />
verdad distan de tener en mente a la víctima de los actos recurridos.
10<br />
C. Beneficios accesorios<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Existen además beneficios colaterales. Uno importante es la gradual mejora<br />
del trato in genere que las autoridades dan no sólo a inversionistas extranjeros,<br />
sino a la población en general. 6 El motivo no sólo es la creciente existencia de<br />
inversión extranjera en diversas ramas, sino que es más fácil adoptar a nivel nacional<br />
prácticas profilácticas que siempre eliminen responsabilidad, que selectivamente<br />
tratar mejor a entidades con inversión foránea.<br />
Entendido lo anterior se observa cómo el derecho y arbitraje de inversión<br />
tiene una función ex ante, no sólo ex post. Y no debe menospreciarse, pues puede<br />
ser importante. La experiencia muestra que, sensibilizados de las implicaciones<br />
internacionales que cierta conducta gubernamental (estatal o municipal) puede<br />
tener, las autoridades proceden con más cuidado. Como resultado, la disciplina se<br />
constituye en un auténtico contrapeso de la utilización abusiva del poder público. 7<br />
Existen también beneficios desde la perspectiva estatal. Los Estados no<br />
sólo son importadores de capital; también exportan. Por ende, la disciplina es<br />
recíproca: obliga y protege. Obliga al Estado en tanto es destinatario de capital<br />
extranjero; y lo protege en tanto que es emisor del mismo.<br />
3. EXPERIENCIA DE AMÉRICA LATINA<br />
CON EL ARBITRAJE DE INVERSIÓN<br />
A. El pasado: Doctrinas Calvo, Drago y Cárdenas<br />
Los problemas de inversión extranjera no son nuevos. Un episodio mexicano<br />
puede refrescar la memoria. Cuando en 1862 Juárez suspendió pagos de deuda<br />
extranjera, propició la furia de España, Francia e Inglaterra, cristalizando el Tratado<br />
de Londres, que propició la intervención de 1863. Dirk Raat lo describe así: 8<br />
Con las arcas vacías, Juárez se vio obligado a decretar una suspensión de pagos<br />
de deuda extranjera por dos año. … mientras tanto, España, Francia e Inglaterra<br />
6 Lo que un experto ha denominado un “compliance pull”. (JAN PAULSSON. Enclaves of Justice,<br />
Transnational Dispute Management, June 2007, p. 12.) En sus palabras “…in Mexico … in the<br />
wake of NAFTA we are told that officials have developed the salutary instinct of avoiding conduct<br />
which might be criticized in an international forum: a direct case of compliance pull to the benefit<br />
not only of foreigners, but –perhaps more importantly– also to the benefit of local citizens. …”.<br />
7 Lo anterior no debe propiciar la idea que los beneficios son sólo del lado del inversionista; y mucho<br />
menos que el Estado siempre es el ‘malo de la película’. La experiencia internacional muestra<br />
frecuentes instancias de abuso del inversionista.<br />
8<br />
DIRK RAAT, William, Mexico, from Independence to Revolution, 1810-1910, University of Nebraska,<br />
1982, p. 146-148.
Arbitraje de inversión y America Latina 11<br />
acordaron “darle una lección a México”. Mediante el Tratado de Londres se<br />
comprometieron a intervenir para proteger sus intereses. En enero de 1863 el<br />
primer despacho desembarcó en Veracruz … bajo el comando del General Juan<br />
Prim. … El país fue ocupado por fuerzas extranjeras …<br />
[With the coffers empty, Juárez was forced to decree a two-year suspension of<br />
payments on foreign debts. … Meanwhile, Spain, France and England had<br />
agreed to “teach Mexico a lesson” by the Treaty of London undertook to<br />
intervene to project their interests. In January 1863 the first detachments<br />
landed at Veracruz … under the command of General Juan Prim. … The country<br />
was occupied with foreign forces …]<br />
Este tipo de actos se repitieron en países diversos de América latina. Ello<br />
produjo un choque no sólo de fuerzas, sino de ideas. Mientras que los extranjeros<br />
defendía que su inversión debía contar con un trato congruente con un estándar<br />
externo establecido por el derecho internacional, los Estados latinoamericanos<br />
insistían que sus propias leyes y constituciones, al garantizar tratamiento igualitario<br />
a los inversionistas extranjeros, satisfacían los requisitos del derecho internacional.<br />
Tres ideas brotaron la Doctrina Calvo, la Doctrina Drago y la Doctrina Cárdenas.<br />
América Latina dio tres respuestas al debate ideológico indicado. A<br />
continuación se resumirán.<br />
1. Doctrina Calvo<br />
La Doctrina Calvo, que lleva el nombre de su padre, Carlos Calvo, Ministro<br />
de Relaciones Exteriores de Argentina, 9 se fundamenta en dos principios: 10 (a) los<br />
Estados soberanos, estando libres y siendo independientes e iguales entre sí, gozan<br />
del derecho a estar libres de toda interferencia por parte de otros Estados, sea<br />
diplomática o por la fuerza; y (b) los extranjeros no pueden ser titulares de más<br />
derechos, privilegios o prerrogativas que aquéllos concedidos a nacionales, por lo<br />
que no pueden accionarse más que en tribunales y autoridades locales. 11<br />
De esta doctrina se derivó el instrumento que la implementa: la Cláusula<br />
Calvo, definida como “la renuncia voluntaria por un contratante particular a<br />
recurrir a la protección diplomática de su gobierno en cualquier causa<br />
9 En su libro Le Droit International (Vol. 6, 5ª edición, 1885, p. 231), en donde dice que los extranjeros<br />
que se establezcan en un país cuentan con los mismos derechos de protección que los nacionales,<br />
pero no pueden solicitar protección adicional.<br />
10<br />
SHEA, DONALD R. The Calvo Clause, A Problem of Inter-American and International Law and<br />
Diplomacy, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1955, p. 19.<br />
11 En Le droit international théorique et pratique, quinta edición, París, 1986. Citado por Shea, op. cit.<br />
p. 18.
12<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
relacionada con su contrato”. La Cláusula Calvo encontró eco en la legislación<br />
(constitucional y secundaria) en diversos países latinoamericanos. En el caso<br />
mexicano fue acogida en el artículo 27 12 y vasta legislación secundaria. 13<br />
2. Doctrina Drago<br />
La Doctrina Drago lleva el nombre de su padre, el Ministro de Relaciones<br />
Exteriores de Argentina, Luis María Drago, quien, mediante nota dirigida el 29 de<br />
diciembre de 1902 al plenipotenciario argentino en Estados Unidos, Martín García<br />
Merou, condena la intervención anglo-italo-germana en Venezuela para el cobro<br />
de ciertas deudas contractuales y públicas no satisfechas, que dio origen a un<br />
bloqueo pacífico, hundimiento de una escuadra venezolana, bombardeo de puertos<br />
y otras medidas violentas. 14 En su carta dice:<br />
…el cobro similar de los empréstitos supone la ocupación territorial; significa la<br />
supresión, o subordinación, de los gobiernos locales en los países a que se<br />
extiende […] contrariando visiblemente los principios […] proclamados por las<br />
naciones de América y muy particularmente la Doctrina Monroe, con tantos<br />
celos sostenida en tanto tiempo por Estado Unidos…<br />
El principio defendido: la deuda pública no justifica intervención armada. 15<br />
3. Doctrina Cárdenas<br />
El presidente mexicano Lázaro Cárdenas, en un discurso pronunciado el 10<br />
de septiembre de 1938, formuló una doctrina jurídica que guarda relación con estos<br />
problemas, y que algunos sostienen que es una teoría jurídica más profunda<br />
12 Fracción I del Artículo 27 de la Constitución Federal de los Estados Unidos Mexicanos, que dice<br />
“Sólo los mexicanos por nacimiento o por naturalización y las sociedades mexicanas tienen derecho<br />
para adquirir el dominio de las tierras, aguas y sus accesiones o para obtener concesiones de<br />
explotación de minas o aguas. El Estado podrá conceder el mismo derecho a los extranjeros,<br />
siempre que convengan ante la Secretaría de Relaciones en considerarse como nacionales respecto<br />
de dichos bienes y en no invocar, por lo mismo, la protección de sus gobiernos por lo que se refiere<br />
a aquéllos; bajo la pena, en caso de fallar al convenio, de perder en beneficio de la nación, los<br />
bienes que hubieren adquirido en virtud de lo mismo.”<br />
13 Artículo 2º de la Ley Orgánica de la Fracción I del artículo 27 de la Constitución y artículos 2º y 4º<br />
de su Reglamento; artículo 3º de la abrogada Ley para Promover la Inversión Mexicana y Regular la<br />
Inversión Extranjera y artículo 31 de su Reglamento; artículo 33 de la abrogada Ley de Nacionalidad<br />
y Naturalización; artículo 12 de la Ley de Vías Generales de Comunicación; en la Ley de Instituciones<br />
de Fianzas; Ley General de Instituciones y Sociedades Mutualistas de Seguros; y artículo 6º de la<br />
Ley de Pesca.<br />
14 Dicha doctrina fue expuesta también ante el Congreso Panamericano y las Conferencias de la Haya<br />
en 1917.<br />
15<br />
QUEZADA, Ernesto. La Doctrina Drago, su esencia y concepto amplio y claro, Buenos Aires, 1919, p. 4.
Arbitraje de inversión y America Latina 13<br />
escrupulosa que la Calvo y la Drago. 16 En su esencia, niega la extraterritorialidad<br />
de la ciudadanía y nacionalidad buscando simplemente suprimir de origen todas las<br />
controversias jurídicas y políticas que derivan de antaño precisamente por el efecto<br />
extraterritorial de uno y otro de ambos estatutos personales. Asevera que la<br />
ciudadanía y la nacionalidad son estatutos que deben ser territoriales, deben de<br />
carecer de extraterritorialidad. La persona (física o moral) que emigra a suelo<br />
extraño debe contar con las facilidades y garantías necesarias para adquirir el<br />
estatuto de la nacionalidad local, en absoluta similitud e igualdad con los derechos<br />
y obligaciones de los nacionales del país hospitalario. 17<br />
B. El presente<br />
En el presente, existen varios factores que acentúan la importancia del<br />
arbitraje de inversión en América Latina.<br />
1. El marco legal<br />
El arbitraje en América Latina tiene un presente importante. Como lo hace<br />
ver van den Berg: 18<br />
En el arbitraje de inversión latinoamericano los números son impresionantes: de<br />
los más de 2,600 tratados bilaterales que existen actualmente, aproximadamente<br />
el 20% incluyen a un país de la región. Adicionalmente, diversos países han<br />
concluido o se encuentran negociando Tratados de Libre Comercio con capítulos<br />
sobre inversión (ej., el Tratado de Libre Comercio entre República Dominicana,<br />
Estados Unidos y Centroamérica (CAFTA, por sus iniciales en inglés); Chile y<br />
Estados Unidos; Colombia y Estados Unidos).<br />
El ámbito interamericano muestra una rica pluralidad de instrumentos que<br />
aluden al arbitraje de inversión. Los resultados empiezan a verse. Mientras que<br />
Argentina tiene 48 casos, México tiene 18, Ecuador 14 y Venezuela 9. A su vez,<br />
Bolivia, Perú, Costa Rica y Chile están involucrados en ello. 19<br />
2. El Nacionalismo y el arbitraje de inversión<br />
Una de las cosas más importantes que hace una ideología es proveer un<br />
sentimiento de quienes somos, para luego darnos orgullo de ello. Al hacerlo se<br />
16<br />
MENDOZA, Salvador. La Doctrina de Cárdenas, antecedentes y comentarios, Ediciones Botas,<br />
México, 1939, p. 29.<br />
17 Ibid, p. 43.<br />
18<br />
GONZÁLEZ DE COSSÍO, Francisco. Arbitraje de Inversión, Ed. Porrúa, México, D.F., 2009, p. vii.<br />
19 Ver: www. unctad.org / iia-dbcases.
14<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
responde una pregunta fundamental de la teoría política: porqué debemos optar por<br />
convivir –y cómo– en lugar vivir aislados. Como dice Finlayson: 20<br />
Las ideologías no solo son maneras de pensar sobre el mundo sino maneras de<br />
estar en él. Nos dan una sensación de lo que está sucediendo, organizan nuestras<br />
percepciones de ciertas cosas y nos orientan en ciertos sentidos<br />
[Ideologies are not just ways of thinking about the world but ways of being<br />
within it. They give us a sense of what is going on, organise our perceptions of<br />
certain things and orient us in certain directions.]<br />
El nacionalismo es una ideología. 21 Desafortunadamente, la respuesta del<br />
nacionalismo es hostil hacia ‘los otros’ (quienes no son parte de ‘nosotros’). Además,<br />
es exclusionista.<br />
El nacionalismo es una ideología que obedece a factores sociales que rebasan<br />
esta nota. Lo relevante a mencionar es que el nacionalismo ha brotado en América<br />
Latina. Y ello ha tocado al arbitraje de inversión. Respetuoso de los motivos de la<br />
ideología, deseo hacer notar sus consecuencias, centrándome en dos: económicas<br />
y sociológicas.<br />
a) Efectos económicos del aislacionismo<br />
El efecto económico de optar por autarquía es el siguiente:<br />
1. Oferta: oportunidades perdidas del lado de la oferta;<br />
2. Demanda: oportunidades perdidas del lado de la demanda;<br />
3. Estado: menos crecimiento económico;<br />
4. Consumidor: menos opciones, menor diversidad de productos, menos libertad.<br />
Explicaré porqué.<br />
Aunque la autarquía financiera es una opción, visualicemos los resultados<br />
de prohibir el fenómeno.<br />
Suponiendo que fuera posible insular a cada país evitando flujos internacionales<br />
de capital, el resultado sería que algunos países tendrían más capital del que<br />
necesitan, mientras que otros tendrían menos. 22 Ello arrojaría un doble resultado.<br />
20 FINLAYSON, Alan. Nationalism, en ECCLESHALL, Robert. Political Ideologies, Routledge, London, p. 103.<br />
21 Kedourie define al nacionalismo como: “A doctrine invented in Europe at the beginning of the nineteenth<br />
century … the doctrine holds that humanity is naturally divided into nations, that nations are known by<br />
certain characteristics which can be ascertained, and that the only legitimate type of government is<br />
national self-government”. (KEDOURIE, Elie. Nationalism, Hutchinson, London, 1960, p. 12.)<br />
22 Esta primer premisa es incuestionable.
Arbitraje de inversión y America Latina 15<br />
Los países superavitarios enfrentarían un retorno decreciente de su capital, y los<br />
países con capital insuficiente mostrarían oportunidades de negocio perdidas. Esto<br />
último fomentaría apetito de capital, reflejando retornos crecientes a los ingresos<br />
marginales de inversión, los cuales, en nuestra hipótesis, estarían indisponibles.<br />
Es decir, mientras que a unos les sobrará a otros les faltará. Cuando algo<br />
sobra, su precio baja. Cuando algo escasea, su precio sube. Por ende, en un<br />
mundo ausente de intercambio de flujos internacionales se observará el (lamentable)<br />
escenario de oportunidades perdidas en ambos bandos: tanto la oferta como la<br />
demanda. Un escenario en el que nadie gana.<br />
Entendida esta realidad se percibe porqué conviene que ambos grupos de países 23<br />
comercien con capital: ambos estarán en mejores circunstancias si el capital puede<br />
moverse de un lado a otro. Así no se ‘desperdician’ oportunidades de negocio. Por ello,<br />
aunque existan dificultades, la solución no puede (no debe) ser erradicar el fenómeno.<br />
Lo anterior desde una perspectiva macro. Pero la perspectiva micro puede<br />
ser aún más persuasiva. Los beneficios del fenómeno son defendibles desde dos<br />
perspectivas: libertad y bienestar.<br />
Desde una perspectiva de libertad, es preferible que los individuos puedan<br />
mover su capital como les plazca. Desde la perspectiva de bienestar, es mejor<br />
tener opciones que carecer de las mismas. Si algo logra el comercio es que amplía<br />
oportunidades. Cuando las barreras caen, la gente de ambos lados de las fronteras<br />
incrementa su bienestar al encontrar más oportunidades para consumir diferentes<br />
tipos de productos (tanto en calidad como en precio). 24 Pueden decidir consumir<br />
productos que no han producido pagándolos con el superávit generado por los<br />
productos que han producido y que no desean consumir, si creen que ello les<br />
favorece. De no ser el caso, simplemente no lo hacen. De nuevo, más opciones.<br />
La misma lógica aplica a las finanzas internacionales. De la misma manera<br />
en que una economía puede consumir únicamente lo que produce, puede invertir<br />
únicamente lo que ahorra. Ni más; ni menos. El comercio en capital permite que<br />
los países separen su ahorro de sus opciones de inversión. Pueden invertir más de<br />
lo que ahorran mediante préstamos del extranjero, o pueden invertir menos de lo<br />
que ahorran prestando la diferencia (su superávit). Los cambios en el precio del<br />
capital asegurarán que la oferta y demanda global se conjugue eficientemente<br />
23 Deficitarios y superavitarios.<br />
24 El parangón con el comercio en bienes y servicios es no sólo obligado sino conveniente puesto que<br />
en esencia lo que está ocurriendo es justamente eso: se está comerciando con un bien. Mientras que<br />
en el caso de comercio de bienes y servicios es un producto o servicio, en el caso de inversión<br />
foránea es capital.
16<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
como ocurre con los precios de los productos importados y exportados, llevando a<br />
un desarrollo global. A un equilibrio óptimo.<br />
Debo admitir que hay quien asevera que no se ha demostrado una correlación<br />
entre la existencia de tratados y arbitraje de inversión y el fomento de la inversión. 25 El<br />
argumento merece dos respuestas. Primero, dado lo reciente del fenómeno, aún no se<br />
genera información suficiente para conclusivamente demostrar el nexo. 26 Segundo,<br />
dicho argumento empírico adolece de algo: no hay contra qué compararlo. No sabemos<br />
cuánta inversión hemos perdido por el simple hecho de que no nos hemos adherido al<br />
CIADI. Y en cambio, el argumento conceptual tiene fuerza: la comunidad internacional<br />
es sofisticada. Al momento de hacer el estudio de la viabilidad de una inversión, dentro<br />
del elemento “riesgo” factora el riesgo político, el cual es reducido mediante la<br />
disponibilidad de arbitraje de inversión. En caso de que el argumento conceptual no<br />
persuadiera al escéptico, recurriría a un empírico: las instancias de conducta estratégica<br />
por inversionistas para obtener protección de tratados. 27<br />
b) Efectos sociales del nacionalismo<br />
Un ejemplo histórico ilustra el impacto de optar por una respuesta nacionalista.<br />
El error más grave en materia de relaciones internacionales que un Presidente<br />
Estadounidense ha cometido fue la firma de la Smoot-Hawley Tariff Act de junio<br />
de 1930 que elevó los aranceles de Estados Unidos en forma importante. 28 El<br />
efecto que tuvo fue nada menos que desastrozo. Invitó retorsión de economías<br />
extranjeras llevando, lo que de otra manera hubiera sido un declive económico<br />
normal, a una depresión mundial. La reducción drástica en el comercio internacional<br />
y la actividad economía redujo la influencia de los moderados frente a los nacionalistas<br />
en Japón y pavimentó la victoria de los Nazis en Alemania en 1932. Japón invadió<br />
China en 1931, estableciendo el clima que llevó a la Segunda Guerra Mundial. 29<br />
Como lo explica un experto: 30<br />
25 Además, existen jurisdicciones que reciben inversión sin haber ratificado siquiera un sólo tratado de<br />
inversión (v.gr., Brasil).<br />
26 Aunque han existido algunos. El autor tiene conocimiento de cuatro, que arrojan resultados<br />
contradictorios o no conclusivos.<br />
27 Las cuales describo genéricamente por razones de confidencialidad.<br />
28 Esta legislación fue promulgada por motivos nacionalistas y proteccionistas.<br />
29<br />
JACKSON, John H., WILLIAM J. Davey y Alan O. SYKES, Jr., Legal Problems of International Economic<br />
Relations, Third Edition, West Publishing Co., St. Paul Minn. 1995, pgs. 4 y 38.<br />
30<br />
COOPER, Richard N. Trade Policy and Foreign Policy, U.S. Trade Policies in a Changing World<br />
Economy, Robert Stern Ed., The Massachussets Institute of Tecnology, 1987, pgs. 291-292. (“Valuable<br />
lessons were learned from the Smoot-Hawley tariff experience by the foreign policy community: the<br />
threat of tariff retaliation is not always merely a bluff; tariffs do influence trade flows negatively; a<br />
decline in trade can depress national economies; economic depression provides fertile ground for
Arbitraje de inversión y America Latina 17<br />
La experiencia de los aranceles Smoot-Hawley enseñó lecciones importantes a<br />
la comunidad política internacional: la amenaza de retorsión arancelaria no<br />
siempre es vacua; los aranceles influyen negativamente sobre los flujos de<br />
comercio; una reducción de comercio puede deprimir economías nacionales;<br />
una depresión genera tierra fértil para (pseudo) soluciones políticas radicales; y<br />
los radicales políticos con frecuencia buscan aventuras (militares) para distraer<br />
la atención de sus fracasos en la economía nacional. Las semillas de la Segunda<br />
Guerra Mundial, tanto en el Lejano Oriente como en Europa, fueron sembradas<br />
con la firma de los aranceles Smoot-Hawley.<br />
En un discurso el (entonces) Director de la Oficina de Asuntos Económicos<br />
del Departamento de Estado de Estados Unidos (Director of the Office of Economic<br />
Affaires of the Department of State) Harry Hawkins expuso: 31<br />
Hemos aprendido que, cuando un país es hambreado económicamente, su gente<br />
está más que dispuesta a seguir al primer dictador que surja y les prometa a<br />
todos empleos. Los conflictos comerciales invitan no-cooperación, sospecha,<br />
amargura. Las naciones que son enemigos económicos son improbables a<br />
permanecer como amigos por mucho tiempo.<br />
Si deseamos seguir la (aguda) advertencia del gran historiador Jorge<br />
Santayana 32 y evitar revivir las historia, debemos entender que el comercio internacional,<br />
y su fenómeno de moda – la Globalización – es positiva tanto por razones<br />
económicas como sociales. 33<br />
3. Rechazos incipientes<br />
Un resultado observable en la región al fenómeno del arbitraje de inversión<br />
es la denuncia del Convenio CIADI por Argentina, Bolivia y Ecuador.<br />
a) Argentina<br />
Argentina es actualmente parte de 48 demandas de arbitraje de inversión.<br />
Los montos son impactantes, como también lo son sus consecuencias (de prosperar).<br />
politically radical nostrums; and political radicals often seek foreign (military) adventures to distract<br />
domestic attention away from their domestic economic failures. The seeds of World War II, in both<br />
Far East and in Europe, were sown by Hoover’s signing of the Smoot-Hawley tariff.”)<br />
31 U.S. Department of State, Commercial Policy Series 74, pg. 3 (Pub. No. 2104, 1944). (“We’ve seen<br />
that when a country gets starved out economically, its people are all too ready to follow the first<br />
dictator who may rise up and promise them all jobs. Trade conflict breeds noncooperation, suspicion,<br />
bitterness. Nations which are economic enemies are not likely to remain political friends for long.”)<br />
32 Conocido por su lema: “quien desconoce la historia está condenado a revivirla”.<br />
33 Al respecto, ver GONZÁLEZ DE COSSÍO, Francisco. Estado de Derecho: Un Enfoque Económico, Ed.<br />
Porrúa, 2009, p. 82 et seq.
18<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
El origen de las demandas son las medidas que Argentina tomó en 2002 para<br />
enfrentar su crisis financiera.<br />
Mucho podría decirse al respecto. Si bien no es el lugar (ni el momento,<br />
pues muchas reclamaciones están en curso) para pronunciarse sobre la rectitud de<br />
las demandas y laudos que a la fecha existen, es válido decir que la adhesión al<br />
CIADI no es la fuente del problema, sino una solución. De no existir la opción<br />
CIADI, el resultado sería frustración, probablemente impunidad, presión política y<br />
diplomática internacional, aún más pérdida de inversión y bienestar, y ostracismo<br />
internacional. La aseveración no presupone responsabilidad. El autor no es quien<br />
para emitir una opinión sobre ello (para eso están los árbitros). Pero no dejo de ver<br />
el beneficio de que “alguien” pueda imparcialmente pasar juicio sobre ello. Y por<br />
ello aplaudo el que exista el mecanismo. La opción sería la ley de la selva. 34<br />
b) Bolivia<br />
Bolivia denunció el Convenio CIADI el 2 de mayo de 2007 dejando de ser<br />
parte el 3 noviembre de 2007. Sus motivos oficiales son que considera que el<br />
CIADI favorece a los inversionistas sobre los Estados anfitriones, que la función<br />
del Banco Mundial hace incompatible el que administre arbitrajes, la confidencialidad,<br />
los árbitros (que pueden también actuar como abogados de parte), el contenido<br />
que se la ha dado a ciertas disciplinas y que “no hay caso alguno en que el Banco<br />
Mundial haya sancionado a inversionistas por no cumplir con sus contratos”.<br />
c) Ecuador<br />
El 12 de junio de 2009 el poder legislativo de la República de Ecuador votó a<br />
favor de denunciar el Convenio CIADI, del cual era parte desde febrero de 2001.<br />
Los motivos esgrimidos son dos. Primero, para cumplir con la (recientemente creada)<br />
prohibición contenida en el artículo 422 de su Constitución que dice “no se podrá<br />
celebrar tratados o instrumentos internacionales en los que el Estado ecuatoriano<br />
ceda jurisdicción soberana a instancias de arbitraje internacional, en controversias<br />
contractuales o de índole comercial entre el Estado y personas naturales o jurídicas<br />
34 Además, existe un lado positivo. Como bien dice el dicho, no hay mal que por bien no venga. Y las<br />
crisis internacionales no son una excepción: generan conocimiento. Son fuentes de Derecho. Casos<br />
distintos pueden ser citados en apoyo de la aseveración. En el caso Argentino, los casos han versado<br />
sobre temas otrora abiertos e importantes. Por ejemplo, los (controvertidos) requisitos de jurisdicción,<br />
las cláusulas paraguas, el agotamiento de recursos locales (incluyendo los polémicos “fork in the<br />
road”), la diferenciación entre reclamaciones contractuales e internacionales, el alcance de las cláusulas<br />
de nación más favorecida, el contenido de trato mínimo, trato justo y equitativo, plena protección<br />
y seguridad, medidas equivalentes a expropiación, la responsabilidad internacional del Estado, el<br />
estado de emergencia, medidas de salvaguarda, estado de necesidad y sus consecuencias<br />
internacionales. Y esto podría ser la punta del iceberg.
Arbitraje de inversión y America Latina 19<br />
privadas…”. Segundo, para “defender la soberanía de Ecuador, el manejo de sus<br />
relaciones económicas con otros estados o empresas de otras nacionalidades”.<br />
Los intercambios en la Asamblea Nacional al ventilar la conveniencia de<br />
denunciar 35 incluyeron preocupación por los montos por los que había sido demandada.<br />
Ya desde octubre de 2007 había indicado que no aceptaría que la jurisdicción del<br />
CIADI abarcara controversias relativas al manejo de sus recursos naturales no renovables,<br />
entendiéndose por tales (pero no limitados a) recursos mineros e hidrocarburos.<br />
Irónicamente, Ecuador –si bien demandado con frecuencia– había sido<br />
victorioso en la mayoría de los casos. 36 El paso guarda consistencia con retórica<br />
nacionalista observable durante elecciones recientes.<br />
e) Canadá<br />
Pero no todo es rechazo. Canadá es un ejemplo alternativo que debe seguirse.<br />
El motivo es su trasfondo: la estructura constitucional de Canadá hace que la adhesión<br />
a un convenio internacional de tal envergadura tenga implicaciones locales importantes.<br />
Dado que Canadá está compuesto por provincias y territorios independientes, ello fue<br />
difícil, tanto jurídica como políticamente. 37 Implicó casi 20 años de negociaciones entre<br />
el gobierno federal, provincias y territorios. 38 Como resultado, el 15 de diciembre de<br />
2006 Canadá se convirtió en el signatario 155 del Convenio CIADI.<br />
C. El futuro del arbitraje de inversión<br />
George Bernard Shaw quien solía decir: ‘nunca pronostiques, y mucho menos<br />
sobre el futuro’. 39 Desobedeceré su sugerencia.<br />
El arbitraje de inversión ha llegado para quedarse. Y ello es plausible. A<br />
continuación fundamento ambas aseveraciones.<br />
Es de preverse que el éxito del arbitraje de inversión continúe no sólo en el<br />
futuro inmediato, sino el mediato. El motivo es doble: la infraestructura jurídica<br />
mundial existente y el corpus de casos y literatura.<br />
A la fecha, existen más de 2680 tratados de inversión, y los Estados siguen<br />
negociando y celebrándolos. A su vez, el CIADI nunca ha sido más exitoso. 40<br />
35 Es al legislativo ecuatoriano a quien le corresponde denunciar bajo el artículo 419 de su Constitución.<br />
36 Además que la denuncia ocurrió semanas después de una importante y publicitada victoria en una<br />
demanda por más de dos mil millones de dólares.<br />
37 Inter alia, dicho acto conlleva la necesidad de emitir una ley uniforme que facilite la aplicación y<br />
armonice las leyes canadienses en concordancia con dicha convención.<br />
38 La complejidad se magnificó dado que el Convenio CIADI carece de cláusula federal.<br />
39 La cita no es textual.<br />
40 De hecho, podría decirse que es víctima de su propio éxito.
20<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Existen casi 300 laudos de arbitraje de inversión. Y la mayoría de ellos es de la<br />
última década. Ello hace de esta materia el área más dinámica del derecho internacional.<br />
Además, constituye una rica masa crítica de conocimiento sobre la materia. Y la<br />
literatura juega un papel importante. Se observa que cada laudo es disectado y comentado<br />
por expertos en todas las esquinas del planeta–a veces en forma ardua. 41 Ello propicia<br />
una dialéctica mundial que enorgullecería a Georg Hegel, y que ha tenido como resultado<br />
la creación de una verdadera ciencia especializada.<br />
Por lo anterior, es predecible que el derecho y arbitraje de inversión no sólo<br />
permanezca con nosotros, sino que se acentúe tanto en volumen como contenido.<br />
Si el pronóstico es acertado, todos saldremos ganando.<br />
REFERENCIAS<br />
COOPER, Richard N. Trade policy and foreign policy. In: STERN, Robert M. (Ed.).<br />
US trade policies in a changing world economy. Cambridge, MA: The Massachussets<br />
Institute of Tecnology – MIT Press, 1987.<br />
DIRK RAAT, William. Mexico, from independence to revolution, 1810-1910.<br />
Lincoln, NE: University of Nebraska Press, 1982.<br />
ECCLESHALL, Robert; GEOGHEGAN, Vincent; LLOYD, Moya; MACKENZIE, Iain & WILFORD,<br />
Rick. Political ideologies: an introduction. 2. ed. London: Routledge, 1994.<br />
GONZÁLEZ DE COSSÍO, Francisco. Arbitraje de inversión. México, DF: Porrúa, 2009.<br />
______. Estado de Derecho: un enfoque económico. México, DF: Porrúa, 2007.<br />
JACKSON, John H.; DAVEY, William J. & SYKES JR., Alan O. Legal problems of<br />
international economic relations. St. Paul, MN: West Publishing Co., 1995.<br />
KEDOURIE, Elie. Nationalism. London: Hutchinson, 1960.<br />
MENDOZA, Salvador. La doctrina de Cárdenas: texto, antecedentes y comentarios.<br />
1. ed. Ciudad de México: Botas, 1939.<br />
PAULSSON, Jan. Enclaves of Justice. Transnational Dispute Management, v. 4, n.<br />
5, September, 2007.<br />
QUEZADA, Ernesto. La doctrina Drago, su esencia y concepto amplio y claro. Revista<br />
de la Universidad de Buenos Aires, tomo XLIII, p. 355 y siguientes, Buenos<br />
Aires, 1919.<br />
SHEA, Donald R. The Calvo Clause, a problem of inter-american and international<br />
law and diplomacy. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 1955.<br />
41 Expertos de diferentes jurisdicciones son tan prestos a aplaudir como a criticar laudos que distan de<br />
reflejar los paradigmas más aceptados sobre la materia.
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 21<br />
2<br />
Assassinos em série:<br />
uma questão legal ou psicológica?<br />
Serial killers: a legal<br />
or psychological matter?<br />
TAÍS NADER MARTA<br />
Advogada; professora universitária; bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru –<br />
Instituição Toledo de Ensino – FDB/ITE; especialista em Direito Processual e em Direito<br />
Constitucional, pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. Atualmente, cursa pós-graduação<br />
stricto sensu (Mestrado em Direito), tendo como linha de pesquisa “Sistema Constitucional de<br />
Garantias”, sob a coordenação do Livre-Docente Luiz Alberto David de Araujo,<br />
no Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino – ITE, em Bauru.<br />
E-mail para correspondência: tais@barbosamarta.adv.br.<br />
HENATA MARIANA DE OLIVEIRA MAZZONI<br />
Professora universitária; bacharel em Psicologia e Direito, pela Universidade do<br />
Sagrado Coração – USC, de Bauru. E-mail para correspondência: h.mazzoni@ig.com.br.<br />
RESUMO<br />
A pessoa nasce ou se torna criminosa? Nasce ou se torna um serial killer, em razão<br />
do meio em que vive e de seus traumas de infância? Isso é um mistério na psiquiatria,<br />
e os estudiosos, em geral, ainda não conseguiram resolvê-lo nem entrar num<br />
consenso sobre ele. Entretanto, não pode ser aceita a simplista explicação de que o<br />
indivíduo nasceu assim e, não tendo pedido para nascer assim, não tem culpa e,<br />
portanto, deve ser desculpado e absolvido quando comete crimes cruéis.<br />
Palavras-chave: assassinos seriais, loucura, crueldade, psicóticos, psicopatas.<br />
ABSTRACT<br />
Can a person be born or become a criminal? Born or become a serial killer because of<br />
the environment they live and their childhood trauma? This is a mystery in psychiatry<br />
and scholars generally have failed to resolve or come to a consensus. However, it<br />
can be accepted the simplistic explanation that the individual was born that way,<br />
and not having asked to be born, would not fault and therefore should be excused<br />
and acquitted when committing vicious crimes.<br />
Keywords: serial killers, madness, cruelty, psychotic, psychopaths.
22<br />
1. INTRODUÇÃO<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
O crime é um fato tão antigo quanto o ser humano, e sempre impressionou<br />
a humanidade. Dos crimes contra a pessoa, o homicídio é um dos que se apresenta<br />
de maneira mais preocupante perante os indivíduos. Dentre todos os milhões de<br />
casos de crimes horrendos cometidos através dos séculos, existem aqueles que<br />
parecem ter vida própria. Apesar da passagem dos anos, eles continuam a manter<br />
seu fascínio sobre a imaginação coletiva e a despertar o medo atávico de todos.<br />
Por alguma razão, cada um desses casos – e as histórias que os acompanham<br />
– toca em algo nas profundezas da condição humana, talvez devido às personalidades<br />
envolvidas, à insensatez da corrupção criminal, ao persistente incômodo da<br />
dúvida sobre uma justiça que não se fez ou ao desapontamento de se saber que<br />
ninguém foi considerado culpado. De qualquer forma, os casos permanecem como<br />
mistério e deixam todos perplexos, ferindo fundo os indivíduos em suas considerações<br />
sobre eles próprios como seres humanos e sobre suas relações sociais (DOUGLAS<br />
& OLSHAKER, 2000).<br />
Existem muitos aspectos a ser analisados sobre tal tema, dentre eles a dúvida<br />
que surge: seriam os serial killers portadores de psicose, sofrendo com delírios e<br />
alucinações, ou seriam delinquentes vaidosos buscando o crime como satisfação<br />
de prazer, sofrendo então de uma psicopatia? E mais: em um ou outro caso, qual o<br />
melhor tratamento (punição) a ser dado pelo Direito?<br />
No centro do mundo misterioso e instigante do homicida serial, será encontrada<br />
a agressividade hostil, destrutiva e sádica, que se alimenta de profundos<br />
sentimentos ambivalentes, mórbidos, obsessivos, cujo alvo, no final das contas, é o<br />
próprio absoluto. Suas raízes remontam ao amor primitivo da criança, no qual estão<br />
fundidos impulsos destrutivos; remontam à época primordial em que imperava o<br />
que Freud chamou de sentimento oceânico, pelo qual a criança se sente fundida,<br />
misturada no universo e com ele identificada, numa experiência primária de<br />
onipotência narcisística. Portanto, o alvo das fantasias, das necessidades e da<br />
hostilidade destrutiva do homicida serial é o próprio absoluto. Um absoluto jamais<br />
alcançado e jamais alcançável, porque sempre procurado e perseguido por vias<br />
profundamente equivocadas e mórbidas (SÁ, 1999).<br />
Ademais, nos delinquentes, a vaidade se reveste de caracteres mórbidos,<br />
nitidamente antissociais. A vaidade mórbida assoma, pois, em todas as partes.<br />
Característica predominante na psicologia delituosa, tanto no crime individual como<br />
nas multidões delinquentes. Quando, num país qualquer, ocorrem delitos de grande<br />
repercussão, analisados pela imprensa e comentados pelo público, cria-se uma<br />
atmosfera criminógena apropriada para tentar a vaidade dos predispostos. De acordo
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 23<br />
com Lombroso, “a vaidade profissional é maior nos delinquentes do que nos cômicos,<br />
nos literatos, nos médicos e nas mulheres elegantes” (INGENIEROS, 2003).<br />
Se a luta contra o delito vier a consistir numa organização racional dos<br />
meios preventivos, que impeçam os atos antissociais dos delinquentes, estas noções<br />
de psicologia terão utilidade em função da polícia e da justiça. A ciência criminológica<br />
começa a exercer influência sobre a evolução do Direito Penal.<br />
Ocorre que as razões para que indivíduos cometam esses crimes continuam a<br />
fascinar mais do que muitos outros, até porque assiste-se a uma sucessão interminável<br />
de assassinos e predadores sexuais que, embora possam ter algum grau de doença<br />
mental – já que não se pode, de modo deliberado, tirar outras vidas de maneira brutal<br />
e ser mentalmente saudável –, ainda assim, podem ser penalmente responsáveis, já<br />
que o fato de eventualmente possuírem alguma doença mental não significa que não<br />
saibam diferenciar o certo do errado, ou que sejam necessariamente incapazes de<br />
adequar seu comportamento e suas fantasias às regras sociais.<br />
Mas é possível também que haja alguns criminosos tão fora de si a ponto de<br />
não saberem que o que estão fazendo é errado, ou os que tendem a ter alucinações<br />
ou ilusões, mas esses tipos são fáceis de ser identificados, pois demonstram ser tão<br />
desorganizados e loucos que, em geral, são apanhados em pouco tempo.<br />
O presente artigo se propõe, por meio de uma apreciação crítica, a analisar<br />
quem são, como devem ser julgados, punidos e tratados os serial killers, além de<br />
apresentar aspectos psicológicos a eles relacionados.<br />
2. SERIAL KILLERS<br />
Os assassinos em série (serial killers) constituem um capítulo à parte na<br />
criminologia e uma dificuldade para a psiquiatria, uma vez que não se encaixam em<br />
nenhuma linha específica do pensamento. Esses casos desafiam a psiquiatria e acabam<br />
virando um duelo entre promotoria e defesa sobre a dúvida de ser o criminoso louco,<br />
meio louco, normal, anormal etc. Do ponto de vista criminológico, quando um<br />
assassino reincide em seus crimes com um mínimo de três ocasiões e com um certo<br />
intervalo de tempo entre cada um, é conhecido como assassino em série.<br />
A diferença do assassino em massa, que mata várias pessoas de uma só vez<br />
e sem se preocupar pela identidade destas, e o assassino em série é que este elege<br />
cuidadosamente suas vítimas, selecionando, na maioria das vezes, pessoas do mesmo<br />
tipo e com características semelhantes. Aliás, o ponto mais importante para o<br />
diagnóstico de um assassino em série é um padrão geralmente bem definido no modo<br />
como ele lida com seu crime. Com frequência, eles matam seguindo um determinado<br />
padrão, seja através de uma determinada seleção da vítima, seja de um grupo social
24<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
com características definidas, como prostitutas, homossexuais, policiais etc., por<br />
exemplo. As análises dos perfis de personalidade estabelecem, como estereótipo dos<br />
assassinos em série (evidentemente aceitando-se muitas exceções), homens jovens,<br />
de raça branca, que atacam preferentemente as mulheres, sendo que seu primeiro<br />
crime foi cometido antes dos 30 anos. Alguns sofreram uma infância traumática,<br />
devido a maus-tratos físicos ou psíquicos, motivo pelo qual têm tendência a isolar-se<br />
da sociedade e/ou vingar-se dela (BALLONE, 2003).<br />
Como no resto do mundo, a maioria dos assassinos em série no Brasil é<br />
constituída de homens brancos, que têm entre 20 e 30 anos, vieram de famílias<br />
desestruturadas, sofreram maus-tratos ou foram molestados quando crianças. A<br />
psicóloga clínica e forense Maria Adelaide Caires (apud CASOY, 2004: 18) apontou<br />
– ao analisar os “casos brasileiros” – alguns pontos comuns entre eles: “[...] infância<br />
negligenciada, violência sexual precoce, inabilidade escolar, sem norte, sem “casa”<br />
e sem um agente disciplinador”.<br />
Pesquisas indicam que cerca de 82% dos assassinos seriais sofreram abusos<br />
físicos, sexuais, emocionais ou foram negligenciados e abandonados quando<br />
crianças. Segundo Ilana Casoy, “é raro um (assassino serial) que não tenha uma<br />
história de abuso ou negligência dos pais. Isso não significa que toda criança que<br />
tenha sofrido algum tipo de abuso seja um matador em potencial”. Quando<br />
crianças, geralmente, os assassinos em série tiveram um relacionamento interpessoal<br />
problemático, tenso e difícil. Segundo a referida escritora, a chamada “terrível<br />
tríade” parece estar presente na infância de todo serial killer. Os elementos que<br />
compõem esta tríade são os seguintes: enurese noturna (urinar na cama) em idade<br />
avançada, destruição de propriedade alheia e crueldade com animais e outras<br />
crianças menores (CASOY, 2002).<br />
Estas frustrações, ainda segundo análises de estereótipos, introduzem os<br />
assassinos em série num mundo imaginário, melhor que seu real, onde ele revive<br />
os abusos sofridos, identificando-se, desta vez, com o agressor. Por esta razão,<br />
sua forma de matar pode se caracterizar pelo contacto direto com a vítima:<br />
utiliza armas brancas, estrangula ou golpeia, quase nunca usa arma de fogo.<br />
Seus crimes obedecem a uma espécie de ritual onde se misturam fantasias<br />
pessoais com a morte. A análise do desenvolvimento da personalidade desses<br />
assassinos seriais geralmente denuncia alguma anormalidade importante. Atos<br />
violentos contra animais, por exemplo, têm sido reconhecidos como indicadores<br />
de uma psicopatologia que não se limita a estas criaturas. Segundo o cientista<br />
humanitário Albert Schweitzer (apud BALLONE, 2003), “quem quer que tenha se<br />
acostumado a desvalorizar qualquer forma de vida corre o risco de considerar<br />
que vidas humanas também não têm importância”.
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 25<br />
Além disso, muitos homicidas seriais têm inteligência privilegiada (Ed<br />
Kemper 1 , por exemplo, é gênio com QI superior a 140), o que se mostra paradoxal,<br />
porquanto, ao mesmo tempo em que eram inteligentes, tiveram fraco desempenho<br />
nas escolas, onde mais da metade deles não conseguiram sequer concluir o ciclo<br />
escolar, obtendo notas medíocres (BONFIM, 2004).<br />
De acordo com Casoy (2002: 16), “[...] serial killers são indivíduos que<br />
cometem uma série de homicídios durante algum período de tempo, com pelo menos<br />
alguns dias de intervalo entre eles”.<br />
A vítima representa na verdade, na maioria das vezes, um objeto de fantasia<br />
no qual o criminoso exercita seu poder e seu domínio. Também alguns serial killers<br />
cometem seus crimes motivados por ódio às mulheres, desejo de controle, dominação<br />
e vinganças reais ou algumas vezes imaginárias (CASOY, 2002).<br />
O desejo de controle e poder sobre a vítima vem, em grande parte, explicado<br />
pela violência e pelos abusos que a maioria desses indivíduos sofreu em sua infância.<br />
Quanto à sua forma de atuar, os assassinos em série se dividem em<br />
organizados e desorganizados. Organizados são aqueles mais astutos, que preparam<br />
os crimes minuciosamente, sem deixar pistas que os identifiquem. Os desorganizados,<br />
mais impulsivos e menos calculistas, atuam sem se preocupar com eventuais<br />
erros cometidos.<br />
2.1. Serial killers organizados<br />
São pessoas solitárias por se sentirem superiores e julgarem que ninguém<br />
pode ser suficientemente bom para eles. São muitas vezes casados e socialmente<br />
competentes, conseguindo – em muitos casos – bons empregos por parecerem<br />
confiáveis e aparentarem saber mais do que na realidade sabem. Para eles, o crime<br />
é um jogo: acompanham a perícia e os trabalhos da polícia; costumam observar de<br />
maneira atenta os noticiários e retornar ao local onde mataram. Ademais, costumam<br />
planejar o crime de maneira cuidadosa e carregar o material necessário para cumprir<br />
suas fantasias e, ao interagirem com a vítima, gratificam-se com o estupro e a tortura.<br />
Deixam poucas evidências no local do crime, escondem ou queimam o corpo da<br />
vítima e levam um pertence da mesma como lembrança (CASOY, 2004).<br />
1 De acordo com Newton (2005: 227), confinado em Vacaville, esse assassino serial norte-americano<br />
– que matava estudantes e admitiu que depois cortou em tiras a carne de pelo menos duas vítimas<br />
para cozinhá-las em uma panela de macarrão e devorar isso como uma forma de possuir sua presa<br />
– se uniu a um grupo de internos voluntários para gravar livros para cegos e completou mais livros<br />
que qualquer outro prisioneiro, com cerca de cinco mil horas de gravação feitas por ele.
26<br />
2.2. Serial killers desorganizados<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Também são seres solitários, mas tal característica decorre do fato de serem<br />
estranhos, esquisitos. A característica de desorganização é uma marca: são<br />
desorganizados com a casa, com o carro, com a aparência, com o trabalho, com o<br />
estilo de vida etc. São introvertidos e não possuem condição de planejar um crime<br />
de maneira eficiente. Casoy (2004) ainda descreveu as seguintes características:<br />
[...] De forma geral agem por impulso e perto de casa, usando as armas ou os<br />
instrumentos encontrados no local da ação. É comum manterem um diário<br />
com anotações sobre suas atividades e vítimas, trocam de emprego<br />
frequentemente e tentam fazer carreira militar ou similar, mas não passam no<br />
teste. É raro manter [sic] qualquer contato com a vítima antes do crime, agem<br />
de forma furiosa, gratificam-se com estupro ou mutilação post mortem e,<br />
nesse grupo, é comum encontrarmos canibais e necrófilos. Têm mínimo<br />
interesse no noticiário sobre seus crimes e deixam muitas evidências no<br />
local em que mataram (CASOY, 2004: 23).<br />
3. ASSASSINOS EM SÉRIE: PSICÓTICOS OU PSICOPATAS?<br />
A questão que se coloca, quando se fala em assassinos em série, é se seriam<br />
eles responsáveis por seus atos, ou seja, se cometeriam os crimes devido a um transtorno<br />
metal (psicose) ou por simples maldade, gosto pelo sofrimento alheio, desejo em<br />
transgredir as regras, sendo, então, nesse caso, portadores do transtorno de personalidade<br />
antissocial – TPA (também conhecidos como sociopatas ou psicopatas).<br />
Sobre esta questão, Ballone (2005) explicou que:<br />
[...] podemos dizer que o assassino em série psicótico atuaria em consequência<br />
de seus delírios e sem crítica do que está fazendo, enquanto o tipo assassino em<br />
série psicopata atuaria de acordo com sua crueldade e maldade. O psicopata<br />
tem juízo crítico de seus atos e é muito mais perigoso, devido à sua capacidade<br />
de fingir emoções e se apresentar extremamente sedutor, consegue sempre<br />
enganar suas vítimas.<br />
Evidencia-se, então, que o assassino em série tanto pode ser classificado<br />
como psicótico quanto como psicopata, sendo que, de acordo com a legislação<br />
brasileira, teria ele, em decorrência de ser considerado responsável ou não por<br />
seus atos, diferentes penalidades.<br />
O indivíduo psicótico tem como características principais alucinações e delírios.<br />
Alucinações são experiências de percepções que não têm fundamento na realidade. A
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 27<br />
pessoa ouve, vê, sente ou cheira coisas que, na realidade, não existem. A mais comum<br />
das alucinações é a auditiva, por meio da qual a pessoa ouve vozes que se referem ao<br />
seu comportamento, criticando ou dando ordens. É importante destacar que, para os<br />
indivíduos que experimentam alucinações, estas parecem ser reais, sendo a pessoa<br />
incapaz de distinguir o que é alucinação e o que é real (HOLMES, 1997).<br />
As alucinações estão relacionadas com os sentidos, as percepções. Já os<br />
delírios são processos do pensamento do indivíduo.<br />
Em relação ao delírio, a pessoa possui crenças que são mantidas, apesar de<br />
evidências em contrário, ou seja, fazem parte apenas do pensamento do indivíduo.<br />
Dentre os delírios mais comuns, destacam-se os seguintes: delírios de perseguição,<br />
nos quais o indivíduo pensa que há pessoas espionando-o, conspirando contra ou<br />
querendo prejudicá-lo; delírios de referência, onde objetos, acontecimentos ou<br />
pessoas são percebidos como apresentando algum significado especial para a<br />
pessoa, dirigidos especificamente a ela; e delírios de identidade, onde os indivíduos<br />
acreditam ser outra pessoa. As pessoas normais também, por vezes, mantêm alguma<br />
crença que não tem base na realidade; contudo, as crenças delirantes são mais<br />
bizarras e mais resistentes a evidências contrárias do que as distorções que tais<br />
pessoas vivenciam em seu cotidiano (HOLMES, 1997)<br />
É evidente que o assassino em série não é uma pessoa normal. Mas não<br />
significa que ele não tenha consciência do que faz. Os assassinos em série, em sua<br />
maioria, são diagnosticados como portadores do transtorno de personalidade<br />
antissocial e, muito embora possam não ter domínio para controlar seus impulsos,<br />
sabem muito bem distinguir o que é certo e errado, tanto que se preocupam em não<br />
ser apanhados (BALLONE, 2005).<br />
Sobre a diferença entre o criminoso portador do transtorno de personalidade<br />
antissocial e o portador do transtorno psicótico, este sim sujeito à medida de segurança<br />
segundo a legislação brasileira, Kaplan, Sadock & Grebb (1997) consideraram<br />
que, em relação aos pacientes com transtorno de personalidade antissocial, em<br />
termos de conteúdo mental, estes sempre revelam uma ausência de delírios e<br />
outros sinais de pensamentos irracionais, demonstrando, pelo contrário, um<br />
aumentado senso de realidade, bem como uma boa inteligência verbal.<br />
Geralmente, pessoas com o referido transtorno se apresentam como normais,<br />
muitas vezes extremamente simpáticas e cativantes. Contudo, seus históricos irão<br />
revelar mentiras, fugas de casa e da escola, brigas, abuso de drogas e atividade<br />
ilegais (KAPLAN, SADOCK & GREBB, 1997). Tem-se, com isso, que a pessoa portadora<br />
do transtorno de personalidade antissocial, na maioria dos casos, em sua infância e<br />
adolescência, apresentava transtorno de conduta.
28<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Pessoas com transtorno de personalidade antissocial têm como característica,<br />
bastante acentuada, a ausência de ansiedade, culpa ou remorso. Ao cometer um<br />
crime, por mais repugnante que seja aos olhos da sociedade, elas não demonstram<br />
qualquer sentimento, a não ser o prazer. Aos olhos das outras pessoas, são tidas<br />
como indivíduos “sem coração” (HOLMES, 1994).<br />
O psicopata busca constantemente seu próprio prazer (mod.). Ele age como<br />
se tudo lhe fosse permitido. Excita-se com o risco e com o proibido. Quando mata,<br />
tem como objetivo final humilhar a vítima para reafirmar sua autoridade e realizar<br />
sua autoestima. Para ele, o crime é secundário e o que interessa, de fato, é o<br />
desejo de dominar, de sentir-se superior. De acordo com Antônio de Pádua Serafim 2<br />
(apud CASOY, 2004: 28):<br />
[...] São considerados “predadores intraespécies” que usam charme,<br />
manipulação, intimidação e violência para controlar os outros e para satisfazer<br />
suas próprias necessidades. Em sua falta de confiança e de sentimento pelos<br />
outros, eles tomam friamente aquilo que querem, violando as normas sociais<br />
sem o menor senso de culpa ou arrependimento.<br />
Marcante característica, presente nesse transtorno, é a contrariedade às<br />
normas sociais de conduta. Para esses indivíduos (psicopatas), as regras sociais<br />
não constituem uma força limitante, e a ideia de um bem comum é meramente<br />
uma abstração confusa e inconveniente, pois:<br />
[...] o transtorno de personalidade antissocial é caracterizado por atos antissociais<br />
e criminosos contínuos, mas não é sinônimo de criminalidade. Em vez disso,<br />
trata-se de uma incapacidade de conformar-se às normas sociais que envolvem<br />
muitos aspectos do desenvolvimento adolescente e adulto do paciente (KAPLAN,<br />
SADOCK & GREBB, 1997: 693).<br />
Trata-se de pessoas que buscam enganar e manipular os outros para, desse<br />
modo, obter alguma vantagem.<br />
Outra característica de pessoas portadoras do transtorno é não aprender<br />
com a punição. O indivíduo pode até ser preso, ficar anos na penitenciária, mas<br />
não vai aproveitar esse tempo para “refletir” sobre seus atos, se arrepender; muito<br />
pelo contrário, muitos vão aproveitar essa tempo para arquitetar seu próximo crime,<br />
quando em liberdade.<br />
Indivíduos com o transtorno de personalidade antissocial, por não apresentarem<br />
determinados sintomas psicológicos, como depressão, delírio, alucinações e<br />
2 Psicólogo clínico e forense.
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 29<br />
ansiedade, geralmente não recebem o diagnóstico de problema psicológico e não<br />
são, portanto, submetidos a tratamento. Como seu comportamento normalmente é<br />
ilegal, eles tendem a ser punidos, e não tratados, o que, como se viu, demonstra<br />
pouca efetividade uma vez que não aprendem com a punição (HOLMES, 1997).<br />
Quanto às explicações há, ainda, apenas hipóteses acerca das causas do transtorno<br />
de personalidade antissocial. Para Holmes (1994: 19):<br />
É importante reconhecer que nenhuma explicação ou conjunto de evidências pode<br />
explicar todos os casos de TPA. Isto sugere que há provavelmente diferentes<br />
formas de transtorno e que pode haver mais de uma explicação correta para ele.<br />
O comportamento dos indivíduos com transtorno de personalidade antissocial<br />
é tradicionalmente explicado como consequência de fatores socais e familiares.<br />
Contudo, não podem ser descartadas as descobertas de pesquisas que indicam<br />
haver diferenças cerebrais entre psicopatas e pessoas normais (CASOY, 2002).<br />
4. DEFESA POR INSANIDADE USADA POR SERIAL KILLERS<br />
Em qualquer caso de homicídio, a primeira responsabilidade dos promotores<br />
e dos advogados é a determinação do estado mental do suspeito. Para isso, instaurase<br />
o chamado incidente de sanidade mental.<br />
O incidente de sanidade mental é instaurado quando existe a suspeita de que<br />
o acusado, em qualquer tipo de crime, possa ser doente mental. O processo<br />
fica suspenso e o acusado é submetido ao exame, até que se comprove ou se<br />
descarte essa possibilidade. No caso de haver um quadro mental que tenha<br />
relação direta com o crime cometido, o réu é isento de pena (inimputável) e a<br />
medida de segurança é aplicada, por ser o criminoso considerado perigoso. A<br />
medida de segurança prevê tempo mínimo de internação (três anos), mas não<br />
tempo máximo. A desinternação fica condicionada à cessação de<br />
periculosidade, o que pode significar prisão perpétua em alguns casos<br />
incuráveis (CASOY, 2004: 267).<br />
A eventual insanidade, frequentemente alegada na tentativa de absolver o<br />
assassino serial, quase nunca é constatada, realmente, pela psiquiatria, pois o fato<br />
de o assassino ser portador de algum transtorno de personalidade ou parafilia não<br />
faz dele um alienado mental.<br />
Além disso, o transtorno de personalidade antissocial é, por vezes, citado no<br />
caso de assassinos condenados com uma alegação de responsabilidade diminuída<br />
(SIMS, 2001). Em contrapartida a essas afirmativas citadas por Sims, Cordeiro<br />
(2003: 64) acrescentou que:
30<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Tanto Kurt Schneider (1950) como Kraeplin (1896) descreveram as tipologias da<br />
personalidade psicopáticas, não considerando o comportamento antissocial na<br />
definição de personalidade anormal, considerada apenas em termos estatísticos<br />
como um desvio da média geral. Trata-se de personalidades que provocam<br />
sofrimento nos outros e em si (geralmente em menor grau) [...]<br />
O termo abrange uma variedade de personalidades pervertidas, mas não<br />
tem significado para a formulação de uma teoria ou para a pesquisa nem facilita a<br />
comunicação clínica e a previsão. Tal conceito é apenas um juízo moral, disfarçado<br />
de diagnóstico clínico (BLACKBURN, 1988).<br />
Quando capturados, estes indivíduos costumam simular insanidade, alegando<br />
múltiplas personalidades, esquizofrenia ou qualquer coisa que os exima de<br />
responsabilidades, mas, na realidade, aproximadamente, apenas 5% 3 dos assassinos<br />
em série podem ser considerados mentalmente doentes no momento de seus crimes<br />
(BALLONE, 2003).<br />
De acordo com Michael Newton (2005: 105):<br />
[...] De fato, as estatísticas mostram que apenas 1% dos delinquentes suspeitos<br />
americanos pleiteiam insanidade no julgamento e apenas um, em cada três desses,<br />
é finalmente absolvido. Os assassinos seriais, com seu bizarro ornamento de<br />
sadismo, necrofilia e similares, parecem idealmente adequados para pleitos de<br />
insanidade, mas mesmo aqui a vantagem contra absolvição é extrema. Desde<br />
1900, nos Estados Unidos, apenas 3,6% dos serial killers identificados foram<br />
declarados incompetentes para julgamento, ou liberados por insanidade.<br />
Socialmente, os assassinos em série têm comportamento acima de qualquer<br />
suspeita, ou seja, dissimulam muito bem seu lado criminoso, criando um verdadeiro<br />
“verniz social”, como mencionado pela escritora Ilana Casoy. Isso deixa claro que<br />
eles têm consciência de que fazem algo contrário às regras sociais, sendo, portanto,<br />
difícil aceitar a alegação de inimputabilidade.<br />
Também é evidente que, nos assassinos seriais, não existe a ausência de<br />
compreensão da gravidade e das consequências de seus atos, isto explicado pela<br />
empatia, conforme mencionado pelo psiquiatra forense Brent E. Turvey (apud<br />
3 A título de exemplo, pode ser citado o caso de “Chico Picadinho”. De acordo com Casoy (2004), em<br />
seu julgamento, a defesa alegou que o motivo do crime não fora torpe, justificando que Francisco<br />
sofria de insanidade mental e seus crimes eram consequências da perturbação do réu. Alegou-se<br />
também que aquele era um homicídio simples, sem dolo, pois o motivo da retalhação do corpo da<br />
vítima não era sua ocultação, e sim o transe de perturbação mental do momento. A acusação<br />
discordou, obviamente.
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 31<br />
CASOY, 2002). O criminoso sabe que a vítima está humilhada, amedrontada e sofrendo,<br />
pois é exatamente este resultado que eles buscam com seus atos.<br />
[...] as doenças mentais propriamente ditas (psicoses) não têm sido apontadas<br />
como causas muito frequentes de sociopatia. E, nas situações de criminalidade<br />
mais graves, essas doenças representariam 5% (STUMPFL, 1936) da sua etiologia.<br />
Em contrapartida, em cerca de 80% dos criminosos, têm sido comprovados<br />
antecedentes pessoais e familiares de psicopatia (FONSECA, 1997: 517).<br />
O sistema legal americano fornece ajuda de custo para indivíduos cujos<br />
comportamentos aberrantes tenham sido compelidos por doença mental,<br />
dispensando-os da punição como criminosos comuns. O público em geral ficou<br />
indignado, nos últimos anos, por casos como aquele do assassino presidencial, John<br />
Hinckley, em que os veredictos de “não culpado por insanidade” privaram réus da<br />
execução ou prisão e, em vez disso, consignaram-nos a instituições mentais por<br />
um prazo indefinido. As pesquisas de opinião pública revelam um consenso de que<br />
muitos, ou a maioria dos delinquentes acusados, tentam “admitir culpa e pedir<br />
clemência”, com esquemas de falsificação de insanidade, grande número deles<br />
deslizando por brechas e cumprindo um “tempo fácil”, antes de ser liberados mais<br />
uma vez para a sociedade (NEWTON, 2005).<br />
5. PENA E MEDIDA DE SEGURANÇA<br />
O homem nasceu eminentemente livre e apresenta – desde seu aparecimento<br />
sobre a Terra – duas dimensões fundamentais, que são a “sociabilidade” e a<br />
“politicidade”. Na realidade, são dois aspectos de um único fenômeno. Reforçando<br />
tal ideia, Betioli ensinou que:<br />
O homem é “sociável” e por isso tende a entrar em contato com seus semelhantes<br />
e a formar com eles certas associações estáveis; porém, começando a fazer parte<br />
de grupos organizados, ele torna-se um “político”, ou seja, membro de uma<br />
“polis”, de uma cidade, de um Estado e, como membro de tal organismo, ele<br />
adquire certos direitos e assume certos deveres (BETIOLI, 2000: 18).<br />
A origem da pena coincide com o surgimento do Direito Penal em razão da<br />
constante necessidade da existência de sanções penais em todas as épocas e em<br />
todas as culturas. O homem é obrigado a abrir mão de parcela de sua liberdade<br />
para poder usufruir da porção que manteve consigo e para garantir o bem comum.<br />
A pena é a consequência jurídica principal que deriva da infração penal. Conforme<br />
destacou Julio Fabbrini Mirabete:<br />
Nos grupos sociais primitivos, a peste, a seca e outros fenômenos naturais<br />
maléficos eram considerados manifestações divinas (totem). Para conter a ira
32<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
dos deuses, criam-se regras de proibição (sociais, religiosas e políticas), conhecidas<br />
por tabu, as quais, uma vez desobedecidas, acarretavam determinados<br />
castigos. Assim, a infração totêmica – ou a desobediência às regras tabu – deu<br />
origem ao que hoje se denomina crime e pena (MIRABETE, 2003: 35).<br />
Fazendo uma retrospectiva histórica, pode-se concluir que as penas e os<br />
castigos que o Estado impôs àqueles transgressores das normas foram evoluindo<br />
em face de um sentido maior de humanização. Cesare Beccaria preconizou – já<br />
em 1764 – que as penas desumanas e degradantes do primitivo sistema punitivo<br />
cederam seu espaço para outras, com senso mais humanitário, com maior finalidade<br />
de recuperação do delinquente:<br />
É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio<br />
deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação<br />
não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e<br />
preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o<br />
cálculo dos bens e dos males da vida (BECCARIA, 1997: 27).<br />
Desta forma, as penas corporais foram substituídas pelas penas privativas de<br />
liberdade, persistindo este objetivo de humanização das penas, ainda nos dias de hoje.<br />
A pena não tem uma definição genérica, válida para qualquer lugar e qualquer<br />
momento. Consiste em um conceito legal de cada código penal em particular, em que<br />
são elencadas sanções, cujas variações refletem as mudanças vividas pelo Estado.<br />
Penas e medidas de segurança são formas de reação penal, dirigidas aos<br />
delitos praticados no seio da sociedade. Sabe-se que ambas configuram formas de<br />
equilíbrio social e, como tal, se destinam à preservação dos bens coletivamente<br />
eleitos como relevantes à sociedade. Luiz Flávio Gomes (1990) elucidou que:<br />
Até o surgimento do positivismo italiano (século XIX, segunda parte), as penas<br />
constituíam a forma básica (senão única) de reação penal; os positivistas italianos<br />
(Lombroso, Ferri e Garofalo), no entanto, baseados no naturalismo e no<br />
determinismo, criaram e desenvolveram a ideia de que o homem criminoso deve<br />
ser tratado por meio de medidas até que alcance a cura. Duas, portanto, as<br />
fundamentais características das medidas de segurança então idealizadas: elas<br />
devem ocupar o lugar da pena que tem por fundamento a culpabilidade (os<br />
positivistas negavam a culpabilidade e, assim, preconizavam a abolição da pena)<br />
e, ademais, devem durar o tempo necessário para a cura (tempo indeterminado).<br />
Se a história do Direito Penal terminasse aí, diríamos que o único sistema de<br />
reação penal teria sido o monista, que consiste na contemplação positiva de<br />
uma consequência única ao delito: pena, baseada na culpabilidade, conforme os<br />
clássicos, ou medida de segurança, baseada na periculosidade, segundo os
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 33<br />
positivistas italianos. Ocorre que, desde o projeto de Código Penal suíço,<br />
elaborado por Karl Stoos em 1893, ambas as formas de reação penal passaram a<br />
ser previstas conjuntamente nos Códigos Penais de incontáveis nações: aí está<br />
a origem do denominado sistema dualista ou dualismo (ou, ainda, doble via),<br />
que significava a previsão em conjunto das duas modalidades de sanção penal:<br />
pena e medida de segurança (GOMES, 1990: 257).<br />
René Ariel Dotti explicou que:<br />
A pena pressupõe a culpabilidade; a medida de segurança pressupõe a<br />
periculosidade. A pena tem seus limites mínimo e máximo predeterminados (CP,<br />
arts. 53, 54, 55, 58 e 75); a medida de segurança tem um prazo mínimo de 1 (um) a<br />
3 (três) anos, porém o máximo da duração é indeterminado, perdurando a sua<br />
aplicação enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de<br />
periculosidade (CP, art. 97, §1º); pena exige a individualização, atendendo às<br />
condições pessoais do agente e às circunstâncias do fato (CP, arts. 59 e 60); a<br />
medida de segurança é generalizada à situação de periculosidade do agente,<br />
limitando-se a duas únicas espécies: internação e tratamento ambulatorial – CP,<br />
art. 96 (DOTTI, 1986: 621).<br />
Na mesma intenção, expôs Luiz Flávio Gomes (1990) que:<br />
Penas e medidas de segurança, conceitualmente, distinguem-se porque: 1. a<br />
pena tem natureza retributivo-preventiva enquanto as medidas são só<br />
preventivas; 2. a pena baseia-se na culpabilidade, enquanto a medida, na<br />
periculosidade; 3. a pena aplica-se aos imputáveis e semi-imputáveis – as medidas<br />
não se aplicam aos imputáveis; 4. a pena é proporcional à infração – a<br />
proporcionalidade das medidas está na periculosidade; 5. a pena é fixa enquanto<br />
a medida é indeterminada; 6. a pena está voltada para o passado (crimeculpabilidade-retribuição),<br />
enquanto as medidas miram para o futuro (curaprevenção)<br />
(GOMES, 1990: 258).<br />
Desta maneira, percebe-se, dos ensinamentos acima transcritos, que, no plano<br />
didático-teórico, existem substanciais diferenças entre penas e medidas de segurança.<br />
5.1. Psicopatia no Código Penal<br />
O Código Penal brasileiro – em seu artigo 26 – estabelece que é isento de<br />
pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou<br />
retardado, não era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente capaz de entender<br />
o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.<br />
Se o indivíduo for incluso no caput do referido artigo, será considerado inimputável.<br />
O mesmo artigo 26, em seu parágrafo único, estabelece a possibilidade de semi-
34<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
imputabilidade quando o agente, em virtude de perturbação de saúde mental, ou por<br />
desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente capaz de entender<br />
o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.<br />
Sobre o sistema adotado no Brasil, conforme a regra do artigo 26 e parágrafos<br />
do Código Penal, Edilson Mougenot Bonfim (2004) esclareceu que:<br />
Os diferentes sistemas punitivos para casos onde se discute a imputabilidade<br />
penal (capacidade do agente de compreender o caráter ilícito do fato e de<br />
determinar-se de acordo com esse entendimento – ou seja, a responsabilidade<br />
penal) são os seguintes: aqueles onde as ações criminosas são imputadas ou<br />
inimputadas aos acusados, ensejando uma total irresponsabilidade criminal. E<br />
aqueles onde se aceita a chamada “região fronteiriça”, prevendo-se a semiimputabilidade,<br />
uma forma de responsabilidade penal diminuída, que permite a<br />
atenuação da pena ou a substituição da pena por uma medida de segurança<br />
consistente em tratamento médico (BONFIM, 2004: 31).<br />
Sempre que houver dúvida sobre a capacidade de imputação jurídica de um<br />
acusado, o juiz nomeia um perito para a realização de laudo. A perícia verificará o<br />
grau de entendimento e autodeterminação do agente à época dos fatos. 4<br />
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Loucura e maldade (que é uma opção humana) não são sinônimos e não<br />
podem ser assim considerados ao julgar-se um serial killer. A confusão muitas<br />
vezes verifica-se na prática porque ocorreu uma vulgarização do conceito de<br />
loucura. O que é louco? Quem é louco? “Você é louco” tornou-se expressão<br />
comum, mas, para realizar julgamentos, é preciso fazê-lo com critérios científicos,<br />
amparados na ciência.<br />
As defesas dos assassinos seriais normalmente pleiteiam a medida de<br />
segurança para seus clientes porque assim surgirá, todo ano, a possibilidade de sua<br />
soltura, já que a lei manda, em eventos como esses – caso se aplique a medida de<br />
segurança –, que se faça anualmente um exame de cessação de periculosidade.<br />
4 Sobre referido exame, a Dra. Maria Adelaide de Freitas Caires ponderou que, na atividade psicológica,<br />
envolvendo questões judiciais, o campo relacional ocorre em meio a uma interposição de fatores<br />
que, em maior ou menor grau, comprometem a disponibilidade do examinando para a avaliação. É<br />
comum ele chegar imbuído de desconfiança e, na sua grande maioria, não só chega com uma “tese”<br />
já bem articulada para provar sua inocência ou sua sanidade, como cônscio das prerrogativas legais<br />
de sua defesa (mentir/omitir informações). Além desses fatores, ele pode estar preocupado com a<br />
repercussão judicial, da qual em geral tem ciência, que o resultado do exame pode suscitar: algumas<br />
de seu interesse; outras contrárias a ele. (CAIRES, 2003: 128).
Assassinos em série: uma questão legal ou psicológica? 35<br />
Ora, os serial killers possuem boa conversa, são convincentes e, em um<br />
desses exames, podem facilmente convencer um psiquiatra de que estão recuperados<br />
e conseguir um laudo favorável à sua soltura, até porque, se instalada a dúvida no<br />
caso concreto, esta poderá ser resolvida a seu favor. Portanto, como se vê, é um<br />
discurso falacioso dizer que a medida de segurança configura a prisão perpétua.<br />
A tendência contemporânea mundial é no sentido da plena responsabilização<br />
dos assassinos seriais, e isso é o correto do ponto de vista geral e social, uma vez<br />
que tal atitude resguarda a sociedade da presença perigosa de tais criminosos,<br />
colocando-os no cárcere, e do ponto de vista individual, tendo em vista que, ao<br />
permanecerem presos, não irão fazer mal aos outros nem a si próprios. Contudo,<br />
sabe-se que esses criminosos seriais, portadores do transtorno de personalidade<br />
antissocial, não aprendem com a punição, ou seja, de nada resolveria deixá-los por<br />
anos no cárcere, sem oferecer nenhum tratamento psicossocial, pois, como a<br />
experiência mostra, quando colocados novamente em liberdade voltam a transgredir.<br />
Não pode ser aceita a simplista explicação de que o indivíduo nasceu assim e,<br />
não tendo pedido para nascer, não teria culpa e, portanto, deveria ser desculpado e<br />
absolvido. Até porque esse “determinismo biológico” é muito perigoso, pois poderia<br />
igualmente retirar o livre-arbítrio e a responsabilidade de diversos criminosos. Se<br />
assim fosse, ninguém mais seria responsabilizado por nada. Entretanto, sabe-se que<br />
o homem é um ser pensante e com vontade, capaz de realizar escolhas e deliberações;<br />
portanto, tendo opções para agir, deve responsabilizar-se pelas escolhas.<br />
O Direito Penal funda-se na responsabilidade individual, e esta não pode ser<br />
cientificamente negada. Até porque ainda não existem tratamentos comprovados<br />
nem remédios que façam efeito para psicopatas. Agora, cabe à ciência começar a<br />
desvendá-los.
36<br />
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38<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Anotações
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 39<br />
3<br />
O desacordo moral razoável na<br />
sociedade plural do estado<br />
democrático de direito<br />
The moral reasonable disagreement<br />
in plural society of the<br />
democratic state<br />
JOANA TEIXEIRA DE MELLO FREITAS<br />
Advogada; pós-graduada em Direito Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica<br />
de Minas Gerais – PUC/MG. E-mail para correspondência: joanamello@adv.oabmg.org.br.<br />
RESUMO<br />
O desacordo moral razoável, termo cravado pela filosofia, constitui-se perante a<br />
ausência de consenso sobre uma questão polêmica cujos argumentos antagônicos<br />
são, ambos, originados de uma conclusão racional. O presente trabalho demonstra<br />
o significado da existência do desacordo moral razoável em uma sociedade plural de<br />
um Estado democrático.<br />
Palavras-chave: desacordo moral razoável, Estado democrático de direito, pluralismo.<br />
ABSTRACT<br />
The moral reasonable disagreement is a term used by the liberal political theory that<br />
consists in the non consensus before a question which contradictory arguments are,<br />
both, originated from a reasonable conclusion. This article shows the meaning of the<br />
existence of reasonable disagreement in a plural society of a Democratic State.<br />
Keywords : moral reasonable disagreement, democratic state, plural society.
40<br />
1. INTRODUÇÃO<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
O Supremo Tribunal Federal, recentemente, foi incumbido de responder a<br />
uma questão um tanto polêmica que levantou diversas vozes na sociedade brasileira.<br />
A questão envolve uma série de argumentos a favor e outros contra a interrupção<br />
da gestação de feto anencefálico. A Arguição de Descumprimento de Preceito<br />
Fundamental – ADPF n. 54, proposta pela Confederação Nacional dos<br />
Trabalhadores na Saúde, discute a possibilidade, diante da ordem constitucional<br />
brasileira, da interrupção da gestação nos casos de fetos anencefálicos. O mérito<br />
ainda não foi julgado, mas, em decisão de sua liminar, em 1º de julho de 2004, o<br />
Ministro Relator Marco Aurélio de Mello deferiu o pedido, aceitando os argumentos<br />
da Confederação de que a gestação seria uma tortura psicológica para a genitora.<br />
Entretanto, levada ao crivo do plenário, tal decisão não persistiu. Em outubro do<br />
mesmo ano, a liminar foi cassada pelo Plenário do STF, vencidos os Ministros<br />
Marco Aurélio, Carlos Brito, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.<br />
A anencefalia é a má-formação fetal congênita em que o feto não apresenta<br />
hemisférios cerebrais ou o córtex, nem nunca apresentará. Trata-se de anomalia<br />
que resulta na inexistência de consciência, qualquer forma de cognição, vida social,<br />
comunicação e emotividade. Restam, apenas, parcialmente, algumas funções<br />
inferiores do sistema nervoso central, como a respiração, as funções vasomotoras<br />
e a medula espinhal. Mesmo assim, a expectativa de sobrevida, nesses casos, é de,<br />
no máximo, algumas horas após o parto. Essa gravidez é considerada uma gravidez<br />
de risco em que a própria saúde da gestante fica potencialmente perigosa, devido<br />
ao alto número de abortos espontâneos desses fetos. Aproximadamente, 65% dos<br />
fetos anencefálicos morrem quando ainda no útero da mãe 1 .<br />
A medicina não apresenta nenhuma solução ou qualquer tipo de intervenção<br />
que possa reverter o diagnóstico, e o exame que detecta tal anomalia é considerado<br />
praticamente infalível.<br />
Diante deste quadro, a ADPF n. 54 traz à tona duas posições opostas,<br />
construídas sobre fundamentos razoáveis. Por um lado, a posição a favor da<br />
interrupção de tal gravidez traz diversos argumentos, dentre eles a inexistência de<br />
vida humana, já que não há a formação completa do sistema nervoso; a dignidade<br />
da mãe, que passa por situação análoga à tortura; e outros que não cabe a esse<br />
1 DINIZ, Ribeiro apud BARROSO, Luiz Roberto. Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas com<br />
células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição. In: NOVELINO, Marcelo<br />
(Org.). Leituras complementares de Direito Constitucional: direitos humanos e direitos fundamentais.<br />
Salvador: Jus Podivm, 2008. p. 177.
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 41<br />
artigo explanar. A posição contrária, avessa à interrupção da gravidez no caso de<br />
feto anencefálico, apresenta, também, seus argumentos. Seu principal fundamento<br />
é a defesa do direito à vida do feto, que não deixa de ser um potencial de vida<br />
humana, uma vez que a vida não se dá apenas com a formação saudável do sistema<br />
nervoso central, mas com a fecundação.<br />
Luiz Roberto Barroso, então, posicionando-se na questão, em artigo de sua<br />
autoria, apontou que tal polêmica se insere no que a filosofia chama de desacordo<br />
moral razoável. Não discorrendo muito sobre o assunto, o autor ensinou que “o<br />
desacordo moral razoável é aquele que tem lugar diante da ausência de consenso<br />
entre posições racionalmente defensáveis” 2 .<br />
Neste ponto, surge o interesse deste trabalho. O que se pretende é esclarecer<br />
a questão do desacordo moral razoável e a posição do Estado democrático de<br />
direito diante de questões polêmicas que sejam entendidas como tal. Já que a<br />
pluralidade é característica ontológica de um Estado democrático, seu posicionamento<br />
diante de questões que não são acolhidas por um consenso deve ser de<br />
respeito e tolerância ou de imposição para assegurar o bem comum?<br />
Para tentar responder a essa pergunta, foram trazidos a exame alguns casos<br />
considerados por se caracterizarem como desacordos morais razoáveis que<br />
aconteceram no País e no Direito comparado, além dos ensinamentos doutrinários<br />
sobre o assunto.<br />
Entretanto, antes de se chegar a esse ponto, cumpre destacar que as questões<br />
consideradas como desacordos morais razoáveis que serão tratadas nesse trabalho<br />
não são questões que versam sobre a escolha de políticas públicas, como formação<br />
da vontade do Estado (ideia de justiça, de políticas sociais, dentre outras). O que se<br />
abordará são questões mais próximas ao indivíduo, que dizem respeito a uma esfera<br />
mais íntima, ligada, mesmo, às suas concepções morais. É isso que será visto adiante.<br />
2. O DESACORDO MORAL RAZOÁVEL<br />
Em uma sociedade democrática moderna, segundo explicado por John Rawls 3 ,<br />
em seu livro O liberalismo político, é comum a existência de um pluralismo de ideias<br />
religiosas, filosóficas e morais que são incompatíveis entre si. Essas ideias, apesar de<br />
incompatíveis, não perdem seu caráter de ser razoáveis. Isso porque surgem de<br />
procedimentos que expressam princípios e concepções requeridos pela razão prática.<br />
2 Ibid., p. 180.<br />
3 RAWLS, John. El liberalismo político. Barcelona: Crítica, 2006, passim.
42<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
A origem do desacordo moral vem sendo discutida há muitos séculos. David<br />
Hume 4 , no século XVIII, argumentava que somente em condições de escassez<br />
moderada é que os conflitos morais surgem, demandando uma justa solução. Onde<br />
haja abundância, de modo que todos tenham o suficiente para satisfazer seus desejos,<br />
a justiça se tornaria uma cerimônia inútil. Conflitos morais que demandam soluções<br />
justas simplesmente não iriam surgir. Hume sugeriu que extrema escassez também<br />
eliminaria o desacordo moral. A razão é que, presumivelmente, os conflitos sobre<br />
os bens em situação tão desesperante seriam resolvidos pela força. Gutmann &<br />
Thompson 5 acrescentaram a esse argumento a incompatibilidade de valores e o<br />
entendimento incompleto como causas originárias do desacordo moral razoável.<br />
Jeremy Waldron 6 , ao explicar a teoria de Rawls, distinguiu dois modelos de<br />
desacordo, um ligado a princípios políticos e outro ligado a um desacordo filosófico<br />
sobre o bem em uma sociedade pluralista. Este último, o desacordo moral razoável,<br />
inclui desacordos entre argumentos religiosos e, também, entre concepções seculares<br />
sobre o bem, como o hedonismo, o asceticismo, o intelectualismo e vários<br />
argumentos éticos de autodesenvolvimento e de autorrealização. Assim, por<br />
exemplo, um católico liberalista pode concordar mais com o marxista cético do que<br />
com seu colega católico conservador sobre questões que envolvam o bem comum.<br />
Pode-se perceber, então, que as questões morais envolvidas em um desacordo<br />
moral estão ligadas a diversas esferas de um indivíduo. Marilena Chauí 7 apontou<br />
como elementos do senso moral de cada um a consciência de si, definindo seus<br />
próprios valores e sua própria conduta, e a percepção do outro, respeitando os<br />
valores do próximo e tolerando a sua conduta.<br />
Os desacordos ligados a princípios políticos, por sua vez, demandam critérios<br />
de maior legitimidade. Como vinculam a coletividade, requerem ser justificáveis ao<br />
máximo para que todos se submetam àquela decisão. Gutmann & Thompson 8<br />
(2000) apontaram três características de argumentos morais importantes nas<br />
decisões políticas: reciprocidade – devem ser usadas razões compartilhadas ou<br />
que poderiam ser compartilhadas pelos cidadãos; publicidade – discussões em<br />
arenas e fóruns públicos; e responsabilidade.<br />
4<br />
HUME, David apud GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Democracy and disagreement. Cambridge:<br />
Harvard University Press, 2000. p. 21.<br />
5 Ibid., p. 22.<br />
6<br />
WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. New York: Oxford University Press, 2004. p. 149-150.<br />
7<br />
CHAUÍ, Marilena apud BARROSO, Luiz Roberto. Op. cit., p. 181.<br />
8<br />
GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 43<br />
Na busca dessa legitimidade, Rawls 9 , Gutmann & Thompson 10 e Waldron 11<br />
defenderam, cada um à sua maneira e com seus argumentos, apesar de próximos,<br />
a deliberação democrática como ponto legítimo de tomada de decisões e<br />
questionaram os meios institucionais adotados, na atualidade, para tanto, como a<br />
decisão tomada pela maioria ou o controle judicial, o judicial review.<br />
Gutmann & Thompson 12 chegaram a afirmar que os princípios deliberativos<br />
podem injetar coerência moral e racionalidade no processo democrático. Ao encorajar<br />
um senso de propósito moral coletivo, a democracia deliberativa pode expressar uma<br />
concepção de bem comum mais completa possível em uma sociedade moralmente<br />
pluralista. Ademais, a deliberação pode clarear a natureza do conflito moral, ajudando<br />
a distinguir entre o moral, o amoral e o imoral, e entre compatível, os valores<br />
incompatíveis. Dessa forma, comparado a outros métodos de fazer decisões, a<br />
democracia deliberativa aumenta as chances de se chegar a políticas justificáveis.<br />
Entretanto, não é este o foco do presente trabalho. Pretende-se abordar o<br />
desacordo moral razoável, desacordo entre concepções morais, filosóficas e, até,<br />
religiosas dos indivíduos da coletividade; questões mais próximas ao indivíduo.<br />
Quando esse desacordo é enfrentado pelo Estado democrático, interessa saber se<br />
ele deve decidir em favor de uma posição ou permitir que cada um siga o seu<br />
próprio entendimento. Isso porque é certo que a decisão impositiva tomada pelo<br />
Estado vincula todos, tanto aqueles que concordam com a posição tomada como<br />
aqueles que lhe são contrários. Não interessa, aqui, discorrer sobre tomadas de<br />
decisões políticas e suas fontes de legitimidade.<br />
Entende-se, com Luiz Roberto Barroso 13 , que são necessários consensos<br />
mínimos em uma sociedade e que estes devem ser guardados pela Constituição de<br />
um Estado. Direitos essenciais ao funcionamento de um regime democrático, como<br />
a dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais, participação popular não<br />
podem ser subtraídos dos órgãos deliberativos que decidem pela vontade da maioria,<br />
uma vez que acabam garantindo o próprio espaço do pluralismo político. No entanto,<br />
o que se quer abordar são questões que estão longe desses chamados consensos<br />
mínimos e que envolvem o indivíduo em sua esfera de vida particular.<br />
9<br />
RAWLS, John. Op. cit., passim.<br />
10<br />
GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.<br />
11<br />
WALDRON, Jeremy. Op. cit., passim.<br />
12<br />
GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.<br />
13<br />
BARROSO, Luiz Roberto. Op. cit., p. 200.
44<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
2.1. Exemplos atuais e reais do desacordo moral razoável<br />
Na introdução deste trabalho, inseriu-se o caso da interrupção da gestão de<br />
feto anencefálico que, hoje, aguarda resolução no Supremo Tribunal Federal. Como<br />
demonstrado, o caso traz duas posições razoáveis, pois construídas por princípios<br />
da razão, mas que levam a soluções diametralmente diversas.<br />
Além desse caso, o Supremo Tribunal Federal decidiu, na Ação Direta de<br />
Inconstitucionalidade n. 3.510, pela constitucionalidade da Lei n. 11.105, de 2005, a<br />
chamada Lei de Biossegurança. Esse foi um assunto que levantou diversas vozes<br />
opostas, cada qual com seus argumentos moralmente razoáveis. A referida lei<br />
disciplina a pesquisa com células-tronco embrionárias, autorizando o uso daquelas<br />
obtidas de embriões humanos, produzidos mediante fertilização in vitro, que não<br />
foram transferidos para o útero materno, após o consentimento dos genitores e a<br />
adequação a diversos requisitos impostos na lei.<br />
Por um lado, havia os argumentos a favor da constitucionalidade da lei, que<br />
afirmavam não serem aqueles embriões vidas humanas, uma vez que não seriam,<br />
nunca, implantados no útero materno, condição sine qua non para a formação<br />
humana. Levantavam, ainda, a importância dessas pesquisas e o bem que elas<br />
poderiam atingir a inúmeras pessoas que sofrem de diversas doenças e que poderiam<br />
se beneficiar do uso de células-tronco. A posição oposta, contra o uso das células<br />
embrionárias, defendia o direito à vida daqueles embriões que seriam potenciais de<br />
vida humana, destacando, também, o perigo que essas pesquisas poderiam gerar,<br />
como a clonagem humana e a seleção da espécie.<br />
Por fim, o Supremo acolheu a primeira posição, declarando a constitucionalidade<br />
da lei. Concorda-se, mais uma vez, com Luiz Roberto Barroso 14 ao afirmar<br />
que o Congresso Nacional, com a edição da referida lei, permitiu o respeito ao<br />
pluralismo, isto é, a autonomia de cada um, já que não obrigou ou alienou a<br />
participação dos genitores no processo, mas, ao contrário, determinou como requisito<br />
do uso das células embrionárias em pesquisas o seu consentimento. Assim, cada<br />
um está apto a agir de acordo com sua moral pessoal.<br />
A Suprema Corte Norte-Americana também já se deparou com casos que<br />
envolvessem desacordo moral razoável. Em 1965, julgou o caso Griswold v.<br />
Connecticut 15 , que se tornou um precedente na Corte. O caso envolvia uma lei do<br />
Estado americano de Connecticut, que proibia o uso de contraceptivos. A lei<br />
14 Ibid., p. 202.<br />
15 US Supreme Court. Griswold v. Connecticut. 381 U.S. 479, 1965.
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 45<br />
determinava como crime o uso de qualquer remédio, artigo medicinal ou instrumento<br />
com o propósito de prevenção contraceptiva.<br />
A Suprema Corte julgou pela inconstitucionalidade da lei, fundamentandose<br />
na proteção constitucional ao direito à privacidade, inserido na garantia do devido<br />
processo legal da 14ª Emenda, que assim dispõe:<br />
[...] Nenhum Estado fará ou imporá nenhuma lei que restrinja os privilégios ou<br />
imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer<br />
pessoa de sua vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal ou<br />
negar qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis. (Tradução<br />
da autora.). 16<br />
Essa foi uma decisão que valorizou a liberdade do indivíduo de qualquer<br />
imposição arbitrária e limitações sem propósitos. Garantiu-se, assim, que a decisão<br />
de planejamento familiar de um casal cabe exclusivamente a este, sendo assunto<br />
privado do casal com seu médico.<br />
Em um momento mais recente, a Suprema Corte Americana julgou o caso<br />
Lawrence v. Texas 17 . Lawrence e Garner, 55 e 31 anos, respectivamente, à época,<br />
homossexuais, foram presos, em 1998, em Houston, Texas, por praticarem atos sexuais<br />
consensuais íntimos no interior de sua casa. Informado por uma denúncia anônima, o<br />
xerife, dentro do apartamento de Lawrence, os prendeu e os enquadrou na lei texana<br />
que proibia certas formas de contatos sexuais íntimos entre membros do mesmo<br />
sexo. A Corte declarou que o estatuto texano não possuía nenhum legítimo interesse<br />
que pudesse justificar sua intromissão na vida pessoal e privada do indivíduo.<br />
Este caso é alarmante, já que muito recente, e, portanto, talvez leve ao<br />
extremo radical de imposição de um argumento moral por parte do Estado texano.<br />
Essa extremidade poderia até descaracterizar o caso como desacordo moral,<br />
levando-o ao conceito de rigorismo moral por parte do Estado, sendo este o polo<br />
extremo, oposto ao laxismo moral, da conduta moral correta. No entanto, presta<br />
ilustrar uma questão que envolve, ainda hoje, desacordo (a igualdade entre casais<br />
homossexuais e heterossexuais). Em uma sociedade pluralista, como a do Texas,<br />
nos Estados Unidos, há espaço para argumentos contra e a favor dessa igualdade.<br />
16 “No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens<br />
of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due<br />
process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws”.<br />
UNITED STATES OF AMERICA. The Constitution of the United States, 1868. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2009.<br />
17 US Supreme Court. Lawrence v. Texas. 381 U.S. 479, 2003.
46<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Porém, o que não parece razoável é a intromissão do Estado na esfera mais íntima<br />
dos indivíduos para impor o seu posicionamento, mesmo que este seja o da maioria.<br />
Tal ação é incompatível com um Estado democrático, que não subsiste sem o<br />
espaço para a liberdade e a igualdade dos seus cidadãos.<br />
São vários casos, em todo o mundo, que abarcam desacordos morais<br />
razoáveis de questões próximas ao indivíduo. Outro exemplo foi a edição da lei<br />
francesa, publicada em 2004, que proibiu o uso de véus islâmicos nas escolas da<br />
França (e de outros artigos religiosos distintivos). A questão levantou tal revolta no<br />
mundo mulçumano que resultou em um sequestro, no Iraque, de repórteres franceses,<br />
com a exigência da revogação da referida lei para libertá-los. A lei entrou em vigor<br />
próximo ao Dia Internacional da Mulher e foi justificada pelo então Presidente<br />
Jacques Chirac, que declarou que as escolas não são lugares de promoção ou<br />
refutação de qualquer religião e que a lei estava baseada nos princípios da laicidade<br />
e nas fundações da República Francesa 18 .<br />
O uso do véu para as jovens mulçumanas é sustentado por um dever religioso<br />
muito forte. Para algumas, pode ser, sim, instrumento de subordinação, mas, para<br />
outras, que de fato creem nas consequências religiosas e morais de seu não uso,<br />
em sua comunidade, consiste em algo muito sério. Mais uma vez, trata-se de uma<br />
imposição estatal de um argumento moral razoável, construído por princípios de<br />
racionalidade, que suprimem e vinculam aqueles que se situam na posição contrária,<br />
que também é construída por princípios da racionalidade (mesmo que advenham<br />
de concepções religiosas, já que esse fato não exclui o caráter razoável de seus<br />
argumentos, segundo Rawls 19 ) e, portanto, um argumento moral razoável.<br />
O que se percebe, nesses últimos casos apontados, é o impacto do<br />
posicionamento do Estado quando este impõe um determinado argumento moral<br />
razoável em detrimento de outro, sem que haja justificação para aqueles que serão<br />
submetidos e vinculados a essa imposição. Democratas procedimentalistas e<br />
constitucionalistas concordam, como apontaram Gutmann & Thompson 20 , que as<br />
instituições democráticas não são justificadas, a não ser que rendam, geralmente,<br />
resultados moralmente aceitáveis. Instituições democráticas que produzem políticas<br />
que negam a alguns cidadãos liberdade de expressão ou outra oportunidade básica<br />
de viver uma vida decente devem ser rejeitadas com base em argumentos morais.<br />
A possibilidade dessa imposição estatal, diante de desacordos morais<br />
razoáveis, é o que será analisado em seguida.<br />
18 DREYER, Diogo. A França sem o véu. In: Portal Aprende Brasil, 2004. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2009.<br />
19 RAWLS, John. Op. cit., passim.<br />
20 GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. Op. cit., passim.
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 47<br />
3. A POSSIBILIDADE DE SUBSISTÊNCIA DO<br />
DESACORDO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO<br />
Primeiramente, buscando um conceito, Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e<br />
Paulo Gustavo Branco explicaram que se entende como Estado democrático de<br />
direito a organização política em que o poder emana do povo, que o exerce<br />
diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e<br />
periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício de<br />
mandatos periódicos, como proclama, dentre outras, a Constituição brasileira. Mais<br />
ainda, segundo os autores, já no plano das relações concretas entre o Poder e o<br />
indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de direito que se empenha em<br />
assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e<br />
políticos, mas também e, sobretudo, dos direitos econômicos, sociais e culturais,<br />
sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos 21 . Acrescentase<br />
o caráter do império objetivo da lei que determina a submissão da sociedade<br />
civil e do Estado à lei objetiva e válida para todos, além de estabelecer as competências<br />
das autoridades estatais, legitimando suas ações.<br />
Ademais, os autores acima mencionados trouxeram como um exemplo de<br />
norma que abarca os princípios que envolvem o conceito de Estado de democrático<br />
de direito o artigo I-2º da Constituição da União Europeia, que assim dispõe:<br />
A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade,<br />
da democracia, da igualdade, do Estado de Direito e do respeito dos direitos,<br />
incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são<br />
comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo,<br />
a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre<br />
mulheres e homens 22 .<br />
Percebe-se, com esse dispositivo, que a democracia moderna parte do<br />
pressuposto da pluralidade quando garante a legitimidade da decisão por maioria,<br />
mas, ao mesmo tempo, resguarda os direitos da minoria. E assim o faz a Constituição<br />
brasileira quando institui, como fundamento, a soberania popular e os meios de<br />
tomada de decisão pelo critério da representação, além de assegurar a participação<br />
popular por diversas maneiras.<br />
São esses, aliás, traços essenciais da democracia moderna: a representação<br />
e a participação. Rodolfo Pereira ensinou que:<br />
21 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires & MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de<br />
Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 149.<br />
22 UNIÃO EUROPEIA. Tratado que estabelece uma Constituição para a União Europeia, 2004. Disponível<br />
em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2009.
48<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
[...] a função representativa, por um lado, associa-se, desde sua origem, à dinâmica<br />
da representação dos interesses e, com isso, tende a reconhecer e garantir o<br />
pluralismo ínsito às sociedades atuais. Continua, dizendo que a função<br />
participativa, por seu turno, prende-se desde as origens às teses da vontade<br />
pública/geral e, portanto, tende a estimular [...] ilhas de consenso necessárias ao<br />
encaminhamento, processamento e solução das divergências 23 .<br />
John Rawls 24 abordou o tema, afirmando ser o pluralismo razoável um<br />
resultado inevitável de instituições livres. Assim, a pluralidade será sempre um<br />
traço de um regime democrático legítimo. Segundo o referido autor, faz parte da<br />
tradição do pensamento democrático a concepção das pessoas como livres e iguais.<br />
A ideia básica é que, em virtude de suas faculdades morais (uma capacidade para<br />
um sentido da justiça e para uma concepção do bem) e das faculdades da razão<br />
(de juízo, pensamento e as inferências vinculadas com essas faculdades), as pessoas<br />
são livres. A posse dessas faculdades em grau mínimo requerido para ser membro<br />
cooperante da sociedade faz com que as pessoas sejam iguais.<br />
O desacordo moral razoável não rechaça os elementos essenciais de um<br />
regime democrático. Ao contrário, tendo o pluralismo como traço essencial da<br />
democracia moderna, caso se tenha que desacordar moralmente sobre políticas<br />
públicas, melhor que seja em uma democracia que respeite ao máximo possível o<br />
arcabouço moral de cada um.<br />
4. A POSIÇÃO DO ESTADO EM FACE<br />
DO DESACORDO MORAL RAZOÁVEL<br />
Como se viu, as noções de pluralidade, liberdade e igualdade do cidadão<br />
são intrínsecas ao conceito de democracia moderna. Rawls 25 sustentou que, como<br />
cidadãos livres e iguais, devem ser-lhes garantidos princípios de tolerância que<br />
consistem em deixar que eles próprios resolvam as questões de religião, filosofia<br />
e moral em concordância com o ponto de vista que professam livremente, sendo<br />
que a concepção política protege os direitos básicos de todos. Claro que isso se<br />
limita, como afirmado pelo autor em tela, aos direitos básicos do outro e nos<br />
consensos mínimos da própria ordem. O que ele acabou por afirmar é que o<br />
Estado deve abster-se de entrar especificamente em tópicos morais que dividam<br />
as doutrinas compreensivas.<br />
23 PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito Constitucional democrático. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.<br />
24 RAWLS, John. Op. cit., passim.<br />
25 Ibid., passim.
O desacordo moral razoável na sociedade plural do estado democrático de direito 49<br />
Rawls 26 demonstrou, ainda, que as instituições do Estado justo precisam ser<br />
neutras no resguardo de qualquer particular teoria do bem que cada cidadão deve<br />
perseguir. Essa neutralidade abarca três caracteres básicos:<br />
1. a ideia de racionalidade definida como a possibilidade de indivíduos<br />
provenientes de diferentes experiências culturais trabalharem uns com os<br />
outros politicamente e tolerarem as culturas de cada um;<br />
2. a ideia de um consenso sobreposto, que precisa ser ampla o suficiente para<br />
abarcar conjuntamente culturas distintas a serem consideradas pelos diversos<br />
campos de regulação governamental e pela legislação;<br />
3. a autonomia dos cidadãos do Estado justo, na esfera pública, invocando a<br />
ideia de razão pública, cidadãos como membros ativos do debate, da legislação<br />
e da revisão constitucional.<br />
Resta, assim, demonstrado que a defesa rawlsiniana sobre o papel do Estado<br />
diante de desacordos morais razoáveis é permitir espaço para a autonomia dos<br />
cidadãos, de modo a agirem de acordo com seu arcabouço moral, respeitado os<br />
direitos básicos dos outros. Dessa forma, o Estado respeita a pluralidade de sua<br />
sociedade, garantindo seu aspecto de Estado livre, justo e democrático. No mesmo<br />
sentindo, concluiu Luiz Roberto Barroso:<br />
Não se trata de pregar, naturalmente, um relativismo moral, mas de reconhecer a<br />
inadequação do dogmatismo onde a vida democrática exige pluralismo e<br />
diversidade. Em situações como essa [interrupção da gestação de feto<br />
anencefálico], o papel do Estado deve ser o de assegurar o exercício da autonomia<br />
privada, de respeitar a valoração ética de cada um, sem a imposição externa de<br />
condutas imperativas. 27<br />
5. CONCLUSÃO<br />
O desacordo moral razoável é constituído pela ausência de consenso em<br />
questões cujas posições, que apontam para soluções diversas, são construídas por<br />
processos razoáveis. Razoáveis no sentido de serem produtos de procedimentos<br />
da razão. Tais posições podem ser morais, filosóficas e até religiosas, o que não<br />
retira o seu caráter de razoáveis, uma vez que são construídas por argumentos<br />
partilhados ou que poderiam ser partilhados pelos membros que participam ou são<br />
atingidos pela discussão.<br />
26 BIRD, Colin. Democracy and its nightmares. In: The Hedgehog Review, Spring, 2000. Disponível<br />
em: . Acesso em: 02 de<br />
fevereiro de 2009.<br />
27 BARROSO, op. cit., p. 181.
50<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Esses desacordos se fazem presentes em um Estado democrático, já que,<br />
existindo instituições livres, que garantam o pluralismo, a liberdade e igualdade dos<br />
cidadãos, estes podem seguir e demonstrar suas concepções nas discussões que<br />
lhes são importantes. Em especial, no caso de questões que envolvam decisões<br />
relacionadas à vida privada do indivíduo, relacionadas à sua intimidade, às suas<br />
convicções religiosas e à sua dignidade, por exemplo, o Estado democrático deve<br />
permitir um espaço para que o indivíduo possa agir de acordo com suas concepções<br />
morais razoáveis, exercendo sua autonomia. Isso, claro, não exclui os direitos básicos<br />
garantidos a todos, nem as instituições de consenso mínimo na Constituição, mas,<br />
ao contrário, é por eles limitado. Nesse sentido, o Estado democrático não deve<br />
impor aos seus membros uma das posições de um argumento moral razoável,<br />
ciente de que essa imposição poderia vincular indivíduos cujas concepções são<br />
opostas a ela. É certo que a decisão do Estado vai além da esfera pessoal de um<br />
cidadão, mas, envolvendo questões que afetam sua vida privada, íntima, o Estado<br />
deve evitar impor uma das posições; ao contrário, deve garantir o exercício da<br />
autonomia de cada um, de acordo com seus posicionamentos.<br />
O presente trabalho procurou explanar esse conceito filosófico do desacordo<br />
moral razoável e demonstrar, por meio de casos concretos, como o Estado pode se<br />
abster, em determinadas esferas, para permitir a autonomia de cada cidadão. Nesse<br />
sentido, o legislador não criminalizar determinada conduta, por exemplo, não significa<br />
sua imposição. Nesse caso, cada indivíduo poderá escolher exercer ou não essa<br />
conduta, de acordo com suas concepções morais. O mesmo acontece com o<br />
Judiciário: impor, por suas decisões, posições que suprimam outros argumentos<br />
morais razoáveis deve ser evitado ao máximo, principalmente quando se tratar de<br />
questões mais próximas ao centro íntimo do indivíduo. Isso é característica de<br />
respeito ao pluralismo de uma sociedade democrática moderna.<br />
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2000. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2009.
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52<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Anotações
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 53<br />
4<br />
Desconsideração da pessoa jurídica:<br />
uma análise sob três perspectivas<br />
Disregard of legal entity: an analysis<br />
under three perspectives<br />
ZILDA MARA CONSALTER<br />
Mestre em Direito Negocial, pela Universidade Estadual de Londrina – UEL,<br />
no Paraná; professora das disciplinas de Direito Civil e Metodologia da Pesquisa Jurídica<br />
nos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG,<br />
no Paraná; líder do Grupo de Pesquisa em Direito Obrigacional<br />
(http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhepesq.jsp?pesq=5471268018863867); advogada;<br />
coautora de Negócio jurídico: aspectos controvertidos à luz do novo Código Civil<br />
(São Paulo: Mundo Jurídico, 2005. 228 p.) e autora de Direito das obrigações em debate:<br />
estudos sobre temas contemporâneos da teoria obrigacional (Ponta Grossa: Eduepg, in press).<br />
E-mail para correspondência: zilda_advocacia@hotmail.com.<br />
RESUMO<br />
VINICIUS DALAZOANA<br />
Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG,<br />
no Paraná; membro pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito Obrigacional<br />
(http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhepesq.jsp?pesq=547126801 8863867).<br />
O presente artigo investiga as três principais teorias aplicáveis para conferir<br />
efetividade aos processos em que pessoas jurídicas são executadas. Apresenta,<br />
ainda, aspectos identificadores, raízes históricas, pressupostos de aplicabilidade e<br />
efeitos de cada teoria. Além disso, retrata como se posicionam doutrina e tribunais<br />
com relação às três técnicas, indicando qual a mais adequada a cada fattispecie.<br />
Palavras-chave: pessoa jurídica, desconsideração, despersonalização inversa, teoria<br />
da aparência.<br />
ABSTRACT<br />
It investigates the three main theories applied to give effect to the Lawsuits which<br />
legal entities are executed. It shows aspects that identifies it, historical roots,<br />
prerequisites for application and effects of each one. It shows how doctrine and<br />
Courts position themselves related to those techniques, indicating which one is<br />
more adequate for each case.<br />
Keywords: legal entity, disregard, depersonalization reverse, appearance theory.
54<br />
1. NOTA INTRODUTÓRIA<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
As teorias da desconsideração da personalidade jurídica são instrumentos<br />
de relevante utilidade prática, mas com vários requisitos de aplicabilidade que podem<br />
despertar muitas dúvidas tanto no pleito pelos causídicos quanto na sua aplicação<br />
pelos magistrados.<br />
Disto surgiu a ideia de realizar um estudo sob as três perspectivas mais<br />
atuais desta possibilidade: primeiro, delinear-se-á o atual “estado da arte”; depois,<br />
encarregar-se-á de destacar os principais aspectos da teoria da desconsideração<br />
inversa e, por derradeiro, apresentar-se-ão os meandros da teoria da aparência.<br />
Essa postura se justifica em razão não somente da já mencionada aplicabilidade<br />
e utilidade dos institutos, mas também devido à confusão entre as suas<br />
subespécies e, por vezes, ao desconhecimento de seus pressupostos de uso pela<br />
comunidade jurídica.<br />
2. DA DESCONSIDERAÇÃO CONVENCIONAL<br />
Impende mencionar que a desconsideração da personalidade jurídica – a que<br />
se chamará de convencional apenas para diferenciá-la das outras duas – constitui-se<br />
em técnica de aperfeiçoamento da pessoa jurídica, porquanto a ausência de parâmetros<br />
para desprezar a personalidade do ente moral poderia levar ao desvirtuamento do<br />
instituto 1 . Neste diapasão, insta sublinhar que o mero débito insatisfeito perante a<br />
sociedade não autoriza a sua desconsideração. Há outros pressupostos.<br />
Gagliano & Pamplona Filho 2 revelaram a adoção da formulação objetiva da<br />
desconsideração, sendo a ideia majoritária no Direito pátrio:<br />
[...] a teoria da desconsideração visa o (sic) superamento episódico da personalidade<br />
jurídica da sociedade, em caso de fraude, abuso ou simples desvio de<br />
função, objetivando a satisfação de terceiro lesado junto ao patrimônio dos<br />
próprios sócios, que passam a ter responsabilidade pessoal pelo ilícito causado.<br />
Pode-se dizer que duas são as concepções desta teoria, a seguir explicitadas.<br />
A objetivista, consagrada por Comparato 3 , que prescinde do elemento<br />
anímico para desconsiderar a personalidade, facilitando sobremaneira a produção<br />
de provas, tutelando com muito mais efetividade interesses de terceiros. Nesta, a<br />
1<br />
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 38.<br />
2<br />
GAGLIANO, Pablo S. & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. Vol. I. 10. ed. São<br />
Paulo: Saraiva, 2008. p. 228.<br />
3<br />
COMPARATO, Fábio Konder. apud COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 45.
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 55<br />
personalidade jurídica será desconsiderada sempre que configurado o desvio de<br />
função ou a confusão patrimonial 4 .<br />
A subjetivista, que elege a fraude como pressuposto fundamental.<br />
Insta, ainda, para início de discussão, destacar a principal vantagem da teoria<br />
da desconsideração, apresentada por Coelho 5 :<br />
[...] aplicação da teoria da desconsideração não importa a dissolução ou anulação<br />
da sociedade. Apenas no caso específico em que a autonomia patrimonial foi<br />
fraudulentamente utilizada, ela não é levada em conta, é desconsiderada, o que<br />
significa a suspensão episódica da eficácia do ato de constituição da sociedade,<br />
e não o desfazimento ou a invalidação desse ato (grifou-se).<br />
Historicamente, o primeiro caso a tangenciar a teoria da desconsideração,<br />
embora não estejam nele presentes os fundamentos de aplicabilidade, foi o famoso<br />
“Bank of United States vs. Deveaux”, de 1809 6 .<br />
Já o caso “Salomon vs. Salomon e Co.”, de 1897, é considerado o leading<br />
case 7 : Aaron Salomon constituiu uma sociedade com seis membros de sua família,<br />
atribuindo a cada um uma ação, ficando ele com as 20 mil restantes. Posteriormente,<br />
emitiu títulos privilegiados de crédito em nome da empresa, e adquiriu-os como<br />
pessoa natural. Sobrevindo a falência da sociedade, Salomon preferiu aos credores<br />
quirografários e executou todo o patrimônio líquido da empresa. Não obstante a<br />
House of Lords apregoar a separação estanque dos patrimônios, a tese desconsiderante<br />
repercutiu na Europa e nos Estados Unidos 8 .<br />
Forçoso é citar, também, o caso “State vs. Standard Oil Co.”, julgado pela<br />
Suprema Corte de Ohio, nos EUA, em 1892: “em que o poder de controle gerencial de<br />
nove empresas petrolíferas concentrou-se nas mãos de acionistas dessa companhia,<br />
sem qualquer alteração na estrutura e na autonomia das sociedades concorrentes” 9 .<br />
O Direito inglês foi o pioneiro também na positivação da teoria, não obstante<br />
não fazer menção a ela expressamente; a norma situava-se na seção 279 do<br />
Companies Act, de 1929 10 .<br />
4<br />
SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo Direito Societário. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 211.<br />
5<br />
COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 43.<br />
6<br />
NAHAS, Thereza Cristina. Desconsideração da pessoa jurídica: reflexos civis e empresariais no<br />
Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 96.<br />
7<br />
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro – teoria geral das obrigações. Vol. 2. São Paulo:<br />
Saraiva, 2004. p. 9.<br />
8<br />
SILVA, Alexandre Alberto T. da. A desconsideração da personalidade jurídica no Direito Tributário.<br />
São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 63-65.<br />
9<br />
COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 53.<br />
10 Ibidem, p. 49.
56<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Já a tese doutoral de Rolf Serick (Universidade de Tübigen, década de<br />
1950) constitui-se na primeira sistematização da teoria, tendo definido os parâmetros<br />
de aplicação da mesma com fulcro, mormente, na jurisprudência estadunidense.<br />
No Direito nacional, o precursor foi Rubens Requião, no artigo “Abuso de direito<br />
e fraude através da personalidade jurídica”, publicado na RT n. 410, em 1969 11 , destacandose<br />
também os trabalhos de Fábio Konder Comparato e José Lamartine Corrêa de Oliveira.<br />
Na legislação, a teoria apareceria apenas décadas mais tarde: o primeiro diploma legal a<br />
albergá-la foi o Código do Consumidor (Lei n. 8.078/90), em seu art. 28:<br />
[...] o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando,<br />
em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração<br />
da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração<br />
também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência,<br />
encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.<br />
[...] §5º: também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua<br />
personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos<br />
causados aos consumidores.<br />
Os dispositivos sequenciais a este primeiro foram: a Lei Antitruste (Lei n.<br />
8.884/94, artigo 18), a Lei Pelé (Lei n. 9.615/95, artigo 27), a Lei de Crimes<br />
Ambientais (Lei n. 9.605/98, artigo 4º) e por fim, o Código Civil, artigo 50, todos<br />
com termos parecidos ao do dispositivo alhures transcrito.<br />
Impende, ainda, lembrar que o parágrafo 2º do artigo 2º da Consolidação<br />
das Leis do Trabalho – CLT e os artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional<br />
– CTN referem-se ao termo responsabilidade, e não desconsideração, como<br />
observaram Gonçalves 12 , Silva 13 e Oliveira 14 .<br />
Também é impossível não lançar um repto ao “silêncio eloquente” do<br />
ordenamento brasileiro quanto à disciplina processual da matéria. Seria de bom<br />
alvitre uma lei processual que regulasse a temática, escoimando os litígios das<br />
amiúdes dubiedades.<br />
Quanto aos tribunais, do exame jurisprudencial, destaca-se a decisão na<br />
sequência, com o fito de ilustrar a forma pela qual vêm se manifestando os magistrados:<br />
A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não<br />
pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente<br />
11 REQUIÃO, Rubens apud SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 274.<br />
12 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 64.<br />
13 SILVA, Alexandre Alberto T. da. Op. cit., p. 119-120.<br />
14 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 529.
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 57<br />
para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova da<br />
insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração)<br />
(sic), ou a demonstração da confusão patrimonial (teoria objetiva da<br />
desconsideração). (STJ, RE n. 279.273/2003, Rel. Min. Nancy Andrighi).<br />
Como visto, a jurisprudência brasileira é, de certo modo, reticente na aplicação<br />
do instituto. Isto se deve, possivelmente, ao fato de que geralmente faz-se uma<br />
intelecção regra/exceção, tratando a separação patrimonial como regra e o uso<br />
desvirtuado da personalidade como exceção.<br />
Esta exceção pode dar-se tanto pela fraude – formulação subjetiva – como<br />
pela disfunção ou confusão de esferas – formulação objetiva.<br />
O maior crítico deste posicionamento é Salomão Filho 15 , que apregoou que<br />
“as soluções, mesmo sem admiti-lo, tendem sempre a um raciocínio regra/exceção”<br />
e destacou: “na jurisprudência, fazem-se sentir fortemente as influências dessa<br />
impostação funcional-unitária da doutrina”.<br />
Assim, é mister enfatizar a destacada utilidade prática da teoria da desconsideração<br />
e, outrossim, lembrar que sua variabilidade concreta é maior do que<br />
costumeiramente se afirma no Direito pátrio.<br />
Na hercúlea tarefa de aperfeiçoamento do instituto, salutar é a preleção de<br />
Fabio Ulhoa Coelho 16 , que arrematou esse primeiro tópico:<br />
[...] a melhor interpretação judicial dos artigos sobre a desconsideração é a que<br />
prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica,<br />
reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas<br />
e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando<br />
necessária à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa<br />
jurídica.<br />
Daí se extrai, também, mais um reflexo da aplicação desta teoria, qual seja,<br />
a de coibir ou mitigar os abusos dos devedores que usam a pessoa jurídica como<br />
“cortina de fumaça” para esgueirar-se dos seus credores e da força do Poder<br />
Judiciário, apresentando-se em importante e eficaz ferramenta de entrega da<br />
prestação jurisdicional a todos os que dela necessitam.<br />
15 SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 229.<br />
16 COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 54.
58<br />
3. DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
A desconsideração inversa é técnica punitiva, de sorte a exigir presentes<br />
todos os seus pressupostos de aplicabilidade. Conquanto tais pressupostos muito<br />
se assemelhem aos da desconsideração tradicional, a fraude que a desconsideração<br />
inversa geralmente coíbe é o desvio de bens 17 .<br />
Neste diapasão, sufragaram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho<br />
que a desconsideração invertida<br />
[...] se dá quando o indivíduo coloca em nome da empresa seus próprios bens,<br />
visando a prejudicar terceiro. [...] Em tal caso, deverá o juiz desconsiderar<br />
inversamente a personalidade da sociedade empresária para atingir o próprio<br />
patrimônio social, que pertence, em verdade, à pessoa física fraudadora 18 .<br />
À guisa de definição, transcreve-se a preleção de Fabio Ulhoa Coelho: “Desconsideração<br />
inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa<br />
jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio”. (grifou-se) 19 .<br />
Insta, ainda, lembrar a necessidade de se proteger o patrimônio social, bem<br />
como os credores da sociedade. Destarte, a desconsideração em sentido inverso<br />
deve ser limitada ao valor anteriormente desviado para o ente moral, conforme<br />
propugnou Calixto Salomão Filho:<br />
No caso imaginado, de transferência indevida de recursos à sociedade, a simples<br />
devolução da contrapartida dessa transferência ao credor (devolução essa<br />
evidentemente limitada ao valor da transferência) não representaria qualquer<br />
diminuição de garantia. Nem mesmo qualquer agressão, direta ou indireta, ao<br />
capital da sociedade. [...] Não há, assim, qualquer lesão aos credores sociais 20 .<br />
No que tange à sua origem histórica, a teoria da desconsideração inversa da<br />
personalidade jurídica consagrou-se doutrinariamente na década de 1950, em<br />
clássica obra de Ulrich Drobnig, intitulada originalmente Haftungsdurchgriff bei<br />
Kapitalgesellschaften 21 . Ele objetivava classificar a desconsideração em quatro<br />
formas principais, sendo que a segunda, ou “primeira variante, em que credor<br />
do sócio de sociedade de capitais busca acionar e executar a sociedade: seria a<br />
penetração invertida” (destaques no original) 22 .<br />
17 COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 46.<br />
18 GAGLIANO, Pablo S. & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 238.<br />
19 COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., p. 46.<br />
20 SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 223-224.<br />
21 DROBNIG, Ulrich apud OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Op. cit., p. 329.<br />
22 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. Op. cit., p. 333.
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 59<br />
Consoante dito alhures, a desconsideração invertida coíbe, via de regra, o<br />
desvio de bens. Responsabiliza-se a sociedade por dívidas do sócio, quando este,<br />
visando a lesar credores, transfere bens para a pessoa jurídica, continuando a<br />
deles gozar livremente. Num primeiro momento, não se pode executar o ente moral,<br />
dada a autonomia patrimonial. Não obstante, uma vez levantado o véu que escondia<br />
o lícito, possibilita-se a satisfação dos credores lesados.<br />
Também no Direito de Família se revela a utilidade do instituto, consoante<br />
obtemperou Maria Helena Diniz, citando Rolf Madaleno:<br />
[...] a teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada na<br />
solução de conflitos de Direito de Família, como nos casos em que um dos<br />
cônjuges, ou conviventes, transfere bens conjugais em nome da empresa para,<br />
sob o manto da personalidade jurídica, fraudar meação nupcial ou a do<br />
convivente. [...] O mesmo se diga se o marido, planejando a separação, usar de<br />
testa de ferro para retirar-se da sociedade e depois retornar a ela com o mesmo<br />
número de quotas. 23<br />
É de se destacar, outrossim, que o “silêncio eloquente” do ordenamento<br />
jurídico pátrio aqui também se repete – tal qual ocorria até poucas décadas atrás<br />
quanto à teoria da desconsideração tradicional – quanto à desconsideração inversa.<br />
Mitigando essa lacuna, o Enunciado n. 283 da IV Jornada de Direito Civil<br />
pontificou: “é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada<br />
‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar<br />
ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”.<br />
É forçoso lembrar, todavia, que a desconsideração da personalidade jurídica<br />
prescinde de lei para a aplicação. Não a utilizar, sob a alegação de ausência de<br />
norma regulamentadora, é prestigiar a fraude e o abuso de direito no sistema<br />
jurídico pátrio 24 .<br />
No tocante aos pretórios, impende transcrever a seguinte decisão, que bem<br />
demonstra a distinção entre as duas formas da desconsideração:<br />
A conveniência de sua utilização no âmbito do Direito de Família já foi abordada<br />
por Rolf Madaleno, em seu artigo intitulado “A disregard no Direito de Família”,<br />
publicado na Revista Ajuris, 57/57-66: O usual dentro da teoria da despersonalização<br />
(sic) é equiparar o sócio à sociedade, e que dentro dela se esconde,<br />
para desconsiderar seu ato ou negócio fraudulento ou abusivo e, destarte, alcançar<br />
23<br />
MADALENO, Rolf apud DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: parte geral. 23. ed.<br />
São Paulo: Saraiva, 2006. p. 302-303.<br />
24<br />
REQUIÃO, Rubens apud SILVA, Alexandre Alberto T. da. Op. cit., p. 93.
60<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
seu patrimônio pessoal, por obrigação da sociedade. Já no Direito de Família sua<br />
utilização dar-se-á de hábito, na via inversa, desconsiderando o ato, para alcançar<br />
bem da sociedade, para pagamento do cônjuge credor familial, principalmente<br />
frente à diuturna constatação nas disputas matrimoniais, de o cônjuge empresário<br />
esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, senão todo, ao<br />
menos o rol mais significativo dos bens comuns. (Rio Grande do Sul. TJRS. 7ª<br />
Câmara. Ap. Cív. n. 598082162. Rel. Des. Maria Berenice Dias.)<br />
Repise-se, outrossim, a imperiosidade da exigência da presença dos<br />
pressupostos de aplicabilidade, sem os quais não se deverá desconsiderar a<br />
personalidade societária. Nesse sentido, apregoou Ada Pellegrini Grinover:<br />
Disso se extrai que, como já salientado, a eficácia e o mérito da desconsideração da<br />
personalidade jurídica dependem também de seu adequado emprego. [...] A<br />
desconsideração, como visto, não é medida que se possa ou que se deva banalizar<br />
e não é panaceia para todos os males de credores em face de possíveis devedores 25 .<br />
Finalmente, é mister sublinhar a relevante utilidade prática do instituto, potente<br />
arma de satisfação creditória, com a entrega da prestação jurisdicional de forma<br />
efetiva e eficaz.<br />
4. DA TEORIA DA APARÊNCIA<br />
A terceira teoria que, de algum modo, pode ser utilizada quando da análise<br />
de relações jurídicas envolvendo pessoas abstratas é aquela que louva o aspecto<br />
externo daquelas ligações, ou seja, a aparência dos fatos e até que ponto isso pode<br />
gerar consequências no âmbito jurídico.<br />
A teoria da aparência encontra ampla guarida no Direito nacional. Desde a<br />
publicística, na “teoria do funcionário do fato”, até o Direito Processual Civil,<br />
permeando igualmente a civilística em suas mais variadas imbricações. Não<br />
obstante, seguindo a esteira das publicações precedentes, será aqui abordada a<br />
seara obrigacional 26 .<br />
Apregoaram Stolze Gagliano e Pamplona Filho que, “em determinadas<br />
situações, a simples aparência de uma qualidade ou de um direito poderá gerar<br />
efeitos na órbita jurídica” 27 . Destarte, pode uma situação fática, nula a prima<br />
25<br />
GRINOVER, Ada Pellegrini. Da desconsideração da pessoa jurídica. Interesse Público, v. 48, p. 13-30,<br />
Belo Horizonte, 2008.<br />
26<br />
GAGLIANO, Pablo S. & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., p. 118.<br />
27 Ibidem, p. 117.
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 61<br />
facie, ser admitida como eficaz pela norma jurídica, em vista da forma como se<br />
externa socialmente.<br />
Nesta linha de intelecção, atribui-se eficácia ao pagamento feito a credor aparente,<br />
que, consoante sufragaram Orlando Gomes e Edvaldo Brito, é “quem se apresenta<br />
como tal ‘à base de circunstâncias unívocas’, capazes de ensejar a convicção, no<br />
solvens, de que é o verdadeiro credor, eis que assim passa aos olhos de todos” 28 .<br />
Para que o pagamento a credor aparente seja validado, é mister que<br />
concorram dois requisitos: (a) a boa-fé é o subjetivo, e “pode ser destruída mediante<br />
a demonstração de que o solvens tinha ciência de que o accipiens não era o<br />
credor, ou podia ser declarado estranho à relação jurídica, [...]” 29 ; e (b) a<br />
escusabilidade do erro, havendo este que ser escusável, não devendo o direito<br />
proteger os incautos.<br />
Lembre-se que, neste tópico, reside um conflito de princípios jurídicos: de<br />
um lado, o respeito aos contratos e o direito do credor de receber o regular<br />
pagamento; de outro, o princípio da boa-fé, ora exigida do devedor criterioso 30 .<br />
Neste diapasão, alertou Álvaro Villaça Azevedo que, “[...] neste caso, mais<br />
alto se alça o princípio da boa-fé, norteador supremo do Direito. Ele é a única<br />
coluna do templo do Direito que não pode ruir, em qualquer momento, sob pena de<br />
negar-se o próprio fundamento da ciência jurídica.” 31 .<br />
Impende, outrossim, salientar que a qualidade de “credor putativo” (artigo<br />
309 do Código Civil – CC 32 ) dependerá do jaez de cada caso concreto, devendo<br />
sempre o magistrado ponderar os elementos casuísticos.<br />
Quanto a isto, admoestou Silvio Rodrigues: “o problema de prova, nessa<br />
matéria, é relevantíssimo, dado o arbítrio conferido ao juiz para decidir se o<br />
accipiens pode ou não ser considerado credor putativo” 33 . Entregue a prestação<br />
ao credor aparente, e seguidos os requisitos de validade da mesma, restará ao<br />
credor real simplesmente exigir o pagamento indevidamente recebido pelo<br />
accipiens putativo.<br />
28<br />
GOMES, Orlando & BRITO, Edvaldo (atualizador). Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.<br />
p. 122.<br />
29<br />
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. II. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 140.<br />
30 Ibidem, p. 139.<br />
31<br />
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações: responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo:<br />
Atlas, 2004. p. 135.<br />
32 Art. 309 do CC. O pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que<br />
não era credor.<br />
33<br />
RODRIGUES, Silvio. Op. cit., p. 140.
62<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Extenso é rol de exemplos onde emerge a figura da aparência, mas, consoante<br />
Silvio Rodrigues, o caso mais frequente é o do herdeiro aparente 34 : “apresenta-se<br />
essa figura quando uma pessoa, em virtude de dada circunstância, parece ser a<br />
sucessora do de cujus, embora em rigor não tenha tal qualidade” 35 .<br />
Álvaro Villaça Azevedo lembrou também que, “se alguém se intitula<br />
proprietário de uma casa e a aluga a outrem, que paga, regularmente, os aluguéis,<br />
caso fique provada a boa-fé deste e que aquele não seja o legítimo proprietário do<br />
imóvel, válidos serão os pagamentos dos aluguéis realizados” 36 .<br />
Pontes de Miranda mencionou, ainda, as hipóteses do inventariante sem<br />
direito à nomeação e do testamenteiro aparente 37 .<br />
Arnaldo Rizzardo trouxe a lume exemplos como o possuidor de cheque ao<br />
portador, que o tenha subtraído ou mesmo falsificado a assinatura, de sorte a não se<br />
perceber a diferença com a do titular da conta do depósito, a não ser mediante perícia;<br />
e o cessionário de um crédito, vindo a anular-se, postumamente, o título creditício 38 .<br />
Arnoldo Wald recordou interessante exemplo: “o síndico de um edifício que<br />
foi eleito, conforme ata de assembleia geral, está autorizado a receber as<br />
contribuições do condomínio, sendo considerado tal pagamento válido mesmo se<br />
depois vier a ser anulada a assembleia por qualquer vício de forma” 39 . Finalmente,<br />
mencione-se que não é credor putativo o falso procurador 40 .<br />
Objetivando o melhor entendimento da temática, afigura-se ineludível o exame<br />
jurisprudencial. Para isso, transcreve-se a seguinte decisão, que bem retrata o<br />
tratamento dispensado à teoria da aparência nos pretórios nacionais:<br />
Locação. Ação de despejo por falta de pagamento. Credor putativo. Art. 935<br />
(309) do CC. Teoria da Aparência. Recurso desacolhido. I – Demonstrado que o<br />
locatário teve inequívoca ciência da alienação do imóvel e de que deveria pagar<br />
os locativos daí por diante ao novo proprietário, não se há como reputar válido<br />
o pagamento realizado ao alienante. II – A incidência da teoria da aparência, em<br />
face da norma do art. 935 do Código Civil, calcada na proteção ao terceiro de<br />
34 RODRIGUES, Silvio. Op. cit., p. 137.<br />
35 RODRIGUES, Silvio. Loc. cit.<br />
36 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., p. 134.<br />
37 MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Tratado de direito privado. Vol. XXIV. 3. ed. Rio de Janeiro:<br />
Borsoi, 1971. p. 111.<br />
38 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações: Lei n. 10.406, de 10/01/2002. 4. ed. Rio de Janeiro:<br />
Forense, 2008. p. 309.<br />
39 WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil brasileiro: obrigações e contratos. Vol. II. 5. ed. São Paulo:<br />
Revista dos Tribunais, 1979. p. 55.<br />
40 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 251.
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 63<br />
boa-fé, reclama do devedor prudência e diligência, assim como a ocorrência de<br />
um conjunto de circunstancias que tornem escusável o seu erro (REsp n. 12.592-<br />
SP (1991/0014208-5), 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 23/3/1993,<br />
DJ, 26 de abril de 1993, p. 7.212) (grifou-se).<br />
Para finalizar esse tópico, é importante mencionar que, na esfera legal,<br />
especialmente no novel Código Civil, a teoria da aparência vem positivada, além<br />
do já citado dispositivo (artigo 309 do CC), em diversos outros, como os artigos<br />
686, 1.561, e 1.817, regendo relações obrigacionais puras ou não.<br />
5. CONSIDERAÇÕES DERRADEIRAS<br />
Após o estudo, é importante contrapor as teorias analisadas com o escopo<br />
de traçar as suas precípuas distinções e/ou congruências e arrematá-lo de forma<br />
adequada.<br />
Calixto Salomão Filho diferençou as técnicas quanto à participação na<br />
organização societária:<br />
Apenas na ausência de participação da organização societária aplicar-se-iam<br />
os institutos civilísticos em detrimento da teoria da desconsideração. Exemplo<br />
típico é a teoria da aparência. Ali, trata-se de ato (ou sequência de atos) atinente<br />
às relações externas da sociedade, em que não há participação da organização<br />
societária 41 .<br />
Além disto, impende considerar situações semelhantes àquelas acima<br />
tratadas, em que a pessoa jurídica afigura-se como credor ou devedor putativo (ou<br />
aparente), quando se aplicam, quantum satis, os mesmos princípios aduzidos e<br />
expendidos alhures.<br />
Também é de se destacar a possibilidade de aplicação da teoria da aparência<br />
quando a pessoa jurídica, embora tenha a aparência de regular, de fato seja<br />
organizada informalmente ou que desobedeça a algum requisito em sua composição<br />
(verdadeiras sociedades de fato).<br />
Neste caso, para haver eventual cobrança de créditos contraídos pela pessoa<br />
jurídica (de fato), ao invés de aplicar-se a teoria da desconsideração ou da<br />
desconsideração inversa, por não ocorrer, ao menos juridicamente, a existência<br />
desta pessoa abstrata, a teoria a ser aplicada é a da aparência, e não aqueloutras<br />
mencionadas.<br />
41 SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 237.
64<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Por outro lado, das três teorias, a que pode ser usada igualmente no Direito<br />
de Família é a teoria da desconsideração inversa, para os casos de burla da meação<br />
em caso de separação judicial, e a teoria da aparência, nos casos de devedores de<br />
alimentos que desviam seu patrimônio para terceiros para escusar-se de adimplir<br />
esse tipo de crédito pessoal.<br />
Quanto a um comparativo entre as duas teorias da desconsideração, ressalvados<br />
os pressupostos de aplicação de cada uma, há que se destacar que ambas<br />
apresentam-se muito úteis em situações opostas: quando o devedor pessoa física<br />
utiliza-se da pessoa jurídica para desviar-se do pagamento de seus créditos pessoais<br />
e quando, para privar credores da pessoa jurídica do adimplemento dos haveres,<br />
desvia-se o patrimônio da mesma para o das pessoas físicas que com ela tenham<br />
alguma conexão.<br />
Cumpre repisar, em tempo, a necessidade da presença absoluta dos<br />
pressupostos autorizatórios do desprezo da personalidade jurídica para que seja<br />
aplicada qualquer das técnicas em comento.<br />
A pessoa moral é criação valiosa do Direito moderno, instrumento de inefável<br />
função na ordem socioeconômica hodierna. Se não se podem prestigiar condutas<br />
fraudulentas, tampouco deve-se tornar o instituto da desconsideração panaceia<br />
para todos os males.<br />
Deste modo, entende-se, com este ato derradeiro, ter sido dado um satisfatório<br />
deslinde ao estudo proposto, vez que foram abordadas, mesmo que rapidamente,<br />
as três poderosas ferramentas que o ordenamento jurídico e o arcabouço<br />
doutrinário fornecem aos que militam em prol da efetividade da Justiça, especialmente<br />
quando o instituto da pessoa jurídica é usado de forma incongruente com o<br />
que dele se espera.
Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas 65<br />
REFERÊNCIAS<br />
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações: responsabilidade civil.<br />
10. ed. São Paulo: Atlas, 2004.<br />
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. 10. ed. São Paulo:<br />
Saraiva, 2007.<br />
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: parte geral. 23. ed. São<br />
Paulo: Saraiva, 2006.<br />
GAGLIANO, Pablo Stolze & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil.<br />
Vol. I. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.<br />
GOMES, Orlando & BRITO, Edvaldo (atualizador). Obrigações. 17. ed. Rio de Janeiro:<br />
Forense, 2008.<br />
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: teoria geral das obrigações.<br />
Vol. II. São Paulo: Saraiva, 2004.<br />
GONÇALVES, Oksandro. Desconsideração da personalidade jurídica. 4ª reimpr.<br />
Curitiba: Juruá, 2008.<br />
GRINOVER, Ada Pellegrini. Da desconsideração da pessoa jurídica. Interesse Público,<br />
v. 48, p. 13-30, Belo Horizonte, 2008.<br />
MIRANDA, Francisco C. Pontes de. Tratado de direito privado. Vol. XXIV. 3. ed.<br />
Rio de Janeiro: Borsoi, 1971.<br />
NAHAS, Thereza Christina. Desconsideração da pessoa jurídica: reflexos civis<br />
e empresariais no Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.<br />
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São<br />
Paulo: Saraiva, 1979.<br />
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações: Lei n. 10.406, de 10/01/2002. 4. ed.<br />
Rio de Janeiro: Forense, 2008.<br />
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. II. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.<br />
SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo Direito Societário. 3. ed. São Paulo: Malheiros,<br />
2006.<br />
SILVA, Alexandre Alberto Teodoro da. A desconsideração da personalidade<br />
jurídica no Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2007.<br />
WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil brasileiro: obrigações e contratos. Vol.<br />
II. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979.
66<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Anotações
A relação entre dignidade humana e interesse público 67<br />
5<br />
A relação entre dignidade<br />
humana e interesse público<br />
The relationship between human<br />
dignity and public interest<br />
ZUENIR DE OLIVEIRA NEVES<br />
Advogado; especialista em Direito Público, pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais<br />
– Anamages, em convênio com o UniCentro Newton Paiva, de Minas Gerais;<br />
especialista em Direito Processual Civil, pelo Centro de Atualização em Direito – CAD da<br />
Universidade Gama Filho – UGF; especialista em Direito Constitucional, pelo Instituto de Educação<br />
Continuada – IEC da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG.<br />
E-mail para correspondência: zuenirneves@gmail.com.<br />
RESUMO<br />
O presente artigo visa a discorrer sobre as implicações trazidas pelo princípio da<br />
dignidade humana – por sua vez alçado a fundamento do Estado democrático de<br />
direito, conforme preleciona o artigo 1º, III, da CR/88 – sobre o conceito de interesse<br />
público e o princípio que o alberga, qual seja a supremacia sobre o interesse privado.<br />
Palavras-chave: bem comum, interesse público, princípio da dignidade da pessoa<br />
humana, princípio da supremacia do interesse público.<br />
ABSTRACT<br />
This article aims to discuss the consequences brought by the principle of human<br />
dignity, regarded as the reason of the democratic State of law, according to the<br />
Brazilian Constitution (article 1, III) on the concept of public interest and its principle,<br />
which is the supremacy over the private interest.<br />
Keywords: common good, public interest, principle of human dignity, supremacy of<br />
public interest.
68<br />
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
A relação travada entre o público e o privado não significou carência de<br />
divergências, e a História só se fez síntese porque comportou antíteses. Estas,<br />
entretanto, em sua maioria, foram baseadas em teorias unilaterais, que, apesar de<br />
importantes, revelaram, no embate discursivo, verdadeiros “diálogos de surdos”, à<br />
medida que valorizavam ora o interesse dos déspotas (absolutismo), ora o do<br />
indivíduo, sem alcançar um “conceito de comunidade enquanto realidade portadora<br />
de uma essência, valor e fim superiores ao indivíduo” – liberalismo individualista –<br />
(MESSNER apud MARTINS FILHO, 2000), ora o da comunidade, sem atingir a “realidade<br />
total da pessoa humana, com seus fins suprassociais e o seu valor de ordem<br />
suprassocial” – coletivismo (MESSNER apud MARTINS FILHO, 2000).<br />
Nesse trajeto, conceitos jurídicos foram vulnerados e direitos violados em<br />
nome da defesa do que se concebia como interesse público. Este mesmo foi<br />
considerado como sendo, em determinados momentos, o “da maioria”, em outros,<br />
o “do Estado” e “da coletividade”.<br />
Entretanto, atualmente, vozes têm se levantado no sentido de afirmar que o<br />
termo “interesse público”, mesmo em se tratando de um conceito jurídico indeterminado,<br />
deve ser interpretado a partir da exigência de proteção da pessoa.<br />
Com relação à sua hierarquia, a supremacia e a indisponibilidade, tidas, até<br />
então, por axiomas utilizados em situações de contenção/suspensão/supressão, enfim,<br />
de relativização dos direitos fundamentais pelos poderes estatais, alçados, alhures, à<br />
condição de tutores dos interesses coletivos, têm sido postas à prova por assertivas<br />
envolvendo as sub-regras da proporcionalidade do ato administrativo, consistentes<br />
na adequação, na necessidade e na proporcionalidade em sentido estrito.<br />
No fluxo desse entendimento, o presente artigo visa a discorrer sobre as<br />
implicações trazidas pelo princípio da dignidade humana – por sua vez alçado a<br />
fundamento do Estado democrático de direito, conforme preleciona o artigo 1º, III,<br />
da CR/88 – sobre o conceito de interesse público e o princípio que o alberga, qual<br />
seja a supremacia sobre o interesse privado.<br />
2. UMA DICOTOMIA INVENTADA: A CONTRAPOSIÇÃO<br />
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO COMO REFLEXO<br />
DA NÃO CONSIDERAÇÃO DO BEM COMUM<br />
No entendimento do signatário deste artigo, o critério da titularidade do<br />
interesse para diferençar a categoria pública da privada não só induz à perigosa<br />
conclusão sobre uma contraposição, como, também, à crença na necessidade de
A relação entre dignidade humana e interesse público 69<br />
superação de uma dicotomia, que – se considerada a definição desta palavra, pela<br />
ciência lógica, como “divisão de um conceito em dois outros, em geral, contrários,<br />
que lhe esgotam a extensão” (HOLANDA FERREIRA, 1993: 185) – não deveria ocorrer.<br />
Caso se insista em definir o interesse público como sendo o “do Estado e<br />
das pessoas jurídicas de direito público, bem como o interesse de todos sem ser de<br />
nenhum particular” (GUSMÃO, 1995: 156), corre-se o risco de incursão no critério<br />
excludente de interesses privados, negador, por sua vez, da perspectiva aristotélicotomista<br />
do bem comum, segundo a qual este é “o fim das pessoas singulares que<br />
existem na comunidade, como o fim do todo é o fim de qualquer de suas partes”<br />
(MARTINS FILHO, 2000).<br />
Quando o Estado, na condição de gestor dos interesses da coletividade,<br />
impõe normas de conduta, fá-lo para manter ou restaurar as possibilidades de<br />
convivência da comunidade que o alçou a tal missão. Mas isso não o autoriza a,<br />
encarnando os interesses da coletividade, furtar-se a conferir aos privados a eficácia<br />
pretendida pelo ordenamento, sob o argumento de superioridade do interesse público,<br />
pena de arranhadura do bem comum.<br />
Se é correto dizer que cabe ao Estado gerir os interesses da coletividade,<br />
impondo condutas para garantia do bem comum, não é razoável se pré-admitir que<br />
aquilo a que correntemente se chama de interesse público seja superior e, dessa<br />
forma, possa se opor ao que se denomina interesse privado, e vice-versa, porque<br />
ambos hão de se relacionar de forma inclusiva, ou seja, garantindo-se<br />
reciprocamente, a partir das noções elementares do bem comum, quais sejam a<br />
finalidade, a bondade, a participação, a comunidade e a ordem 1 .<br />
O contrário disso é interesse egoístico, que não se coaduna com a premissa<br />
segundo a qual, desde que o homem existe, coexiste e convive, a viabilidade de<br />
qualquer interesse que veicule depende do agir pautado na solidariedade, mínimo<br />
necessário à existência e à estabilidade de qualquer organismo social e conteúdo<br />
objetivo do bem comum 2 .<br />
Conclui-se que a falsa noção de contraposição entre o interesse público e o<br />
privado é reflexo do agir não orientado ou semiorientado à consecução do bem<br />
comum. Assim,<br />
1 A respeito, ver MARTINS FILHO (2000).<br />
2 Segundo Alceu Amoroso Lima, “a alma do Bem Comum é a Solidariedade. E a solidariedade é o<br />
próprio princípio constitutivo de uma sociedade realmente humana, e não apenas aristocrática,<br />
burguesa ou proletária. É um princípio que deriva dessa natureza naturaliter socialis do ser humano”<br />
(LIMA apud MARTINS FILHO, 2000).
70<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Para fundamentar qualquer teoria social, é peça de fundamental importância o<br />
Princípio do Bem Comum. Ao contrário do que se possa pensar, não é um<br />
princípio meramente formal ou demasiadamente genérico e teórico, sem<br />
conteúdo determinado, mas um princípio objetivo, que decorre da natureza<br />
das coisas e possui inúmeras consequências práticas para o convívio social<br />
(MARTINS FILHO, 2000).<br />
3. A CONSECUÇÃO DO BEM COMUM DEPENDE<br />
DO PROCESSO HISTÓRICO<br />
Mas a deficiência no agir em conformidade com o bem comum não pode<br />
constituir negativa ao caráter dinâmico da história e à necessidade de mudanças.<br />
Assim, por exemplo, é que o próprio contexto social de insatisfação com os<br />
métodos parciais de solução das controvérsias individuais, consistentes na autotutela<br />
(ou autodefesa) e na autocomposição (desistência, submissão e transação), presentes<br />
desde os primórdios civilizacionais, possibilitou a transição para a justiça pública,<br />
cuja legitimidade se estende aos dias atuais. Essa transição permitiu a atribuição<br />
da função ordenadora ao Estado, cuja ingerência nas relações privadas se deu,<br />
primeiramente, por meio de árbitros supostamente imparciais, e, num segundo<br />
momento, pelo surgimento de legisladores imbuídos da função de formular<br />
parâmetros obrigatórios de julgar.<br />
Da mesma forma se deu com o desenvolvimento do individualismo liberal,<br />
afiançado pelo princípio da legalidade, e do regime jurídico-administrativo, calcado<br />
no princípio da supremacia do interesse público, que manteve verticalizada a relação<br />
entre Administração e indivíduo. O contexto de incontrolável personalização e patrimonialização<br />
absolutista do poder desaguou em reações que demandariam maiores<br />
garantias dos direitos individuais, mediante a limitação dos poderes do Estado.<br />
Isso não implica dar atestado de perfeição aos novos sistemas que se instalavam,<br />
mesmo porque, sob o pálio da justiça pública e do Estado liberal, direitos<br />
vários foram violados sob o pretexto de garantia do interesse público, mas, ao<br />
contrário, ressaltar que a relativa dicotomia não significou carência de divergências,<br />
e a História só se fez síntese porque comportou antíteses. Estas, entretanto, como<br />
já ressaltado, em sua maioria, foram baseadas em teorias unilaterais, que, apesar<br />
de importantes, revelaram, no embate discursivo, verdadeiros “diálogos de surdos”,<br />
à medida que valorizavam ora o interesse dos déspotas (absolutismo), ora o do<br />
indivíduo, sem alcançar um “conceito de comunidade enquanto realidade portadora<br />
de uma essência, valor e fim superiores ao indivíduo” – liberalismo individualista –<br />
, ora o da comunidade, sem atingir a “realidade total da pessoa humana, com seus
A relação entre dignidade humana e interesse público 71<br />
fins suprassociais e o seu valor de ordem suprassocial” – coletivismo (MESSNER<br />
apud MARTINS FILHO, 2000).<br />
Por outro lado, por mais procedentes sejam as críticas que denunciam<br />
manobras ideológicas nos dois exemplos acima citados – mormente no segundo,<br />
em que a ideia de unitarismo (um interesse, um gestor, um representante da vontade<br />
geral etc.) foi marcante –, é necessário admitir que tanto a justiça privada quanto<br />
o poder absoluto não comportariam a mesma abertura para a defesa da vida, da<br />
liberdade e da integridade físico-psíquica, e que, portanto, violavam em maior<br />
intensidade o bem comum.<br />
4. A IMPORTÂNCIA DA DIGNIDADE HUMANA NO PÓS-POSITIVISMO<br />
É atrelada à apreensão histórica da noção do bem comum que a influência<br />
da perspectiva dita personalista ganha relevância a partir do constitucionalismo da<br />
segunda metade do último século.<br />
Não mais se deve considerar o homem como ser abstrato, autônomo e titular<br />
de uma liberdade negativa (concepção liberal), nem animal político, atado a um<br />
grupo social – parte de um todo –, que, algures, submetia-se a um poder superior<br />
negador do direito à liberdade e à igualdade naturais (concepção organicista<br />
aristotélica).<br />
No magistério de Sarmento:<br />
A ótica que prevalece nesta matéria no constitucionalismo contemporâneo é a<br />
do personalismo, que busca uma solução de compromisso entre as concepções<br />
individualista e coletivista. O ser humano é considerado um valor em si mesmo,<br />
superior ao Estado e a qualquer coletividade a qual integre. Mas, de outra banda,<br />
o homem que se tem em vista é um ser palpável, histórica e geograficamente<br />
situado, que partilha valores e tradições com seus semelhantes e que tem<br />
necessidades que devem ser atendidas. É o homem que não apenas vive, mas<br />
convive (SARMENTO, 2003: 69).<br />
Assim, o “novo constitucionalismo”, sob os auspícios da doutrina filosófica<br />
personalista, passou a encarar o homem como ser concreto, cuja dimensão coletiva,<br />
a despeito de autorizar eventuais restrições a direitos reconhecidamente<br />
constitucionais, desde que respeitada a proporcionalidade, não o afasta do contexto<br />
da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais, constante do artigo 5,<br />
§1º, da CR/88, que impõe o implemento do mínimo existencial.<br />
Em tais circunstâncias, desponta, no epicentro da discussão, o princípio da<br />
dignidade humana, alçado a fundamento do Estado democrático de direito, conforme
72<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
preleciona o artigo 1º, III, da CR/88, embora a preocupação com sua noção remonte<br />
à era judaico-cristã 3 .<br />
Desde então, a pós-modernidade tem presenciado o surgimento de teorias<br />
jurídicas que tomam a justiça por fundamento do direito positivo, consentâneas, por<br />
sua vez, com as necessidades de um neoconstitucionalismo principialista, adotante<br />
do pós-positivismo como paradigma filosófico que confere força normativa à<br />
Constituição e supera a legalidade estrita, sem, no entanto, reduzir o direito à moral.<br />
Diz-se, sobretudo, que a neutralidade e a objetividade visadas pelo positivismo<br />
kelseniano, pretensamente desvinculado da moral e da política, e equiparador da<br />
legitimidade, da validade e da vigência, na busca de certeza jurídica, não contiveram<br />
os desmandos hitleristas e fascistas, de ampla justificação legal e apoio popular.<br />
Foi com a derrocada ítala e germânica, que, no contexto do pós-guerra,<br />
resgatou-se definitivamente o compromisso humanista, assumido pelas revoluções<br />
dos setecentos, e se aferiu a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais,<br />
por sua vez fundados na dignidade humana, fator este atribuidor de justificação<br />
ética ao Estado, cujo poder é limitado pela Constituição. Dentre as funções do<br />
mencionado princípio, destacam-se a de legitimador ético da Constituição, bem<br />
como a de limitador e norteador da atuação do Estado, sem contar o papel<br />
hermenêutico unificador da ordem jurídica que desempenha 4 .<br />
5. POR UMA RELEITURA PÓS-POSITIVISTA DO<br />
INTERESSE PÚBLICO: A DIGNIDADE HUMANA<br />
COMO PARÂMETRO DE SUA IDENTIFICAÇÃO<br />
Em razão da importância atualmente conferida ao princípio da dignidade<br />
humana na pós-modernidade, tem-se problematizado não só o termo “interesse<br />
público”, como, também, as alegações sobre sua superioridade.<br />
Trata-se, sem margem de dúvidas, de posturas afinadas com o fenômeno<br />
neoconstitucionalista da “filtragem”, segundo o qual procede-se à releitura<br />
teleológica e sistêmica do direito – ex vi da legalidade enquanto juridicidade,<br />
constitucionalidade ou legitimidade, levando-se em conta a força normativa atribuída<br />
às bases do regime jurídico administrativo, de cujos princípios implícitos e explícitos<br />
decorrem, diretamente, direitos subjetivos.<br />
3 Segundo Sarmento, “a ideia de dignidade assenta raízes na tradição do pensamento judaico-cristão, a<br />
partir da concepção do homem como ser criado à imagem e semelhança de Deus” (SARMENTO, 2003: 61).<br />
4 A respeito, ver SARMENTO (2003: 70-73).
A relação entre dignidade humana e interesse público 73<br />
Por tal razão, o interesse público não pode ser definido como sendo o do<br />
Estado, porque este, além de ser tão só um elemento do espaço público, não detém<br />
“carta branca” para restringir direitos, dada a ausência de cláusula geral que o<br />
permita; nem como o da maioria ou o da coletividade, em face da supercomplexidade<br />
social e da exigência de defesa e de socialização das minorias.<br />
Conclui-se, na linha de entendimento de Grande Júnior (2006), que o interesse<br />
público é aquele para o qual a Constituição, cujo núcleo é a dignidade humana, foi<br />
projetada a realizar. Por abstrato, parece indeterminável, mas não o é, eis que sua<br />
detecção se faz pela análise articulada da realidade com as regras e os princípios<br />
próprios da Constituição ou da lei que com ela esteja conforme.<br />
6. A INVIABILIDADE DA SUPREMACIA DO INTERESSE<br />
PÚBLICO SOBRE O PRIVADO NO CONTEXTO DO<br />
ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO<br />
A supremacia, tida, até então, por axioma utilizado em situações de contenção/<br />
suspensão/supressão, enfim, de relativização dos direitos fundamentais pelos poderes<br />
estatais, alçados, alhures, à condição de tutores dos interesses coletivos, tem sido posta à<br />
prova por assertivas envolvendo as sub-regras da proporcionalidade do ato administrativo,<br />
consistentes na adequação, na necessidade e na proporcionalidade em sentido estrito.<br />
É que a Constituição não hierarquiza direitos fundamentais. Ao contrário,<br />
organiza-os sistêmica e harmonicamente, sem desconsiderá-los em suas diferenças,<br />
além de reputá-los intangíveis pelo Estado, com quem o homem, na modernidade,<br />
rompeu a relação de “vassalagem” para ocupar a posição de cidadão. A mencionada<br />
diferença não comporta a existência de um fundamento absoluto para os direitos<br />
fundamentais, razão pela qual são eles considerados heterogêneos, e, assim,<br />
dificilmente integralizáveis em sua plenitude.<br />
Sobre o caráter heterogêneo dos direitos fundamentais, vale a lição de Bobbio<br />
(1992):<br />
Os direitos sociais, que se realizam mediante obrigações positivas, e as liberdades<br />
tradicionais, que exigem obrigações negativas, um não fazer, são antinômicos,<br />
no sentido de que o desenvolvimento deles não pode proceder paralelamente,<br />
porque a realização integral de uns impede a realização integral dos outros. Dois<br />
direitos fundamentais, mas antinômicos, não podem ter, um e outro, um<br />
fundamento absoluto, ou seja, um fundamento que torne um direito e o seu<br />
oposto, ambos, inquestionáveis e irresistíveis. O fundamento absoluto não é<br />
apenas uma ilusão; em alguns casos, é também um pretexto para defender posições<br />
conservadoras (BOBBIO, 1992: 33).
74<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Uma vez constatada a antinomia, impõe-se a técnica da ponderação, realizável<br />
previamente pela própria Constituição, ou, ainda, mediante conformação legislativa,<br />
ou pelo Poder Judiciário, principalmente quando o órgão legiferante desconsidera<br />
princípios constitucionais.<br />
O que não se admite é que haja a supremacia de tal ou qual interesse,<br />
porque é a mesma Constituição que, considerada em sua unidade material e formal<br />
(ideias respectivas de relação total e de a-hierarquia entre os dispositivos), impõe<br />
uma relativização atenta à máxima eficácia dos direitos fundamentais em face da<br />
existência do princípio da dignidade da pessoa humana.<br />
Por isso, autores há negando a superioridade conferida ao interesse público,<br />
em verdadeira crítica ao “princípio” correlato 5 , que, segundo se afirma, se trata,<br />
em verdade, de uma regra abstrata de preferência, verificável pela análise conjunta<br />
e ponderada com outros interesses. Criticam-no como princípio, dada a sua abstrata<br />
indeterminabilidade e incompatibilidade com a proporcionalidade e a concordância<br />
prática, bem como a ausência de fundamento de validade de que é acometido.<br />
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
A proeminência dos direitos fundamentais no constitucionalismo contemporâneo,<br />
porque atribuiu nova roupagem ao conceito de interesse público, fez com<br />
que este se aproximasse mais da ideia de bem comum, aqui brevemente abordada<br />
na perspectiva aristotélico-tomista, segundo a qual o todo e suas partes perseguem<br />
o mesmo fim, a felicidade. Fora dessa perspectiva, a relação de oposição não se<br />
dá entre os interesses público e privado, e sim entre interesse egoístico e bem<br />
comum, que foi contrariado em suas noções básicas de finalidade, bondade,<br />
participação, comunidade e ordem.<br />
É nesse ponto que o princípio ético do bem comum e o princípio jurídico da<br />
dignidade humana convergem para conferir justificação ética ao Estado, e não só<br />
demonstrar a ausência de superioridade do interesse público sobre o privado, como<br />
também a inexistência de dicotomia entre eles.<br />
A despeito de não se ver razão nem para uma “dicotomia” (entendida como<br />
contraposição) entre o interesse público e o privado nem, muito menos, para sua<br />
superação, não se ignora a necessidade da técnica da ponderação em casos de<br />
5 Para mais informações, consultar o ensaio intitulado “Repensando o princípio da supremacia do<br />
interesse público sobre o particular”, de Humberto Ávila, que aponta limites conceituais e normativos<br />
ao qualificativo de princípio atribuído à supremacia do interesse público.
A relação entre dignidade humana e interesse público 75<br />
colisão, dada a diversidade de fundamentos dos interesses envolvidos, medida essa<br />
que se justifica para que a persecução de um interesse não se converta no seu<br />
exercício egoístico, violador da noção de comunidade.<br />
Foi atentando para esse detalhe que a Constituição de 1988 erigiu à condição<br />
de princípio a máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais, constante do<br />
artigo 5º, §1º, da CR/88, e, conforme se notou, torna-se impossível pré-afirmar a<br />
existência de um “princípio da supremacia do interesse público”, considerada a<br />
noção de unidade material e formal da Constituição (ideias respectivas de relação<br />
total e de a-hierarquia entre os dispositivos constitucionais).<br />
Em termos amplos, a questão da dignidade humana e a supremacia do<br />
interesse público chega a ter pontos de contato com a discussão sobre a legitimação<br />
do poder político pelo direito, ou seja, a relação entre Têmis e Leviatã, tão bem<br />
desenvolvida por Marcelo Neves (2008) em sua obra, que coloca a conciliação<br />
entre poder eficiente e direito legitimador como um dos problemas do Estado<br />
democrático de direito 6 .<br />
Em termos específicos, lida com a elevação do princípio da dignidade humana<br />
à condição de fundamento do Estado democrático de direito e a nova roupagem<br />
que se dá ao interesse público no constitucionalismo contemporâneo, que se<br />
concentra na pessoa concreta.<br />
6 Segundo Neves (2008: XVIII), “nesse tipo de Estado, Têmis deixa de ser um símbolo abstrato de<br />
justiça para se tornar uma referência real e concreta de orientação da atividade de Leviatã. Este, por<br />
sua vez, é rearticulado para superar a sua tendência expansiva, incompatível com a complexidade<br />
sistêmica e a pluralidade de interesses, valores e discursos da sociedade moderna.”
76<br />
REFERÊNCIAS<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio<br />
de Janeiro: Campus, 1992. 240 p.<br />
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas,<br />
2004. 751p.<br />
GRANDE JÚNIOR, Cláudio. A proporcionalização do interesse público no Direito<br />
Administrativo brasileiro. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região,<br />
v. 18, n. 6, p. 55-70, Brasília, junho, 2006. Disponível em: .<br />
Acesso em: 10 de dezembro de 2009.<br />
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do Direito. 17. ed. Rio de<br />
Janeiro: Forense, 1995. 476p.<br />
HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Minidicionário da Língua Portuguesa.<br />
3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 185.<br />
MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. O princípio ético do bem comum e a concepção<br />
jurídica do interesse público. Jus Navigandi, ano 5, n. 48, Teresina, dezembro,<br />
2000. Disponível em: . Acesso em:<br />
10 de dezembro de 2009.<br />
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 2. ed. São Paulo:<br />
Martins Fontes, 2008. 354p.<br />
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. 1. ed.<br />
Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003. 220p.
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 77<br />
6<br />
Contratos internacionais de seguro<br />
marítimo de mercadorias: uma análise<br />
comparativa entre a legislação<br />
brasileira e a inglesa<br />
International marine insurance<br />
contracts of goods: a<br />
comparative analysis between<br />
english and brazilian legislation<br />
JOSÉ CARLOS DE CARVALHO FILHO<br />
Advogado; mestrando em Direito, pela Universidade Católica de Santos – Unisantos;<br />
pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil, pela Universidade Estadual Paulista –<br />
Unesp, de Franca. E-mail para correspondência: jcfilholaw@gmail.com.<br />
RESUMO<br />
O presente estudo possui como objetivo uma análise comparativa entre a legislação<br />
inglesa e a brasileira com relação aos contratos internacionais de seguro de mercadorias<br />
no âmbito do Direito Marítimo. Serão traçados casos históricos relevantes que<br />
interligam ambas as legislações, demonstrando que uma será originária da outra, mas<br />
cada qual com sua característica peculiar. O interesse em contratar esse serviço protegerá<br />
toda negociação, bem como terceiros interessados, o que se atém ao fato de que o<br />
transporte marítimo é um dos mais econômicos quando se fala em logísticas<br />
intercontinentais, mas também é o que mais oferece risco em seu trânsito.<br />
Palavras-chave: contratos internacionais de seguro marítimo, legislações,<br />
mercadorias, risco.
78<br />
ABSTRACT<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
The aim of this study is to make a comparative analysis between english and brazilian<br />
laws in international marine insurance contracts of goods. It will be traced historical cases<br />
that connect both laws and demonstrate the origin from one another, but each with its<br />
peculiar characteristic. The interest of contracting this service is based on the protection<br />
of all negotiations, the parties who are tied, and, even though shipping is one of the most<br />
economical intercontinental logistics it also offers the most risk in transit.<br />
Keywords: international marine insurance contracts, laws, goods; risk.<br />
1. INTRODUÇÃO<br />
O Direito Marítimo surgiu como um ramo especial para as relações jurídicas,<br />
pois, sendo um dos meios de transporte precursores para a expansão comercial<br />
mundial, é tido como direito autônomo, mas conectado a demais códigos de leis.<br />
Os contratos de seguro colocam em pauta uma crescente preocupação com a<br />
segurança não só dos navios, mas também das mercadorias nele existentes, pois<br />
aqui se fala em milhões de dólares em produtos e meses de trabalho para a realização<br />
de uma negociação.<br />
A evolução das cláusulas dos contratos internacionais de seguro marítimo<br />
revela o esforço da indústria seguradora em acompanhar e responder, da melhor<br />
forma, ao desenvolvimento, à concorrência e à complexidade da navegação e do<br />
comércio marítimo. Tanto a legislação brasileira quanto a inglesa possuem alguns<br />
pontos de divergência a respeito de como a lei vigora sobre esse vínculo jurídico;<br />
entretanto, ambas terão o mesmo objetivo, ou seja, a harmonização entre as<br />
partes envolvidas.<br />
2. FATOS HISTÓRICOS RELEVANTES<br />
O Direito Marítimo fundou-se a partir de códigos medievais, com destaque<br />
para Os rolos de Oléron (Julgamentos de Oléron) e Consulado do mar; a<br />
primeira publicação doutrinária – Ancient law merchant, escrita pelo inglês Gerard<br />
Malynes – consistiu num resumo das práticas marítimas realizadas em alguns países<br />
, que tratava sobre os contratos de seguro marítimo intitulado Guidon de la mer<br />
(Guia do mar).<br />
Alguns casos históricos de incidentes marítimos servem para ilustrar melhor<br />
a importância desses contratos nas relações de negócios entre as partes. Foi a<br />
partir de fatos reais que as legislações, principalmente a inglesa, inspiraram-se<br />
para a criação de leis que vigorarão sobre sua corrente doutrinária.
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 79<br />
Pode-se mencionar, como exemplo, o incidente do navio Torrey Canyon,<br />
um dos superpetroleiros mundiais 1 , de bandeira inglesa, que encalhou, derramando<br />
milhares de toneladas de petróleo em alto-mar. Como consequência, catástrofes<br />
ambientais incalculáveis, o que desvendou uma série de deficiências no sistema<br />
jurídico internacional e inglês, mais especificamente, pois este era considerado, até<br />
aquele momento, um dos mais aperfeiçoados. Esse fato marcou-se como o estopim<br />
para diversas convenções – destaque para a Convenção de Bruxelas e a de Tóquio<br />
–, que também colaboraram para a formação de regras para o seguro marítimo.<br />
Mais recentemente, um caso, que demonstra a importância dos seguros<br />
marítimos para ocorrências recentes de ataques piratas a mercadorias de navios,<br />
foi noticiado por um site nacional, onde a matéria destacava:<br />
Japoneses protegem navios na Somália<br />
Uma missão antipirataria está sendo comandada pela Japan Maritime Self Defense<br />
Force’s na região do Golfo do Áden, na Somália. Uma frota com 81 navios<br />
mercantes está sendo escoltada pela instituição para protegê-los dos constantes<br />
ataques piratas, colocando em prática uma lei que entrou em vigor em julho<br />
passado, informou o governo japonês na última terça, dia 1/09/2009 2 .<br />
Esses incidentes, como se observa, servem como fontes para que os juristas<br />
atentem a cada caso específico e colaborem para a evolução dos contratos<br />
internacionais de seguro marítimo de mercadorias e suas cláusulas, como no primeiro<br />
exemplo citado, que repercutiu internacionalmente entre os ecologistas e alterou<br />
toda a legislação ecológica mundial na questão dos impactos ambientais e nos<br />
casos de pirataria que, pela tendência moderna, se incluem como risco de guerra e,<br />
portanto, foram inseridos em cláusulas nos contratos internacionais, principalmente<br />
na legislação inglesa.<br />
3. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA<br />
3.1. Histórico brasileiro<br />
Os interesses marítimos no Brasil são históricos e amplos. O mar foi via de<br />
seu descobrimento, de colonização, de invasões e de comércio. Do ponto de vista<br />
1 CALIXTO, Robson José. Incidentes marítimos: história, Direito Marítimo e perspectivas num mundo<br />
em reforma da ordem internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2004. p. 46.<br />
2 GUIA MARÍTIMO NEWS. Japoneses protegem navios na Somália. Matéria publicada em 03/09/2009.<br />
Disponível em: . Acesso em: 03<br />
de setembro de 2009.
80<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
econômico, a maior parte de todo o comércio exterior brasileiro é realizada por<br />
meio de transportes marítimos. Além disso, devem ser considerados os fatores<br />
estratégicos, científicos, ecológicos, tecnológicos e geográficos que a matéria possui.<br />
Nesse instante, surge, também, a preocupação com a segurança dos navios,<br />
mercadorias e tripulantes, pois “despesas extraordinárias feitas a bem do navio ou<br />
da carga, conjunta ou separadamente, e todos os danos acontecidos àquele ou a<br />
esta, desde o embarque e partida até a sua volta e desembarque, são reputadas<br />
avarias” (artigo 761 do Código Comercial – CCom).<br />
Todo contrato internacional de seguro marítimo de mercadorias realizado<br />
entre segurado e segurador tem como objetivo proteger a carga contra danos<br />
inesperados, mas que possam ocasionar problemas homéricos nas relações. Em<br />
regra, nem todos estão obrigados a contratar os seguros de mercadorias, uma vez<br />
que o mesmo surge em decorrência dos Incoterms acordados. Entretanto, a sua<br />
realização amenizará os impactos negativos gerados por possíveis avarias.<br />
3.2. Legislação<br />
Atualmente, convenções e tratados internacionais servem como embasamento<br />
para a utilização de princípios legais na aplicação do Direito Marítimo. O<br />
Brasil, por não adotar legalmente o princípio da autonomia da vontade, normatiza<br />
as relações marítimas por meio do Código Civil e do Código Comercial, da própria<br />
Constituição Federal de 1988 e do Decreto-Lei n. 73/66 3 . Mesmo caminhando<br />
para tornar-se um Direito autônomo, as diretrizes do Direito Marítimo ainda estão<br />
umbilicalmente ligadas a esses sistemas normativos, tratando-se de um direito<br />
privado, mas com fortes influências do direito público.<br />
O artigo 9º, caput, da Lei de Introdução do Código Civil destina-se às regras<br />
aplicáveis aos contratos internacionais. Esse artigo legisla que as partes envolvidas<br />
se submeterão às leis do país de celebração do contrato, mesmo que haja disposição<br />
específica ou omissão da lei aplicável.<br />
O ordenamento jurídico nacional legisla sobre informações necessárias para<br />
se compor um contrato internacional de seguro marítimo de mercadorias e, para<br />
isso, é importante que haja a descrição completa da mercadoria, a sua natureza,<br />
além de peso, embalagem, valor, número de volumes, locais de embarque e<br />
desembarque, riscos, veículo de transporte, valor do seguro e outras informações<br />
3 Dispõe sobre o Sistema Nacional de Seguros Privados, regula as operações de seguros e resseguros<br />
e dá outras providências.
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 81<br />
relevantes 4 . Tudo faz parte de uma burocracia que, ao mesmo tempo, protegerá os<br />
interesses do segurador, do segurado e de terceiro interessado.<br />
3.3. Artigos e sociedades legislativas<br />
O Decreto-Lei n. 73, de 21 de novembro de 1966, juntamente com o Código<br />
Civil vigente, em seus artigos 757 a 802, e o Código Comercial, entre os artigos 666<br />
e 730, formam a base da legislação brasileira de seguros marítimos. Criaram-se,<br />
portanto, sociedades anônimas e cooperativas de seguro por intermédio dos órgãos<br />
integrantes do Sistema Nacional de Seguros Privados, como o Conselho Nacional<br />
de Seguros Privados (CNSP), a Superintendência de Seguros Privados (Susep),<br />
como já mencionado, e o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), que controlam e<br />
disciplinam o mercado nacional.<br />
Dispõe o artigo 666 do Código Comercial:<br />
O contrato de seguro marítimo, pelo qual o segurador, tomando sobre si a fortuna<br />
e riscos do mar, se obriga a indenizar ao (sic) segurado da perda ou dano que<br />
possa sobrevir ao objeto do seguro, mediante um prêmio ou soma determinada,<br />
equivalente ao risco tomado, só pode provar-se por escrito, a (sic) cujo<br />
instrumento se chama apólice; contudo, julga-se subsistente para obrigar<br />
reciprocamente ao segurador e ao segurado desde o momento em que as partes<br />
se convierem, assinando ambas a minuta, a qual deve conter todas as declarações,<br />
cláusulas e condições da apólice.<br />
O Código de Defesa do Consumidor surge nesse campo, destacando a<br />
questão contratual ao assegurar o equilíbrio entre os direitos e obrigações das<br />
partes envolvidas, ou seja, reforça o comprometimento com a equidade de interesses<br />
entre as partes a partir dessa intervenção regulamentadora, o que pode ser uma<br />
garantia e uma fonte argumentativa a possíveis contratos abusivos.<br />
Dispõe o Código de Defesa do Consumidor sobre os seguros:<br />
CAPÍTULO III<br />
Das Ações de Responsabilidade do Fornecedor de Produtos e Serviços<br />
Artigo 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e<br />
serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão<br />
observadas as seguintes normas:<br />
(...)<br />
4<br />
OCTAVIANO, Eliane Maria Martins. Curso de Direito Marítimo. Volume II. Barueri: Manole, 2008. p.<br />
466-467.
82<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
II – o réu que houver contratado seguro de responsabilidade poderá chamar ao<br />
processo o segurador, vedada a integração do contraditório pelo Instituto de<br />
Resseguros do Brasil. Nesta hipótese, a sentença que julgar procedente o pedido<br />
condenará o réu nos termos do art. 80 do Código de Processo Civil. (...).<br />
3.4 .Características legais dos contratos nacionais de seguro<br />
Como qualquer contrato, os seguros marítimos possuem características<br />
específicas de acordo com sua aplicação. Assim, o seu início ocorre no momento<br />
em que as mercadorias deixam o cais para ser carregadas a bordo, e seu<br />
término ocorrerá no momento em que são colocadas em terra no porto de<br />
destino, tendo um limite de 30 dias para que o navio inicie viagem e 30 dias<br />
para descarga após o navio chegar ao ponto de destino. Trata-se de um padrão,<br />
o que não impede que contratos adicionais sejam realizados entre as partes<br />
para a extensão de sua validade.<br />
Para que a seguradora fique obrigada a indenizar as partes pelas avarias<br />
ocorridas às mercadorias, é necessário que a porcentagem do prejuízo seja igual<br />
ou superior ao que foi estipulado na apólice, caso contrário essa franquia torna-se<br />
inviável.<br />
Os contratos de seguro nacionais devem possuir as seguintes características<br />
legais para sua validação: (I) onerosidade, pois gera benefícios e vantagens para<br />
um e outro; (II) bilateralidade, porque origina obrigações tanto para o segurado<br />
como para o segurador, sendo tais obrigações o pagamento do prêmio pelo segurado<br />
e a garantia prestada pelo segurador; (III) consensualidade, pois não mais se exige<br />
a redução por escrito para formação do vínculo; (IV) adesão, por meio da qual o<br />
segurado aceita cláusulas impostas pelo segurador na apólice impressa, não<br />
ocorrendo discussão entre as partes.<br />
O proprietário, seu representante legal, ou armadores em geral de embarcações<br />
com bandeiras nacional ou internacional, que farão suas inscrições ou seus<br />
registros nas capitanias dos portos e órgãos subordinados – bem como as já inscritas<br />
e registradas –, estão obrigados a contratar “o seguro obrigatório de danos pessoais<br />
causados por embarcações ou por suas cargas 5 ”.<br />
O Guia de orientação e defesa do segurado, de 2006, elaborado pela<br />
Susep, em seu glossário, lista as denominações dadas às partes e aos atos realizados<br />
em um contrato de seguro: apólice; avaria; aviso de sinistro; condições gerais;<br />
cosseguro; endosso; franquia; indenização; prêmio; proposta; resseguro; retro-<br />
5 Dpem – Seguro obrigatório de danos pessoais causados por embarcações ou por suas cargas.
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 83<br />
cessão; risco; salvado; segurado; sinistro; e a descrição da própria Susep são os<br />
termos adotados a fim de identificar as ações realizadas em um contrato.<br />
Para todo seguro, busca-se garantir os direitos das partes envolvidas a fim<br />
de prevenir o resultado de um evento inesperado quando existem duas ou mais<br />
possibilidades, o que aqui se fala em “riscos 6 ”. Dessa forma, as seguradoras são<br />
contratadas para garantir a compensação desses eventos.<br />
Naufrágio, encalhe, varação, abalroação/colisão da embarcação com qualquer<br />
corpo fixo ou móvel; explosão, incêndio, raio e suas consequências; ressacas,<br />
tempestades e trombas marinhas; alijamento e arrebatamento pelo mar; queda de<br />
lingada, nas operações de carga, descarga e transbordo; fortuna do mar, caso<br />
fortuito ou de força maior são alguns dos exemplos de “riscos” cobertos pelos<br />
contratos de seguro marítimo já que outra grande maioria de contratos securitários<br />
não possui esse benefício.<br />
Vale mencionar uma peculiaridade sobre os seguros marítimos para o caso<br />
de mercadorias importadas, pois, por intermédio da Resolução CNSP 7<br />
n. 03, de 18<br />
de janeiro de 1971, foram estipuladas como preferenciais as seguradoras estabelecidas<br />
no País. Assim, não só fica garantido o entendimento das leis como também<br />
se evitam transtornos na conexão de competências, o que, por final, na prática,<br />
facilita todo o desenvolvimento do processo.<br />
3.5. Julgamentos<br />
O Brasil já realizou julgamentos a respeito do assunto seguros marítimos<br />
sobre mercadorias, como foi o caso da Apelação com Revisão CR 997938006 SP<br />
(TJSP) 8 . Esse processo teve a Comarca de Santos como cenário, a apelante<br />
Bradesco Seguros S/A e a empresa NST Terminais e Logísticas Ltda. No desfecho,<br />
o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não reconheceu o recurso de regresso<br />
da apelante. São peculiaridades como esta que marcam os acontecimentos dentro<br />
do Judiciário nacional quando o tema em questão se refere ao seguro marítimo de<br />
mercadorias.<br />
6 Evento incerto ou de data incerta que independe da vontade das partes contratantes e cuja ocorrência<br />
dará direito à indenização descrita na apólice. Guia Susep, 2006, glossário.<br />
7 Conselho Nacional de Seguros Privados.<br />
8 Dados: 35ª Câmara de Direito Privado. Relator: José Malerbi. Julgamento: 13/10/2008. Publicação:<br />
20/10/2008. Partes. Ementa: TRANSPORTE MARÍTIMO DE MERCADORIAS. SEGURO. AÇÃO REGRESSIVA. AVARIAS<br />
NA CARGA. DEPÓSITO. INDENIZAÇÃO. COMPETÊNCIA. Disponível em: . Acesso em: 29 de setembro<br />
de 2009.
84<br />
4. LEGISLAÇÃO INGLESA<br />
4.1. Histórico inglês<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Ao dar continuidade a essa análise, busca-se agora o estudo sobre os contratos<br />
de acordo com a legislação inglesa, onde se verificará a sua influência na<br />
construção das dos contratos internacionais de seguro marítimo nos demais países.<br />
É relevante esse estudo, pois, a partir de experiências e casos concretos, formularam-se<br />
os primeiros contratos e se julgam os casos atuais.<br />
O Reino Unido, mais especificamente a Inglaterra, possui uma legislação<br />
originária conhecida como Common Law 9 (Lei Comum), ou seja, um direito<br />
costumeiro, de convenções constitucionais, casos práticos e jurisprudenciais. A<br />
elaboração de uma legislação marítima, no que tange a assuntos de seguro, ocorreu<br />
a partir de 1690, quando foi fundada a inglesa Lloyd’s 10 , a mais tradicional companhia<br />
de seguros do mundo nos assuntos marítimos. Foi efetuado com ela o seguro do<br />
transatlântico Titanic.<br />
A fundação da Lloyd’s proporcionou à sociedade inglesa uma base jurídica<br />
formal que lhe permitiu adquirirproperty and make byelaws with the full authority of<br />
Parliament behind them. propriedade e fazer leis com plena autoridade parlamentar.It<br />
confirmed Lloyd’s as a business institution with guidelines that can be seen Confirmamse,<br />
então, as regras de Lloyd’s, que se consolidou como uma instituição de negócios<br />
com as orientações que podem ainda hoje ser trabalhadas com sucesso.<br />
4.2. International marine insurance<br />
Nesse contexto, a legislação inglesa adotaria, anos depois, como regra para<br />
os seguros marítimos, as leis provenientes do English Marine Insurance Act<br />
1906 (MIA 1906), ou Seguros Marítimos Ingleses – Ato de 1906, que regularizou<br />
as ações no campo dos seguros marítimos. O MIA 1906 consiste numa codificação<br />
de cerca de 200 anos de decisões judiciais, sendo que, ainda hoje, não há nenhum<br />
documento equivalente a ela. Tal codificação também se tornou conhecida por ser<br />
9 “A Common Law provém do Direito inglês não escrito que se desenvolveu a partir do século XII.<br />
É a lei ‘feita pelo juiz’: a primeira fonte do direito é a jurisprudência. Elaborados por indução, os<br />
conceitos jurídicos emergem e evoluem ao longo do tempo: são construídos pelo amálgama de<br />
inúmeros casos que, juntos, delimitam campos de aplicação. A Common Law prevalece no Reino<br />
Unido, nos EUA e na maioria dos países da Commonwealth. Influencia mais de 30% da população<br />
mundial.” Panorama mundial do Direito. O Correio da Unesco, 2000, v. 28, n. 1, p. 26. Disponível<br />
em: . Acesso em: 29 de setembro de 2009.<br />
10 SOCIETY OF LLOYD’S. Cronologia sobre História de Lloyd’s. Disponível em: . Acesso em: 05 de setembro de 2009.
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 85<br />
“the mother of all marine insurance statutes 11 ” (ou “a mãe de todos os estatutos<br />
de seguros marítimos”).<br />
De acordo com a palestra proferida pelo Professor Dr. Marko Pavliha:<br />
(…) the contract of marine insurance is a special (insurance) contract of<br />
indemnity which protects against physical and other losses to moveable<br />
property and associated interests, as well as against liabilities occurring or<br />
arising during the course of a sea voyage (R. Thomas). S. 1 of MIA 1906: A<br />
contract of marine insurance is a contract whereby the insurer undertakes to<br />
indemnify the assured, in manner and to the extent thereby agreed, against<br />
marine losses, that is to say, the losses incident to marine adventure 12 .<br />
Isso demonstra o quão importante se faz a análise crítica de casos vivenciados<br />
pela sociedade inglesa na elaboração de leis que irão assegurar os interesses das<br />
partes, bem como os interesses da sociedade.<br />
O Ato de 1906 é utilizado nos casos de ausência de acordos das partes em<br />
contrário. Todos os contratos marítimos de seguro subscritos na Inglaterra<br />
encontram-se governados por vários conjuntos de cláusulas, também chamados<br />
de Standard Marine Clauses, que, muitas vezes, eliminam o poder dos pressupostos<br />
estabelecidos pela lei. Esse ato aprovou o uso da Lloyd’s Ship and Goods Form<br />
of Policy (Formas de Política de Lloyd’s Navios e Mercadorias), anteriormente já<br />
aprovado pela Lloyd’s, em 1779. O que fez o MIA 1906 foi elaborar cláusulas<br />
anexas às políticas a fim de lidar com áreas determinadas de ineficácia da política<br />
de Lloyd’s. Contudo, em 1983, aboliu-se a política de Lloyd’s, sendo esta substituída<br />
por uma formulação mais simples, que age como uma folha de rosto para as cláusulas<br />
relativas ao instituto.<br />
Há a ideia de abolição também do MIA 1906, tendo em conta o estabelecimento<br />
de um código mais moderno. Entretanto, codificar novas regras não é<br />
tarefa fácil para um país que tem como lei-mãe a Common Law. O funcionamento<br />
real desta lei tem sido bastante satisfatório, dado que muitas das questões de fato<br />
suscitadas são resolvidas por referência à evidência do mercado e também devido<br />
11 Palestra: PAVHLIHA, Dr. Marko. Lecture on Marine Insurance Law. The course outline. IMO<br />
International Maritime Law Institute. Malta, January 2004. Disponível em: . Acesso em: 08 de setembro de 2009.<br />
12 O contrato de seguro marítimo é um contrato especial de indenização que protege contra perdas<br />
físicas outros bens móveis e os interesses associados, bem como contra passivos que surjam ou<br />
ocorram durante o curso de uma viagem pelo mar (R. Thomas). S. 1 de MIA 1906: um contrato de<br />
seguro marítimo é um contrato pelo qual a seguradora se compromete a indenizar o segurado, na<br />
forma e na medida acordada, em caso de perdas marítimas, ou seja, os prejuízos do incidente à<br />
aventura marítima.
86<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
ao fato de os tribunais desempenharem um importante papel ao esclarecer as lides<br />
sem dispor da lei.<br />
O Judiciário inglês possui um papel fundamental ao esclarecer até onde a lei<br />
pode ou não alcançar. Os tribunais já estão conseguindo desenvolver princípios<br />
para situações novas aplicando a lei de forma mais flexível, de modo a refletir as<br />
tendências do mercado. Assim, verifica-se que os tribunais ingleses conseguiram,<br />
por intermédio de suas decisões, modernizar o Direito Marítimo de seguros.<br />
O mercado de Londres Joint Hull Committee, formado pela Lloyd’s Underwriters’<br />
Association – Associação de Seguradores Marítimos de Lloyd’s – em<br />
consulta com as associações de armadores, seguradoras e corretores, desenvolveram<br />
a International Hull Clauses (IHC) – cláusulas internacionais do casco –<br />
como um novo conjunto de cláusulas. O IHC entrou em vigor em 1º de novembro<br />
de 2002.<br />
No Institute Voyage Clauses of Hulls (ou Instituto de Viagem das Cláusulas<br />
do Casco), surgem pontos destacados que dizem respeito apenas a matérias de<br />
aplicação ao Direito inglês, ou seja, para uso apenas na política atual do mar.<br />
Assim, destacam-se pontos que serão interpretados ao avaliar conflitos na órbita<br />
dos seguros marítimos realizados com empresas de navios com bandeira inglesa.<br />
As cláusulas da International Hull são divididas em três partes, sendo uma<br />
parte a que contém as principais condições de seguro; a segunda parte, que apresenta<br />
uma série de cláusulas adicionais que foram exigidas pelos assegurados e<br />
adicionadas ao ITC (Institute Time Clauses) separadamente; e a terceira, que<br />
contém provisões para sinistros e define os direitos e responsabilidades dos<br />
seguradores e assegurados.<br />
4.3. Cláusulas contratuais inglesas<br />
Dentre os contratos de seguro, conforme a lei inglesa, algumas cláusulas<br />
são mais utilizadas e têm como objetivo beneficiar o importador em caso de avarias<br />
que possam ocorrer. Estas também estão divididas em três e serão definidas como<br />
A, B e C. Cada cláusula terá uma característica específica e, assim, cada uma<br />
atenderá a uma necessidade originária.<br />
A cláusula A trata sobre o All risk (AR). Essa cláusula cobre riscos totais<br />
ou parciais especificamente no objeto, possuindo uma cobertura mais completa<br />
dentre as demais no seguro marítimo, salvo algumas exceções.<br />
Na cláusula B, será tratado o Will average (WA). Cobrirá danos totais e<br />
parciais já referentes ao volume, seja na carga, seja na descarga, avaria grossa e
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 87<br />
despesas de salvamento, colisão onde ambos são culpados, avarias simples e alguns<br />
casos fortuitos de força maior. A Will Average excluirá algumas causas externas,<br />
como embarques e desembarques, manipulação portuária, derrames e extravios,<br />
contudo permitirá que cláusulas especiais e adicionais a complementem.<br />
Por fim, a cláusula C, conhecida como FPA (Free of particular average),<br />
refere-se à cobertura de perda total em decorrência de avaria grossa. Em situações de<br />
avaria simples ou particular, a possibilidade de cobertura total fica restrita aos casos de<br />
encalhe, naufrágio, soçobramento 13 , descarrilhamento de veículo terrestre ou<br />
tombamento, colisão. Assim, ficam excluídas quaisquer hipóteses de cobertura em<br />
avarias particulares, roubos ou extravios de mercadorias, exceto negociação anterior.<br />
Desde 1996, consultas internacionais vêm sendo realizadas de modo a<br />
aprimorar essas cláusulas e, no ano de 2009, algumas modificações foram realizadas<br />
no que diz respeito às cláusulas de guerra e greve (Institute Cargo Clauses War<br />
and Institute Cargo Clauses Strikes). Dentre outras modificações, destacam-se<br />
as seguintes: (a) cláusula 4.3 – exclusão de preparação e embalagem; (b) cláusula<br />
4.6 – exclusão de insolvência; (c) cláusula 7.3 – terrorismo; (d) cláusula 8 – cláusula<br />
de trânsito; (e) cláusula 10 – alteração de viagem (novo).<br />
Existirão as chamadas cláusulas acessórias e as de coberturas especiais.<br />
Como o próprio nome diz, são pontos que não podem ser aplicados sem que cláusulas<br />
básicas sejam utilizadas, e sua contratação dependerá, basicamente, de necessidades<br />
do segurado, variando de acordo com legislações secundárias. Essas cláusulas<br />
adicionais servem para completar os contratos de seguro em fatores específicos,<br />
mediante negociação e pagamento de valores extras.<br />
Convém citar algumas, devido à sua relevância para o transporte de<br />
mercadorias. Nesse caso, têm-se as seguintes: a cláusula adicional transit in clause,<br />
que trata da prevenção quanto ao porto de origem e destino, se ele não estiver<br />
especificado no contrato; a cláusula held covered (omissões cobertas), segundo a<br />
qual, não havendo má-fé, possíveis omissões do contrato ficam seguradas; a cláusula<br />
adicional em trânsito, incluída a cláusula de depósito a depósito, o que segura a<br />
mercadoria quanto ao transporte do depósito do exportador até o embarque no<br />
navio; a cláusula de lucros esperados para seguros de importação, o que ampara<br />
os casos de lucros não realizáveis devido a sinistros; finalmente, cláusula para<br />
seguros de impostos sobre mercadorias importadas e cláusula de Direito Aduaneiro,<br />
que previne o exportador quanto a possíveis problemas fiscais ao longo de<br />
desembaraços aduaneiros, dentre outras.<br />
13 Emborcar; virar de borco. Disponível em: .<br />
Acesso em: 05 de setembro de 2009.
88<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Sob esse enfoque, a legislação inglesa se destaca como uma das precursoras<br />
nessa temática, não só pela longa experiência em navegações, mas também por<br />
ter suas leis originadas a partir de casos concretos, visando ao bem comum.<br />
5. PARALELOS COMPARATIVOS<br />
O que se identifica a partir dos estudos sobre os contratos dos dois países é<br />
uma legislação brasileira que possui uma união de interpretação entre o Código<br />
Civil e o Código Comercial, regulamentando, especificamente, a aplicação das leis<br />
securitárias marítimas. Em seu Título III, o Código Comercial se encontrará<br />
totalmente dedicado às normas que regem a formulação de um seguro marítimo,<br />
definindo desde a estrutura de formação de um contrato até peculiaridades que<br />
devem ser atentadas.<br />
No caso da legislação inglesa, a sua estrutura, por mais que esteja fomentada<br />
em demais leis e casos práticos, se limitará a um único estatuto, o MIA 1906, o que<br />
não impede que outros acordos sirvam de embasamento para o próprio contrato. A<br />
partir dessa análise, pode-se verificar que, mesmo existindo para cada legislação<br />
uma peculiaridade e forma estrutural, ambas tratarão de pontos em comum.<br />
Os contratos internacionais de seguro marítimo nascem de uma mesma<br />
fonte, e a legislação inglesa representa um papel importante nessa influência. As<br />
diferenças surgem apenas quando o ordenamento nacional trata de prazos para<br />
cumprimentos de obrigações e restrições à prática de atos dentro dos princípios<br />
legais, enquanto os ingleses prezam o interesse coletivo e a interpretação de cada<br />
caso específico.<br />
6. CONCLUSÃO<br />
Os meios de transporte marítimos destacam-se como sendo os primeiros<br />
passos para a globalização e a industrialização dos países. Por esse motivo, os<br />
contratos de seguro das mercadorias surgem como garantia para as relações<br />
comerciais entre as partes. Tanto para a Inglaterra quanto para o Brasil, o comércio<br />
marítimo é o grande colaborador para a expansão econômica de cada um.<br />
A necessidade de adotar seguros para prevenir os riscos que o transporte<br />
propicia e o interesse de buscar o melhor custo-benefício remetem os futuros<br />
segurados a contratar empresas sem consultar a sua idoneidade, o que colocará<br />
em risco toda a mercadoria existente. Com o aumento de seguradoras que buscam<br />
lucros rápidos num mercado em franca expansão, os interesses se voltam para<br />
contratos mal formulados e sem nenhum conhecimento quanto às leis a serem
Contratos internacionais de seguro marítimo de mercadorias: uma análise... 89<br />
aplicadas. É na legislação inglesa que se encontrará a lei-mãe para os seguros de<br />
mercadoria marítima e é nela que os demais países se basearão, com o propósito<br />
de legislar sobre o tema.<br />
Com um código de leis amparado pela Common Law, os doutrinadores<br />
ingleses e seus juristas buscam fundamentos em casos práticos e julgados ao longo<br />
da história, de modo a produzir soluções para controvérsias que beneficiem o<br />
interesse comum, e não apenas uma parte. A partir da longa experiência inglesa,<br />
os brasileiros, que possuem leis codificadas, criaram órgãos securitários com a<br />
finalidade de elaborar normas específicas para os casos do Direito Marítimo, que,<br />
mesmo com ares de Direito autônomo, possui laços estreitos com o Código Civil e<br />
o Código Comercial.<br />
Assim, reforça-se o ponto mencionado no início desse artigo, segundo o<br />
qual, mesmo se tratando de países com ordenamentos jurídicos diferentes, os<br />
contratos internacionais de seguro marítimo possuem a mesma fonte – o Direito<br />
inglês – e o mesmo propósito: garantir a harmonia das relações entre as partes<br />
envolvidas e prevenir riscos que possam afetar não só as referidas partes, mas<br />
toda a coletividade.<br />
REFERÊNCIAS<br />
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de zonas costeiras e litorais pelo Acordo Ramoge: contribuições para o povo<br />
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CALIXTO, Robson José. Incidentes marítimos: história, Direito Marítimo e<br />
perspectivas num mundo em reforma da ordem internacional. São Paulo:<br />
Aduaneiras, 2004.<br />
CASTRO, Luiz Augusto de Araújo. O Brasil e o novo direito do mar: mar territorial<br />
e zona econômica exclusiva. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1989.<br />
GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria prática do Direito Marítimo. 2. ed.<br />
Rio de Janeiro: Renovar, 2005.<br />
GUIA MARÍTIMO NEWS. Japoneses protegem navios na Somália. Matéria publicada<br />
em 03/09/2009. Disponível em: . Acesso em: 03 de setembro de 2009.<br />
MATTOS, Adherbal Meira. O novo direito do mar. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
90<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
NAZO, Georgette Nacarato. Curso de difusão cultural. São Paulo: Soamar, 1996.<br />
OCTAVIANO, Eliane Maria Martins. Curso de Direito Marítimo. Volume I. 2. ed.<br />
Barueri: Manole, 2005.<br />
______. Curso de Direito Marítimo. Volume II. Barueri: Manole, 2008.<br />
PAVHLIHA, Dr. Marko. Lecture on marine insurance law. The course outline. IMO<br />
International Maritime Law Institute. Malta, January, 2004. Disponível em: . Acesso<br />
em: 08 de setembro de 2009.<br />
SOCIETY OF LLOYD’S. Cronologia sobre História de Lloyd’s. Disponível em: . Acesso em: 05 de setembro<br />
de 2009.<br />
SUPERINTENDÊNCIA DE SEGUROS PRIVADOS – SUSEP. Guia de orientação e defesa do<br />
segurado. 2. ed. Rio de Janeiro: Susep, 2006. 55p. Disponível em: . Acesso em: 05 de<br />
setembro de 2009.<br />
THE INSTITUTE OF LONDON UNDERWRITERS. Institute Voyage Clauses Hulls. Disponível<br />
em: . Acesso em: 05 de setembro de 2009.
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 91<br />
7<br />
El embrión humano o nasciturus<br />
como sujeto de derechos<br />
The human embryo or nasciturus<br />
as subject of rights<br />
DORA GARCÍA FERNÁNDEZ<br />
Profesora investigadora en la línea de Bioética y Derecho del Instituto de Investigaciones Jurídicas,<br />
Coordinadora de Investigación y Publicaciones de la Facultad de Derecho de la Universidad Anáhuac<br />
México Norte. Directora Editorial de la Revista Iuris Tantum. Miembro del Sistema Nacional de<br />
Investigadores del CONACYT, México. Autora de varias obras jurídicas. www.doragarciaf.com.<br />
RESUMEN<br />
El análisis de la cuestión del comienzo de la persona humana es de vital importancia.<br />
Es preciso reconocer el carácter de persona del embrión humano desde el momento<br />
mismo de la fecundación. Es así que a partir de que el espermatozoide penetra el<br />
óvulo comienza la existencia de la persona humana y desde entonces el embrión<br />
debe ser sujeto de derechos que la legislación de cada país le debe reconocer.<br />
Palabras claves: embrión humano, nasciturus, embriogénesis, derechos del embrión<br />
humano.<br />
ABSTRACT<br />
The analysis of the moment that human life begins is of vital importance. It is<br />
necessary to recognize that human embryos are persons since fecundation. In that<br />
sense, since the sperm penetrates the ovum, a human being exists, and since that<br />
point the embryo should be subject to rights that each and every country must<br />
recognize.<br />
Keywords: human embryo, nasciturus, embryogenesis, human embryo rights.
92<br />
1. EL EMBRIÓN HUMANO: NASCITURUS<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
El hombre es un ser muy complejo. Su cuerpo está formado por millones de<br />
células que se multiplican constantemente para sustituir a las que mueren por concluir<br />
su ciclo de vida o por alguna otra causa. Pero, ¿desde cuando es ser humano?<br />
Al respecto el profesor Jerôme Lejeune, catedrático de Genética de la<br />
Universidad de la Sorbona, afirma que existe un ser humano:<br />
[…] desde el momento mismo de la fecundación, desde el instante en que a la<br />
célula femenina le llega toda la información que se contiene en el espermatozoide. 1<br />
En el preciso instante de la unión de los gametos femenino y masculino , inicia<br />
la formación de un nuevo ser, individual y autónomo. Se debe descartar la posibilidad<br />
de un antes y un después, ya que no existe ninguna transformación esencial por la<br />
cual el cigoto, embrión o el feto se convierta en algo que no fue desde el momento de<br />
su concepción. Se es ser humano desde la concepción hasta la muerte.<br />
En este mismo sentido, el Consejo de Europa estableció lo siguiente:<br />
La ciencia y el sentido común prueban que la vida humana comienza en el acto<br />
de la concepción y que en este mismo momento están presentes en potencia<br />
todas las propiedades biológicas y genéticas del ser humano. 2<br />
Pero, para entender estas afirmaciones es importante repasar someramente<br />
el proceso de fecundación o concepción de un ser humano.<br />
Cada célula humana cuenta con un núcleo en donde contiene 46 cromosomas,<br />
formados por millones de genes o caracteres de la herencia. De la combinación de<br />
estos genes dependen las características que nos hacen únicos e irrepetibles. A<br />
toda esta información, contenida en las células de nuestro cuerpo, se le denomina<br />
genoma o código genético.<br />
El espermatozoide, la célula germinal 3 masculina, y el óvulo, la célula germinal<br />
femenina, están programados naturalmente para unirse y formar un nuevo ser<br />
humano. Cada uno de ellos contiene la mitad de la información genética necesaria<br />
para formar un hombre o mujer con sus características físicas y psicológicas propias,<br />
distinto de todos los demás. Gracias a la unión de los gametos femenino y masculino,<br />
1 LEJEUNE, Jerome, ¿Qué es el embrión humano?, Documentos del Instituto de Ciencias para la<br />
Familia, Ediciones Rialp, Madrid, 1993.<br />
2 Consejo de Europa, Resolución Núm. 4376, Asamblea del 4 de octubre de 1982.<br />
3 Células germinales: Células reproductoras masculinas y femeninas capaces de dar origen a un<br />
embrión. Art. 314, Ley General de Salud (LGS), dirección en Internet: http://www.scjn.gob.mx/<br />
Legilación/, fecha de consulta: 23 de mayo de 2009.
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 93<br />
la célula que resulta de esta unión tendrá una dotación normal de 46 cromosomas:<br />
23 proporcionados por el padre y 23 por la madre.<br />
El conocimiento biogenético actual demuestra indiscutiblemente que el<br />
embrión humano es tal desde el momento de la fecundación. Cuando un<br />
espermatozoide (gameto masculino) fecunda un óvulo (gameto femenino) se<br />
constituye un nuevo ser humano que técnicamente se llamará cigoto. Inmediatamente<br />
después de la fusión de ambos gametos se dan una serie de eventos científicos<br />
sucesivos y encadenados, que lleva al desarrollo del embrión humano.<br />
Estos eventos científicos son:<br />
1) La fusión de membranas de ambos gametos y la penetración del núcleo del<br />
espermatozoide al óvulo: en la fecundación, el núcleo del espermatozoide<br />
penetra el citoplasma del óvulo, en forma casi inmediata a la fusión de las<br />
membranas. El núcleo, portando los 23 cromosomas paternos, constituye el<br />
pronúcleo masculino.<br />
2) El recambio de proteínas del ADN del espermatozoide: el ADN paterno<br />
está contenido en el núcleo del espermio mediante unas moléculas de<br />
proteínas, llamadas protaminas. Estas proteínas, después de la fecundación,<br />
son rápidamente recambiadas por otras proteínas llamadas histonas que<br />
están presentes en el citoplasma del óvulo.<br />
3) Duplicación de los cromosomas en cada pronúcleo masculino y femenino,<br />
por separado: el pronúcleo masculino y el femenino NO se fusionan. En<br />
cada pronúcleo por separado sucede una duplicación de todos los<br />
cromosomas. Estos núcleos se acercan, se interdigitan y desaparecen sus<br />
envolturas nucleares y los 46 cromosomas duplicados se ordenan en el<br />
cigoto, iniciándose la primera división celular.<br />
4) Se originan las dos primeras células o blastómeros: la primera división celular<br />
del cigoto da origen a las dos primeras células o blastómeros, evento que<br />
ocurre horas después de la fecundación. Esta división separa a los 46<br />
cromosomas duplicados (23 paternos dobles y 23 maternos dobles), de modo<br />
que cada célula hija o blastómero recibe una copia de cada uno de los 46<br />
cromosomas.<br />
5) Primeros estadios del desarrollo embrionario: los dos blastómeros se<br />
dividen a su vez en cuatro células y posteriormente en ocho y así<br />
sucesivamente, hasta formar el embrión humano y luego el feto y finalmente<br />
el recién nacido. 4<br />
4 SANTOS, Manuel, Revista Universitaria, Vol. 58, págs. 9-13, 1997, en “ Qué es lo sustativamente<br />
nuevo que ha revelado la investigación moderna biogenética”, dirección en Internet: www.bio.puc.cl/<br />
cursos/bio027/revuni1.htm, fecha de consulta: 16 de enero de 2003.
94<br />
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El óvulo es una célula muy importante ya que lleva consigo el alimento necesario<br />
para la subsistencia del nuevo individuo durante los primeros días de su existencia.<br />
Durante la etapa fértil de la mujer, después de realizado el acto sexual, los<br />
millones de espermatozoides depositados por el hombre en la vagina de la mujer<br />
viajan varias horas con el fin de llegar y conquistar el óvulo que se encuentra<br />
descendiendo por las trompas de falopio. La mayoría de los espermatozoides mueren<br />
en el intento de llegar al óvulo y sólo los más fuertes logran encontrarlo para<br />
fusionarse definitivamente con él y formar un cigoto 5 .<br />
Este cigoto es un ser humano constituido por una sola célula que en su<br />
interior contiene toda la información y la capacidad necesaria para desarrollarse<br />
por sí mismo durante nueve meses con ayuda de su madre, hasta poder nacer. A<br />
partir del momento de la concepción hay una serie de eventos que son una clara<br />
evidencia de que los gametos ya no actúan como dos sistemas independientes<br />
entre sí, sino como un nuevo sistema.<br />
El cigoto tiene información genética que caracteriza a los organismos de la<br />
especie homo sapiens y así se ha distinguido:<br />
Capacidad informacional: información que puede dirigir el desarrollo de un ser<br />
humano. El cigoto no posee todas las moléculas informativas para su desarrollo,<br />
pero tiene las moléculas con potencial de adquirir capacidad de información,<br />
cosa que se logra con el tiempo mediante interacciones con otras moléculas.<br />
Contenido informacional: información que se puede usar para desarrollar un ser<br />
humano, aunque no esté disponible en un determinado momento para hacerlo.<br />
En este sentido, la mayoría de las células de un adulto tienen contenido<br />
informacional pero únicamente usan una parte. 6<br />
Algunas horas después de la fecundación, el cigoto avanza por la trompa<br />
mientras va multiplicando el número de sus células: 2, 4, 8, 16, hasta llegar a constituir<br />
un ser de miles de millones de células, todas con un mismo código genético y cada<br />
una de ellas con determinada información especializada 7 . Es durante este proceso<br />
que los científicos llaman al nuevo individuo: embrión. 8<br />
5 Se le llama cigoto o zigoto a la célula huevo resultante de la fusión de dos gametos, uno masculino<br />
y otro femenino. Diccionario de la Lengua Española, Océano, México, 1997, pág. 165.<br />
6 “El estatuto del embrión”, en Cátedra de Biotecnología, Biodiversidad y Derecho, dirección en<br />
Internet: www.biotech.bioetica.org, fecha de consulta: 1º de abril de 2008.<br />
7 A este fenómeno se le llama diferenciación celular.<br />
8 SÁNCHEZ SÁNCHEZ, Homero, El derecho a la vida del concebido no nacido, Tesis de la Facultad de<br />
Derecho, Universidad Anáhuac, México, 2000, págs. 1-5.
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 95<br />
Entonces, se puede deducir de lo anterior que el embrión humano es la<br />
fusión de dos células altamente especializadas, extraordinariamente dotadas,<br />
estructuradas y programadas, llamadas gametos: el óvulo y el espermatozoide.<br />
Esta fusión se lleva a cabo durante el proceso de fecundación. El embrión humano<br />
está caracterizado por una nueva y exclusiva estructura informativa que comienza<br />
a actuar como una unidad individual. Se puede afirmar que el embrión es la forma<br />
más joven de un ser humano.<br />
Algunos sostienen que para poder hablar de vida humana se deben tener en<br />
cuenta cuatro procesos básicos en el desarrollo del embrión:<br />
1. La fusión de los gametos o fecundación, ya que aparece un genotipo<br />
diferenciado del padre y de la madre.<br />
2. La segmentación o proceso a través del cual se da la individuación.<br />
3. La implantación en el útero, momento en el que se da una realidad nueva con<br />
unidad y unicidad.<br />
4. Aparición de la corteza cerebral, a la que se le considera como el sustrato<br />
biológico de la racionalización. 9<br />
Muchos investigadores piensan que para que se dé la individualización de un<br />
ser humano se precisan dos propiedades que ya se mencionaron antes: la unidad y<br />
la unicidad. La unidad se refiere a la realidad positiva que se distingue de otra y la<br />
unicidad es la calidad de ser único (e irrepetible). 10<br />
Otros autores opinan que el embrión carece de personeidad, la cual implica<br />
una interioridad de autoconciencia y autoposesión, de tal modo que no puede ser<br />
considerado una persona. Pero ¿qué pasa con aquellos individuos que por algún<br />
accidente caen en coma y ya no poseen esta autoconciencia y autoposesión de la<br />
que se habla? ¿Acaso ya no son personas?<br />
Otra postura, contraria a la anterior es la que apoya Zubiri, quien opina que<br />
la personeidad es lo constitutivo del ser humano, la raíz de su actuar, por lo cual<br />
considera que el embrión sí tiene personeidad y por tal motivo es persona. 11<br />
Lejeune, en cambio, no habla del concepto de persona, simplemente sostiene<br />
que el embrión es, sin ninguna duda, un ser humano y lo que lo define como tal es<br />
9<br />
JUNQUERA DE ESTEFANÍ, Rafael, Reproducción asistida, filosofía ética y filosofía jurídica, Tecnos,<br />
Madrid, España, 1998, pág. 45.<br />
10 Ibid, págs. 45-46.<br />
11 X. ZUBIRI, El hombre y Dios, citado por JUNQUERA ESTEFANÍ, Rafael, pág. 46.
96<br />
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su pertenencia a la especie humana. La protección del embrión y su rango especial<br />
no dependen de cuándo se convierte en persona sino de las posibilidades de alcanzar<br />
la situación de persona humana. 12<br />
Para determinar cuando es que comienza la vida humana, existen divergencias<br />
entre los especialistas. Algunos consideran que los embriones humanos son<br />
entidades que se encuentran en un estado de desarrollo donde no poseen más que<br />
un simple potencial de vida y durante los primeros 14 días posteriores a la<br />
fecundación se le considera un “pre-embrión” 13 y una vez anidado en el útero es<br />
un embrión. Actualmente la ciencia ha dado la más rotunda razón al argumento de<br />
que en cuanto ha concluido la fecundación (ya sea de forma natural o artificial) se<br />
ha concebido un ser humano único e irrepetible (que no puede tener otro carácter<br />
que el de persona) y nos encontramos, por lo tanto, ante un ser humano con derecho<br />
a ser protegido por el ordenamiento jurídico. 14 En efecto, las investigaciones de los<br />
equipos de Richard Gardner y Magdalena Zernicka-Goetz concluyen lo siguiente:<br />
El cigoto, la fase unicelular y primera de todo organismo, tiene ya una organización<br />
individual. El término de la fecundación es un nuevo ser: una realidad viva<br />
celular (cigoto) diferente de cualquier otra célula, puesto que posee polaridad y<br />
asimetría, mostrando así que se ha constituido mediante un proceso de<br />
autoorganización de la célula “híbrida” resultado de la fusión de los gametos<br />
paterno y materno. El cigoto tiene los componentes moleculares nuevos (no<br />
presentes en el óvulo ni en el espermio) que le hacen poseer ya el plano de<br />
crecimiento según los ejes del cuerpo. La manifestación directa de la organización<br />
embrionaria es que ya la primera división celular da lugar a la aparición de dos<br />
células diferentes del cigoto, desiguales entre sí y con destino diferente en el<br />
embrión. La interacción célula-célula activa informan a cada una de las células<br />
de su identidad como parte de un todo bicelular. 15<br />
Retomando lo anteriormente citado, el cigoto tiene carácter individual pues<br />
está organizado de forma asimétrica, y de tal forma que en la primera división se<br />
producen dos células distintas que se organizan en una unidad orgánica al interactuar<br />
entre ellas. Cada ser humano, a lo largo de su vida, guarda memoria de esta primera<br />
12<br />
LEJEUME, J., op.cit., págs. 65-76.<br />
13 En realidad “pre-embrión” es un término reductivista de la persona que lo acerca más a ser un<br />
material biológico.<br />
14 “Carta de una experta española a los Senadores de la República Oriental del Uruguay”, Natalia<br />
López Moratalla, Universidad de Navarra, Departamento de Bioquímica y Biología Molecular,<br />
dirección en Internet: http://www.bioeticaweb.com/Comentarios_juridicos/Moratalla_uruguay.htm,<br />
fecha de consulta: 11 de junio de 2003.<br />
15 H. PEARSON, “Your destiny from day one”, en Revista Nature, citado por LÓPEZ MORATALLA,<br />
Natalia.
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 97<br />
división por lo que pasa de ser un individuo unicelular a ser un organismo de dos<br />
células y en consecuencia no existe lo que algunos llaman “pre-embrión”, es decir,<br />
no se trata de una realidad diferente del embrión sino que se está ante este mismo<br />
embrión pero en su etapa preimplantatoria. 16 Más adelante este embrión se<br />
convertirá en feto, luego en niño, adolescente, adulto y anciano. Desde el momento<br />
de la concepción nos encontramos ante el mismo ser humano que pasará por todas<br />
estas etapas durante su vida.<br />
Ahora bien, en el ámbito jurídico, a este embrión, se le llama nasciturus,<br />
que significa: “Ser humano como sujeto de derecho que ha sido concebido, pero<br />
que no ha nacido aún.” 17<br />
2. CONDICIÓN JURÍDICA DEL NASCITURUS<br />
Tradicionalmente la doctrina ha sostenido la idea de que la persona física<br />
nace para el Derecho a partir de su nacimiento, es decir, a partir de que es expulsado<br />
del vientre materno.<br />
Para Jesús Ballesteros, en el plano jurídico hay que distinguir tres sistemas:<br />
A. El sistema anglosajón, que niega la condición de sujeto de derechos al embrión<br />
y le considera objeto de experimentación, material biológico disponible, simple<br />
objeto y favorable a la clonación sin fines reproductivos. En una postura<br />
parecida hay que considerar a la legislación española de 1989 y a la sentencia<br />
del 2000, que autorizan la congelación de embriones y la utilización científica<br />
de los mismos previo consentimiento informado de los padres, así como el<br />
diagnóstico preimplantatorio, lo que tiene claro carácter eugenésico.<br />
B. El modelo alemán, que ocupa una posición intermedia después de establecer<br />
que las técnicas de fecundación asistida únicamente son lícitas si no hay<br />
otro modo de combatir la infertilidad, o contra enfermedades hereditarias.<br />
Asimismo, prohíbe tales técnicas a efectos de investigación. En la FIV sólo<br />
se pueden fecundar los embriones que serán implantados.<br />
C. El modelo iberoamericano, que defiende abiertamente el carácter personal<br />
del embrión y por tanto lo considera sujeto de derechos. El estatuto del<br />
embrión humano es la cuestión central de la Bioética. 18<br />
16 Ibid.<br />
17<br />
PALOMAR DE MIGUEL, Juan, Diccionario para Juristas, Mayo Ediciones, México, 1981, pág. 901.<br />
18<br />
BALLESTEROS, Jesús, “El estatuto del embrión”, en http:// :www.mercaba.org/Filosofia/ética/BIO/<br />
estatuto_del_embrion.htm, fecha de consulta: 29 de julio de 2009.
98<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
En México, el jurista Rafael Rojina Villegas establece que el nasciturus<br />
tiene personalidad antes de nacer, para ciertas consecuencias de derecho, como<br />
son: capacidad para heredar, para recibir legados y donaciones. Y para ser heredero,<br />
legatario o donatario se requiere tener personalidad jurídica ya que por tales calidades<br />
se adquieren derechos patrimoniales. Se pudiera decir que el nasciturus está<br />
representado por sus padres pero esta representación descansa en la existencia<br />
del representado, de manera que se admite que el embrión humano es persona y<br />
que tiene una capacidad mínima para considerarlo sujeto de derechos. 19<br />
Para fundamentar lo anteriormente expuesto, nuestro Código Civil otorga al<br />
concebido y no nacido los siguientes derechos:<br />
19<br />
ROJINA VILLEGAS, Rafael, Derecho Civil Mexicano, Tomo I: Introducción y Personas, 7ª edición,<br />
Porrúa, México, 1996, págs. 434-437.<br />
20 Ibid.<br />
21 Ibid.<br />
1) Derecho a heredar y a recibir donaciones<br />
Artículo 1314. Son incapaces de adquirir por testamento por intestado, a causa<br />
de falta de personalidad, los que no estén concebidos al tiempo de la muerte del<br />
autor de la herencia, o los concebidos cuando no sean viables, conforme a lo<br />
dispuesto en el artículo 337.<br />
Artículo 2357. Los no nacidos pueden adquirir por donación, con tal que hayan<br />
estado concebidos al tiempo en que aquélla se hizo y sean viables conforme a lo<br />
dispuesto en el artículo 337.<br />
Artículo 337. Para los efectos legales, sólo se tendrá por nacido al que,<br />
desprendido enteramente del seno materno, vive veinticuatro horas o es<br />
presentado vivo ante el Registro Civil. Faltando alguna de estas circunstancias,<br />
no se podrá interponer demanda sobre la paternidad o maternidad. 20<br />
2) Detener y modificar las obligaciones alimentarias de la sucesión hasta su<br />
nacimiento.<br />
Artículo 1638. Cuando a la muerte del marido la viuda crea haber quedado encinta,<br />
lo pondrá en conocimiento del juez que conozca de la sucesión, dentro del<br />
término de cuarenta días, para que lo notifique a los que tengan a la herencia un<br />
derecho de tal naturaleza que deba desaparecer o disminuir por el nacimiento del<br />
póstumo.<br />
Artículo 1643. La viuda que quedare encinta, aun cuando tenga bienes, deberá<br />
ser alimentada con cargo a la masa hereditaria. 21
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 99<br />
22 Ibid.<br />
3) Suspender la partición de la herencia.<br />
Artículo 1648. La división de la herencia se suspenderá hasta que se verifique el<br />
parto o hasta que transcurra el término máximo de la preñez, mas los acreedores<br />
podrán ser pagados por mandato judicial. 22<br />
De acuerdo a lo anterior, la legislación civil reconoce, implícitamente, la<br />
existencia del nasciturus como persona y no como cosa, en consecuencia es<br />
inadmisible atentar contra su vida o su dignidad.<br />
En cuanto a la condición jurídica del nasciturus, antes de las reformas, la<br />
Ley General de Salud (LGS) establecía tres distintas etapas del desarrollo del<br />
nasciturus:<br />
Artículo 314. Para efectos de este título se entiende por:<br />
[…] IV. Pre-embrión: el producto de la concepción hasta el término de la segunda<br />
semana de gestación.<br />
V. Embrión: el producto de la concepción a partir del inicio de la tercera semana<br />
de gestación y hasta el término de la duodécima semana gestacional.<br />
VI. Feto: el producto de la concepción a partir de la decimotercera semana de<br />
edad gestacional, hasta la expulsión del seno materno […] 23<br />
Por otro lado, en el artículo 6º del Reglamento de la Ley General de Salud<br />
en Materia de Control Sanitario de Disposición de Órganos, Tejidos y<br />
Cadáveres de Seres Humanos 24 (RLGSDOTC), sólo se reconocen dos etapas<br />
del desarrollo del nasciturus, que son embrión y feto y no enuncia una fase “preembrionaria”<br />
como lo hacía la LGS.<br />
La Ley General de Salud fue reformada en el año 2000 y en ella sólo se<br />
reconocen dos fases del desarrollo del nasciturus:<br />
Artículo 314. Para efectos de este título se entiende por:<br />
[…] VIII. Embrión, al producto de la concepción a partir de ésta, y hasta el<br />
término de la duodécima semana gestacional;<br />
23 Art. 314, LGS.<br />
24 Reglamento de la Ley General de Salud en Materia de Control Sanitario de Disposición de<br />
Órganos, Tejidos y Cadáveres de Seres Humanos (RLGSDOTC), dirección en Internet: http://<br />
www.scjn.gob.mx/Legilación/, fecha de consulta: 28 de mayo de 2009.
100<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
IX. Feto, al producto de la concepción a partir de la decimo-tercera semana<br />
de edad gestacional, hasta la expulsión del seno materno[…] 25<br />
El concepto de “pre-embrión” no tenía razón de ser ya que como argumenta<br />
el genetista francés Jerome Lejeume, no se necesita ninguna subclase a la que<br />
llamar “pre-embrión” porque no hay nada antes del embrión. Antes de éste hay un<br />
óvulo y un espermatozoide que cuando se unen forman un cigoto que cuando se<br />
divide se convierte en embrión o lo que él llama, un “jovencísimo ser humano”. 26 Y<br />
tal como lo afirma Robert Spaemann, filósofo alemán: “algo no puede llegar a ser<br />
alguien”. El embrión, con independencia de si fue procreado por los medios naturales<br />
o por los artificiales, es un ser humano, con su propia carga genética, alguien con<br />
características que lo hacen único e irrepetible de entre los demás seres humanos.<br />
3. AUTONOMÍA INTRÍNSECA DEL NASCITURUS<br />
Para José Carlos Abellán, las personas gozan de una autonomía que permite<br />
que se desarrollen como tales. Esto se logra mediante una sucesión de actos<br />
voluntarios y, la mayoría de las veces, libres.<br />
El embrión humano es una persona y por lo tanto posee, como los demás<br />
seres humanos, una autonomía intrínseca.<br />
En caso de conflicto de dos voluntades autónomas como lo es la de la madre<br />
y la del embrión que se encuentra en su vientre, el Derecho hace prevalecer la<br />
autonomía de la madre con un valor autárquico, es decir, con un poder para<br />
“gobernarse” a sí misma.<br />
Ante esta situación, es indispensable reivindicar el valor objetivo que<br />
representa la autonomía que posee el embrión humano, la cual se deriva de su<br />
dignidad como ser humano. 27<br />
Y así, aunque este embrión se encuentre en el vientre de su madre, ella no<br />
debe pasar por encima de su autonomía y tomar decisiones, con respecto a ese<br />
embrión, que no le corresponden, ya que el embrión humano representa una vida<br />
biológica distinta de la madre, única e irrepetible.<br />
25 Art. 314, Decreto por el que se reforma la Ley General de Salud, publicado en el Diario Oficial de<br />
la Federación el 28 de abril de 2000.<br />
26<br />
LEJEUNE, Jerome, op.cit.,pág. 44.<br />
27<br />
ABELLÁN SALORT, José Carlos, “La autonomía del embrión humano”, en El inicio de la vida (Identidad<br />
y estatuto del embrión humano), 2ª edición., Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1999, págs.<br />
231 y 232.
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 101<br />
Con respecto a esto, Rodríguez Luño-R. y López Mondéjar expresan lo<br />
siguiente:<br />
Se habla –con razón– de una dependencia del embrión respecto de la madre. Es,<br />
sin embargo, una dependencia puramente extrínseca: la madre nutre al feto, que<br />
no podría vivir sin ella, igual que sucede con el recién nacido. Pero el nuevo<br />
organismo se forma bajo el influjo directivo y perfectamente ordenado de esa<br />
especie de “centro de control” que constituye el genotipo. Estamos frente a un<br />
caso de “autogobierno biológico”. 28<br />
4. PROTECCIÓN DEL NASCITURUS EN LA LEGISLACIÓN MEXICANA<br />
De la protección del nasciturus se desprende cuál será la protección del<br />
ser humano en sus etapas de niño, adolescente, adulto, anciano y moribundo 29 , de<br />
ahí la importancia de que toda legislación reconozca los derechos del ser humano<br />
desde el momento de la concepción.<br />
En México, además de la Ley General de Salud y de su reglamento,<br />
mencionados en el punto anterior, se encuentra el Reglamento de la Ley General<br />
de Salud en materia de Investigación para la Salud (RLGSIS) 30 , en el que<br />
también se distinguen sólo dos etapas del desarrollo del nasciturus (embrión y<br />
feto) pero además lo protege de investigaciones que pudieran afectar su desarrollo<br />
o que lo expongan a un riesgo, exceptuando la intervención que se tenga que hacer<br />
para salvar la vida de la madre.<br />
Nuestra Constitución en su artículo 4º (párrafo cuarto) establece que “Toda<br />
persona tiene derecho a la protección de la salud”, y esto da a entender que el<br />
embrión y el feto, al ser personas, también tienen derecho a la protección de su<br />
salud y de su bienestar. Así, cualquier manipulación del nasciturus debe perseguir<br />
siempre su bienestar y la procuración de su salud.<br />
La vida del embrión se infiere es protegida por los artículos 14 y 16<br />
constitucionales, en los que se establece lo que sigue: “Art. 14. …Nadie podrá ser<br />
privado de la libertad o de sus propiedades, posesiones o derechos 31 , sino mediante<br />
juicio seguido ante los tribunales previamente establecidos”. Y “Art. 16. Nadie<br />
28<br />
RODRÍGUEZ LUÑO-R y LOPEZ MONDÉJAR, La fecundación in vitro, citados por ABELLÁN SALORT, José<br />
Carlos, pág. 241.<br />
29<br />
LOMBARDI, Luigi, citado por BALLESTEROS, Jesús, página de Internet citada anteriormente.<br />
30 Reglamento de la Ley General de Salud en materia de Investigación para la Salud (RLGSIS) Arts. 45-<br />
47, dirección en Internet: http://www.scjn.gob.mx/Legilación/, fecha de consulta: 28 de mayo de 2009.<br />
31 En este caso el derecho a la vida.
102<br />
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puede ser molestado en su persona, familia, domicilio, papeles o posesiones, sino<br />
en virtud de mandamiento escrito de la autoridad competente, que funde y motive<br />
la causa legal del procedimiento”. 32 En este sentido, un ser humano –y el embrión<br />
lo es– se entiende que está incluido en la protección constitucional que ofrecen los<br />
artículos 4º, 14 y 16.<br />
Ahora bien, la controversia que genera la inclusión del concebido no nacido<br />
en el término de “persona” fue resuelta por el propio constituyente cuando por<br />
motivo de las reformas a los artículos 30, 32 y 37 en materia de nacionalidad,<br />
señaló expresamente, en el artículo tercero transitorio de la Constitución, que “las<br />
disposiciones vigentes con anterioridad a la fecha en que el presente decreto entre<br />
en vigor, seguirán aplicándose, respecto a la nacionalidad mexicana, a los nacidos<br />
o concebidos durante su vigencia”. 33<br />
Por lo tanto, esta mención hecha por el constituyente en la que se les reconoce<br />
derechos constitucionales a los concebidos, deja fuera de discusión legal si el<br />
concebido no nacido es persona o no lo es. 34<br />
Por otro lado, la Suprema Corte de Justicia de la Nación, en su papel de<br />
intérprete última de nuestra Constitución estableció en su tesis jurisprudencial 13/<br />
2002 que “… el producto de la concepción se encuentra protegido desde ese momento<br />
y puede ser designado como heredero o donatario. Se concluye que el derecho a la<br />
vida del producto de la concepción, deriva tanto de la Constitución Política de los<br />
Estados Unidos Mexicanos, como de los tratados internacionales y las leyes<br />
federales y locales”.<br />
Entonces, el embrión humano, desde el momento de su concepción, tiene el<br />
derecho a la protección que debe ser dada por nuestras leyes a toda persona, es<br />
decir, tiene derecho a la vida, a que se respete su dignidad como ser humano, a la<br />
libertad y a preservar su salud. Y no obstante que su vida dependa biológicamente<br />
de la madre, el embrión tiene su propia individualidad, su propio código genético,<br />
que lo hace un ser humano único e irrepetible cuya existencia debe protegerse.<br />
5. PROTECCIÓN JURÍDICA DEL NASCITURUS<br />
EN EL DERECHO COMPARADO<br />
En las legislaciones de los países europeos no existe una definición legal del<br />
concepto de embrión, tampoco en el Convenio del Consejo de Europa sobre Derechos<br />
32 Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, Editorial Porrúa, México, 2009.<br />
33 Diario Oficial de la Federación, 20 de marzo de 1997, citado por INCHAURRANDIETA SÁNCHEZ MEDAL,<br />
Jaime, “Sobre el aborto...”, en revista El Mundo del Abogado, mayo 2007, pág. 36.<br />
34 Ibid, pág. 36.
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 103<br />
Humanos y Biomedicina. Este convenio no fue firmado por el Reino Unido por<br />
considerarlo muy restrictivo y tampoco fue adoptado por Austria y Alemania por<br />
considerarlo demasiado permisivo. Este instrumento no prohíbe la investigación<br />
con embriones y no define lo que es una “adecuada protección” para el embrión en<br />
el caso de que se permita la investigación. Sólo el Reino Unido permite la creación<br />
de embriones con fines de investigación, en cambio Alemania y Austria prohíben la<br />
investigación en sus ordenamientos jurídicos. 35<br />
En España, el artículo 15 de su Norma Fundamental establece que “Todos<br />
tienen derecho a la vida y a la integridad física y moral…” 36 Y es en este término<br />
“todos” dónde se podría incluir el nasciturus quien queda entonces protegido por la<br />
Constitución aún cuando no afirma explícitamente que sea titular del derecho<br />
fundamental. Si nos ajustamos literalmente al texto parece que es suficiente su<br />
redacción, pero existen diversas posiciones al respecto. Unos consideran que el término<br />
“todos” incluye al concebido no nacido, otros, se inclinan por pensar que este término<br />
sólo incluye a quienes hayan nacido y señalan que “todos” significa “todas las<br />
personas”. Aunque los derechos no pueden ser ejercidos por alguien que todavía no<br />
ha nacido, el derecho a la vida es un derecho inherente al embrión humano. 37<br />
En su Ley 14/2006 de 26 de mayo sobre Técnicas de Reproducción<br />
Humana Asistida, se permite la investigación con embriones humanos. En este<br />
ordenamiento no se le da al embrión el carácter de ser humano pues puede ser<br />
utilizado en investigaciones con fines terapéuticos y reproductivos.<br />
Ahora bien, en este país el aborto es un delito salvo en tres supuestos:<br />
violación denunciada, graves taras físicas o psíquicas del feto (previo dictamen de<br />
dos especialistas) y grave peligro para la vida o para la salud física o psíquica de<br />
la madre (con el informe de un médico). Los médicos que emiten los dictámenes<br />
deben ser distintos a los que practiquen el aborto. En la violación y la malformación<br />
fetal los plazos para llevar a cabo el aborto son 12 semanas para el primer supuesto<br />
y 22 para el segundo. Sin embargo, no hay límite de tiempo en caso de que exista<br />
grave riesgo para la salud física o psíquica de la madre.<br />
35 IAÑEZ PAREJA, Enrique, “Ética del uso de embriones humanos”, Departamento de Microbiología e<br />
Instituto de Biotecología de la Universidad de Granada, España, en: http://www.ugr.es/~eianez/<br />
Biotecnologia/clonetica.htm#_Toc3656107, fecha de consulta: 22 de octubre de 2009.<br />
36 Art. 15, Constitución Española, en: http://narros.congreso.es/constitucion/constitucion/indice/<br />
index.htm, fecha de consulta: 19 de octubre de 2009.<br />
37 SANCHEZ BARRAGÁN, Rosa de Jesús, “Protección jurídica de la vida prenatal, con especial relevancia<br />
en el Derecho Constitucional Español”, en: http://www.bioeticaweb.com, fecha de consulta: 30 de<br />
septiembre de 2009.
104<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Por último, el Código Civil Español expresa que el nacimiento determina la<br />
personalidad, pero el concebido no nacido se tiene por nacido para todos los efectos<br />
que le sean favorables. 38 Estos efectos favorables se enfocan principalmente a<br />
intereses económicos o de filiación, ya que este ordenamiento permite las donaciones<br />
a los concebidos no nacidos. 39<br />
En Argentina se considera al nasciturus como una persona por nacer, por<br />
ello, su derecho positivo reconoce que la existencia de la persona comienza en el<br />
momento de la concepción. A nivel constitucional, el artículo 75 reconoce la<br />
personalidad del niño por nacer durante toda la extensión del embarazo. Asimismo,<br />
su Código Civil consagra el comienzo de la persona física desde el momento de la<br />
concepción en el seno materno, siendo, desde ese momento, titular de un conjunto<br />
de derechos. El artículo 51 de este ordenamiento establece que “todos los entes<br />
que presentasen signos característicos de humanidad, sin distinción de cualidades<br />
o accidentes, son personas de existencia visible”. 40<br />
En Brasil existen disposiciones que protegen los derechos del concebido,<br />
pero que introducen una distinción entre el concebido y el nacido. En este país<br />
existen tres posturas al respecto: Una es que la personalidad comienza desde la<br />
concepción, otra es que el nasciturus posee una personalidad condicional y la<br />
última es que el nasciturus tiene personalidad a partir de su nacimiento. 41 Es así<br />
que el Novo Código Civil Brasileiro expresa lo siguiente: “Art. 2º. A personalidade<br />
civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei poe a salvo,<br />
desde a concepção, os direitos do nascituro” que traducido al español significa:<br />
“La personalidad civil del hombre comienza con el nacimiento con vida; más la ley<br />
pone a salvo los derechos del nasciturus desde la concepción.” 42<br />
En 2005, fue aprobada por el Senado brasileño la Ley de Bioseguridad. Fue<br />
una decisión muy polémica que enfrentó a la comunidad científica y religiosa de<br />
Brasil, ya que dicho ordenamiento permite el uso de embriones generados a partir de<br />
la fecundación in vitro y que están congelados desde hace más de tres años en<br />
clínicas de fertilización en investigaciones y terapias médicas. Según los miembros<br />
que avalaron dicha ley, ésta no viola el derecho a la vida, pero la Procuraduría General<br />
38 Art. 29, Código Civil Español, en http://www.ucm.es, fecha de consulta: 1º de octubre de 2009.<br />
39 Art. 627, ibid.<br />
40<br />
LAFFERRIERE, Jorge Nicolás, “El derecho ante la manipulación embrionaria”, en http://www.uca.edu.ar,<br />
fecha de consulta: 1º de octubre de 2009.<br />
41 Ibid.<br />
42 Novo Código Civil Brasileiro, Cámara Municipal de Curitiba,en: http://www.cmc.pr.gov.br, fecha<br />
de consulta: 1º de octubre de 2009.
El embrión humano o nasciturus como sujeto de derechos 105<br />
de la República denunció que constituye una violación al principio constitucional que<br />
asegura la protección de la vida humana ya presente el en embrión. 43<br />
En Chile, su Código Civil hace una distinción entre la existencia natural y la<br />
legal de la persona, estableciendo que la existencia natural principia con la concepción<br />
y se prolonga hasta el nacimiento, en cambio, la existencia legal de toda persona<br />
principia al nacer, es decir, al separarse completamente de su madre. 44 Pero, aunque<br />
al nasciturus no se le reconozca existencia legal, la Constitución Política de Chile<br />
asegura a todas las personas “el derecho a la vida y a la integridad física y<br />
psíquica…” y establece también que “la ley protege la vida del que está por nacer”. 45<br />
Cabe resaltar que en Chile está prohibido el aborto en todas sus formas, aunque<br />
sea por razones médicas. 46<br />
6. A MANERA DE CONCLUSIÓN<br />
Es un hecho que el embrión humano es una realidad biológica que representa<br />
el inicio de la vida humana, con su propia carga genética que lo distingue como un<br />
ser único e irrepetible. Desde el mismo momento de la concepción posee plena<br />
dignidad humana y por lo tanto, posee también el derecho fundamental de la vida,<br />
por lo cual se le debe otorgar la protección jurídica necesaria.<br />
El tema concerniente a la protección jurídica del embrión humano requiere de<br />
un constante estudio derivado del vertiginoso avance de la investigación en las ciencias<br />
de la salud, avance que muchas veces atenta contra la dignidad del nasciturus.<br />
La desvalorización que algunas personas hacen a la vida humana en sus<br />
primeros estadios es un grave atentado al embrión humano y a su dignidad como<br />
persona, por ello es de suma importancia que la legislación de cada país lo reconozca<br />
como sujeto de derechos.<br />
43 Constitución de la República Federativa de Brasil, Artículo 5º, en: http://www.bibliojuridica.org/<br />
libros/4/1875/2.pdf, fecha de consulta: 22 de octubre de 2009.<br />
44 Art. 74, Código Civil Chileno, en: http://www.nuestroabogado.cl/codcivil.htm#primero, fecha de<br />
consulta: 9 de octubre de 2009.<br />
45 Art. 19 -1º de la Constitución Política de la República de Chile, en: http://www.leychile.cl, fecha de<br />
consulta: 9 de octubre de 2009.<br />
46 “La política y el aborto terapéutico en Chile”, en: http://www.spanish.xinhuanet.com, fecha de<br />
consulta: 17 de marzo de 2009.
106<br />
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Ius cogens 109<br />
8<br />
Ius cogens<br />
Ius cogens<br />
EBER BETANZOS<br />
Director General de Política Criminal de la Fiscalía Especializada para la Atención de Delitos<br />
Electorales. Estudió la carrera de abogado en la Escuela Libre de Derecho (ELD),<br />
teología en la Escuela de Ciencias Religiosas de la Universidad LaSalle y filosofía en la Universidad<br />
Panamericana. Es maestro en Estudios Humanísticos por el Instituto Tecnológico de Estudios<br />
Superiores de Monterrey. Obtuvo el diploma de estudios avanzados en el Doctorado en Derechos<br />
Humanos de la UNED. Profesor de argumentación jurídica en el Instituto Nacional de Ciencias<br />
Penales y de historia del derecho patrio en la ELD. Es autor del libro Discordia Constitucional:<br />
Benito Juárez y la Constitución de 1857. E-mail: miterceraletra@gmail.com.<br />
RESUMEN<br />
Durante mucho tiempo el tema del ius cogens fue sólo tópico de discusiones<br />
académicas, pero adquirió gran actualidad desde que la Comisión de Derecho<br />
Internacional de la ONU hizo referencia a él, en su proyecto de artículos acerca del<br />
derecho de los tratados (1966). Por tal motivo en este artículo intentaremos delimitar<br />
la noción de ius cogens, que no siempre es abordado por todos los estudiosos del<br />
derecho internacional de la misma manera.<br />
Palabras claves: Ius cogens, derecho internacional, derecho interno, coercibilidad.<br />
ABSTRACT<br />
For long time the topic of ius cogens in the international law was only for academic<br />
purposes; but since the International Law Commission of the United Nations make<br />
reference to them in the project of articles on international treaties (1966), the topic<br />
gained a lot of relevance. For that reason this article tries to build elements for the<br />
notion of ius cogens, which is not always, explained in the same way by the authors<br />
of international law.<br />
Keywords: ius cogens, international law, internal law, constraint.
110<br />
1. LOS CARACTERES DE LAS NORMAS<br />
PERTENECIENTES AL IUS COGENS<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Para dar una idea más patente de lo que sería el ius cogens algunos autores<br />
lo vincularon con nociones similares a su contenido normativo tomadas del derecho<br />
interno, tales como las de orden público, como del derecho público o de derecho<br />
constitucional; sin embargo, estas analogías utilizadas, en lugar de aclarar la noción<br />
de ius cogens –al olvidar que existen diferencias considerables entre el orden<br />
jurídico internacional y el estatal– más bien presentan obstáculos para la clarificación<br />
de su concepto.<br />
Esto no significa que el ius cogens sea necesariamente una noción exclusiva<br />
del derecho internacional, ya que puede pertenecer en común al orden jurídico<br />
internacional y al estatal –entendiendo el derecho como un todo jurídico que integra<br />
reglas de conducta de observancia obligatoria de distinta naturaleza–, al mismo<br />
tiempo que presenta caracteres muy diferentes según se le considere en uno o el<br />
otro de estos ordenes.<br />
Definido en el artículo 50 del Proyecto de Artículos acerca del Derecho de<br />
los Tratados elaborado por la Comisión de Derecho Internacional de la Organización<br />
de las Naciones Unidas se dispone:<br />
Es nulo todo tratado en conflicto con una norma imperativa de derecho<br />
internacional general de la que ninguna derogación es permitida y que no puede<br />
ser modificada más que por una nueva norma de derecho internacional general<br />
que tenga el mismo carácter.<br />
Cabe tomar en cuenta que esta definición tomó en consideración tres elementos:<br />
para tener la calidad de ius cogens; una norma debe ser al mismo tiempo:<br />
1. Imperativa.<br />
2. Pertenecer al derecho internacional general.<br />
3. Anular los tratados concertados que violan sus disposiciones.<br />
Por otra parte, en la Convención de Viena sobre el Derecho de los Tratados,<br />
se establece en la Parte V. Nulidad, terminación y suspensión de la aplicación de<br />
tratados, sección 2. Nulidad de los tratados, artículo 53:<br />
Tratados que estén en oposición con una norma imperativa de derecho<br />
internacional general (ius cogens). Es nulo todo tratado que, en el momento de<br />
su celebración, esté en oposición con una norma imperativa de derecho<br />
internacional general.
Ius cogens 111<br />
Para los efectos de la presente Convención, una norma imperativa de derecho<br />
internacional general es una norma aceptada y reconocida por la comunidad<br />
internacional de Estados en su conjunto como norma que no admite acuerdo en<br />
contrario y que sólo puede ser modificada por una norma ulterior de derecho<br />
internacional general que tenga el mismo carácter.<br />
En tal sentido, la académica mexicana, Loretta Ortiz Ahlf (1999), deduce de<br />
este artículo elementos que identifica como característicos del ius cogens:<br />
1. Debe tratarse de una norma de derecho internacional general que obligue a<br />
todos los estados.<br />
2. Ha de ser una norma imperativa, que no admite acuerdo en contrario.<br />
3. Debe ser reconocido por la comunidad internacional en su conjunto.<br />
4. Será modificable por otra norma que tenga el mismo carácter.<br />
En otro parámetro, el ius cogens también ha sido definido por Erik Suy<br />
(1967) como:<br />
El cuerpo de reglas generales de derecho cuya inobservancia puede afectar la<br />
esencia misma del sistema legal al que pertenecen a tal punto que el sujeto de<br />
derecho no puede, bajo la pena de nulidad absoluta, apartarse de ellas por medio<br />
de convenios particulares.<br />
A partir de estos primeros elementos introductorios podemos explorar sus<br />
elementos principales: a) ser una norma imperativa; b) tener carácter de una norma<br />
de derecho internacional general. 3. Anular los tratados concertados que violan<br />
sus disposiciones.<br />
1.1. Norma imperativa<br />
Con base en los elementos anteriores podemos partir de la idea de que una<br />
norma imperativa no es sinónimo de norma obligatoria.<br />
Todas las normas de derecho internacional son en principio obligatorias; sin<br />
embargo, si bien el hecho de que se cree una obligación para a cargo de un Estado<br />
significa que otro estado tendrá derecho de exigir su aplicación.<br />
En este sentido, también es cierto, que por regla general, un sujeto de derecho<br />
puede renunciar al derecho de exigir su aplicación y aceptar que la obligación que<br />
respecto a él existe no se aplique.
112<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Por tanto, es posible que dos Estados soberanos decidan que en lo que se<br />
refiere a sus relaciones mutuas, no se apliquen ciertas normas del derecho<br />
internacional que les imponen obligaciones mutuas, o decidan aplicar normas distintas<br />
a las previstas por el derecho internacional general.<br />
En contraposición, el ius cogens se caracteriza porque un Estado no puede<br />
liberarse de las obligaciones que le impone una norma de ius cogens con respecto<br />
a otro Estado ni siquiera mediante un tratado; es decir, con el consentimiento de<br />
ese otro Estado (no puede renunciar por sí mismo a sus derechos).<br />
De lo visto, podemos colegir que el ius cogens -como su nombre lo indicapresenta<br />
un carácter prohibitivo, pero en un sentido muy particular, ya que el alcance<br />
de esta prohibición es inhabilitar cualquiera de sus disposiciones.<br />
El ius cogens introduce una limitante a la autonomía de la voluntad de los<br />
estados, a su libertad contractual, considerada tradicionalmente absoluta al<br />
representar una faceta muy importante de la soberanía de los Estados, de tal manera<br />
que el ius cogens puede ser considerado en prejuicio de la soberanía de los Estados.<br />
Sin embargo, se contra argumenta: la garantía suprema de la independencia<br />
política y económica de los pueblos no es la soberanía absoluta, sino el derecho<br />
internacional que garantiza su respeto, aunque ello sin duda no dejar de ser relativo,<br />
pues el imperio del derecho internacional también se relaciona con las condiciones<br />
fácticas de voluntad de cumplimiento en los estado soberanos.<br />
Un punto que merece recalcarse es que si las normas de ius cogens son<br />
normas fundamentales y de una gran importancia para la sociedad internacional,<br />
no por ello todas las normas fundamentales –es decir de inserción en el entramado<br />
constitucional de las naciones– del derecho internacional forman parte del ius<br />
cogens.<br />
Cabe tomar en cuenta que la prohibición de toda derogación de las normas<br />
de derecho internacional que conforman el ius cogens puede justificarse, de manera<br />
general, por dos hipótesis:<br />
a) Existencia de reglas destinadas a proteger intereses que superan a los intereses<br />
individuales de los estados, en el marco de las garantías fundamentales. Por<br />
ejemplo: normas relativas al respeto de los derechos del hombre a partir del<br />
supremo respeto a la dignidad humana, sobre todo en el caso de que se<br />
perjudique a todo un grupo de personas.<br />
b) Prohibición que garantice la protección del Estado en contra de sus propias<br />
debilidades o en contra de la excesiva fuerza de sus eventuales socios<br />
internacionales. Ello representa una protección en contra de las desigualdades
Ius cogens 113<br />
en el poder de negociación, tales como el establecimiento de cláusulas de<br />
garantía a sectores estatales en posición de desventaja.<br />
1.2. Norma de derecho internacional general<br />
El hecho de que el ius cogens conste exclusivamente de normas del derecho<br />
internacional general recalca su carácter de universalidad.<br />
Sí expresa valores de carácter ético, desde luego estos no pueden ser<br />
impuestos por medio de la fuerza imperativa que le pertenece más que si son<br />
absolutos y por consiguiente no conocen límites geográficos en su aplicación.<br />
Con base en lo anterior es posible formular esta pregunta: ¿Puede concebirse<br />
el ius cogens regional? Una concepción así no es imposible, por el momento no<br />
ésta reconocido, pero señalemos que si algunas reglas validas en el grupo particular<br />
de un estado son consideradas especialmente importantes, y deben por tanto<br />
prevalecer sobre otras, no resultará necesario que adquieran el carácter de ius<br />
cogens.<br />
Aún así, si se puede elaborar el ius cogens regional, estará subordinado al<br />
ius cogens mundial, tal como lo define la Comisión de Derecho Internacional, ya<br />
que éste prohíbe expresamente que un grupo de estados soberanos pueda derogar<br />
sus existencias, hasta en las relaciones mutuas de sus miembros.<br />
Es importante señalar que una noción en donde sí existe acuerdo amplio es<br />
en la idea de derecho internacional general, como el conjunto de las normas aplicables<br />
a todos los estados miembros de la sociedad internacional, por oposición a las<br />
normas internacionales aplicables sólo a algunos de ellos y que constituye el derecho<br />
internacional particular, ya sea en forma regional, local o bilateral.<br />
Debemos hacer énfasis en este punto: la definición del artículo 50 del Proyecto<br />
de Artículos acerca del Derecho de los Tratados da cuenta que toda norma de ius<br />
cogens puede ser modificada por una norma de la misma naturaleza, de donde<br />
descubrimos que se pueden encontrar normas imperativas, además de las que<br />
expresamente pertenecen al ius cogens.<br />
De esta forma se observa que las normas de ius cogens son normas de<br />
derecho positivo, y por lo tanto, se integran al orden jurídico por el juego del sistema<br />
de fuentes del que este orden consta.<br />
Sin embargo, todos los modos de formación del derecho internacional no<br />
pueden dar origen a normas de ius cogens. Sólo pueden hacerlo los que son el<br />
principio del derecho internacional general y sobre este punto el Proyecto de la<br />
Comisión de Derecho Internacional guardó silencio.
114<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
1.3. Anular los tratados concertados que violan sus disposiciones<br />
Este es el carácter esencial de la institución del ius cogens y deriva de la<br />
preminencia jerárquica que se establece sobre las fuentes del derecho internacional<br />
a favor de éste, una vez generados los consensos necesarios que generen un vínculo<br />
jurídico obligatorio en este sentido.<br />
Sin duda, en esta materia, la nulidad de una norma jurídica constituye la<br />
sanción más grave del derecho internacional, mismo que emana de manera muy<br />
directa de la importancia fundamental que adquieren las normas de ius cogens<br />
para la sociedad internacional.<br />
Por ello la violación del ius cogens no sólo provoca la nulidad de los tratados<br />
contrarios -salvo en el caso de que se aluda a un tratado que establezca una nueva<br />
norma de ius cogens, donde no habría derogación sino modificación de sus<br />
contenidos- sino que también involucra la nulidad de una regla consuetudinaria<br />
regional o local, interna o internacional, que conlleva a una derogación de sus<br />
disposiciones.<br />
2. CLASIFICACIÓN DE UNA NORMA DEL DERECHO INTERNACIONAL<br />
GENERAL EN EL IUS COGENS<br />
Si se parte de la idea, desde el punto de vista jurídico, de que el carácter<br />
específico del ius cogens obedece al hecho de que todo acto particular que provoca<br />
una derogación de sus disposiciones se anula, es este carácter el que debe ser<br />
establecido cada vez que se presuponga que una norma determinada del derecho<br />
internacional general forma parte de él.<br />
Cabe señalar que esta demostración es difícil de hacer en lo que se refiere<br />
a los principios generales del derecho, en el sentido del artículo 38 del Estatuto de<br />
la Corte Internacional de Justicia, de donde constituyen principios comunes a todos<br />
los órdenes jurídicos, por tanto no se imponen por las necesidades propias de la<br />
comunidad internacional, basados en principios de igualdad de derechos, la<br />
obligatoriedad de los pactos, igualdad soberana, solución de controversias por medios<br />
pacíficos –excluyendo en toda forma el uso de la fuerza–, la protección de los<br />
derechos humanos y la buena fe en los acuerdos.<br />
Tómese nota de que la aparición de normas con carácter de ius cogens es<br />
relativamente reciente en el debate, aunque el derecho internacional se encuentra<br />
en un proceso de rápida evolución.
Ius cogens 115<br />
Esto se nota con más claridad en el comentario al artículo 50 del Proyecto<br />
de Artículos acerca del Derecho de los Tratados (artículo 53, modificado por la<br />
Conferencia de la Convención de Viena de 1969) cuando nos dice:<br />
La comisión estimó conveniente establecer en términos generales que un tratado<br />
es nulo si es incompatible con una norma de ius cogens y dejar que el contenido<br />
de esta norma se forme en la práctica de los Estados y la jurisprudencia de los<br />
tribunales internacionales.<br />
De este modo, en su análisis, nos atendremos a las normas de derecho<br />
convencional y a las de derecho consuetudinario:<br />
2.1. En el derecho convencional internacional<br />
Adquirirá el carácter de ius cogens, si el tratado que la consagra dispone<br />
expresamente que toda derogación de sus disposiciones será sancionada con la anulación.<br />
Por ejemplo, el artículo 49 del Proyecto de la Comisión, que dispone que un tratado<br />
cuya concertación se obtuvo por medio de amenazas o del empleo de la fuerza es nulo.<br />
La consecuencia de esta disposición es dar el carácter de ius cogens a la<br />
norma que prohíbe la amenaza o el empleo de la fuerza con vistas a imponer a un<br />
Estado la aceptación de un tratado.<br />
2.2. En el derecho consuetudinario<br />
Hay que partir del consensus sobre el que se fundamenta la costumbre:<br />
existe la convicción de que la norma tiene tal importancia que no puede descartarse<br />
mediante un particular y que, por consiguiente, conlleva la anulación de todo convenio<br />
concertado convenido por los estados. Por ejemplo el no reconocimiento a<br />
situaciones de facto establecidas como violatorias al derecho internacional y a la<br />
inhabilitación del recurso de guerra.<br />
En el informe de 1966 de la Comisión de Derecho Internacional presentó<br />
algunos ejemplos de ius cogens:<br />
a. Un tratado internacional relativo a un caso de uso ilegítimo de la fuerza, con<br />
violación de los principios de la Carta de la ONU.<br />
b. Un tratado internacional relativo a la ejecución de cualquier otro acto delictivo<br />
en derecho internacional.<br />
c. Un tratado internacional destinado a realizar o tolerar actos tales como la<br />
trata de esclavos, la piratería o el genocidio, en cuya represión todo estado<br />
está obligado a cooperar.
116<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
d. Los tratados internacionales que violen los derechos humanos, la igualdad<br />
de los Estados o el principio de la libre determinación.<br />
En la doctrina también se mencionan como ejemplos de normas de ius<br />
cogens: las que prohíben la guerra de agresión, el genocidio, la piratería, el comercio<br />
de esclavos, el uso de la fuerza, las que protegen los derechos humanos, la no<br />
intervención, la autodeterminación de los pueblos.<br />
Además la jurisprudencia internacional ha echado mano de las normas de<br />
ius cogens para dar resolución a los conflictos planteados, como norma imperativa<br />
para los Estados (Casos de la plataforma continental del Mar del Norte fallo de 20<br />
de febrero de 1969, caso relativo a la Barcelona Traction, Light and Power Company<br />
Limited fallo de 24 de julio de 1964 y fallo de 5 de febrero de 1970, entre otros)<br />
Finalmente, a manera de comentario final, es conveniente tener en cuenta<br />
que la demostración de que una norma cualquiera del derecho internacional general<br />
posee el carácter de ius cogens requiere para cada caso una amplia investigación,<br />
en el que los caracteres centrales radicaran en la función de obligatoriedad entre<br />
los estados, sin admitir acuerdos en contrario.<br />
REFERENCIAS<br />
CASANOVAS Y LA ROSA, Oriol. Prácticas de Derecho Internacional Público. 2.<br />
ed. Madrid: Tecnos, 1978.<br />
ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS – ONU. Resúmenes de los fallos, opiniones<br />
consultivas y providencias de la Corte Internacional de Justicia. New York:<br />
ONU, 1992.<br />
ORTIZ AHLF, Loretta. Derecho Internacional Público. México: Oxford University<br />
Press, 1999.<br />
SEPÚLVEDA, César. Derecho Internacional. 20. ed. México, DF: Porrúa, 1998.<br />
SORENSEN, Max (compilador). Manual de Derecho Internacional Público. 6ª<br />
reimpresión. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.<br />
TRIGUEROS SARABIA, Eduardo. Trayectoria del Derecho mundial. México, DF:<br />
Porrúa, 1953.<br />
VILLARI, Michel. El devenir del Derecho Internacional. Ensayos escritos al correr<br />
de los años. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 117<br />
9<br />
Desbordamiento de los mínimos<br />
morales en los derechos humanos:<br />
exclusión y justicia<br />
Overpassing minimum moral principles<br />
in human rights: exclusion and justice<br />
DORA ELVIRA GARCÍA<br />
Profesora - investigadora de tiempo completo de la Escuela de Humanidades y Ciencias Sociales de<br />
Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Monterrey (ITESM), Campus Ciudad de México.<br />
Actualmente es Líder de Investigación de Proyectos de Humanidades de la institución señalada.<br />
Coordinadora de la Cátedra UNESCO-Tecnológico de Monterrey sobre Ética y Derechos humanos.<br />
Autora de Variaciones en torno al liberalismo, Ed. Galileo /Universidad de Sinaloa, 2001, México;<br />
El liberalismo hoy. Una reconstrucción crítica del pensamiento de John Rawls, Ed. Plaza y<br />
Valdés,2003, México; Del poder político al amor al mundo. Hannah Arendt; Ed. Porrúa, 2005,<br />
México; Perspectivas y aproximaciones en torno a la política, la ética y la cultura desde la<br />
hermenéutica analógica, Ed. Dúcere, 2004, México. Coordinadora y editora de varios libros, entre<br />
ellos El sentido de la política; Derechos humanos y hermenéutica analógica; Etica, persona y<br />
sociedad, ética, profesión y ciudadanía, Estudios de género y hermenéutica analógica.<br />
dora.garcia@itesm.mx.<br />
RESUMEN<br />
El presente texto lleva a cabo una reflexión en torno a situaciones que cotidianamente<br />
vivimos en nuestro mundo contemporáneo y que son generadoras de severas<br />
injusticias. Es preciso continuar con la defensa de los derechos humanos dado que<br />
su contravención rompe con los límites morales. Situaciones de clara injusticia por<br />
la exclusión que muchos seres humanos sufren, proceden de diversas causas, entre<br />
ellas, la absolutización de lo económico y su despreocupación generalizada en<br />
torno a la responsabilidad moral.<br />
Palabras claves: derechos humanos, mínimos morales, injusticia, responsabilidad.
118<br />
ABSTRACT<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
This text makes a reflection on some realities lived in our contemporary world which<br />
produces severe injustices. We have to continue the defense of human rights because<br />
the failure to do so destroys moral boundaries. Injustice is evident because human<br />
beings suffer exclusion, and this injustice is caused by the absolutization of<br />
economics and the forgetting of moral responsibility.<br />
Keywords: human rights, moral minimums, injustice, responsability.<br />
“La ética, enteramente autónoma, sigue proporcionando<br />
el referente normativo para juzgar el mundo y para abrigar<br />
una modesta esperanza respecto a su transformación, una<br />
esperanza ligada al imperativo del disenso, esto es, al<br />
imperativo moral de decir que no a cuanto se nos antoja<br />
intolerable por injusto e indigno”<br />
Javier Muguerza 1<br />
“Para quienquiera que fuera una vez excluido y destinado<br />
a la basura no existen sendas evidentes para recuperar la<br />
condición de miembro de pleno derecho. Tampoco existen<br />
caminos alternativos, oficialmente aprobados y proyectados,<br />
que cupiera seguir (o que hubiera de seguir a la fuerza)<br />
hacia un título de pertenencia alternativo. […]¿Se tiran<br />
las cosas por causa de su fealdad o son feas porque se las<br />
ha destinado al basurero?<br />
Zigmunt Bauman 2<br />
1. A MODO DE INTRODUCCIÓN: EL SUSTRATO<br />
HUMANO SIGUE SIENDO LO MORAL<br />
¿Por qué seguir pensando en la necesidad de la ética en nuestros días?¿Por<br />
qué continuar con las consideraciones en torno a los derechos humanos? Preguntas<br />
como éstas son recurrentes y han de vislumbrarse de manera obligada porque<br />
existen personas que están en situaciones absolutamente inaceptables e injustas<br />
en diversos aspectos humanos.<br />
1 MUGUERZA, J, citado en GUERRA, M.J. y ARAMAYO, R. Los laberintos de la responsabilidad. España:<br />
CSIC/Plaza y Valdés Editores, 2007, p. 12.<br />
2 BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, pp. 30 y 13.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 119<br />
Es preciso repensar qué es lo que hemos venido haciendo para con ello<br />
evitar repetir y reproducir, en la medida de lo posible, los graves problemas que<br />
generan tales situaciones que responden a modelos que necesariamente tenemos<br />
que repensar. Sólo así podremos cambiarlos y combatirlos para humanizarlos.<br />
Dentro de tales modelos, uno de los grandes equívocos que ha persistido en<br />
el pensamiento contemporáneo y que se ha reforzado por la intención constante de<br />
pensar en el “crecimiento” de la producción de recursos únicamente desde el<br />
marco de la economía. Ésta ha sido una pretensión persistente de reducir todos los<br />
problemas humanos únicamente al ámbito económico. Como sabemos además,<br />
tales formas reduccionistas son las que han generado la debacle que se está<br />
sucediendo en el mundo, porque se deja de lado un terreno fundamental en la vida<br />
humana: el ámbito moral.<br />
Las realidades como las que apuntamos han propiciado situaciones de violencia<br />
que apreciamos en cada instante en nuestro país. Ellas van más allá de los límites de<br />
lo moral, de modo que esta transgresión se evidencia como forma de destrucción de<br />
lo humano y por ende resulta ser profundamente injusta para quienes la sufren.<br />
Es precisamente este desbordamiento moral el que ha generado el desmoronamiento<br />
de los ámbitos humanos, desde los mismísimos derechos humanos hasta<br />
los elementos de carácter económico y político que constituyen el andamiaje humano.<br />
Se han recrudecido las formas de relación humana de cuño violento que<br />
avasallan recurrentemente los derechos humanos. Una de esas formas de violencia<br />
es la exclusión, –hermanada generalmente a situaciones de pobreza– que con sus<br />
diversas cartas de presentación y expresión ocasiona –en los segmentos relegados<br />
y repudiados de la humanidad– la cancelación de esos derechos, con la consecuente<br />
deriva de las diversas formas de abyección humana provocada por instancias de<br />
dominio, de abuso y arbitrariedad de unos seres humanos sobre otros.<br />
Esto marca la significación de los que están fuera, es decir, de los excluidos<br />
como residuos de la humanidad, como desechos que no hay por qué incluir. Las<br />
consideraciones que se hagan en torno a ellos están generalmente impregnadas de<br />
desprecio, sin pensar que son consecuencias de una sociedad injusta que no les ha<br />
procurado ni permitido tener lo necesario para ser apreciados y por ende incluidos<br />
dentro de esa sociedad.<br />
Quisiera destacar a lo largo de este escrito, que desde la existencia de una<br />
conciencia moral es posible atestiguar cómo la ruptura de los límites morales<br />
expresados en estos fenómenos de exclusión, significa la destrucción de lo humano.<br />
Desde ahí es que la tarea que ha de llevar a cabo una ética crítica es abordar los<br />
problemas de carácter ético que se articulan con su dimensión social, que es la
120<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
justicia 3 . Tal faena crítica “empieza cuando el sujeto se distancia de las formas de<br />
moralidad existentes, de sus usos “normales”, y se pregunta por la validez de sus<br />
reglas y comportamientos” 4 poniéndolos en tela de juicio, sobre todo cuando tal<br />
moralidad permite situaciones inaceptables tales como la exclusión inhumana, que<br />
hace de los derechos humanos recursos fútiles. De ahí que tenga que pensarse en<br />
la defensa de lo humano como algo debido por su raigambre moral, sobre todo ante<br />
situaciones amenazantes y desde ahí se apele a la urgente responsabilidad moral.<br />
Esta última se tiene que enfrentar a las identidades rotas de aquellos que son dejados<br />
fuera de los beneficios de los que sí se ubican dentro. El fenómeno de la pobreza tan<br />
complicado hoy día –porque no sólo tiene que ver con recursos materiales– es un<br />
ejemplo que constituye causa y efecto del fenómeno de la exclusión.<br />
Las situaciones de injusticia y de falta de consideración a los derechos<br />
humanos se derivan de causales que generalmente –aunque no únicamente– son<br />
del dominio económico, y a la par, tienen efectos tan destructivos que dejan a<br />
quienes resultan excluidos, como simples residuos humanos.<br />
El tema es evidentemente moral, y aunque el punto de partida ha de tener<br />
ese mismo tinte –por lo que tiene que ver con los derechos humanos– sin embargo,<br />
sus implicaciones son de carácter social, político, económico y legal. Éstas últimas<br />
han de ser consideradas para la reconstrucción de los elementos propios de lo<br />
humano, elementos que han sido recurrentemente desdeñados y pisoteados por<br />
quienes muestran una faz de dominio generadora de enorme injusticia.<br />
2. LA DEFENSA DE LO HUMANO FRENTE A LOS PARADIGMAS<br />
DEL CONTINUO CRECIMIENTO ECONOMICISTA. Y, ¿LA<br />
RESPONSABILIDAD?<br />
Hoy día, por desgracia nos encontramos sometidos a múltiples intereses que<br />
destruyen lo humano que nos es propio, al violentarlo y reducirlo a mero instrumento<br />
sujeto a diversos tipos de dominio. Como apuntábamos antes, uno de ellos es<br />
innegablemente de carácter prevalentemente económico, ámbito el que ha venido<br />
extendiéndose de manera incesante en todos los espacios humanos, inundando y<br />
tiñendo con su fuerza las demás áreas humanas. Este reduccionismo de carácter<br />
económico ha hecho que todos los terrenos de lo humano contengan una tonalidad<br />
económica, con lo que se evidencia una reificación de lo humano con los demoledores<br />
resultados que ya conocemos en el horizonte actual, por la ruina de las personas.<br />
3 VILLORO, L. Sobre el principio de la injusticia: la exclusión, en Isegoría, 22, 2000, p. 103.<br />
4 Ibid, p. 111.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 121<br />
Cabe entonces una obligada reflexión en torno a la relevancia de la<br />
responsabilidad de las acciones. Es preciso advertir “los vericuetos, a veces<br />
pobremente iluminados, de los laberintos de la responsabilidad: el incremento de la<br />
desigualdad fruto de la globalización económica,” 5 entre otros graves fenómenos<br />
que conllevan formas de violencia y de exclusión en los diferentes campos humanos.<br />
Todas estas situaciones han sido favorecidas por el mismo ser humano y las<br />
diversas fuerzas que lo amenazan son generadas por quienes pretenden los beneficios<br />
individuales sin apreciar el colectivo y propiciadas por quienes buscan el dominio<br />
de todos los espacios posibles, sin estimar las consecuencias. Así, en general el ser<br />
humano contemporáneo ha buscado –sin contención alguna– una infinita<br />
omnipotencia, así como un crecimiento incesante y perpetuo de un “cada vez más”. 6<br />
Con ello, la ruptura de los límites –en todos sentidos– ha provocado la creación de<br />
nuevos mercados, dado que los existentes no satisfacen la voracidad de muchos<br />
seres humanos. Las consecuencias han sido de gran alcance y han tenido efectos<br />
en toda la sociedad, pero por obvias razones han recaído sobre los más débiles, que<br />
quedan fuera de cualquier oportunidad de participación, y los que difícilmente son<br />
parte de los pocos beneficios.<br />
La crisis que vivimos hoy día tiene relación con esa desmesura 7 , así como<br />
con el debilitamiento de de aquello que humanamente es valioso. Y en esta misma<br />
coloratura podemos preguntar –hoy– con Arendt ¿cómo se va a resolver el enorme<br />
problema de “una sociedad de trabajadores sin trabajo” 8 construida en una sociedad<br />
que ha sido pensada para el crecimiento, pero que no tiene crecimiento?<br />
El problema es que, aun estando en plena recesión, no se han cambiado los<br />
paradigmas de crecimiento, lo cual hace que la situación sea en realidad muy<br />
dramática. ¿Podríamos pensar que lo importante es crecer en humanidad –teniendo<br />
en cuenta todas las dimensiones que conforman la vida humana– y no sólo en una<br />
5<br />
GUERRA, M.J. y ARAMAYO, R. Los laberintos de la responsabilidad. España: CSIC/Plaza y Valdés<br />
Editores, 2007, p. 10.<br />
6<br />
RIDOUX, N. Menos es más. Introducción a la Filosofía del Decrecimiento, Barcelona; Los Libros del<br />
Lince, Barcelona, 1999, p. 10.<br />
7 Ibid, p. 11.<br />
8 Cfr., ARENDT, H. La Condición Humana. Barcelona: Paidós, 1998, pp. 138-142 y 181-185; algo<br />
similar piensa Bauman cuando afirma que hoy día “uno de cada tres empleados ha ocupado el<br />
mismo puesto en la misma empresa en menos de un año. Dos de cada tres han estado en el mismo<br />
puesto menos de cinco años. En Gran Bretaña, hace veinte años, el 80% de los empleos eran del tipo<br />
40/40 (semana laboral de 40 años durante 40 años de vida) y estaban protegidos por una compacta<br />
red de contención sindical, jubilatoria y de derechos compensatorios. Hoy solo el 30% de los<br />
empleados entra en esa categoría y el porcentaje sigue disminuyendo y velozmente”, p. 27, en<br />
BAUMAN, Z. En busca de la política, Buenos Aires: FCE, 2003, p. 27.
122<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
de ellas, como lo ha pretendido la filosofía del decrecimiento? 9 , en donde tal<br />
decrecimiento significa “desacostumbrarnos a nuestra adicción al crecimiento,<br />
de esta ideología productivista desconectada<br />
del programa humano y social” 10 . El proyecto del decrecimiento pasa por un cambio<br />
de paradigma y de criterios para generar una transformación de las instituciones, y<br />
desde ella una incorporación de los más desfavorecidos a los proyectos comunes y<br />
con ello una posibilidad de que no queden soslayados.<br />
Es necesario hacer decrecer la desigualdad de algún otro modo, ya que,<br />
desde el modelo que ya conocemos –del crecimiento económico– se ha demostrado<br />
que a pesar de sus intenciones, no ha reducido las desigualdades existentes. Con<br />
estas desigualdades llevadas a su máxima expresión, se han violentado los límites<br />
de aceptación del daño humano, y de esa manera se ha forzado la aceptación de lo<br />
inaceptable e inadmisible por injusto.<br />
Desde aquí no se puede negar la existencia de un desbordamiento de los<br />
mínimos morales en lo relacionado con los derechos humanos. Tal “sobrepasamiento”<br />
ha sido recurrentemente vivido por quienes están y han estado en situaciones de<br />
permanente exclusión y heredada pobreza que resulta a todas luces injusta e<br />
inaceptable. De ahí que sea preciso la búsqueda de superación de tal realidad para<br />
dar cuenta de la responsabilidad que tenemos ante los perjuicios que la humanidad ha<br />
generado tanto en las personas directamente como en su hábitat..<br />
De nuevo podemos decir que la filosofía del decrecimiento (que significa<br />
decrecer en lo que no nos es propio y crecer en lo humano) nos invita a pensar que<br />
estamos en un mundo de recursos limitados, por lo que no es posible un crecimiento<br />
indefinido. Además, frente a las crisis –como la que vivimos actualmente– es preciso<br />
reconocer la necesidad de compartir, de agrandar la responsabilidad hacia los otros 11 ,<br />
así como la obligación de actuar con sobriedad y evitar el sobreconsumo.<br />
9 La filosofía del decrecimiento es un movimiento que nació a finales de los años 70’s del Siglo XX. Su<br />
portavoz ha sido Serge Latouche quien conjuntamente con otros pensadores críticos del desarrollo<br />
y la sociedad del consumo como Ivan Illich, André Gorz, Cornelius Castoriadis o Francois Partant<br />
se ha opuesto a las adicciones del consumo. Hoy día este movimiento ha logrado repuntar como<br />
proyecto social, político y económico frente a las sociedades del “perpetuo crecimiento” y defienden<br />
que no es necesario crecer para vivir bien. Ellos señalan que este sistema del crecimiento camina<br />
hacia el colapso, como puede evidenciarse en el cambio climático, la extinción de las especies, la<br />
propagación de las enfermedades relacionadas con la contaminación, etc. Latouche señala que los<br />
pilares del decrecimiento son revaluar, reconceptualizar, reestructurar, relocalizar, redistribuir, reducir,<br />
reutilizar y reciclar. Ridoux –a quien citamos recurrentemente en este escrito– es asimismo quien ha<br />
elaborado un libro en donde se presentan estas apuestas de la filosofía del decrecimiento.<br />
10<br />
RIDOUX, N. Menos es más. Introducción a la Filosofía del Decrecimiento, Barcelona: Los Libros<br />
del Lince, 1999, p. 11.<br />
11 Análogamente con el modo agrandado de pensar de corte kantiano y retomado por Arendt.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 123<br />
Siguiendo la misma lógica del exceso podemos apreciar cómo los valores<br />
dominantes vigentes se plasman en un cada vez más, y se traducen en “cada vez<br />
más rápido”, “cada vez más cosas”, “cada vez más poder”, “cada vez más rentable”.<br />
Estas formas de vivir nos han conducido a las encrucijadas en las que estamos en<br />
todos niveles y en casi todos los sentidos, y han hecho que, en el ánimo de la<br />
constante e incesante ambición material se malogre la humanidad. Ese quebranto<br />
se ubica: desde el mismo descompuesto habitat hasta la recurrente generación de<br />
violencia que no respeta la dignidad; ahí en donde todo está en venta y en una<br />
lógica de apropiación infinita, por la que se favorece una mayor producción que<br />
por desgracia –como podemos verlo actualmente– no logra subsanar las necesidades<br />
de trabajo limitado para quienes lo demandan en vistas de poder tener recursos<br />
para apropiarse de cosas, de consumir sin pensar 12 .<br />
Por ello, hemos de exigir que los valores humanistas se consideren de manera<br />
seria y se refuercen en aras de la defensa y atrincheramiento del espacio moral<br />
para evitar su desvanecimiento. Si todavía hubiera quienes desearan la defensa del<br />
concepto ilustrado de progreso, habríamos de hacerle entender que tal progreso no<br />
puede ser de otro modo sino en lo humano, en el engrandecimiento de los recursos<br />
morales que son los que defenderán a la humanidad de su extinción.<br />
Desde los años 30´s (1931) Keynes en sus Perspectivas económicas para<br />
nuestros nietos apuntaba que sus nietos –es decir nuestra generación–, deberíamos<br />
de liberarnos de la coacción económica de modo tal que trabajáramos únicamente 15<br />
horas a la semana. Esta reducida jornada semanal de trabajo –articulada con una<br />
mayor solidaridad– nos posibilitaría compartir el nivel de producción logrado en la<br />
jornada de trabajo, lo cual nos salvaría de las situaciones tan cotidianas de<br />
que invaden a casi todo el mundo. Esta propuesta significa<br />
“trabajar menos para vivir mejor”, que se antoja sumamente deseable. Resulta muy<br />
grave que se trabaje para obtener satisfactores superficiales, y en ese proceso de su<br />
alcance vamos demoliendo nuestra vida, nuestra salud y la posibilidad de vivir mejor<br />
con menos cosas. Y esa es la gran cuestión, porque con una forma de vivir así nos<br />
reducimos a ser meros consumidores, pero no sólo, además nos esclavizamos por la<br />
angustia por pagar, cuestión que se resuelve si trabajamos más. Construimos con ello<br />
un círculo vicioso y destructivo de lo humano, nos consumimos para “tener” y ese<br />
“tener” se solventa únicamente con exceso de trabajo; no se deja tiempo para nada<br />
más porque es fundamental trabajar para soportar los gastos.<br />
Con una reducción de las jornadas de trabajo se buscaría una vida con un<br />
equilibrio mayor y en aras de la realización personal, no únicamente en la vida<br />
12 CORTINA, A. Por una ética del consumo, Madrid: Taurus, 2003, pp. 30-40.
124<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
profesional sino también en la vida familiar, en las cuestiones del barrio, en la<br />
búsqueda una vida asociativa, así como la participación en actividades políticas, en<br />
la práctica o incursión en las cuestiones de arte, o cualquier actividad que cada<br />
quien quisiera desarrollar.<br />
Esta propuesta nos presenta la posibilidad de un tipo de vida más frugal, una<br />
vida moderada y sobria que considere sobre todas las cosas los valores humanistas.<br />
La reducción en la producción se compensaría viviendo mejor. Los empleos serían<br />
más en número y serían más gratificantes 13 ; podría equilibrarse el trabajo intelectual<br />
y el manual, con lo que se combatiría por ejemplo, la obesidad, una de las epidemias<br />
de nuestro siglo.<br />
Con esta apuesta se estaría proponiendo una relocalización de la economía<br />
y esto significaría un mayor desarrollo humano para todos, además de la superación<br />
de las barreras que generan situaciones de desventaja, de exclusión y de pobreza.<br />
Por eso, el decrecimiento no es regresión, ni la frugalidad es desigualdad, como<br />
tampoco hay una renuncia al progreso. Se pretende más bien su resignificación<br />
como progreso humano, progreso moral y espiritual.<br />
Decrecimiento significa la recuperación del espíritu crítico que se requiere<br />
para ir por el camino de un verdadero desarrollo humano 14 , y también quiere decir<br />
el retorno a una moderación que favorezca el desarrollo humano en su sentido más<br />
profundo e integral: en sus dimensiones cultural, filosófica, política, relacional y<br />
contemplativa. Es un “desarrollo que por su sencillez y profundidad pueda ser<br />
compartido por todas las personas” 15 . Es una nueva forma de vida que es preciso<br />
construir individual y colectivamente y en la que se el compartir se convierte en<br />
una de las características fundamentales.<br />
Mientras el crecimiento económico siga siendo considerado como referente<br />
absoluto, y se busque que sea infinito, no podrá ser alcanzado, sino que seguirá generando<br />
exclusión, además de que continuará amenazando el medio en el que vivimos.<br />
Tendremos que centrarnos en lo que somos, y en ese sentido podremos “ser<br />
sensibles a la profundidad de los instantes más sencillos […] (así como) “menos<br />
bienes pero más vínculos” 16 .<br />
13<br />
RIDOUX, N. Menos es más. Introducción a la Filosofía del Decrecimiento, Barcelona; Los Libros<br />
del Lince, Barcelona, 1999, p. 16.<br />
14 Ibid, p. 18.<br />
15 Ibid, p. 18.<br />
16 Ibid, p. 21.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 125<br />
Una forma de vida pensada desde lo humano nos permitirá un futuro más<br />
humanizado, más justo y con opciones más viables para el oscuro panorama que se<br />
nos presenta en torno a los fenómenos diversos que constituyen la exclusión y<br />
violentan a su vez a los derechos humanos. Frente a estos problemas tenemos una<br />
enorme responsabilidad.<br />
La responsabilidad tiene que emerger de las acciones sociales y políticas<br />
bien planteadas y en disposición a mantenernos fieles al aquello que constituye el<br />
fin que persigue tal acción social y respecto de la cual nuestras acciones son<br />
valoradas.<br />
Con Arendt diríamos que debemos responder por el mundo, que involucra<br />
una trama intersubjetiva, y desde ahí que hable de responsabilidad colectiva que<br />
implica responder ante otros. Además este responder ante otros tiene que ver con<br />
el pensamiento representativo y de la imaginación que nos posibilita “ponernos en<br />
el lugar del otro” para evitar el mal y con ello evidenciar la responsabilidad. Pero<br />
además de esta responsabilidad intersubjetiva podemos señalar la que tiene una<br />
caracterización objetiva y fue propuesta por Hans Jonas en su apuesta por la<br />
obligada preservación del planeta y del aseguramiento de las condiciones de la<br />
vida humana libre y digna en el futuro.<br />
Estar instalados de manera confortable en una cultura de la autocomplacencia<br />
y de la autoindulgencia hace que los deberes que emanan de la responsabilidad<br />
queden oscurecidos e invisibilizados 17 .<br />
Toda esta ceguera ante lo otro tiene como consecuencia la exclusión de las<br />
personas, por los efectos que se generan desde la violencia al mundo y a la naturaleza<br />
que impacta finalmente en aquellos que están situados en los peores lugares del<br />
campo social.<br />
Tenemos que dar cuenta sobre nuestras acciones en la práctica vital a través<br />
del razonamiento práctico aristotélico, o de la sagesse pratique ricoeuriana que<br />
significan la responsabilidad de la moral vivida enfrentada a los “otros” abandonados<br />
en situaciones de violencia, miseria e injusticia que se expresan cuando quedan<br />
excluidos y etéreos.<br />
17 GUERRA, M.J. “Responsabilidad y juicio moral”, en GUERRA, M.J. y ARAMAYO, R.<br />
Los laberintos de la responsabilidad. España: CSIC/Plaza y Valdés Editores, 2007, p. 105.
126<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
3. IDENTIDADES ROTAS: LA INVISIBILIDAD DE LOS EXCLUIDOS<br />
“La política occidental se constituye<br />
sobre todo por medio de la exclusión”<br />
G. Agamben 18<br />
La identidad logra construirse en los espacios compartidos, ahí es también<br />
en donde se cimenta el reconocimiento mutuo, pero es asimismo el lugar en el que<br />
se lleva cabo su contraparte: la exclusión.<br />
La exclusión significa el rechazo a una persona o cosa que queda fuera del<br />
lugar que ocupaba 19 , así como la situación de desventaja en los diversos ámbitos<br />
económico, político, social y profesional. Es asimismo la no inclusión de un sujeto,<br />
su sustracción, descarte y marginación del grupo al que pertenece.<br />
Las diversas formas de exclusión expresan la ceguera de aquellos no<br />
reconocidos a quienes les queda únicamente una tarea de sobrevivencia y que<br />
quienes no pueden realizar sus acciones en lo público no podrán tampoco ejercer la<br />
libertad propia de este ámbito y no podrán alcanzar los fines colectivos ni los medios<br />
para su logro. Con ello la buscada participación colectiva se cancela y se revoca<br />
también el alcance de lo común. La condición que permitiría tal búsqueda está en<br />
el juicio prudencial al dejar de absolutizar las condiciones privadas subjetivas y las<br />
idiosincrasias determinantes de las perspectivas individuales para incluir a los que<br />
están más allá, es decir, a “los otros”. El recurso del modo amplio de pensar 20<br />
nos hace trascender las propias limitaciones individuales con lo que se exige la<br />
presencia de los demás. Al rescatar esta habilidad kantiana de ver las cosas no<br />
sólo desde nuestro propio punto de vista sino en la perspectiva de todos los que<br />
acontezca que estén presentes 21 se posibilita compartir el mundo con todos ellos.<br />
Este compromiso de carácter moral intenta anular las posibilidades de la exclusión.<br />
Los efectos de la exclusión evidencian la ruina de los campos de lo político,<br />
lo social y lo económico al no poder defender la ruptura de las identidades, la<br />
pérdida de la dignidad y el menoscabo de la honorabilidad humana. Este maltrecho<br />
escenario es el detonador recurrente para las diversas formas de exclusión y se<br />
acompaña –generalmente– por la desconfianza en la administración de la justicia y<br />
18<br />
AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p. 16.<br />
19 Según la definición de la Según la definición del Diccionario de la Real Academia, www.rae.es.<br />
20 Recurso kantiano propuesto por ARENDT en ARENDT, H. Lectures on Kant’s political philosophy,<br />
United States of América: University of Chicago Press, 1995, p. 75.<br />
21<br />
ARENDT, H. Between Past and Future, Eight Excercises in Political Thought, USA: Penguin Books,<br />
1993, p. 221.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 127<br />
la recurrente negligencia oficial. Si a estas realidades les añadimos la cultura del<br />
miedo y del silencio en que vivimos hoy día, así como la discordancia entre las<br />
legislaciones protectoras de los derechos humanos, tenemos como resultado un<br />
ambiente de oportunidad para quienes se aprovechan de estas circunstancias, (como<br />
ha pasado hoy día con aquellos que se dedican por ejemplo, a la trata de personas.)<br />
Estos grupos vulnerables se conforman como los excluidos, ellos cargan con la<br />
mácula de ser quienes no tienen derecho a nada. Son aquellos que “constituyen la<br />
otra cara de la sociedad que ella misma se niega a mirar” 22<br />
Quien está excluido se encuentra aislado en alguno de los sentidos vitales,<br />
esto significa que puede tener algunas desventajas en cuanto al reconocimiento ya<br />
sea de sus derechos legales o a su ejercicio efectivo, a también a la cuestión<br />
material que robustece las desventajas a tal grado que constituya como algo<br />
irreversible. Desde ahí es que como afirma Levinas, mirar el rostro del otro “cara<br />
a cara” quiere decir que lo comprendo desde su otredad, y no desde mi posición ya<br />
que esto último significa violentarlo.<br />
Asimismo, se puede suponer la exclusión social con un enfoque de carácter<br />
institucional y desde esa perspectiva la exclusión se aprecia cuando la misma<br />
sociedad condesciende en aceptar diferentes formas de discriminación, al negar el<br />
acceso a bienes y servicios, a los espacios de intercambio y a los recursos requeridos<br />
para llevar a cabo el papel de ciudadanos.<br />
Excluir a los conciudadanos significa ubicarlos en una situación de carencia<br />
de satisfacción de las necesidades humanas básicas, en tanto otros grupos tienen<br />
mucho más de lo necesario. De ahí que se indaguen los procesos estructurales que<br />
dan lugar a estas situaciones de exclusión, así como los elementos culturales<br />
ideologizados y los mecanismos que han generado la exclusión en relación a los<br />
recursos personales y comunes.<br />
Como lo ha señalado Amartya Sen 23 , es necesario desbrozar los factores y<br />
elementos que generan la pobreza, así como su conformación generada mediante<br />
los procesos sociales que posibilitan o niegan las oportunidades de trabajo y el<br />
acceso a políticas públicas.<br />
Por desgracia, la exclusión social se reproduce debido a que quienes están<br />
en las instancias socio-político-económicas no incorporan en su seno a los grupos<br />
y a las personas peor ubicadas en la escala social, dejándolos a la deriva, ya sea<br />
22<br />
SUTTON, S. “La exclusión social y el silencio discursivo” en Voces y contextos, México: Otoño, núm.<br />
II, año I, 2006, p. 7.<br />
23<br />
SEN, A. Desarrollo y libertad, Planeta, España, 2000.
128<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
soslayándolos de manera explícita, o simplemente negándose a plantear avances<br />
que se permeen en los diferentes ámbitos de lo social, lo cultural y lo político. El<br />
problema es que estas exclusiones de carácter social, cultural y político conllevan<br />
la exclusión ética que está subyaciendo bajo las primeras.<br />
La exclusión ética violenta la dignidad humana plural y anula la presencia de<br />
las personas. Por ello, la pluralidad como modelo de inclusión ha de propiciar los<br />
puntos en común en las sociedades para evitar la marginación, la exclusión, la<br />
discriminación o la masificación al destruir la esfera de lo común y con ella cualquier<br />
posibilidad de libertad y de reconocimiento.<br />
Frente a estas amenazas se impone una reflexión en torno a la obligada<br />
pluralidad en es espacio de lo humano, para evitar los enormes problemas que<br />
genera la exclusión, entendida como el concepto que expresa una realidad en la<br />
que algunas personas o grupos quedan en situación de desventaja. Es los espacios<br />
limítrofes en donde aparecen las llamadas identidades negativas que se relacionan<br />
por lo general con las profundas desigualdades sociales, y se van generando desde<br />
el margen y el límite. Esta situación marginal se vuelve sinónima a las categorías<br />
de pobre, campesino y de obrero que están entre estos grupos contiguos y excluidos.<br />
Los que están afuera, los expulsados, los “otros irreductibles” se parecen a aquellos<br />
hombres “superfluos” a los que se refería Hannah Arendt cuando hablaba de quienes<br />
estaban simplemente de más. Esas identidades emergen de los márgenes,<br />
identidades que se van construyendo en el entramado de la exclusión, la pobreza y<br />
la ignorancia y que están a expensas del dominio quienes están en el centro, es<br />
decir quienes están en sociedades tan egoístas e individualistas que resultan ser<br />
tan “monstruosas” como los mismos criminales. Esas identidades casi borradas<br />
por excluidas, han emergido en la solicitud de reconocimiento para superar el<br />
desprecio, que se convierte en su peor enemigo, dado que en muchas ocasiones se<br />
aprovechan de esas circunstancias para el dominio, el provecho y el lucro con la<br />
dignidad de quienes hacen el papel de víctimas.<br />
En los espacios en los que se violentan todos los derechos de las personas no<br />
hay lugar, ni es posible pensar en la consideración de las apuestas humanizantes que<br />
concebimos en nuestras reflexiones, en torno a los ciudadanos con sus especificidades<br />
como las pensaban los clásicos. Las cosas son muy diferentes, y en esos espacios de<br />
violencia hay cuestiones muy complicadas que se han hecho indiscernibles.<br />
Hoy día, cuando las líneas divisorias entre lo público y lo privado son tan<br />
tenues y tan sutiles, la distinción que hacemos los ciudadanos entre la ciudad y la<br />
casa resulta muy complicada, así como la distinción entre nuestro cuerpo biológico y<br />
nuestro cuerpo político, o entre lo que es incomunicable y mudo y lo que es comunicable<br />
y expresable. Se trastocan los espacios propios de la realización biológica con los
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 129<br />
espacios públicos, y en éstos es en donde propiamente se llevan a cabo las acciones<br />
humanas que han de incluir el diálogo, el discurso y donde en todo caso, se tiene que<br />
actuar de manera concertada para garantizar el respeto y evitar la exclusión. Estas<br />
posibilidades han sido arrebatadas a quienes viven en sociedades en las que la ley no<br />
ha podido afincarse porque se ha puesto en entredicho la vida política de los ciudadanos<br />
en su integridad física por su expolio en el sentido más humano.<br />
El abandono y el despojo de lo humanamente debido, –tanto en lo que se<br />
refiere a la mera supervivencia y alude a lo económico, como a aquello que posibilita<br />
la palabra y el diálogo– deja a esas personas excluidas a su suerte, deambulando a la<br />
deriva, en los cobijos más ruines, menesterosos y decadentes que podamos pensar.<br />
Las agresiones han sido y son tales que los desbordamientos de las acciones<br />
con carácter de inhumanidad han extinguido el ámbito moral. Tales acciones han<br />
arrebatado aquello que procura “la última oportunidad de conservar la dignidad” 24<br />
y por ende el derecho a tener esos derechos humanos, como lo apuntó en su<br />
análogo momento Arendt. El contenido de esta frase es profundo, ya que hay una<br />
separación entre lo meramente humano y lo político que muestra la escisión de los<br />
derechos del hombre y los derechos del ciudadano. Por ello, hablar del “derecho a<br />
tener derechos” 25 da cuenta clara de la situación de los excluidos, porque siempre<br />
que haya quienes queden exceptuados de ciertas formas de ciudadanía se les está<br />
negando la posibilidad de tener derechos. Con esto se evidencia asimismo la<br />
exclusión del debate político. El término “excluidos” se relaciona necesariamente<br />
con el concepto de “víctimas” cuando hay violencia política, y cuando el enfoque<br />
que se lleva a cabo es moral 26 .<br />
Al destruir lo humano y reducirlo únicamente a lo biológico, se echa por<br />
tierra la conquista histórica de los derechos humanos. Desde estas preocupaciones<br />
es que surgieron y continúan presentes algunas reflexiones críticas que pretenden<br />
visualizar lo que sucede con la vida y con lo biológico en el espacio político. Fue<br />
“Michel Foucault [quien] comenzó a orientar sus investigaciones con una insistencia<br />
cada vez mayor en lo que definía como biopolítica, es decir, la creciente implicación<br />
de la vida natural del hombre en los mecanismos y los cálculos del poder”. 27 Esto<br />
significa que la vida se convierte en aquello que constituye lo central del espacio<br />
24<br />
KRALL, H., en TODOROV, T. Frente al límite. México: Siglo XXI, 2004, p. 24.<br />
25 Tal como lo pensó Arendt cuando acuñó su famosa y muy significativa frase de “derecho a tener<br />
derechos”, en ARENDT, H. Los Orígenes del Totalitarismo, 2. Imperialismo. Madrid: Alianza<br />
Universidad, 1987, p. 430.<br />
26<br />
REYES MATE, M. “La justicia de las víctimas” en Revista Portuguesa de Filosofía, Tomo LVIII,<br />
2002, pp. 299-318.<br />
27<br />
AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p. 151.
130<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
público y de la política, de modo que el engarce de zoe y bíos 28 es unas de las<br />
formas definitorias en la política de muchas partes del mundo. El cuerpo –el de la<br />
nuda vida- que se emplaza en el espacio político y se convierte en lo biopolítico, se<br />
reduce a la zoe dejando de lado la bios, que representa lo verdaderamente humano 29 .<br />
Los espacios de exclusión se constituyen en aquellos en los que la vida<br />
moral no es viable, ya que “un ser humano empujado hacia el extremo por formas<br />
de vida inhumana […] pierde gradualmente todas las nociones del bien y del mal” 30<br />
y esto, significa estar “sin duda, moralmente muertos”. 31<br />
Las preguntas en torno a la humanidad restante son oportunas, sobre todo cuando<br />
se ha vivido lo más terrible y execrable, y en donde la libertad se reduce a casi nada. Si<br />
esto es así, ¿en dónde queda la humanidad si no hay elecciones de ningún tipo?, ¿queda<br />
lugar para la vida moral cuando sus límites se han desbordado de manera absurda?<br />
La situación de exclusión constituye un estado de sitio continuo en donde la<br />
sociedad está a la deriva en un espacio que parece agrandarse como la tierra de<br />
nadie y en donde, si bien todos estamos, quienes son más frágiles son aquellos que<br />
están más marginados, dado que ellos son el blanco más susceptible para ser usados,<br />
vendidos, expoliados y un sin fin de los etcéteras más execrables a los que son<br />
sometidos a lo largo de su vida. Como hemos podido apreciar hasta aquí, el trato<br />
que se da a la exclusión parte desde una concepción de la justicia que permita la<br />
inclusión de todos los sujetos 32 . Sin embargo, la realidad nos evidencia y se nos<br />
muestra implacable, por lo que parece que el camino habría de ser al revés, tal<br />
como lo propone Villoro cuando apunta que “cabe pues explorar una alternativa:<br />
dar razón de la idea de justicia por la voluntad de disrupción de una situación<br />
percibida como injusta.” 33 Hemos de partir de nuestras propias experiencias en las<br />
que se evidencia la injusticia real así como la experiencia de la marginalidad para<br />
28 La bios alude a la vida en sentido humano y es la que puede permitir pensar en una biografía, y aquí<br />
la auténtica vida humana es la que para Arendt significa aquella que se lleva a cabo en la palabra y<br />
en la acción. Por su parte, zoé alude a la vida en un sentido meramente biológico, y es lo que<br />
Agamben entiende como nuda vida. En Arendt la verdadera vida es aquella que se da en el espacio<br />
público, en lo político en donde se realiza el discurso, el habla y la acción. Esta acción fue<br />
tergiversada después de los griegos y los romanos, en la Edad Media cuando la mayor importancia<br />
se le dio a la contemplación, y en la Edad Moderna se canceló por el surgimiento de lo social, de la<br />
burocracia y sus mecanismos de la ley de nadie.<br />
29<br />
AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p. 151.<br />
30<br />
TODOROV, T. Frente al límite. México: Siglo XXI, 2004, p. 38.<br />
31 Ibid, p. 38.<br />
32<br />
VILLORO, L. “Sobre el principio de la injusticia: la exclusión”, en Isegoría, 22, 2000, “Globalización<br />
y Derechos humanos”, p. 104.<br />
33 Ibid, p. 103.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 131<br />
“proyectar lo que podría idealmente remediarla.” 34 Con ello, y como lo propone<br />
Javier Muguerza estaríamos generando una “alternativa del disenso” que es la que<br />
ha de fundar los derechos humanos. 35 Partamos entonces, desde las causas de la<br />
exclusión en la que vivimos.<br />
4. CAUSALES DE LA EXCLUSIÓN<br />
“Las causas de la exclusión pueden ser distintas para quienes las<br />
padecen, los resultados vienen a ser los mismos” 36 .<br />
Z. Bauman<br />
La fragmentación es por desgracia unos de los más grandes males de la<br />
humanidad y de la que desafortunadamente no estamos exentos en nuestro días,<br />
porque quienes perpetran los diversos modos de exclusión lo hacen desde una<br />
quiebra moral. Y esta ruptura se lleva a cabo sobre los seres humanos que son<br />
despojados de la confianza en sí mismos, así como de la autoestima necesaria para<br />
mantener también su supervivencia social. Todos ellos han devenido superfluos,<br />
inútiles, innecesarios, indeseados, despreciables. Son los declassés que no poseen<br />
ningún estatus definido y por ellos son considerados sobrantes.<br />
Por desgracia y como sabemos, la meta central que ha prevalecido –como<br />
ha sido durante los siglos– se adscribe fundamentalmente al interés y a la ganancia<br />
de carácter económico. La absolutización de lo económico –que no considera los<br />
valores, la ética y la cultura– en todos los ámbitos de la vida ha generado enormes<br />
problemas y hunde sus raíces ahí donde hay un menoscabo del orden gubernamental<br />
y una clara inaplicabilidad de la ley. Los efectos y las consecuencias conocidos y<br />
que ya hemos apuntado, generan la esclavización, la cosificación y aniquilación de<br />
los seres humanos en tanto personas. Es una de las consecuencias de la movilidad<br />
contemporánea y de las migraciones de quienes se trasladan de un sitio a otro en<br />
donde se convierten en . 37 Esta situación es, –a decir de<br />
Bauman– un efecto secundario de la misma construcción del orden, de modo<br />
que en este último hay quienes están dentro y quienes están ,<br />
que significa que son los indeseables y son los no aptos. Es también el efecto<br />
secundario del mismo “progreso económico” que no ha podido proceder sin humillar,<br />
sin degradar, sin devaluar las formas de “ganarse la vida”.<br />
34<br />
VILLORO, L. “Sobre el principio de la injusticia: la exclusión”, en Isegoría, 22, 2000, “Globalización<br />
y Derechos humanos”, p.104.<br />
35<br />
MUGUERZA, J. Ética, disenso y derechos humanos, Madrid: Argés, 1998.<br />
36<br />
BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, p. 58.<br />
37 Ibid, p. 16.
132<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Como sabemos, a partir de la Modernidad, las regiones atrasadas y<br />
subdesarrolladas se han convertido en reducto para la exportación de “ y conspicuos vertederos dispuestos para los residuos<br />
humanos de la modernización.” 38<br />
La pregunta obligada se dirige hacia un elemento central –señalado renglones<br />
arriba de este apartado, a saber: la aplicación de la ley. ¿Dónde está la ley que<br />
coarte los comportamientos destructivos de lo humano y que confine los tratos<br />
humillantes y desvalorizadores de quienes hay que proteger? Apreciar este mundo<br />
exige -como apunta Bauman– dirigir otra mirada a esta realidad que compartimos.<br />
La condición de aquellos seres humanos excluidos tiene efectos absolutamente<br />
destructivos porque generalmente las implicaciones de su utilización lo<br />
convierten en lo que Agamben llamó el homo sacer 39 –es decir, aquellos que son<br />
sacrificables en su nuda vida– 40 . Esta situación se lleva a cabo en un contexto<br />
político deteriorado y minado en lo más hondo.<br />
El paradigma del concepto de nuda vida está en los prisioneros de los<br />
campos de concentración que funge como un concepto modélico de la exclusión<br />
y el expolio en donde las vidas humanas simplemente no tienen valor alguno. Esos<br />
personajes, los más ruines y más sometidos y por ello nombrados por Primo Levi<br />
como el “musulmán” –término retomado por Giorgio Agamben– alude a aquellos<br />
seres humanos que perdieron toda dignidad e inutilizaron todo afán de resistencia y<br />
de honorabilidad humana. Al ser desvalijados de toda su humanidad se definen<br />
como aquellos que simplemente buscan no morirse de hambre, por lo que son “lo<br />
intestimoniable” 41 . Después de ver estas figuras casi subhumanas se puede afirmar<br />
con Arendt que en este mundo “todo es posible” y “todo está permitido” 42 .<br />
38 BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, p.16.<br />
39 Homo sacer que es la principal categoría de los residuos humanos según Giorgio Agamben.<br />
40 El concepto de nuda vida, se entiende como la vida natural o biológica es un concepto central en<br />
Agamben y se remite a Hannah Arendt en la distinción de Bios y zoe. ARENDT, H. La Condición<br />
Humana, Barcelona: Ed. Paidós, 1998, p.111. También cfr., FOUCAULT, M. Vigilar y Castigar,<br />
México: Siglo XXI, 1991, pp. 24ss.<br />
41 Este término tiene orígenes inciertos y parece que tiene que ver con el fatalismo que se atribuye al<br />
islamismo y a la posición de postración que tienen los árabes cuando están orando, posición en la<br />
que se veía a los prisioneros. Lo intestimoniable por sufrir las situaciones más abyectas e indecibles.<br />
42 Como lo señaló Arendt cuando afirmaba “allí donde estas nuevas formas de dominación asumen su<br />
estructura auténticamente totalitaria superan este principio, que sigue ligado a los motivos utilitarios<br />
y al interés propio de los dominadores y penetran en un terreno que hasta ahora nos resultaba<br />
completamente desconocido: el terreno donde . […] Lo que se rebela contra el<br />
sentido común no es el principio nihilista de que , que se hallaba ya<br />
contenido en la concepción utilitaria y decimonónica del sentido común. Lo que el sentido común y<br />
la se niegan a creer es que todo sea posible. ARENDT, H. Orígenes del totalitarismo:<br />
Totalitarismo, España: Alianza Editorial, 1987, p.656.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 133<br />
Todo esto se acompaña de una situación de excepción, en donde la nuda<br />
vida –entendida como la vida a la que se puede dar muerte– es sustituible y<br />
superflua. Ahí se insertan también las Versuchenpersonen 43 , que son aquellas<br />
personas manejadas y consideradas –como diría Bauman 44 – como residuos<br />
humanos. Esos seres humanos quedan a-bandonados, de modo tal que en esa<br />
ambigüedad está excluido-incluido en la comunidad y por ende está dentro y está<br />
fuera de la ley. Aquéllos que están en tal situación de “excepción” resultan ser<br />
innecesarios para la sociedad que no los incluye, o como apunta Bauman, esos<br />
grupos son “desechables” al constituir un conjunto de residuos humanos a través<br />
de los cuales se evidencia ese ámbito en el que se suspende cualquier viso de<br />
legalidad, aún para quienes deberían ejercerla 45 . Lo más grave del asunto es que<br />
ese estado se perpetúa y se convierte en la regla, que sumado a la indiferencia<br />
hace que, –como apunta Primo Levi en Naufragés–: “para que el mal se realice<br />
no es suficiente que se produzca la acción de algunos; hace falta todavía que la<br />
gran mayoría esté a su lado, indiferente…” 46 como sucede con quienes sufren la<br />
extrema pobreza. Dentro de las esferas de la moralidad no cabría la posibilidad de<br />
pensar en la vida de algún individuo como una vida que “no merece ser vivida”.<br />
Por ello la existencia de vidas que resultan innecesarias y por lo tanto se pueden<br />
desechar porque están de más y no entran en el diseño de las formas de la convivencia<br />
humana. 47 Todos ellos son consumidores fallidos de nuestra sociedad de consumo,<br />
implican un costo y no involucran un apoyo; son, siguiendo a Bauman: “ del progreso económico, imprevistas y no deseadas.” 48 Por ello es que<br />
pueden ser excluidas, y en ese margen utilizadas y esclavizadas sin problema.<br />
Desde ahí es que si existe insatisfacción de las necesidades requeridas significa<br />
que además de la exclusión se precisa hablar de un concepto concomitante, al menos<br />
en el ámbito social: la pobreza. Dar cuenta de ella nos hace –según Sen- que reconozcamos<br />
su dimensión relativa que se compagina con el entorno social, pero además<br />
existe una dimensión absoluta, es decir, que hay condiciones mínimas indispensables<br />
–relacionadas con capacidades y funciones básicas– necesarias para perseguir y<br />
diseñar los planes de vida, en aquellas cuestiones que son posibles de alcanzar.<br />
43<br />
AGAMBEN, G. Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia: Pre-textos, 2003, p.195 y<br />
ss. En el texto es traducido como cobayas, entendiéndolo según el Diccionario de la Real Academia<br />
como los “conejillos de Indias”, www.rae.es.<br />
44<br />
BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, pp. 24 y 25.<br />
45 Ibid.<br />
46<br />
LEVY, P. Les naufragés et les rescapés, París: Gallimard, 1989, citado en TODOROV, T. Frente al<br />
límite. México: Siglo XXI, 2004, p. 166.<br />
47<br />
BAUMAN, Z. Vidas desperdiciadas. Barcelona: Paidós, 2005, p. 46.<br />
48 Ibid, p.57.
134<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
El desbordamiento de lo moral del que hemos venido hablando, niega cualquier<br />
trazo deseable de justicia. De ahí que el fenómeno de la pobreza muestre que la<br />
desigualdad material entre las personas no sólo se queda ahí, sino que se extiende<br />
en graves diferencias en la posibilidad de participación y por ende, de la distribución<br />
del poder político. Esto hace posible la dominación de unos sobre otros 49 .<br />
Sen considera a las capacidades en tanto categorías generalmente no tomados<br />
en cuenta por la política de la justicia distributiva de los Estados. Desde esta<br />
consideración es importante apuntar que ni la riqueza, ni los bienes, ni los recursos<br />
se traducen automáticamente en bienestar y libertad de las personas.<br />
Pobreza y justicia social constituyen los ejes para una reflexión<br />
contemporánea en torno a una ciudadanía igualitaria, inclusiva y por ende<br />
participativa. El autorrespeto que significa “igualdad en igual reconocimiento, respeto<br />
y garantía de los derechos y libertades políticas” 50 . En este reconocimiento se<br />
implica el que sean seres humanos iguales pero lo que se insiste es que por serlo<br />
deben recibir justamente la distribución de la riqueza, de los recursos, de los bienes<br />
y las oportunidades. Todo esto posibilita llevar a cabo la libertad en el sentido de<br />
agencia y poder y toma enorme fuerza cuando se presenta ante los grupos<br />
sistemáticamente excluidos por la falta de reconocimiento. Esto se traduce en una<br />
acumulación de desventajas sociales en relación con los demás ciudadanos y que<br />
se convierten en “problemas prácticos relativos al ejercicio de las libertades civiles. 51<br />
Es importante insistir como lo ha hecho Nancy Fraser, que la dimensión<br />
política de los derechos básicos que ha de ser reconocida por todos y por ello es<br />
fundamental, para el alcance de la justicia que se lleve a cabo, además del<br />
reconocimiento, la redistribución.<br />
La pobreza imposibilita la participación, porque desde la desigualdad se niega<br />
su reconocimiento, y por ende se excluye y no se permite compartir la decisión<br />
pública. A su vez y por el otro lado, cerrando el círculo podemos ver que en lo<br />
político es en donde se generan las instituciones que van a propiciar y a defender<br />
tanto a los miembros de esa asociación política, y también se defenderán sus<br />
acciones, sus búsquedas en el espacio de la participación y decisión política. Sólo<br />
así podrán pensarse como verdaderos ciudadanos, como respetables.<br />
Por ello es que los programas asistencialistas poco ayudan dado que se<br />
centran en la mera distribución de bienes, como programas únicos y focalizados y<br />
49 SAHUÍ, A. Igualmente libres. Pobreza , justicia y capacidades, México: Ed. Coyoacán, 2009, p. 20.<br />
50 Ibid, p. 36.<br />
51 Ibid, p.58.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 135<br />
no en la cuestión de la libertad como desarrollo centrada en las capacidades y en la<br />
posibilidad de acciones de aquellos que están peor ubicados en un tejido de las<br />
relaciones sociales.<br />
Amartya Sen no se equivocaba cuando al hablar del desarrollo como libertad<br />
apuntaba que quien carece de medios para tener una vida mejor no tiene la libertad<br />
para hacer muchas cosas para sí y para otros, que como un humano responsable<br />
podría realizar. Las sociedades que prosperan a costa del hambre, del sufrimiento,<br />
del escarnio, y de situaciones como la trata de personas no pueden ser aceptadas<br />
bajo ningún pretexto, de modo que ante la visualización de estos problemas es<br />
fundamental la toma de conciencia de la misma ciudadanía para la defensa continua<br />
de los derechos de estas personas de una manera responsable y solidaria.<br />
Así, si la exclusión significa la condición fundamental de la injusticia 52 ,<br />
significa que es preciso insertar a aquellos que juegan un papel de dentro-fuera,<br />
ya que los excluidos no están realmente fuera de la sociedad porque cooperan<br />
en ella. El problema es que no se les reconoce como iguales en los procesos y<br />
mecanismos de decisión. Sus voces discordantes no se toman en cuenta por no<br />
considerarse relevantes en la construcción de la agenda pública y en los procesos<br />
decisorios.<br />
Una forma de violencia es la corrupción que ha logrado el dominio de la<br />
sociedad traspasando el umbral de la política, como lo fue para Arendt el fenómeno<br />
del totalitarismo que tuvo como objetivo la dominación y el infierno construido por<br />
el hombre. 53<br />
Una de las ideas del nazismo fue precisamente que existían personas de<br />
diversas especies, unas superiores y otras inferiores. El efecto de esta consideración<br />
es de todos conocida, y ha sido deplorada basándonos en la apuesta contraria, a<br />
saber: que nuestra especie es una y está compuesta por individuos quienes merecen<br />
una idéntica consideración moral. 54 Esta intuición está incorporada en el lenguaje<br />
de los derechos humanos en el que la capacidad de considerar un número cada vez<br />
mayor de personas que pretenden que se les trate como nos gustaría a todos que<br />
nos trataran, de modo que con ello se pretendería la deseada universabilidad de<br />
tales derechos. La historia vivida nos ha mostrado que cuando los seres humanos<br />
gozan de derechos defendibles, es decir, cuando se protege y mejora su agencia<br />
como individuos, es menos probable que existan abusos sobre ellos.<br />
52 VILLORO, L. “Sobre el principio de la injusticia: la exclusión”, en Isegoría, 22, 2000, p. 104.<br />
53 ARENDT, H. Totalitarismo, 2, Imperialismo, Madrid: Alianza Editorial, 1987.<br />
54<br />
Ibid, p.30.
136<br />
5. A MODO DE CONCLUSIÓN<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
La destrucción de lo humano no es novedad, lo que sí lo es son las formas en<br />
que se destruye. Y para esto necesitamos refrendar e insistir en la realización e<br />
implementación de aquello que defiende lo humano, es decir, recurrir a los derechos<br />
humanos que han sido conquistas históricas importantísimas. Los matices que haya<br />
que hacer nos obligan a repensarlos, pero no a desecharlos. Desde ahí tenemos<br />
que pensar en lo que se constituye como propiamente humano para no soslayar su<br />
relevancia y mostrarnos responsables ante la violación de tales derechos.<br />
Afirmar que los derechos humanos son obligatorios y de alta prioridad,<br />
significa que han de ser considerados como normas que mandan y no meras metas,<br />
y esto significa que es preciso alcanzar sus demandas dado que obligan y han de<br />
prevalecer como normas de suprema prioridad. Por ello, frente a la experiencia de<br />
su recurrente violación, los defensores de estos derechos deberán ver estrategias<br />
para los cambios políticos para alcanzar tales estrategias, que se constituyen en<br />
metas. Una de las mediaciones que han de considerarse para el alcance de los<br />
fines es la urgencia en la implementación de leyes que impulsen la implementación<br />
de los derechos humanos. Sin embargo, a pesar nuestro, la promulgación de leyes<br />
parece no ser todavía suficiente para la realización de los derechos humanos; la<br />
implementación de leyes no garantiza su respeto y realización, por ello, como<br />
podemos ver, sólo pueden garantizarse en aquellas sociedades que tienen la suerte<br />
de haber generado actitudes en la gente y en los gobiernos que comprenden los<br />
derechos y su necesidad por sí mismos, y no necesitan de la obligatoriedad. Pero la<br />
solución no será completa si no hay una conjunción de esfuerzos que intervengan<br />
en los cambios reales.<br />
Por un lado, se busca alcanzar las metas legislativas en torno a los derechos<br />
humanos, pero además es preciso generar políticas apoyen fácticamente a través<br />
de intervenciones que generen cambios plausibles, desde las comunidades más<br />
pequeñas hasta comprender a toda la sociedad. Con ello se irá trabajando en círculos<br />
concéntricos, a la manera de los círculos de la Metáfora de Hierócles 55 para ir<br />
ampliando la comprensión y la comprehensión de los derechos humanos, de modo<br />
55 Mencionados en Martha C. Nussbaum. Hierócles el estoico planteó una teoría de “círculos morales”<br />
que consiste en que existen varios niveles de grupos humanos a los que se les aplica nuestra<br />
consideración moral, de modo que en los primeros círculos estamos nosotros mismos, luego los<br />
círculos de la familia, la ciudad, la patria y finalmente el círculo de la humanidad entera. Y el ser<br />
humano tiene como tarea el acercamiento de los círculos yu así considerar a quienes están más<br />
alejados tan digno de aprecio como nosotros mismos. NUSSBAUM, M.C. “Patriotismo y<br />
cosmopolitismo”, en NUSSBAUM, M.C. Identidad pertenencia y “ciudadanía mundial”, Barcelona:<br />
Paidós, 1999.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 137<br />
que en todos los ámbitos se entienda y se asuma la defensa de la misma humanidad.<br />
Esto se realizaría mediante la generación de programas de inclusión, mediante<br />
educación y políticas que generen la mejora de los más empobrecidos, que<br />
generalmente son los excluidos. Y a la par de los programas formativos que insistan<br />
en el fundamental crecimiento humano alude a un crecimiento moral y no<br />
únicamente económico. Estos programas han de entenderse a toda la sociedad<br />
porque los que excluyen son los mejor situados. Es necesario ampliar los ámbitos<br />
de la responsabilidad humana y el desarrollo de una conciencia prudencial que<br />
pueda sopesar lo que es fundamental para los seres humanos para que así nos<br />
centremos en lo verdaderamente importante.<br />
Desde ahí es que el tema de la exclusión ha de formar parte de los debates<br />
políticos académicos, en donde se tienen que considerar la marginación, la privación<br />
y la pobreza, como cuestiones centrales. Quienes sufren exclusión sufren desventajas<br />
generalizadas en términos de educación, empleo, vivienda, recursos financieros,<br />
así como falta de oportunidades para tener acceso a la distribución de tales<br />
oportunidades y por ende son sustancialmente menores que las del resto de la<br />
población y la persistencia de tales desventajas permanece a lo largo del tiempo. 56<br />
La exclusión es un fenómeno social cultural ético-político que cuestiona y amenaza<br />
los valores de la sociedad 57 , por ello no es únicamente la insuficiencia de ingresos,<br />
sino que revela algo más que la desigualdad social, y tiene implicaciones que<br />
evidencian el peligro de una sociedad fragmentada, con lo que se amenaza la<br />
cohesión social de los Estados por la recurrente injusticia. De este modo, como<br />
algunos teóricos han señalado: la exclusión viene dada por la negación o<br />
inobservancia de los derechos sociales, que incide en el deterioro de los derechos<br />
políticos y económicos. Es cierto que la exclusión se relaciona generalmente con la<br />
pobreza, y se evidencia sobre todo en los países más pobres.<br />
Los derechos humanos han de ser más morales y consecuentemente sus<br />
implicaciones legales y políticas serán más humanizadas y desde ahí habrían de ser<br />
vistos como un lenguaje, no para la proclamación y la promulgación de verdades<br />
eternas, sino como un discurso para la mediación de los conflictos y amenazas en<br />
contra de la humanidad. El consenso que pueda generase puede ser una condición<br />
necesaria para un acuerdo deliberativo que presuponga un desarrollo del respeto y<br />
reconocimiento mutuo y la cancelación de cualquier forma de esclavitud, además<br />
de un compromiso común en relación con los universales morales, que nos hacen<br />
pensar en el alcance de los derechos humanos.<br />
56 ARAHAMSON, P. “Exclusión social en Europa:¿vino viejo en odres nuevos?” en MORENO, L. (comp.),<br />
Unión Europea y Estado de Bienestar, Madrid: CSIC, 1997, p.123.<br />
57 Ibid, p.123.
138<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Actualmente y en nuestro país la principal amenaza para los derechos<br />
humanos no proviene únicamente de la tiranía sino también de la anarquía y la<br />
indiferencia, y parece que ahí es donde se quedan esas brechas en las que se cuela<br />
la situación de exclusión. Por ello, la necesidad del orden estatal y de una ciudadanía<br />
consciente y pensante ya que ella que funge como garantía para los derechos.<br />
Esta situaciones nos obligan a buscar una transformación en la imaginación<br />
ético-política como señala Zizek 58 , que significa desarrollar una ética que habrá de<br />
generar cambios reales porque acepta la contingencia, pero que está “dispuesta a<br />
arriesgar lo imposible” en el sentido de romper posiciones estandarizadas. Por ello,<br />
podemos pensar que la ética sigue proporcionando el referente normativo para<br />
que, como dice Javier Muguerza podamos abrigar una modesta esperanza que<br />
lejos de ser pasiva, se liga al disenso en tanto nos neguemos a aceptar aquello que<br />
no es tolerable por injusto y por indigno. 59<br />
58 ZIZEK, S. Arriesgar lo imposible, Madrid: Trotta, 2004, p.25.<br />
59 MUGUERZA, J. Ética, disenso y derechos humanos, Madrid: Argés, 1998.
Desbordamiento de los mínimos morales en los derechos humanos: exclusión y justicia 139<br />
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Conceito de minorias e discriminação 141<br />
10<br />
Conceito de minorias<br />
e discriminação<br />
Concept of minorities<br />
and discrimination<br />
Concepto de las minorías<br />
y la discriminación<br />
JAMILE COELHO MORENO<br />
Advogada; bacharel em Direito, pela Instituição Toledo de Ensino – ITE, de Bauru, São Paulo;<br />
mestranda em Direito no Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino – ITE.<br />
E-mail para correspondência: jmoreno@cabg.com.br<br />
.<br />
RESUMO<br />
Sob qualquer aspecto, ao analisar-se o processo de formação da sociedade brasileira<br />
(e dos demais países do Novo Mundo), visualiza-se, como indispensável menção, o<br />
relevante papel dos grupos minoritários em relação ao restante da sociedade. Antes<br />
de se estudar a respeito dos direitos das minorias, é mister estudar mais acerca das<br />
chamadas minorias. É imprescindível que a defesa de tais grupos seja promovida não<br />
apenas no que tange aos direitos individuais e coletivos, mas também em face e em<br />
defesa dos interesses de todo o restante da população. Para tanto, há necessidade de<br />
uma prévia análise acerca da discriminação a que essa camada da população está<br />
sujeita. Nesse esteio, para que efetivamente se consiga promover a defesa de tais<br />
grupos, é importante conceituar o que seria essa discriminação, bem como apontar as<br />
diferenças existentes entre este ato da sociedade, o preconceito e a intolerância.<br />
Palavras-chave: conceito, minorias, discriminação.
142<br />
ABSTRACT<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
In any way, in analyzing the process of formation of Brazilian society (and other new<br />
world countries), we see as essential to mention the important role of minority<br />
groups in relation to the rest of society. Before studying the rights of minorities, it is<br />
necessary studying more about the so-called minorities. It is essential that the<br />
defense of such groups is promoted not only in terms of both individual and collective<br />
rights, but also in face and in the interests of the rest of the population. Therefore,<br />
there is need for a previous analysis about the discrimination that this population is<br />
subject. In this mainstay, to actually succeed in promoting the protection of such<br />
groups, it is important to conceptualize what would be this discrimination, and<br />
point out the differences between this act of society, prejudice and bigotry.<br />
Keywords: concept, minorities, discrimination.<br />
RESUMEN<br />
En todo sentido, para examinar el proceso de formación de la sociedad brasileña (y de<br />
otros países en el nuevo mundo), es esencial decir el importante papel de los grupos<br />
minoritarios en relación con el resto de la sociedad. Antes de estudiar los derechos de<br />
las minorías, importante estudiar más sobre las llamadas minorías. Es esencial para<br />
promover la protección de estos grupos no sólo en lo que respecta a los derechos<br />
individuales y colectivos, sino también en el interés del resto de la población. Por lo<br />
tanto, hay una necesidad de análisis previo de la discriminación que este sector de la<br />
población está sujeta. En esta línea, de manera que podamos promover la protección<br />
de esos grupos, es importante conceptualizar esta discriminación, y señalando las<br />
diferencias entre este acto de la sociedad, el sesgo y la intolerancia.<br />
Palabras clave: concepto, minorías, discriminación.<br />
1. INTRODUÇÃO<br />
Antes de se estudar a respeito dos direitos das minorias, da proteção<br />
constitucional, infraconstitucional e internacional ou, ainda, a respeito dos instrumentos<br />
para efetivação de tais direitos, é mister estudar mais acerca das chamadas minorias.<br />
Cabe a todos, enquanto estudantes e praticantes do Direito, promover a defesa de<br />
tais grupos não apenas no que tange aos direitos individuais e coletivos, mas também<br />
em face e em defesa dos interesses de todo o restante da população. Por isso, é<br />
fundamental analisar alguns aspectos básicos deste tema prévio.<br />
Historicamente, sempre se fez presente, no Brasil, uma cultura importada,<br />
baseada em valores estrangeiros, herdada dos colonizadores europeus que aqui pouco
Conceito de minorias e discriminação 143<br />
tencionavam investir, mas somente queriam extrair riquezas, fazendo do País um<br />
simples produtor de matérias-primas e produtos agrários (NASCIMENTO, 2005: 120).<br />
Com efeito, observou-se, desde a formação do País, uma cultura escravagista,<br />
iniciada com a mão de obra indígena, depois substituída pela negra e, por que não,<br />
já no começo do século XX, pela imigrante.<br />
Numa cultura escravagista, sabe-se que o trabalho era coisa para escravos<br />
e o valor das pessoas era aferido de acordo com as suas relações, seus parentescos<br />
e suas posses, sedimentando a cultura clientelística, cultura esta que, lamentavelmente,<br />
ainda está em vigência na política brasileira.<br />
Ao longo dos tempos, é certo que muito desta cultura se esvaiu, mas não o<br />
suficiente para que determinadas práticas discriminatórias não se façam presentes.<br />
Sabe-se que o legislador constituinte originário cuidou de vedar quaisquer tipos de<br />
preconceito ou discriminação, explicitamente. Todavia, na prática, tais vedações não<br />
se apresentam completamente eficazes, nem se resumem à previsão constitucional.<br />
Após os dramáticos acontecimentos na ex-União Soviética e na ex-Iugoslávia,<br />
ou seja, após o colapso dos regimes comunistas, o tema minorias voltou a se<br />
destacar na agenda internacional, situação que não ocorria desde o período<br />
entreguerras (quando o debate se deu no âmbito da Liga das Nações). Os condenáveis<br />
acontecimentos da Segunda Guerra Mundial ocasionaram o reconhecimento<br />
do vínculo existente entre o respeito à dignidade do ser humano e à paz.<br />
Da mesma forma, houve o reconhecimento de que as ordens jurídicas<br />
nacionais, sujeitas a alterações de acordo com o regime político atuante, não eram<br />
suficientemente eficazes para tutela dos direitos dos indivíduos. Nesse esteio, a<br />
Carta das Nações Unidas estampa tais considerações e pode ser considerada<br />
como vetor para o ulterior processo de universalização dos direitos humanos.<br />
Em prosseguimento, no ano de 1947, a Comissão de Direitos Humanos criou<br />
uma subcomissão com a finalidade de prevenção da discriminação e de proteção<br />
das minorias. Ao ver rejeitadas todas as propostas de definição do termo minoria,<br />
esta subcomissão decidiu, em meados da década de 1950, condensar suas atividades<br />
na prevenção da discriminação, restringindo-se a recomendar a inclusão de uma<br />
provisão referente à proteção de minorias nos instrumentos internacionais de direitos<br />
humanos a serem elaborados dali em diante.<br />
Então, a visão preponderante era a de que os direitos das minorias estariam<br />
suficientemente protegidos pelo enfoque individual e universal que os direitos<br />
humanos assumiram no período pós-guerra. Esta visão, ao seu turno, fez com que,<br />
em meados da década de 1950, o tópico minorias passasse a ser excluído da<br />
agenda internacional (WUCHER, 2000: 4).
144<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
De todo o contexto histórico de descolonização, que consagrou o princípio<br />
da não discriminação, foi somente a partir da inclusão do artigo 27 no Pacto<br />
Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, que novamente abordou-se<br />
acerca do tema minorias. Em 18 de dezembro de 1992, a Assembleia Geral das<br />
Nações Unidas adotou a Declaração sobre os Direitos de Pessoas Pertencentes a<br />
Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas.<br />
Apesar de seu caráter jurídico e não vinculativo, esta declaração é<br />
considerada o instrumento de abrangência global mais generoso em termos de<br />
“discriminação positiva”, vale dizer, a que mais confere direitos especiais às minorias<br />
(PIRES apud WUCHER, 2000: 03).<br />
A sobredita declaração proíbe a discriminação com base na raça, no sexo,<br />
na língua e na religião. Porém, é omissa em relação à efetiva proteção das minorias.<br />
Assim, após o fim da estrutura bipolar do mundo, no âmbito da ONU, a Declaração<br />
de 1992 pode e deve ser considerada como o marco inicial dos novos debates<br />
sobre as minorias.<br />
2. CONCEITO DE DISCRIMINAÇÃO<br />
Discriminação é a prática de ato de distinção contra pessoa do qual resulta<br />
desigualdade ou injustiça, sendo essa distinção baseada no fato de a pessoa<br />
pertencer, de fato ou de modo presumido, a determinado grupo. Discriminar é<br />
excluir, é negar cidadania e, via de consequência, a própria democracia. Todavia,<br />
para que a igualdade seja garantida a todos, não basta apenas a eliminação das<br />
diferenças, mas sim a obtenção da igualdade e, para tanto, torna-se necessário<br />
identificar as verdadeiras origens da desigualdade. Nessa linha, é importante<br />
colacionar as palavras de Elida Séguin:<br />
Inicialmente, deve-se procurar o sentido das palavras discriminação, preconceito<br />
e intolerância. Discriminar é diferençar, distinguir, discernir, separar, especificar<br />
(Aurélio Buarque de Holanda). Sérgio Abreu afirma que a palavra discriminação<br />
surgiu no fim do século XIX, na França e na Alemanha, “utilizada na Psicologia,<br />
sem a ideia de tratamento desigual”, somente no século XX passou a ser ligada,<br />
“em matéria econômica e sobretudo no Direito e na política, para as minorias e<br />
todas as formas de tratamento desigual”.<br />
No entender de Norberto Bobbio, por discriminação entende-se uma<br />
diferenciação injusta ou ilegítima porque vai contra o princípio fundamental de<br />
justiça, segundo o qual devem ser tratados de modo igual aqueles que são iguais<br />
(2002: 108-109). Nesse sentido, o renomado filósofo explicou que:
Conceito de minorias e discriminação 145<br />
Num primeiro momento, a discriminação se funda num mero juízo de fato, isto é,<br />
na constatação da diversidade entre homem e homem, entre grupo e grupo. Num<br />
juízo de fato deste gênero, não há nada reprovável: os homens são de fato<br />
diferentes entre si. Da constatação de que os homens são desiguais, ainda não<br />
decorre um juízo discriminante.<br />
O juízo discriminante necessita de um juízo ulterior, desta vez não mais de fato,<br />
mas de valor: ou seja, necessita que, dos dois grupos diversos, um seja<br />
considerado bom e o outro mau, ou que um seja considerado civilizado e o outro<br />
bárbaro, um superior (em dotes intelectuais, em virtudes morais etc.) e o outro<br />
inferior... Um juízo deste tipo introduz um critério de distinção não mais factual,<br />
mas valorativo (BOBBIO, 2002).<br />
Em prosseguimento, Bobbio concluiu que:<br />
A relação da diversidade, e mesmo a de superioridade, não implica as consequências<br />
da discriminação racial... Da relação superior-inferior podem derivar<br />
tanto a concepção de que o superior tem o dever de ajudar o inferior a alcançar<br />
um nível mais alto de bem-estar e civilização, quanto a concepção de que o<br />
superior tem o direito de suprimir o inferior. Somente quando a diversidade leva<br />
a este segundo modo de conceber a relação entre superior e inferior é que se<br />
pode falar corretamente de uma verdadeira discriminação, com todas as<br />
aberrações decorrentes (BOBBIO, 2002).<br />
A despeito da evolução das ciências, as pessoas quedaram-se silentes aos<br />
novos tempos, bem como à necessidade de aceitar segmentos especiais ou<br />
diferenciados da sociedade, surgindo, assim, o preconceito. Desta forma, preconceito<br />
pode ser conceituado como:<br />
Conceito ou opinião formado antecipadamente, sem maior ponderação ou<br />
conhecimento dos fatos, ideia preconcebida; julgamento ou opinião formada sem<br />
se levar em conta o fato que os conteste; prejuízo (ABREU apud SÉGUIN, 2002: 55).<br />
O preconceito, por sua vez, está associado não só aos que são diferentes,<br />
mas também àqueles cuja ação do tempo os modifica. Nessa esteira, é importante<br />
colacionar as palavras de Elida Séguin (2002) ao abordar o mesmo tema:<br />
[...] Para dar uma pálida ideia, o preconceito contra o idoso chegou a tal ponto<br />
que foi cunhada a expressão etarismo. Interessante observar que a questão<br />
está sendo revertida pelo mercado consumista: descobre-se que os menos jovens<br />
constituem uma possibilidade de consumo que deve ser explorada.<br />
Não se pode deixar de consignar que o próprio grupo social aceita e cria uma<br />
estigmatização positiva a determinados comportamentos, como os delitos de<br />
trânsito, típicos da classe média. O motorista amador que provoca acidentes,
146<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
muitas vezes evitáveis, é visto como uma vítima da fatalidade. São cidadãos<br />
respeitáveis que involuntariamente causaram danos, tão vítimas quanto suas<br />
vítimas, desconhecendo o grupo social que o comportamento gerador foi leviano,<br />
imprudente e inconsequente. É o grupo se autodefendendo. A postura dos<br />
Tribunais vem sendo alterada para enxergar nos delitos de circulação um dolo<br />
eventual (SÉGUIN, 2002: 57).<br />
O ilustre Professor Dalmo de Abreu Dallari (apud VIANA & RENAULT, 2000: 14) viu<br />
como raízes subjetivas do preconceito, a ignorância, a educação domesticadora, a<br />
intolerância, o egoísmo e o medo. Para ele, o preconceito não só acarreta a perda de<br />
respeito pela pessoa humana como introduz a desigualdade e a injustiça. O referido autor<br />
ressaltou, ainda, o preconceito da polícia e dos juízes em relação às camadas mais pobres<br />
da população. Afirmou, além disso, o renomado jurista que ninguém nasce com preconceitos<br />
e, para evitar o preconceito, propôs uma autofiscalização:<br />
É preciso estarmos sempre muito atentos quando for proferir julgamentos sobre<br />
uma pessoa, uma ideia, uma crença. Mas além disto acredito muito na educação<br />
libertadora de Paulo Freire... Acho que assim como o preconceito é incutido pela<br />
educação, ele pode ser eliminado pela educação (...). Eu acredito na existência de<br />
direitos universais. Resguardados estes direitos é indispensável que se resguarde<br />
também o direito à diferença. Aliás, é interessante, existe uma declaração contra<br />
o preconceito, aprovada pela Unesco e que acentua exatamente isto, o direito à<br />
diferença. Quer dizer, eu não posso exigir que todos sejam iguais, não posso<br />
valorizar mais um do que o outro (DALLARI apud VIANA & RENAULT, 2000: 14).<br />
Sobre esse aspecto, historicamente, desde o Código de Hamurabi, havia a<br />
previsão de castigos proporcionais ao mal causado, assim como se faziam distinções<br />
nas penas de acordo com a classe social da vítima. Ou seja, ferir ou matar um<br />
escravo era menos grave do que alguém do clero.<br />
Com o advento do Código de Manu, já não se levava em conta a classe<br />
da vítima, mas apenas a proteção dos valores dos brâmanes, cujo poder se<br />
encontrava no ápice dos demais poderes da sociedade hindu. A Lei das XII<br />
Tábuas, diferentemente dos demais códigos, estabeleceu, ainda que provisoriamente,<br />
uma igualdade social inédita, excluindo do Direito Penal toda e qualquer<br />
distinção de classes sociais.<br />
É importante distinguir o preconceito e a discriminação da intolerância. A<br />
intolerância deve ser compreendida de uma melhor forma através do estudo de<br />
seu antônimo, ou seja, do conceito de tolerância:<br />
Condescendência ou indulgência para com aquilo que não se quer ou não se<br />
pode impedir. Boa disposição dos que ouvem com paciência opiniões opostas
Conceito de minorias e discriminação 147<br />
às suas. Med. Faculdade ou aptidão que o organismo dos doentes apresenta<br />
para suportar certos medicamentos 1 .<br />
Nesse sentido, a Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no<br />
Campo do Ensino (UNESCO, 1960) adotou “princípios de tolerância”, conceituando<br />
o termo da seguinte forma:<br />
Tolerância é respeito, aceitação e apreciação da rica diversidade de nossas<br />
culturas mundiais, nossas formas de expressão e formas de ser humano. Isto é<br />
reforçado através do conhecimento, da abertura, da comunicação e da liberdade<br />
de pensamento, consciência e crença. Tolerância é harmonia na diferença. Não é<br />
apenas um dever moral, é também um requisito político e legal.<br />
A legislação brasileira, principalmente a Lei Maior, veda diversas práticas<br />
discriminatórias, baseadas em diferentes critérios. Ao final, a questão principal das<br />
vedações previstas tanto em normas constitucionais como infraconstitucionais é a<br />
garantia do princípio da igualdade, previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal.<br />
Todavia, não é suficiente a criação de novos tipos penais ou a majoração<br />
das penas já existentes. A sociedade deve atacar a discriminação e a intolerância<br />
no âmago da questão: através da educação, verdadeiro agente de modificação<br />
social (SÉGUIN, 2002: 59). Ao final, pode-se dizer que, em verdade, todos são<br />
diferentes, já que cada indivíduo é uno e irrepetível, um patrimônio da humanidade,<br />
sendo certo que só determinado indivíduo pode dar a sua pequena parcela de<br />
contribuição ao acervo humano.<br />
Por outro lado, os seres humanos são todos iguais. Para Hannah Arendt<br />
(apud VIANA & RENAULT, 2000: 19), filósofa e pensadora política que se preocupou<br />
não só em entender como explicar a política e a violência dos dias atuais, notadamente<br />
a partir do nazismo e do bolchevismo, as pessoas não nascem iguais, pois se<br />
tornam iguais como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão<br />
conjunta que garante a todos direitos iguais.<br />
A igualdade, na visão da referida filósofa, pressupõe uma sociedade onde<br />
prevaleça, necessariamente, um mínimo de igualdade no plano econômico (frisese,<br />
muito diferente da situação econômica atual do Brasil). Segundo a pensadora<br />
alemã, a igualdade resulta da organização humana, pois as pessoas não nascem<br />
iguais e não são iguais nas suas vidas.<br />
É a lei que torna (ou deveria tornar) os homens iguais, ou seja, as diferenças<br />
deveriam ser igualadas por meio das instituições e, da mesma forma, a igualdade<br />
1<br />
TOLERÂNCIA. In: PRIBERAM. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Priberam Informática, 2009.<br />
Disponível em: . Acesso em: 12 de junho de 2009.
148<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
deveria ser garantida e ter espaço na esfera pública (já que a diferença tem lugar<br />
na esfera privada). E, concluindo, Arendt afirmou que, se os homens fossem iguais,<br />
não poderiam entender-se; se não fossem diferentes, não precisariam nem da<br />
palavra, nem da ação para se fazer entender.<br />
Sabe-se, então, que tanto a não discriminação quanto as reivindicações por<br />
medidas positivas se baseiam no princípio da igualdade, tão consagrado e previsto<br />
inúmeras vezes (e tal repetição não é despicienda) na Lei Maior. Na medida em<br />
que a não discriminação se constitui num princípio já consagrado pelo Direito<br />
Internacional (deixar-se-á aqui de aprofundar o tema nesse âmbito, especificamente,<br />
eis que não se está tratando acerca dos direitos das minorias), a adoção de medidas<br />
positivas – discriminação positiva – continua sendo matéria controvertida.<br />
Após a Segunda Guerra Mundial, o princípio da interdição da discriminação,<br />
melhor dizendo, o princípio da não discriminação, passou a integrar, exaustiva e<br />
sucessivamente, a maioria dos instrumentos internacionais de direitos humanos no<br />
âmbito da ONU que tratam das diversas categorias de direitos e pessoas a serem<br />
protegidas. Portanto, dispositivos de não discriminação e de igualdade encontramse,<br />
atualmente, em vários documentos, desde a Carta das Nações Unidas até o<br />
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.<br />
Com efeito, este princípio consagrou-se como universal do direito internacional<br />
de direitos humanos e, por assim ser, como cardeal de proteção das minorias,<br />
constituindo-se como respaldo normativo amplo às reivindicações das minorias.<br />
Já as medidas de discriminação positiva caracterizam-se por ser medidas<br />
especiais que permitem a preservação das características das minorias, que visam<br />
a assegurar a pessoas pertencentes a grupos particularmente desfavorecidos uma<br />
posição idêntica às dos outros membros da sociedade, proporcionando, portanto,<br />
uma igualdade no exercício de direitos.<br />
Diferentemente do que ocorreu com o princípio da não discriminação, estas<br />
medidas foram aos poucos complementadas pelo legislador internacional, em razão<br />
da constatação da insuficiência das regras de não discriminação em relação a<br />
determinados grupos de pessoas. Então, tanto o princípio de não discriminação<br />
quanto as medidas de discriminação positiva assentam-se no princípio da igualdade.<br />
Atualmente, o entendimento primeiro é fundamentado na concepção aristotélica<br />
de que deve ser dado tratamento igual ao que é igual e tratamento desigual ao que é<br />
diferente. Como já dito alhures, muito ao contrário do já consagrado princípio da não<br />
discriminação, a questão da discriminação positiva é altamente controversa.<br />
Deveras, a inércia dos Estados em aceitar as medidas positivas de<br />
discriminação em benefício de determinados grupos, quando previstas em
Conceito de minorias e discriminação 149<br />
instrumentos internacionais, é, na maioria das vezes, motivada por receios de que<br />
possa haver certa ingerência em assuntos internos por parte da comunidade<br />
internacional (WUCHER, 2000: 55).<br />
Todavia, aqui já se iniciou, de uma forma mais direta, a abordagem acerca<br />
do tema minorias. Mas, para abordar qualquer assunto sobre tal tema, é mister<br />
aprofundar mais as questões a respeito das chamadas minorias.<br />
3. CONCEITO DE MINORIAS<br />
No plano internacional, a falta de consenso em torno dos elementos centrais<br />
do conceito minoria impede êxito na elaboração de uma definição universalmente<br />
aceita. A atual problemática das minorias é, sem sombra de dúvidas, um tema mais<br />
do que amplo, eis que a complexidade da questão expressa-se, notadamente pelo<br />
seu caráter interdisciplinar, não só no âmbito internacional público, mas pelo fato<br />
de o tema transcender o campo jurídico.<br />
A questão mais relevante a ser considerada no momento de se conceituar<br />
minoria é saber identificar quais indivíduos pertencem à determinada minoria, em<br />
meio à diversidade de minorias e seus respectivos contextos em todo o mundo. É<br />
importante aqui ressaltar a impossibilidade da existência de dois contextos idênticos,<br />
envolvendo minorias de diferentes Estados, vez que cada minoria, da mesma forma<br />
que a situação em que se encontra, tem suas próprias características, diferenciandose,<br />
com efeito, em graus diferentes, de contextos a respeito dos grupos minoritários<br />
em cada Estado, quando analisado individualmente.<br />
A palavra minoria inúmeras vezes aparece acompanhada de um adjetivo<br />
indicativo da origem da própria destinação. Ou seja, as minorias “nacionais”,<br />
“étnicas”, “religiosas” e “linguísticas” estampam a própria proteção internacional<br />
das minorias e seus respectivos direitos. Referindo-se aos direitos atinentes a<br />
minorias, O’Donnel constatou que: “Sin embargo, su aplicación también se<br />
dificulta por la falta de una definición clara y universalmente aceptada del<br />
término minoría” (apud WUCHER, 2000: 43). Ou seja, os problemas de definição<br />
devem ser analisados na grande e considerável diversidade de minorias, bem<br />
como seus respectivos contextos em todo o mundo.<br />
O conceito de “minorias históricas”, segundo Gabi Wucher, portanto, ao se<br />
opor ao de “minorias novas”, exclui, a priori, “grupos vulneráveis” outros que as<br />
tradicionais minorias étnicas, linguísticas e religiosas (2000: 51). A fim de buscar<br />
um significado para minoria, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira definiu o termo<br />
como “inferioridade numérica; parte menos numerosa duma corporação deliberativa,<br />
e que sustenta ideias contrárias às do maior número” (1994: 11).
150<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Ou, ainda, pode-se encontrar o significado de minoria como inferioridade<br />
em número; a parte menos numerosa de um corpo deliberativo 2 . De fato, nem<br />
mesmo a Organização das Nações Unidas conseguiu chegar a um conceito<br />
universalmente aceito, já que sempre houve muita hesitação sobre o assunto: a<br />
Declaração Universal não tratou particularmente dos direitos das minorias, ficando<br />
esta tarefa ao encargo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU,<br />
1966), primeiro instrumento normativo internacional da ONU a tratar sobre o tema,<br />
mas que, ainda assim, não forneceu uma definição segura de minoria, pregando<br />
de modo genérico o respeito aos direitos dos grupos minoritários, como evidenciado<br />
em seu artigo 27, in verbis:<br />
Artigo 27 – Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas,<br />
as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito<br />
de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida<br />
cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.<br />
Nessa esteira, José Augusto Lindgren Alves (1997) salientou que as<br />
argumentações para tamanha hesitação têm origem na dificuldade de conciliação<br />
das posições assimilacionistas dos Estados do Novo Mundo (formados por<br />
populações imigrantes) e as dos Estados do Velho Mundo, com grande gama de<br />
grupos distintos em seus territórios nacionais.<br />
E, ainda, o mesmo autor advertiu que as razões mais profundas para as<br />
hesitações nessa área se acham expostas no prefácio de Francesco Capotorti em<br />
seu estudo sobre minorias, datado de 1977 (para a regulamentação do artigo 27 do<br />
Pacto dos Direitos Civis e Políticos), a saber: desconfianças dos Estados em relação<br />
aos instrumentos internacionais de proteção dos direitos das minorias, vistos como<br />
pretextos para interferência em assuntos internos; ceticismo quanto ao fato de se<br />
abordarem, em escala mundial, as situações distintas das diversas minorias; a crença<br />
na ameaça à unidade e à estabilidade interna dos Estados pela preservação da<br />
identidade das minorias em seu território e, finalmente, a ideia de que a proteção a<br />
grupos minoritários constituiria uma forma de discriminação.<br />
Diante da necessidade de uma definição de minoria, a Subcomissão para a<br />
Prevenção da Discriminação e a Proteção das Minorias, criada pela ONU,<br />
encomendou ao perito italiano Francesco Capotorti (anteriormente citado) um estudo<br />
que resultou na seguinte definição de minoria que, por sua vez, será a definição<br />
adotada no presente trabalho:<br />
2 MINORIA. In: PRIBERAM. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Priberam Informática, 2009.<br />
Disponível em: . Acesso em: 5 de junho de 2009.
Conceito de minorias e discriminação 151<br />
Um grupo numericamente inferior ao resto da população de um Estado, em<br />
posição não dominante, cujos membros – sendo nacionais desse Estado – possuem<br />
características étnicas, religiosas ou linguísticas diferentes das do resto da população<br />
e demonstre, pelo menos de maneira implícita, um sentido de solidariedade, dirigido<br />
à preservação de sua cultura, de suas tradições, religião ou língua (CAPOTORTI<br />
apud WUCHER, 2000: 78).<br />
Infere-se dessa definição que o citado autor elencou o elemento numérico,<br />
o da não dominância, da nacionalidade e da solidariedade entre os membros<br />
da minoria como constitutivo de uma minoria. Não há, todavia, consenso no que diz<br />
respeito ao elemento numérico, qual seja, o tamanho de uma minoria.<br />
De um lado, tem-se que as medidas especiais em benefício de uma minoria<br />
muito pequena seriam inversamente proporcionais à capacidade financeira do Estado.<br />
Por outro lado, tem-se que a titularidade ou o exercício propriamente dito de direito<br />
individual não poderia depender do tamanho do grupo ao qual o indivíduo pertence.<br />
Inegavelmente, o elemento numérico, por si só, não é suficiente para caracterizar<br />
uma minoria que necessite de proteção especial do Estado. Já o elemento<br />
nacionalidade, por sua vez, levanta outras controvérsias, na medida em que é<br />
questionável se, para reivindicar direitos, as pessoas pertencentes às minorias devem<br />
ser cidadãos do Estado em que, de fato, vivem. Nesse sentido, a subcomissão, em<br />
primeira sessão, afirmou que pessoas que pertencem às minorias precisam ser<br />
nacionais do Estado em que vivem (WUCHER, 2000: 47).<br />
Em prosseguimento, o elemento da solidariedade entre os membros da<br />
minoria, visando à preservação de sua cultura, suas tradições, sua religião ou seu<br />
idioma, tem grande importância, eis que implica critério subjetivo, vale dizer, na<br />
manifestação de vontade implícita ou explícita de preservação das próprias<br />
características. Com efeito, na visão do Tribunal Permanente de Justiça Internacional,<br />
pertencer a uma minoria é mais uma questão de fato que de vontade:<br />
No que respeita ao elemento subjectivo da noção de minoria, o Tribunal Permanente<br />
de Justiça Internacional rejeitou o argumento segundo o qual a declaração de<br />
pertença a uma minoria era o único factor que condicionava a possibilidade de<br />
exercício dos direitos previstos pelos Tratados [...]. O Tribunal declarou que as<br />
minorias eram definidas por elementos objectivos, como a raça ou a religião, e não<br />
por simples declarações de vontade das pessoas. Essa declaração deve constituir<br />
a constatação de um facto, e não a expressão de uma vontade, o que excluía assim<br />
o elemento subjectivo da noção de minoria (PIRES apud WUCHER, 2000: 48).<br />
A questão de maior relevância, neste aspecto, é determinar qual o indivíduo<br />
que, de fato, pertence a uma minoria, ou seja, que pode reivindicar direitos dados a
152<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
uma determinada minoria. É necessário salientar que há duas definições para<br />
caracterizar minorias, envolvendo as concepções sociológica e antropológica.<br />
Na sociologia, o termo “minoria” normalmente é um conceito puramente<br />
quantitativo, referindo-se ao subgrupo de pessoas que representa menos da metade<br />
da população total, sendo certo que, dentro da sociedade, ocupa uma posição<br />
privilegiada, neutra ou marginal.<br />
Todavia, no aspecto antropológico, a ênfase é dada ao conteúdo qualitativo,<br />
referindo-se aos subgrupos marginalizados, ou seja, minimizados socialmente no<br />
contexto nacional, podendo, inclusive, constituir uma maioria em termos quantitativos.<br />
Dessa forma, para ser objeto de tutela internacional, a minoria deve, necessariamente,<br />
ser caracterizada pela posição de não dominância que ocupa no âmbito<br />
do Estado em que vive.<br />
O elemento de não dominância, por si só, é o que caracteriza os chamados<br />
grupos vulneráveis. A despeito da confusão entre os conceitos de minorias e<br />
grupos vulneráveis (as primeiras caracterizadas por ocupar uma posição de<br />
minoria no país onde vivem, no sentido literal da palavra, enquanto os segundos<br />
podem se constituir de grande contingente numérico destituído de poder, mas que<br />
guarda certa cidadania e os demais elementos que poderiam transformá-los em<br />
minorias, como as mulheres, as crianças e os idosos), deixar-se-á aqui de ater-se à<br />
diferença existente, posto que, na prática, ambos sofrem sobremaneira de<br />
discriminação e intolerância por parte da sociedade.<br />
Via de regra, quando se fala em minorias e grupos vulneráveis, logo se<br />
pensa em crianças, mulheres, idosos, aidéticos, homossexuais, pessoas com<br />
deficiência. Todavia, a cada dia surgem novos grupos ou, ainda, reconhece-se<br />
tratamento diferenciado – e discriminatório – recebido por determinadas pessoas<br />
que apresentam alguma característica peculiar, como a população carcerária ou<br />
os egressos do sistema penitenciário.<br />
3.1. Critérios de classificação<br />
O Pacto dos Direitos Civis e Políticos, muitas vezes criticado, traz, em seu<br />
dispositivo já transcrito alhures, somente questões acerca das minorias étnicas,<br />
linguísticas e religiosas. As minorias étnicas são grupos que apresentam, entre seus<br />
membros, traços históricos, culturais e tradições comuns, diferentes dos verificados<br />
na maioria da população. Minorias linguísticas são aquelas que usam uma língua,<br />
sem levar em consideração se esta é escrita ou não, distinta da língua da maioria da<br />
população ou da adotada oficialmente pelo Estado. Por sua vez, minorias religiosas<br />
caracterizam-se por grupos que professam uma religião distinta da professada pela
Conceito de minorias e discriminação 153<br />
maior parte da população, mas não apenas uma outra crença, como o ateísmo. No<br />
entanto, não é possível ater-se somente a tais minorias, visto que o critério de<br />
identificação das minorias envolve aspectos tanto objetivos quanto subjetivos.<br />
O aspecto objetivo envolve a visualização da realidade das minorias, por<br />
meio de documentos históricos e testemunhas que corroborem os laços étnicos,<br />
linguísticos e culturais destes grupos. Já o critério subjetivo envolve o reconhecimento<br />
da minoria, da sua existência reconhecida pelo Estado. Vale ressaltar aqui<br />
que o não reconhecimento de uma minoria por parte do Estado não o dispensa de<br />
respeitar os direitos do grupo minoritário.<br />
A partir da distinção apontada, no que diz respeito ao elemento objetivo ou<br />
subjetivo, outra classificação de minorias é viabilizada segundo os objetivos das<br />
minorias e de seus membros: a diferenciação entre “minorities by force” e “minorities<br />
by will” (WUCHER, 2000: 50). No entender do autor, entende-se por by force aquelas<br />
minorias e seus membros que se encontram numa posição de inferioridade na sociedade<br />
em que vivem e que almejam, tão somente, não ser discriminados em relação ao<br />
resto da sociedade e, ato contínuo, querem adaptar e assimilar-se a esta.<br />
De outra sorte, as minorias by will e seus membros exigem, além de não ser<br />
discriminados, a adoção de medidas especiais as quais lhes permitam a preservação<br />
de suas características coletivas (culturais, religiosas e linguísticas). Tais minorias,<br />
visando a preservar as indigitadas características, não querem se assimilar à<br />
sociedade em que, de fato, vivem, mas sim integrar-se a ela (o que, diga-se de<br />
passagem, é muito diferente; todavia, não há o propósito de ater-se, no presente<br />
trabalho, a tais distinções, em virtude de não ser o foco do mesmo) como unidade<br />
distinta do restante da população. Gabi Wucher (2000) asseverou ainda que:<br />
Esta distinção é de suma importância para o presente trabalho, visto que a<br />
definição aqui adotada enfoca as minorias by will, ou seja, as minorias combativas<br />
e autoafirmativas que aspiram à preservação de suas próprias características e<br />
rejeitam ser assimiladas à maioria da população.<br />
É necessário, nessa linha, mencionar ainda a existência de outros grupos,<br />
tais como as pessoas portadoras de deficiência, os homossexuais e os transexuais,<br />
dentre outros que, em princípio, não se enquadrariam nos modelos étnicos, linguísticos<br />
e religiosos.<br />
4. CONCLUSÃO<br />
O conceito antropológico, que envolve o aspecto qualitativo e não quantitativo,<br />
parece mais adequado à situação do tema, tendo em vista que considera o real
154<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
quadro de submissão dos grupos minoritários aos majoritários. No Brasil, onde o<br />
preconceito é um elemento constante nas atitudes da sociedade, não podem de<br />
forma alguma ser deixadas de lado as comparações entre aqueles grupos conflitantes,<br />
visto que são necessárias à conscientização dos membros da própria minoria<br />
de que seus direitos estão sendo violados.<br />
Com referência às questões de definição, a ênfase conferida aos acordos<br />
bilaterais e, principalmente, àqueles programas de cooperação técnica, justamente<br />
pelo enfoque político, aponta uma solução bastante pragmática, tendo em vista que<br />
tais acordos já se referem a determinado grupo de minorias, o que impede uma<br />
maior abrangência quando da aplicação dos direitos destes grupos.<br />
Dessa forma, a proposta central deste trabalho se restringe em classificar<br />
minorias, ao invés de defini-las, a despeito de eventuais problemáticas de uma<br />
subsequente “escala de direitos”, conforme proposto por Gabi Wucher (2000: 136).<br />
Em relação ao princípio da não discriminação e a medidas positivas, a breve abordagem<br />
enfatizou a necessidade de se alcançar uma igualdade de fato para todos.<br />
Aliás, é de ressaltar que a própria Lei Maior desequipara as pessoas com<br />
base em múltiplos fatores, quais sejam, raça, cor, sexo, renda, situação funcional e<br />
nacionalidade, dentre outros. Assim, ao contrário do que se poderia supor à vista<br />
da literalidade da matriz constitucional da isonomia, o princípio, em muitas de suas<br />
incidências, não apenas não veda o estabelecimento de desigualdades jurídicas,<br />
como, ao contrário, impõe o tratamento desigual.<br />
Não obstante, ainda, as citações da legislação internacional sobre o tema, a<br />
falta de especificação do mesmo no ordenamento jurídico pátrio leva, muitas vezes,<br />
à impunidade e à omissão do Estado, sendo certo que é justamente nessa esteira<br />
que se faz necessário um trabalho de educação e respeito de toda a sociedade, que<br />
também tem o dever de resguardar os direitos do próximo.<br />
Dessa forma, mesmo considerando todas as dificuldades enfrentadas pelas<br />
minorias, bem como as barreiras impostas à modificação dessa situação, percebese<br />
a intensa luta desses grupos pela sua sobrevivência e pela manutenção dos seus<br />
costumes. Para ajudá-los na manutenção de sua identidade, é preciso que a própria<br />
sociedade, munida do poder de participação que possui, realize mudanças sociais<br />
que venham a preservar a cultura e os direitos de tais grupos, contribuindo para<br />
efetiva integração social de todos.
Conceito de minorias e discriminação 155<br />
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.
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 157<br />
11<br />
A nova pirâmide jurídica: a prisão do<br />
depositário infiel vista pelo STF<br />
The new juridical pyramid: the unfaithful<br />
trustee prison on the STF view<br />
RESUMO<br />
CARLOS JOÃO EDUARDO SENGER<br />
Advogado; procurador de Justiça; doutor em Direito, pela Universidad del Museo Social<br />
Argentino – UMSA, em Buenos Aires; professor e consultor do curso de<br />
Direito da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – <strong>USCS</strong>.<br />
WALLACE C. DIAS<br />
Bacharelando em Direito, pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul – <strong>USCS</strong>.<br />
E-mail para correspondência: wallace-dias@superig.com.br<br />
.<br />
A pirâmide jurídica, proposta na obra de Hans Kelsen, recebeu um novo patamar a<br />
partir do julgamento sobre prisão do depositário infiel. O Supremo Tribunal Federal<br />
refez sua posição clássica de escalonar os tratados internacionais como lei ordinária,<br />
de sorte que, na visão hodierna, os pactos de direitos humanos merecem um status<br />
supralegal, posição esta não prevista pelo constituinte de 1988. Neste trabalho,<br />
serão estudados os reflexos desta decisão e como ela pode alterar o Direito como<br />
um todo, seja na esfera internacional, seja na nacional.<br />
Palavras-chave: direitos humanos, depositário infiel, pirâmide jurídica.<br />
ABSTRACT<br />
The juridical pyramid proposal in the work of Hans Kelsen received a new level from<br />
the trial on arresting of an unfaithful trustee. The Supreme Court has remade his<br />
classic position to scale the international treaties and statutory law, in view of<br />
today’s human rights pacts worth a supra-status, position not foreseen for the<br />
constituent in 1988. This work will study the consequences of this decision and<br />
how it can alter the law as a whole, within the international or national sphere.<br />
Keywords: human rights, unfaithful trustee, juridical pyramid.
158<br />
1. HISTÓRICO DO CASO<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
O caso estudado por este trabalho é especificamente o Habeas Corpus n.<br />
87.585-8/TO, tendo como relator o Ministro Marco Aurélio de Mello, que foi julgado<br />
em 03/12/2008, representando verdadeira inovação no Direito brasileiro.<br />
O processo refere-se à legitimidade da prisão do depositário infiel, positivada pelo<br />
Código Penal no inciso III do parágrafo 1º do artigo 168. O referido Código, em vigor<br />
desde a década de 1940, estabelece a pena de reclusão de um a quatro anos e multa.<br />
Em 1988, com o advento da Constituição cidadã, novamente destacou-se a<br />
possibilidade da prisão do depositário infiel. Aliás, impende destacar que isto ocorre<br />
sob amparo de cláusula pétrea, vez que é no artigo 5º, inciso LXVII, que se<br />
encontra a positivação, in verbis: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a<br />
do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação<br />
alimentícia e a do depositário infiel” (grifou-se).<br />
O egrégio Superior Tribunal Federal já havia se posicionado em matéria<br />
sumulada de número 619, constatando que: “A prisão do depositário judicial pode<br />
ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente<br />
da propositura de ação de depósito”.<br />
Os tribunais estaduais também conferiam vigência e eficácia à prisão do<br />
depositário, pois nada obstava a aplicação da pena tão bem fixada nos ordenamentos<br />
nacionais e amplamente aceita pelos juristas à época.<br />
Quando tudo indicava pacificação do tema em aceitar a prisão do depositário<br />
infiel, perfez-se conflito normativo quando o Brasil ratificou o Pacto de São José<br />
da Costa Rica (ou Convenção Americana de Direitos Humanos) pelo Decreto n.<br />
678/92. Tal pacto tornou expressamente defesa a prisão por dívida, apenas<br />
permitindo no caso de pensão alimentícia:<br />
Artigo 7º<br />
(...)<br />
7 – Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados<br />
de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de<br />
obrigação alimentar1 .<br />
Poucos anos depois da ratificação, em 1997, o pacto já gerava efeitos na<br />
jurisprudência. O Tribunal de Justiça de São Paulo, 7ª Câmara de Direito Público,<br />
julgou o Habeas Corpus n. 059.816-5/9-00, tendo como relator o Desembargador<br />
Barreto Fonseca, e por votação unânime proferiu a seguinte ementa: “Em face da<br />
1 Disponível em: . Acesso em: 21 de outubro de<br />
2009.
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 159<br />
adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica, não subsiste mais a prisão<br />
civil de depositário infiel” 2 .<br />
Os ínclitos desembargadores do julgado entenderam que o referido pacto<br />
havia obstado tacitamente o instrumento normativo constitucional que declarava a<br />
prisão civil do depositário.<br />
Apesar de não haver manifestação expressa sobre a recepção do pacto<br />
como parte integrante da Constituição, há indícios disso quando se trata do artigo<br />
5º, LXVII: “É que no caput do artigo estão declaradas garantias constitucionais<br />
mínimas, que podem ser ampliadas por tratados constitucionais (parágrafo 2º do<br />
artigo 5º da Constituição da República)” 3 .<br />
A jurisprudência caminhava no entendimento de o pacto ter força constitucional,<br />
aceitando-no como parte integrante do rol das garantias individuais tuteladas<br />
por cláusulas pétreas, porém um novo fato incidiria no tema. Mais adiante, no ano<br />
de 2004, atribulando ainda mais a já tormentosa questão, o Congresso, por meio de<br />
Emenda Constitucional n. 45, redefiniu o artigo 5º da Constituição, acrescentandolhe<br />
o parágrafo 3º. Tal parágrafo permitiu força constitucional a todo tratado de<br />
direito humano aprovado em votação de 3/5 de ambas as Casas Legislativas.<br />
Por certo que o Pacto de São José da Costa Rica não havia sido votado<br />
nestes termos; contudo, ele já recebia os benefícios da aplicação assegurada pelo<br />
parágrafo 2º do mesmo artigo constitucional. Estaria tal pacto escalonado como<br />
norma constitucional pelo parágrafo 2º ou, por uma interpretação sistemática, só<br />
com aprovação do Congresso adquiriria tamanha força? A Emenda n. 45 poderia<br />
afetar a vigência constitucional de pacto constituído outrora?<br />
Estas são questões de direito que tornaram ainda mais complexa a prisão do<br />
depositário infiel, de tal modo que a submeteram até o grau máximo de jurisdição<br />
nacional, o Supremo Tribunal, protetor dos elementos constitucionais com repercussão<br />
geral. Já era chegada a hora de uma definição concreta delimitar os ditames<br />
do Pacto de São José da Costa Rica.<br />
Um tema de tanta relevância clamava por pacificação, de maneira que não<br />
é mera coincidência o fato de a doutrina posicionar-se e observar atentamente o<br />
resultado que traria a concepção do Supremo. Os institutos do Direito internacional<br />
e direitos humanos estavam em avaliação. Estes elementos enfrentados pelo<br />
Supremo foram transcritos em linha temporal para melhor didática:<br />
2 Disponível em: . Acesso em: 31<br />
de setembro de 2009.<br />
3 HC n. 059.816-5/9-00. Rel. Desembargador Barreto Fonseca, julgado em 03/11/1997.
160<br />
1940<br />
1988<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
1992<br />
2004<br />
2008<br />
○ ○<br />
○ ○ ○ ○ ○ ○<br />
○ ○ ○<br />
○<br />
Código<br />
Penal<br />
CF/88 Ratificação<br />
do Pacto de<br />
São José<br />
Emenda<br />
n. 45/2004<br />
Posição<br />
do STF<br />
Com facilidade, nota-se quão complexo foi o julgado, que teve a missão de<br />
definir um conjunto de abordagens jurídicas das mais diversas áreas: Direito<br />
Constitucional, Internacional, Penal, Civil e, até mesmo, Filosofia e Teoria Geral<br />
do Direito.<br />
De maneira resumida, pode-se afirmar que os caminhos dos votos cruzaram<br />
os aspectos jurídicos descritos abaixo.<br />
a) Prevalência de norma: Direito nacional X Direito internacional.<br />
b) Eficácia de normas constitucionais (plena ou limitada).<br />
c) Hermenêutica constitucional do inciso LXVII do artigo 5º e parágrafos.<br />
d) Escalonamento de normas na pirâmide kelseniana 4 .<br />
e) Valores dos direitos humanos.<br />
f) Direito comparado.<br />
2. O PACTO NO ORDENAMENTO NACIONAL<br />
Diante da ratificação, em 1992, é refutável questionar sobre a inclusão do<br />
Pacto de São José da Costa Rica no Direito brasileiro. A problemática está em<br />
qual escala do Direito nacional encontra-se este instrumento, ou seja, não se<br />
questiona se ele faz parte, mas como faz parte.<br />
O Supremo defendeu, na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 1.480-<br />
3/DF, a paridade dos pactos com leis ordinárias, mantendo-as como normas<br />
igualmente escalonadas. Todavia, no julgamento focado por este trabalho, os<br />
ministros estudaram duas posições totalmente diversas para o Pacto de São José:<br />
4 Hans Kelsen não utilizava a expressão “pirâmide” em sua teoria. Aqui, fez-se uso do termo de<br />
maneira puramente pragmática.
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 161<br />
a) com força constitucional imediata, pelos parágrafos 1º e 2º do artigo 5º<br />
da CF;<br />
b) com força supralegal, em virtude de não ter sido votado nos termos do<br />
parágrafo 3º do artigo 5º da CF, podendo, contudo, tornar-se constitucional<br />
caso esta votação seja feita.<br />
Abandonou-se, desta forma, para os instrumentos internacionais de direitos<br />
humanos, a clássica posição de que os tratados são leis ordinárias. Posição esta<br />
que seria a terceira hipótese não defendida no julgado, como se demonstra abaixo<br />
na pirâmide jurídica:<br />
Constituição<br />
Lei complementar<br />
Lei ordinária (Código Penal)<br />
Resoluções, decretos, portarias<br />
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○<br />
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○<br />
5<br />
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○<br />
Constitucional<br />
Supralegal<br />
Ordinário<br />
○ ○<br />
○ ○ ○ ○<br />
○ ○<br />
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○<br />
Pacto<br />
São José<br />
da Costa<br />
Rica<br />
A figura acima demonstra as possíveis soluções para escalonar o pacto, das<br />
quais prevaleceu a inovadora tese defendida pelo Ministro Gilmar Mendes: classificálo<br />
como supralegal. Assim, cria-se um novo “degrau” que supera as leis, mas não<br />
alcança o salutar título de norma constitucional até que seja votado como emenda.<br />
No curso do processo, o Ministro Gilmar Mendes frisou que, caso os pactos<br />
tornem-se dispositivos impreterivelmente com força constitucional, haveria o risco<br />
de “revogação de normas constitucionais com o advento dos tratados” 6 . O referido<br />
jurista destacou, também, que seria trabalhoso definir quando a Constituição<br />
absorveu ou não o instrumento internacional: “(...) fico a imaginar a confusão, diria<br />
até a babel que nós poderíamos instaurar. Primeiro, com a pergunta sobre se<br />
determinado tratado é tratado de direitos humanos (...)” 7 .<br />
5 Nem todos os doutrinadores aceitam a supremacia da lei complementar sobre a ordinária. Para estes,<br />
ambas estão no mesmo patamar, em igualdade.<br />
6 HC n. 87.585/TO. Rel. Ministro Marco Aurélio de Mello, julgado no dia 03/12/2008, publicado no<br />
dia 26/06/2009.<br />
7 Idem.
162<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Por outro lado, o Ministro Celso de Mello, defensor da constitucionalidade<br />
dos tratados de direitos humanos, argumentava que o parágrafo 2º do artigo 5º da<br />
Constituição Federal é “(...) – verdadeira cláusula geral de recepção – autoriza o<br />
reconhecimento de que os tratados internacionais de direitos humanos possuem<br />
hierarquia constitucional (...)” 8 . Além disso, destacava, também, que, na dúvida de<br />
classificação e aplicação dos tratados humanos, sob a perspectiva hermenêutica,<br />
“valorizar-se-á o sistema de proteção aos direitos humanos (...)” 9 , conferindo, desta<br />
forma, força de norma constitucional.<br />
O Ministro Sepúlveda Pertence lembrou, em ocasião oportuna, que o egrégio<br />
Supremo estaria por refazer sua posição quando disse: “Temos decisões posteriores<br />
à ratificação do Pacto San José, insistindo na legitimidade da prisão” 10 .<br />
Inquestionavelmente um empecilho obstaria a solução do Ministro Gilmar<br />
Mendes: o pacto em questão, enquanto supralegal, está acima do Código Penal;<br />
contudo, ainda submete-se à Constituição (que autoriza a prisão do depositário<br />
infiel). Como, então, não o tornar inconstitucional? Isto é o que demonstra o próximo<br />
item deste trabalho, trazendo a solução do próprio ministro para o caso.<br />
3. EFICÁCIA DO ARTIGO 5º, INCISO LXVII, DA CONSTITUIÇÃO<br />
Antes de verificar a argumentação para resolver o conflito do Pacto de São<br />
José da Costa Rica com a Constituição, é preciso observar a diferença entre vigência<br />
e eficácia.<br />
O tema não é moderno: a diferença entre vigência e eficácia encontrou grande<br />
teorização com o célebre Hans Kelsen. Este jurista (KELSEN, 2006) definia a vigência<br />
como a existência formal da lei dentro do ordenamento jurídico, enquanto que a<br />
eficácia era a existência fundada na aplicabilidade concreta das leis. Segundo ele:<br />
Como vigência da norma pertence à ordem do dever-ser e não à ordem do ser,<br />
deve também distinguir-se a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato<br />
real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta<br />
humana conforme a norma se verificar na ordem dos fatos 11 .<br />
Assim sendo, a vigência relaciona-se com o conflito normativo constitucional;<br />
já a eficácia, ao fiel cumprimento e vontade de aplicação normativa. Entretanto, é<br />
8 HC n. 87.585/TO. Rel. Ministro Marco Aurélio de Mello, julgado no dia 03/12/2008, publicado no<br />
dia 26/06/2009.<br />
9 Idem.<br />
10 Idem.<br />
11<br />
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. p. 11.
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 163<br />
errado imaginar que basta a vigência para a norma ser válida; para isto, é necessário<br />
que, além de obedecer às exigências formais da lei, esta contenha, no mínimo,<br />
certa eficácia, de maneira que não seja letra morta válida tão somente na abstração.<br />
Este foi o fato atestado por Kelsen (2006):<br />
Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma<br />
norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não será<br />
considerada como norma válida (vigente) 12 .<br />
Já para Miguel Reale, a norma possui três elementos: validade formal ou<br />
técnico-jurídica (vigência), validade social (eficácia) e validade ética (fundamento<br />
da norma) 13 .<br />
A parte técnica formal da norma é definida por agente competente para<br />
legislar (e.g. norma federal), pela competência material (e.g. norma de trânsito),<br />
bem como pela legitimidade de procedimento (e.g. votação em quórum de 3/5) 14 .<br />
Cumpridos estes três pressupostos, a norma é válida no plano de vigência.<br />
Este insigne jurista brasileiro, embora de doutrina tridimensionalista,<br />
coadunou-se com Kelsen na importância da eficácia, dizendo de forma semelhante<br />
a ele: “O certo é, porém, que não há norma jurídica sem um mínimo de eficácia, de<br />
execução no seio do grupo” 15 .<br />
Quando se estudam normas, é preciso estar atento para ambos os elementos<br />
– os dois possuem igual importância para o jurista, obviamente que o sociólogo<br />
está mais próximo da eficácia na medida em que o jurista está da vigência; contudo,<br />
só por meio de um mutualismo científico pode-se estruturar a validade da norma.<br />
Perfazendo de maneira mais visualizável estas ideias defendidas por Reale e Kelsen,<br />
poder-se-ia estruturá-las no seguinte esquema:<br />
Norma<br />
supostamente<br />
válida<br />
12 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. p. 12.<br />
13 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. p. 105.<br />
14 Ibidem, p. 110.<br />
15 Ibidem, p. 113.<br />
Vigência Validade formal<br />
Eficácia Validade material<br />
Norma<br />
válida
164<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
O caso aqui estudado, referente ao Pacto de São José da Costa Rica, é de<br />
matéria constitucional. Tais normas não costumam enfrentar problemas de vigência,<br />
vez que são de escalonamento mais alto; estando no topo da pirâmide jurídica, só<br />
podem conflitar com outras normas constitucionais.<br />
No plano constitucional, as normas possuem a máxima vigência (constituem o<br />
topo da pirâmide), porém apresentam diversos tipos de eficácia. Esta divisão dos<br />
tipos de eficácia não é matéria pacífica porquanto José Afonso da Silva, Celso Ribeiro<br />
Bastos e Maria Helena Diniz formularam teorias diferentes de classificação 16 .<br />
Insta dizer que a divisão de José Afonso da Silva (2002) é mais utilizada e<br />
conhecida, inclusive pelo Superior Tribunal Federal em julgamento do Mandado de<br />
Injunção n. 438-2-GO, publicado no DJU, em 16 de agosto de 1995 17 . Esta divisão<br />
é feita da seguinte forma 18 :<br />
a) normas de eficácia plena: autoaplicáveis, efeitos imediatos;<br />
b) normas de eficácia limitada: sem eficácia até regulamentação<br />
infraconstitucional posterior;<br />
c) normas de eficácia contida: sujeitas às restrições de aplicabilidade por<br />
meio de norma infraconstitucional.<br />
Estas informações foram essenciais para o Supremo Tribunal Federal<br />
caracterizar a supralegalidade do Pacto de São José da Costa Rica sem gerar<br />
conflito com o artigo 5º, LVXII, da Constituição.<br />
Caracterizando o artigo 5º, LVXII, como norma de eficácia limitada, entendeu<br />
o Ministro Marco Aurélio de Mello que o legislador regulou a prisão civil do<br />
depositário infiel de forma permissiva e não vinculada, ou seja, permitiu à norma<br />
infraconstitucional tornar crime o depositário infiel, mas apenas se desejasse, pois<br />
é ato discricionário.<br />
O Pacto de São José agora proíbe tornar eficaz a prisão civil por meio do<br />
Código Penal; contudo, não proíbe a Constituição de autorizá-lo. A prisão do<br />
depositário é vigente na Constituição, mas sem eficácia por não contar com norma<br />
infraconstuticional que torne possível a pena. Sendo o Código Penal lei ordinária, o<br />
pacto proíbe os seus dispositivos contrários.<br />
16 ARAUJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. p. 18-24.<br />
17 Disponível em: . Acesso em: 23 de agosto de 2009.<br />
18 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. Revista dos Tribunais, p. 89-91.
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 165<br />
Manifestou-se, neste sentido, o Ministro Marco Aurélio de Mello, valendose<br />
da teoria da eficácia das normas para que o Pacto de São José, mesmo estando<br />
abaixo da Constituição, tenha efeitos jurídicos plenos. Segundo ele: “(...) a<br />
Constituição Federal continua a prever a possibilidade (...). Só que esta norma,<br />
para ter eficácia e concretude, depende da regulamentação da prisão, inclusive<br />
quanto ao instrumental, para alcançar-se esta mesma prisão” 19 .<br />
O Ministro Celso de Mello, em análise hermenêutica da intenção do legislador,<br />
definiu que a eficácia infraconstitucional da pena é discricionária ao legislador:<br />
Na realidade, as exceções à cláusula vedatória da prisão civil por dívida devem<br />
ser compreendidas como um afastamento pontual da interdição constitucional<br />
dessa modalidade extraordinária de coerção, em ordem a facultar, ao legislador<br />
comum, a criação desse meio instrumental nos casos de inadimplemento<br />
voluntário e justificável de obrigação alimentar e de infidelidade depositária 20 .<br />
E também frisou, em concordância com o Ministro Marco Aurélio de Mello,<br />
que “(...) a regra inscrita no inciso LXVII do artigo 5º da Constituição não tem<br />
aplicabilidade direta, dependendo, ao contrário, da intervenção concretizadora do<br />
legislador (...)” 21 .<br />
Em síntese, o Pacto de São José não impede que a Constituição autorize,<br />
mas impede que norma ordinária torne aplicável a prisão, incidindo no momento<br />
em que o Código Penal concederia eficácia, e não quando a Constituição permitiu.<br />
Por estar acima da lei ordinária, o referido pacto tem poder de intervir na aplicação<br />
do Código Penal, mas jamais poderia fazer isto no texto constitucional. O<br />
procedimento ocorre, portanto, desta forma:<br />
19 HC n. 87.585/TO. Rel. Ministro Marco Aurélio de Mello, julgado no dia 03/12/2008, publicado no<br />
dia 26/06/2009.<br />
20 Idem.<br />
21 Idem.<br />
Constituição<br />
Autoriza a prisão<br />
Norma ordinária<br />
(Código Penal)<br />
○ ○ ○ ○ ○<br />
Pacto de São José<br />
Veta a eficácia<br />
infraconstitucional<br />
Norma<br />
aplicável
166<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
4. A CONSEQUÊNCIA DO JULGAMENTO (NOVOS VALORES)<br />
Os direitos humanos, que já foram e ainda hoje são negados por muitos<br />
juristas, consistem numa destas questões tão complexas que retornam quando se<br />
presume já estarem superadas.<br />
Michel Villey, jurista francês, lutou arduamente contra o conceito de direito<br />
humano. Chegou até mesmo a dizer que “o aparecimento dos direitos humanos atesta<br />
a decomposição do conceito do direito” 22 . Mais adiante, confirmando esta posição,<br />
ressaltou-a com mais vigor, condenando: “Esses não juristas, que foram os inventores<br />
dos direitos humanos, sacrificaram-lhe a justiça, sacrificaram o direito” 23 .<br />
Desde os jusnaturalistas, há uma luta para listar os direitos inerentes do<br />
homem, aqueles que o acompanham enquanto ser existente, e não somente na<br />
qualidade de cidadão – valores que constituem a supremacia da racionalidade e do<br />
amor e preocupação ao próximo.<br />
O problema foi encontrar uma paridade de direitos: o homem não é o mesmo<br />
em todos os tempos e em todos os espaços. A ideia de normas transcendentais, que<br />
parecia uma falácia coberta por argumentos sofismáveis, sofreu inúmeras críticas<br />
de Kelsen: “Os seus representantes não proclamam um único Direito natural, mas<br />
vários Direitos naturais, muito diversos entre si e contraditórios uns com os outros” 24 .<br />
Cada vez mais, via-se a impossibilidade de atingir um direito do homem. Este<br />
é ser biologicamente constituído como tal, enquanto que o Direito apresenta maior<br />
interesse no cidadão, ou seja, no indivíduo juridicamente vinculado a algum preceito<br />
normativo. Alegou, de forma semelhante à Kelsen, o jurista francês Villey (2008):<br />
Ó medicamento admirável! – capaz de tudo curar, até as doenças que ele mesmo<br />
produziu! Manipulados por Hobbes, os direitos do homem são uma arma contra<br />
anarquia, para a instauração do absolutismo; por Locke, um remédio contra o<br />
absolutismo, para a instauração do liberalismo; quando se revelam os malefícios<br />
do liberalismo, foram a justificação dos regimes totalitários e dos hospitais<br />
psiquiátricos 25 .<br />
Talvez não existam os “direitos” humanos, mas valores internacionais existem,<br />
conforme o próprio Villey confessou 26 . Transformados em pactos, eles possuem<br />
uma maior aplicabilidade, são positivados, recebem eficácia e vigência no ordenamento.<br />
22<br />
VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. p. 163.<br />
23 Idem. p. 164.<br />
24<br />
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. p. 245.<br />
25<br />
VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. p. 162.<br />
26 Ibidem. p. 94.
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 167<br />
O Pacto de São José da Costa Rica trouxe para o Direito nacional novos<br />
valores que não só auxiliaram o constituinte (pois o pacto é anterior à Constituição),<br />
como também alterou toda a ideia clássica da pirâmide kelseniana.<br />
O Supremo Tribunal Federal convenceu-se da relevância do pacto em questão<br />
quando o escalonou em nível totalmente novo: a supralegalidade, em outras palavras,<br />
aquilo que não é constitucional por vigência, mas com tão grande eficácia axiológica<br />
que supera as leis comuns.<br />
Os instrumentos internacionais de direitos humanos demonstram iniciar o<br />
caminho indireto para o constitucionalismo mundial proposto por Luigi Ferrajoli<br />
(2007) 27 , célebre jurista italiano. Na medida em que constituições são revistas para<br />
melhor se adequarem aos valores formalizados pelos pactos, tem-se uma inversão<br />
na antiga ordem social: a sacramental soberania interna, que era comumente<br />
defendida no século XVIII, está enfraquecendo e cedendo espaço para uma<br />
soberania pactual-valorativa internacional.<br />
A prisão do depositário infiel gera muitas suscitações não apenas nas mais<br />
altas cortes, mas em todo o Judiciário nacional. A doutrina debruça sobre o tema:<br />
Álvaro Villaça Azevedo (1993), por exemplo, criticou a efetividade da prisão civil 28 ,<br />
mesmo ressaltando o poder intimidatório que exerce.<br />
Em que pesem os benefícios advindos, a interpretação da Suprema Corte<br />
não foi totalmente recepcionada nos círculos acadêmicos. O jurista Ingo Wolfgang<br />
Scarlet, durante uma palestra do XXIX Congresso Brasileiro de Direito Constitucional,<br />
disse que: “A prevalência da Constituição possibilitaria a prisão. Nesse<br />
caso, o Supremo está afirmando a supraconstitucionalidade dos tratados” 29 .<br />
Este jurista acredita que o Supremo esvaziou o poder infraconstitucional,<br />
impedindo-o de receber um poder regulamentar que a Constituição emitiu. Disse,<br />
ainda, que esta decisão foi política porquanto o STF alargou a competência quando<br />
não tornou o pacto um dispositivo com força constitucional (permitindo ao STJ<br />
também julgar tais casos) 30 .<br />
Outros doutrinadores argumentam que a vedação do pacto não atinge todo<br />
tipo de depositário infiel, mas tão somente os oriundos de alienação fiduciária. De<br />
encontro a isso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro proferiu em ementa: “(...)<br />
27 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. passim.<br />
28 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão por dívida. p. 159-160.<br />
29 Disponível em: .<br />
Acesso em: 29 de setembro de 2009.<br />
30 Idem.
168<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Porém, tendo o STF estendido a vedação constitucional à hipótese de infidelidade<br />
no deposito de bens, inclusive nos casos de alienação fiduciária (...)” 31 . Notadamente,<br />
ao valer-se da palavra “inclusive”, o Tribunal do Rio de Janeiro incluiu<br />
todos os casos de depósito infiel, e não apenas os de alienação fiduciária.<br />
A jurisprudência cada vez mais se mostra inclinada a aceitar a posição do<br />
STF, e o mesmo tribunal tornou explícita a concordância em outra ementa:<br />
Habeas Corpus. Decreto de prisão de depositário infiel. Inadimissibilidade.<br />
Entendimento do Supremo Tribunal Federal. Concessão da ordem 32 .<br />
A tendência é que, devido à grande aceitação do Pacto de São José, o<br />
Congresso convoque votação para conferir-lhe força constitucional, elevando ainda<br />
a importância dos pactos no Direito brasileiro e resolvendo de vez certa dúvidas<br />
que ainda existem.<br />
5. CONCLUSÃO<br />
Em suma, O Pacto de São José foi mais do que recepcionado pelo<br />
ordenamento jurídico brasileiro, ele foi valorizado, posto em posição extremamente<br />
vantajosa, ainda que não atinja o ápice da constitucionalidade.<br />
A decisão do acórdão conferiu grande aplicabilidade para os instrumentos<br />
internacionais, configurando verdadeira segurança jurídica para a assinatura destes.<br />
Além disto, reestruturou o escalonamento normativo, reavaliou os valores clássicos<br />
da jurisprudência e, até mesmo, refez o posicionamento da Suprema Corte.<br />
Não se pode, contudo, escusar-se de destacar os problemas que permanecem:<br />
se os tratados de direitos humanos são supralegais, qual é o critério para<br />
caracterizar um tratado como sendo de direito humano? Tal controle será feito de<br />
forma discricionária pelo Judiciário até que o Supremo defina-se sobre a matéria? É<br />
mesmo possível confirmar a existência de direitos humanos? Estaria o STF atestando<br />
que há jusnaturalismo, vez que aceita o termo “direitos humanos” e até utiliza-o?<br />
A questão propedêutica de o Direito provir da razão humana ou das normas<br />
estatais, ou melhor, do jusnaturalismo contra o positivismo não terminou e está<br />
longe de terminar. Contudo, é inegável perceber que o positivismo está perdendo a<br />
sua força, que possuía desde o início do século XX.<br />
31 TJ-RJ. Apelação n. 2009.001.48179. Rel. Paulo Maurício Pereira. Julgado em 23/09/2009.<br />
32 TJ-RJ. HC n. 2009.144.00302. Rel. Antonio Carlos Esteves Torres. Julgado dia 13/10/2009.
A nova pirâmide jurídica: a prisão do depositário infiel vista pelo STF 169<br />
Os tempos hodiernos revelam que o constitucionalismo não é tão inflexível; aliás,<br />
sequer é sinônimo de normativismo. Os valores conduzem o Judiciário atual de tal forma<br />
que os pactos de direitos humanos receberam força superior à própria norma interna do<br />
país, àquela elaborada na Casa Legislativa do povo e dos Estados-membros.<br />
Há, de fato, a possibilidade de que, fortificando os valores comuns das nações,<br />
torna-se tangível uma norma mundial geral, uma constituição das constituições<br />
(nas linhas de Ferrajoli). Por certo que este é um tema futuro, mas o caminho já<br />
mostra sinais de possibilidade.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ARAUJO, Luiz Alberto David & NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito<br />
Constitucional. 9. ed., rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2005.<br />
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão civil por dívida. São Paulo: RT, 1993.<br />
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição.<br />
Coimbra: Almedina, 1998.<br />
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. 2. ed. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 2007.<br />
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:<br />
Milenium, 2003.<br />
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.<br />
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.<br />
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional.<br />
3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997.<br />
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27. ed., ajustado ao novo Código<br />
Civil. São Paulo: Saraiva, 2002.<br />
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 22. ed. São<br />
Paulo: Malheiros, 2002.<br />
______. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Revista dos<br />
Tribunais, 1982.<br />
VILLEY, Michael. O Direito e os direitos humanos. São Paulo: Martins Fontes,<br />
2008.
170<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Anotações
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 171<br />
12<br />
Exegese sobre a “relativização”<br />
da coisa julgada: o que há por trás<br />
desta tendência?<br />
Exegesis about the “relativization”<br />
of res judicata: what’s<br />
behind this tendency?<br />
RAFAEL JOSÉ NADIM DE LAZARI<br />
Advogado; mestrando em Direito, pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília/SP – Univem;<br />
pesquisador do Grupo de Iniciação Científica “Novas Perspectivas no<br />
Processo de Conhecimento”, sob orientação do Prof. Dr. Gelson Amaro de Souza.<br />
E-mail para correspondência: rafa_scandurra@hotmail.com.<br />
GELSON AMARO DE SOUZA<br />
Procurador do Estado de São Paulo aposentado; mestre em Direito, pela Instituição Toledo de Ensino<br />
– ITE, de Bauru, São Paulo; doutor em Direito das Relações Sociais – com área de concentraçã<br />
o em Direito Processual Civil–, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP;<br />
integrado ao corpo docente do Mestrado em Direito e na graduação em Direito da Universidade<br />
Estadual do Norte do Paraná – Uenp; ex-diretor e atual professor dos cursos de graduação e pósgraduação<br />
em Direito, das Faculdades Integradas “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente<br />
– Fiaetpp, São Paulo. Leciona também na graduação das Faculdades Adamantinenses Integradas – FAI,<br />
de Adamantina, São Paulo; é professor convidado da Escola Superior de Advocacia – ESA, de São<br />
Paulo e da pós-graduação das Faculdades Integradas de Ourinhos – FIO, São Paulo, da<br />
Escola Superior de Direito de Mato Grosso – Esud, de Cuiabá, e das Faculdades Integradas de Três<br />
Lagoas – Aems, Mato Grosso do Sul; advogado militante em Presidente Prudente, São Paulo.<br />
E-mail para correspondência: advgelson@yahoo.com.br.<br />
RESUMO<br />
Por intermédio dos métodos lógico e dedutivo, o presente ensaio trata da<br />
relativização da coisa julgada e de seus desdobramentos na esfera constitucional<br />
da segurança jurídica. Isto porque se mostra como medida plausível e consciente<br />
saber até que ponto tal instituto pode ser mitigado em prol do anseio por um<br />
pronunciamento não ofensivo aos ditames da justiça e da constitucionalidade.<br />
Palavras-chave: coisa julgada, relativização, segurança jurídica, inconstitucionalidade,<br />
injustiça.
172<br />
ABSTRACT<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Through logical and deductive methods, this essay discusses the relativization of<br />
the res judicata and its consequences to legal security. In this sense, will compare<br />
reviews favorable and contrary about the application this institutes.<br />
Keywords: res judicata, relativization, legal security, unconstitutionality, injustice.<br />
1. LINHAS PREAMBULARES<br />
O homem é fruto da sua contradição. Ao passo que se perfilha a proposições<br />
benéficas que lhe são judicialmente reconhecidas, inclusive invocando-as e valendose<br />
de tais como “escudo protetor” ante a possibilidade de sua ofensa (como deve<br />
ser, na verdade), busca incansavelmente desconstituir o que lhe é desfavorável,<br />
mesmo que isso importe negar o que outrora já foi absolutamente revestido de<br />
imutabilidade a bem de outrem.<br />
Sem circunlóquios, é assim que funciona com a coisa julgada e sua<br />
relativização: após um dilatado período de batalhas nos tribunais, através das querelas<br />
judiciais e da “guerra de nervos” que apelações, agravos, embargos etc.<br />
proporcionam, o “combatente” se vê diante de um pronunciamento judicial que<br />
encerra a lide e proclama a “paz entre as partes”. Todavia, mesmo após o “fechar<br />
das cortinas”, mas antes ainda do “apagar das luzes”, há a possibilidade de “atos<br />
extras” que desconstituam a res judicata – quais sejam: a ação rescisória, nos<br />
termos dos artigos 485 e seguintes do Código de Processo Civil; a impugnação (ou<br />
embargos) sobre título judicial fundado em lei ou ato normativo declarado<br />
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou<br />
interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo STF como incompatíveis com a<br />
Constituição Federal, com base no artigo 475-L, parágrafo 1º, e artigo 741, parágrafo<br />
único, da Lei Adjetiva; e a possibilidade de revisão da coisa julgada por denúncia<br />
de violação à Convenção Americana de Direitos Humanos, formulada pela Corte<br />
Interamericana de Direitos Humanos 1 – para que o vencedor possa, enfim,<br />
tranquilizar-se acerca da decisão proferida.<br />
Então, suplantados todos os entreveros, quando menos se espera, acena-se<br />
pela possibilidade de injustiça ou inconstitucionalidade em um julgamento e<br />
surge a proposta de “relativizar” a coisa julgada por meios não convencionais,<br />
porém lícitos.<br />
1 Acrescentou-se às duas convencionais modalidades de desconstituição da coisa julgada esta terceira<br />
modalidade, lembrada por Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (2008: 579).
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 173<br />
Quando se fala em decisão “inconstitucional”, parece clarividente que faz<br />
alusão àquela que fere os ditames da Lei Max brasileira. Mas, quando se fala em<br />
decisão injusta, o que seria ela afinal? Sintetizando e “relativizando” uma definição<br />
– assim como se quer relativizar a coisa julgada –, uma decisão injusta seria aquela<br />
que não atende aos anseios de um indivíduo, embora ela seja justa para outro, que<br />
propôs uma ação contra o primeiro e obteve êxito.<br />
Ademais, falar em “relativização da coisa julgada” remonta à nominação<br />
questionável: afinal, ou “é” ou “não é” coisa julgada; e não “pode ser” coisa julgada 2 .<br />
Até mesmo porque “relativizar” a coisa julgada é inviabilizar, de plano, a segurança<br />
jurídica que uma decisão imutável proporciona. Ao que parece, este “sopro processual<br />
nos ouvidos ansiosos por novidades” acompanha a moda de relativizar tudo, seguindo<br />
a ideia “einsteniana” de que tudo no mundo é relativo. Nem tudo é relativo, contudo.<br />
É com base na questão envolvendo a segurança jurídica ao ordenamento<br />
material-processual, bem como atentando a uma suposta “mitigação” deste instituto,<br />
que este ensaio quer se debruçar sobre a matéria.<br />
2. DA COISA JULGADA MATERIAL E A QUESTÃO<br />
ENVOLVENDO A SEGURANÇA JURÍDICA<br />
Preceitua o artigo 467 do Código de Processo Civil acerca da coisa julgada<br />
substancial, espécie de coisa julgada que interessa a bem da formulação deste<br />
ensaio: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e<br />
indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.<br />
Como bem se vê, trata-se da hipótese em que foi proferida, nos autos, decisão<br />
definitiva, nos termos do artigo 269 do Diploma Processual, e contra este pronunciamento<br />
não mais cabe qualquer tipo de recurso que permita a manifestação da<br />
parte irresignada.<br />
2 É importante deixar no papel, para efeitos de análise e crítica à nominação “relativização da coisa<br />
julgada”, a opinião, diferente e complementar àquela formulada pelo autor desta exegese, de José<br />
Carlos Barbosa Moreira (2008: 225): “É que, quando se afirma que algo deve ser ‘relativizado’,<br />
logicamente se dá a entender que se está enxergando nesse algo um absoluto: não faz sentido que se<br />
pretenda ‘relativizar’ o que já é relativo. Ora, até a mais superficial mirada ao ordenamento jurídico<br />
brasileiro mostra que nele está longe de ser absoluto o valor da coisa julgada material: para nos<br />
cingirmos, de caso pensado, aos dois exemplos mais ostensivos, eis aí, no campo civil, a ação<br />
rescisória e, no penal, a revisão criminal, destinadas ambas, primariamente, à eliminação da coisa<br />
julgada. O que se pode querer – e é o que no fundo se quer, com dicção imperfeita – é a ampliação<br />
do terreno ‘relativizado’, o alargamento dos limites da ‘relativização’”.
174<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Melhor explicando-a, asseverou Câmara (2004: 469):<br />
Por tal motivo, as sentenças definitivas, as quais contêm resolução do objeto do<br />
processo [...], devem alcançar também a coisa julgada material (ou substancial).<br />
Esta consiste na imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo (declaratório,<br />
constitutivo, condenatório) da sentença de mérito, e produz efeitos para fora do<br />
processo. Formada esta, não poderá a mesma matéria ser novamente discutida,<br />
em nenhum outro processo.<br />
“Imutabilidade” e “indiscutibilidade”. São estas as duas palavras-chave pelas<br />
quais tanto se almeja quando se ingressa numa peleja judicial, as quais estão contidas<br />
no universo constitucional da chamada “segurança jurídica”, nobre axioma alçado<br />
à esfera de cláusula pétrea no 36º inciso do artigo 5º da Constituição Federal<br />
pátria, e que expressamente trata, em seu terceiro item, da “coisa julgada” 3 .<br />
Neste prumo, conveio a Didier Jr., Braga & Oliveira (2008: 552) conciliar o<br />
instituto da coisa julgada com a questão envolvendo a segurança jurídica:<br />
A coisa julgada é instituto jurídico que integra o conteúdo do direito fundamental<br />
à segurança jurídica, assegurado em todo Estado Democrático de Direito,<br />
encontrando consagração expressa, em nosso ordenamento, no artigo 5º,<br />
XXXVI, da CF. Garante ao jurisdicionado que a decisão final dada à sua demanda<br />
será definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou desrespeitada – seja<br />
pelas partes, seja pelo próprio Poder Judiciário 4 (grifou-se).<br />
Entretanto, em que pese o status de “porto seguro” adquirido pela res judicata<br />
ao longo dos tempos, o que permitiu sua acoplagem ao princípio da segurança<br />
jurídica num “casamento” perfeito, parece haver uma temerária tendência em<br />
desconsiderá-la como tal, em razão de possíveis decisões injustas ou inconstitucionais<br />
cristalizadas, o que teria colocado em xeque a soberania da coisa julgada.<br />
3 “Artigo 5º: [...] XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa<br />
julgada” (grifou-se). Fica clarividente, pois, que a Carta de 1988 recepcionou o parágrafo 3º do<br />
artigo 6º do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil), o<br />
qual prevê: “Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba mais<br />
recurso”. Assim, apesar de sua definição se dar no plano infraconstitucional (tanto no CPC como na<br />
LICC), a essência da res judicata encontra-se “petrificada” no quinto artigo da Constituição Federal,<br />
o que lhe garante a condição de direito fundamental explícito.<br />
4 Também relacionando a coisa julgada ao princípio da segurança jurídica, Teresa Arruda Alvim<br />
Wambier e José Miguel Garcia Medina (2003: 21) definiram a res judicata como um “[...] instituto<br />
cuja função é a de estender ou projetar os efeitos da sentença indefinidamente para o futuro. Com<br />
isso, pretende-se zelar pela segurança extrínseca das relações jurídicas, de certo modo em<br />
complementação ao instituto da preclusão, cuja função primordial é garantir a segurança intrínseca<br />
do processo, pois que assegura a irreversibilidade das situações jurídicas cristalizadas<br />
endoprocessualmente” (grifou-se).
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 175<br />
Acerca deste processo de “desconsideração”, bem observou Baptista da<br />
Silva (2008: 307):<br />
Vivemos um tempo singular, que alguém qualificou de a “era da incerteza”. [...] As<br />
coisas que pareciam perenes, mesmo as coisas sagradas, ou aquelas tidas como<br />
naturais, como a família, acabam desfazendo-se ante a voracidade das transformações<br />
culturais. [...] Neste quadro natural, não deve surpreender que a instituição da coisa<br />
julgada, tida como sagrada na “primeira modernidade”, entre em declínio 5 .<br />
Em verdade, tal posicionamento tem se tornado crescente em razão de um<br />
“processo de esquecimento” acerca da real função da coisa julgada, qual seja, a<br />
de fornecedora de “garantia de segurança”, e não de “justiça”, como idealizam os<br />
“relativizadores”. Neste diapasão, coube a Didier Jr., Braga & Oliveira (2008:<br />
552) fazer tal distinção:<br />
A coisa julgada não é instrumento de justiça, frise-se. Não assegura a justiça<br />
das decisões. É, isso sim, garantia da segurança, ao impor a definitividade da<br />
solução judicial acerca da situação jurídica que lhe foi submetida (grifou-se).<br />
Sublinham-se, na citação supra, as assertivas de que “[...] a coisa julgada<br />
não assegura a justiça [...]”, mas sim “[...] a garantia da segurança das decisões”.<br />
Neste prumo, convém dissecar a frase para melhor entendê-la: com relação à<br />
primeira afirmativa, há que se considerar que o conceito de “justiça” é<br />
demasiadamente complexo para uma definição final e objetiva. Há um pluralismo<br />
de fatores que a norteiam, mas, de certa forma, todos eles estão ligados à questão<br />
da vulnerabilidade humana a possíveis falhas que possam transformar o justo em<br />
injusto num “piscar de olhos” 6 . Assim, às vezes, diante de um deslize do litigante<br />
5 Na mesma direção, Eduardo Talamini (2005: 61) tratou este processo mitigatório como um “ciclo<br />
natural das coisas”, ao afirmar que: “A íntima vinculação entre coisa julgada e o princípio da<br />
segurança jurídica comporta ainda outra indagação. Trata-se de saber em que medida a própria<br />
segurança jurídica, no Estado moderno, não teria perdido seu relevo sistemático em prol de outros<br />
valores – hipótese em que a coisa julgada poderia ter tido o mesmo destino”.<br />
6 Tal asserção encontra guarida nas palavras de Donaldo Armelin (2008: 99). Veja-se: “A desarmonia<br />
entre a decisão judicial transitada em julgado e o valor Justiça pode ocorrer em razão de várias<br />
circunstâncias. Algumas podem ser suscitadas por serem consideravelmente mais frequentes e<br />
podem ser reconhecidas, tal como supra examinado, até mesmo no rol das hipóteses de cabimento<br />
da ação rescisória de sentença. São elas: (a) o erro, dolo ou fraude do órgão judicante; (b) a fraude da<br />
parte ou dos órgãos auxiliares da Justiça; (c) o erro ou a inércia da parte no seu desempenho<br />
processual, nisso compreendido o erro, dolo ou omissão de seu representante técnico; (d) a evolução<br />
do estado da técnica, em se tratando de meio de prova; (e) má aplicação do direito à espécie sub<br />
judice”. Observa-se, portanto, que as causas enumeradas pelo ilustre doutrinador como capazes de<br />
influir no resultado de uma decisão, e que são, segundo ele, “consideravelmente mais frequentes”;<br />
amoldam-se à questão da vulnerabilidade do homem a possíveis falhas, sejam elas acidentais,<br />
intencionais, ou até mesmo inevitáveis, como é o caso do item “d”, acima elencado.
176<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
em sua empreitada na busca pela verdade, como a ausência de um documento ou<br />
a perda de um prazo, o Estado-juiz profere decisão que não reflete o real direito<br />
daquele, mas, mesmo assim, esta decisão terá sido justa, vez que um pronunciamento<br />
final deve estar isento de benevolências ou malevolências quanto à falha que o<br />
ensejou; caso contrário, estar-se-ia manchando a imparcialidade do órgão julgador.<br />
Da mesma maneira, a injustiça pode advir do outro lado. A título ilustrativo,<br />
a falibilidade pode se dar na figura de um médico que não consegue salvar seu<br />
paciente mesmo na mais corriqueira das cirurgias. Às vezes, pode se dar na pessoa<br />
de um alpinista que falha em sua empreitada ao cume de uma montanha. E como<br />
não podia deixar de ser, ela também pode se dar na figura de um magistrado que<br />
peca em sua decisão, proferindo-a contra a forma ou contra matéria dispositiva.<br />
Em ambos os casos, em não sendo percebido o vício, o pronunciamento proferido<br />
pelo juiz pode convalidar caso se esgote a via recursal ou a via de ação (leiase<br />
ação rescisória). Verifica-se, assim, que mesmo uma sentença eivada de vícios<br />
pode fazer coisa julgada. Por isso, diz-se que a coisa julgada não assegura a justiça.<br />
Já com relação à segunda afirmativa, começa-se a explicá-la com um<br />
questionamento: afinal, o que a coisa julgada objetiva garantir então? Com efeito, a<br />
coisa julgada vem oferecer respaldo à segurança jurídica das partes, de maneira<br />
que visa a evitar o desrespeito a um pronunciamento judicial. Assim, se o<br />
pronunciamento é injusto e já está cristalizado, que se valham as partes dos típicos<br />
meios processuais desconstituidores da coisa julgada já enumerados no primeiro<br />
capítulo deste ensaio.<br />
Por fim, para reforçar a necessidade de manutenção da soberania da res<br />
judicata, insta acrescentar que a coisa julgada não é somente questão de<br />
segurança jurídica às partes; é também instrumento de manutenção da supremacia<br />
do Judiciário como poder solucionador de conflitos, como bem observou Barbosa<br />
Moreira (2008: 233):<br />
A estabilidade das decisões é condição essencial para que possam os<br />
jurisdicionados confiar na seriedade e na eficiência da máquina judicial. Todos<br />
precisam saber que, se um dia houverem de recorrer a ela, seu pronunciamento<br />
terá algo mais que o fugidio perfil nas nuvens. Sem essa confiança, crescerá<br />
fatalmente nos que se julguem lesados a tentação de reagir por seus próprios<br />
meios, à margem dos canais oficiais. Escusado sublinhar o dano que isso causará<br />
à tranquilidade social.<br />
Sob este ângulo, pode-se dizer que a coisa julgada é o “carimbo” que confere<br />
o rótulo de “obrigatório” ao pronunciamento concluso; caso contrário, a peleja terá<br />
sido em vão.
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 177<br />
Desta forma, as três modalidades revisoras da coisa julgada que foram<br />
singelamente citadas no capítulo anterior, na qualidade de medidas excepcionais que são,<br />
não visam a comprovar a fragilidade da res judicata, mas sim o compromisso que o<br />
Judiciário assume de tentar ser o mais perfeito possível quando de sua resposta jurisdicional.<br />
Logo, se fosse possível sintetizar todos os parágrafos acima em um só,<br />
poder-se-ia dizer que a coisa julgada não guarda qualquer relação com a justiça,<br />
embora seja esse seu objetivo. Quanto à segurança jurídica, contudo, ambas são<br />
absolutamente interdependentes. Assim, quando se fala na abstratização da coisa<br />
julgada, isto se dá pelo lapso memorial de que o compromisso da coisa julgada é<br />
com a segurança jurídica, e não com a justiça.<br />
3. DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA:<br />
INADMISSIBILIDADE OU PERTINÊNCIA?<br />
Como bem dito anteriormente, ao longo dos tempos a coisa julgada edificouse<br />
sobre as pilastras da segurança jurídica às partes e ao processo. Trata-se de<br />
ícone absoluto, imperioso, de maneira que, ao contrário do que se pensa, os três<br />
institutos revisores vistos no primeiro capítulo não são a possibilidade de mitigá-lo,<br />
mas sim de preservá-lo soberano.<br />
Doutrinariamente, contudo, há quem transpasse a tríade reformuladora da res<br />
judicata, abrindo uma “cláusula geral de revisão”, a qual proporciona que a decisão<br />
judicial jamais se solidifique quando injusta ou inconstitucional. Esta proposta apregoa<br />
a possibilidade atemporal de reaver uma decisão, portanto, por meios que não os<br />
processualmente reconhecidos. Trata-se da “relativização da coisa julgada atípica”.<br />
Adepto da possibilidade de desconstituição em havendo dissonância com a Lei<br />
Max pátria, Nascimento (2003: 13) propôs o “banimento” da sentença cristalizada com<br />
essa qualidade, por intermédio da decretação de sua nulidade, conforme se pode observar:<br />
A coisa julgada é intocável, tanto quanto os atos executivos e legislativos, se,<br />
na sua essência, não desbordar do vínculo que deve se estabelecer entre ela e o<br />
texto constitucional, numa relação de compatibilidade para que possa revestirse<br />
de eficácia e, assim, existir sem que contra a mesma se oponha qualquer<br />
mácula de nulidade. Essa conformação de constitucionalidade tem pertinência,<br />
na medida em que não se pode descartar o controle do ato jurisdicional, sob<br />
pena de perpetuação de injustiças. Por esse motivo, nula é a sentença que não<br />
se adequa ao princípio da constitucionalidade, porquanto impregnada de carga<br />
lesiva à ordem jurídica. Impõe, desse modo, sua eliminação do universo processual<br />
com vistas a restabelecer o primado da legalidade. Assim, não havendo a<br />
possibilidade de sua substituição no mundo dos fatos e das ideias, deve ser<br />
decretada sua irremediável nulidade (grifou-se).
178<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Por sua vez, Delgado (2003: 46) foi fenomenológico ao defender a<br />
possibilidade de abstratização. Veja-se:<br />
O avanço das relações econômicas, a intensa litigiosidade do cidadão com o<br />
Estado e com o seu semelhante, o crescimento da corrupção, a instabilidade das<br />
instituições e a necessidade de se fazer cumprir o império de um Estado de<br />
Direito centrado no cumprimento da Constituição que o rege e das leis com ela<br />
compatíveis, a necessidade de um atuar ético por todas as instituições políticas,<br />
jurídicas, financeiras e sociais, tudo isso submetido ao controle do Poder<br />
Judiciário, quando convocado para solucionar conflitos daí decorrentes, são<br />
fatores que têm feito surgir uma grande preocupação, na atualidade, com o<br />
fenômeno produzido por sentenças injustas, por decisões que violam o círculo<br />
da moralidade e os limites da legalidade, que afrontam princípios da Magna<br />
Carta e que teimam em desconhecer o estado natural das coisas e das relações<br />
entre os homens. A sublimação dada pela doutrina à coisa julgada, em face dos<br />
fenômenos instáveis supracitados, não pode espelhar a força absoluta que lhe<br />
tem sido dada, sob o único argumento (sic) que há de se fazer valer o império da<br />
segurança jurídica.<br />
Valendo-se dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para<br />
justificar a mitigação da segurança jurídica e, consequentemente, da res judicata,<br />
asseveraram Theodoro Júnior e Cordeiro de Faria (2003: 112):<br />
Não há de se objetar que a dispensa dos prazos decadenciais e prescricionais na<br />
espécie poderia comprometer o princípio da segurança das relações jurídicas.<br />
Para contornar o inconveniente em questão, nos casos em que se manifeste<br />
relevante interesse na preservação da segurança, bastará recorrer-se ao salutar<br />
princípio constitucional da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o Tribunal,<br />
ao declarar a inconstitucionalidade do ato judicial, poderá fazê-lo com eficácia<br />
ex nunc, preservando os efeitos já produzidos como, aliás, é comum no direito<br />
europeu em relação às declarações de inconstitucionalidade.<br />
Em posição intermediária, Freitas Câmara (2008: 32) perfilhou-se à possibilidade<br />
de abstratização, sobretudo quando a questão relacionar-se à inconstitucionalidade<br />
(e não à injustiça) da decisão, formulando uma espécie de “relativização<br />
condicional da coisa julgada”:<br />
É, pois, possível relativizar a coisa julgada, afastando-a, sempre que o conteúdo<br />
da sentença firme contrariar norma constitucional. Deste modo, não havendo<br />
qualquer fundamento constitucional para impugnação da sentença transitada<br />
em julgado, será impossível relativizar-se a coisa julgada material, podendo<br />
esta ser afastada apenas nos casos previstos em lei como geradores de<br />
rescindibilidade (artigo 485 do Código de Processo Civil), no prazo e pela<br />
forma legais (grifou-se).
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 179<br />
No extremo oposto, há aqueles que pendem pela inaceitabilidade da<br />
abstratização da res judicata. Assim, contrariamente à hipótese de relativização<br />
da coisa julgada pela utilização de instrumentos metajurídicos, podem-se utilizar os<br />
argumentos de Marinoni (2008: 282-283):<br />
A “tese da relativização” contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas<br />
surpreendentemente não diz o que entende por “justiça” e sequer busca amparo<br />
em das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema.<br />
Aparentemente parte de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser<br />
descoberto por qualquer cidadão médio (l’uomo della strada), o que torna<br />
imprestável ao seu propósito, por sofrer de evidente inconsistência [...]. O<br />
problema da falta de justiça não aflige apenas o sistema jurídico. Outros sistemas<br />
sociais apresentam injustiças gritantes, mas é equivocado, em qualquer lugar,<br />
destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida.<br />
Por sua vez, Nery Júnior (2006: 598) implodiu a ideia de desconstituição da<br />
coisa julgada por uma suposta causa maior, qual seja, a inquebrantabilidade da<br />
Constituição Federal, ao alegar que:<br />
A supremacia da Constituição é a própria coisa julgada, enquanto manifestação<br />
do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF, 1º caput), não<br />
sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo<br />
de qualquer outro instituto constitucional. Quando se fala na intangibilidade da<br />
coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera<br />
figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o<br />
reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é<br />
própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito, que<br />
não pode ser apequenado por conta de algumas situações, velhas conhecidas<br />
da doutrina e da jurisprudência [...].<br />
Sem extremismos, mas não menos legalista, Santos Lucon (2008: 345) partiu<br />
para um interessante posicionamento, qual seja:<br />
[...] é o caso de se ampliar casos para a ação rescisória. No caso de descoberta<br />
científica apta a demonstrar o erro na solução dada ao caso concreto quando era<br />
impossível valer-se de determinada prova, seria o caso de admitir a ação rescisória<br />
a partir do momento em que o interessado obtém o laudo, em vez do trânsito em<br />
julgado da sentença rescindenda (grifou-se) 7 .<br />
7 A opinião do autor em muito se assemelha à do processualista José Maria Rosa Tesheiner (. Acesso em: 21/10/2003),<br />
segundo Alexandre Freitas Câmara (2008: 27), o qual afirmou, em análise às palavras de Tesheiner,<br />
que “[...] há um tendência, bem moderna, de desdenhar, senão de eliminar o instituto da coisa<br />
julgada”. Sustentou o autor, então, que o melhor seria, para os casos – relativamente raros – de<br />
sentenças “objetivamente desarrazoadas”, abrir-se a possibilidade de sua rescisão a qualquer tempo.
180<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Ademais, jurisprudencialmente, a questão está longe de ser pacificada. O<br />
Superior Tribunal de Justiça tem decidido tanto pela possibilidade como pela vedação<br />
à abstratização da coisa julgada, senão veja-se:<br />
Processual civil. Recurso especial. dúvidas sobre a titularidade de bem imóvel<br />
indenizado em ação de desapropriação indireta com sentença transitada em<br />
julgado. Princípio da justa indenização. Relativização da coisa julgada.<br />
1. Hipótese em que foi determinada a suspensão do levantamento da última<br />
parcela do precatório (artigo 33 do ADCT), para a realização de uma nova perícia<br />
na execução de sentença proferida em ação de desapropriação indireta já<br />
transitada em julgado, com vistas à apuração de divergências quanto à localização<br />
da área indiretamente expropriada, à possível existência de nove superposições<br />
de áreas de terceiros naquela, algumas delas objeto de outras ações de<br />
desapropriação, e à existência de terras devolutas dentro da área em questão.<br />
2. Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a<br />
própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente<br />
juridicamente. Se a sentença sequer existe no mundo jurídico, não poderá ser<br />
reconhecida como tal, e, por esse motivo, nunca transitará em julgado.<br />
3. “A coisa julgada, enquanto fenômeno decorrente de princípio ligado ao Estado<br />
Democrático de Direito, convive com outros princípios fundamentais igualmente<br />
pertinentes. Ademais, como todos os atos oriundos do Estado, também a coisa<br />
julgada se formará se presentes pressupostos legalmente estabelecidos. Ausentes<br />
estes, de duas, uma: (a) ou a decisão não ficará acobertada pela coisa julgada, ou<br />
(b) embora suscetível de ser atingida pela coisa julgada, a decisão poderá, ainda<br />
assim, ser revista pelo próprio Estado, desde que presentes motivos preestabele-<br />
E concluiu: “O que absolutamente não pode prevalecer é a ideia de que possa qualquer juiz ou<br />
tribunal desrespeitar a coisa julgada decorrente de decisão proferida por outro órgão judiciário, de<br />
igual ou superior hierarquia, a pretexto de sua nulidade ou erronia”. Já José Carlos Barbosa Moreira<br />
(2008: 248) não entendeu que seja o caso de se “ampliar as hipóteses de ação rescisória”. Contudo,<br />
o autor debruçou-se especialmente sobre a questão da precisão técnica que se consubstancia quando<br />
já há pronunciamento consolidado e afirmou: “O mais importante, ao menos do ponto de vista<br />
prático, é o da descoberta científica suscetível de demonstrar a erronia da solução dada anteriormente<br />
ao litígio, em época na qual não era possível contar com determinada prova. Para a hipótese do<br />
exame de DNA, como registrado, a jurisprudência já vem atenuando, por via interpretativa, o rigor<br />
do texto do Código (artigo 485, VII), para admitir a rescisória com fundamento no laudo pericial,<br />
incluído no conceito de ‘documento novo’. O socorro hermenêutico tem, contudo, alcance limitado:<br />
não serve para o caso de já haver decorrido o biênio decadencial (artigo 495) quando da realização do<br />
exame. Atenta a relevância da matéria, julgamos conveniente modificar aí a disciplina, não para<br />
abolir o pressuposto temporal – pois, com a ressalva que se fará adiante, relutamos em<br />
deixar a coisa julgada, indefinidamente, a mercê de impugnações -, mas para fixar o termo<br />
inicial do prazo no dia em que o interessado obtém o laudo, em vez do trânsito em julgado<br />
da sentença rescidenda” (grifou-se).
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 181<br />
cidos na norma jurídica, adequadamente interpretada.” (WAMBIER, Tereza Arruda<br />
Alvim & MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de<br />
relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 25).<br />
4. “A escolha dos caminhos adequados à infringência da coisa julgada em cada<br />
caso concreto é um problema bem menor e de solução não muito difícil, a partir<br />
de quando se aceite a tese da relativização dessa autoridade – esse, sim, o<br />
problema central, polêmico e de extraordinária magnitude sistemática, como<br />
procurei demonstrar. Tomo a liberdade de tomar à lição de Pontes de Miranda e<br />
do leque de possibilidades que sugere, como: (a) a propositura de nova demanda<br />
igual à primeira, desconsiderada a coisa julgada; (b) a resistência à execução,<br />
por meio de embargos a ela ou mediante alegações incidentes ao próprio processo<br />
executivo; e (c) a alegação incidenter tantum em algum outro processo, inclusive<br />
em peças defensivas.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Coisa julgada inconstitucional<br />
Coordenador Carlos Valder do Nascimento. 2. ed.. Rio de Janeiro: América<br />
Jurídica, 2002. p. 63-65). 5. Verifica-se, portanto, que a desconstituição da coisa<br />
julgada pode ser perseguida até mesmo por intermédio de alegações incidentes<br />
ao próprio processo executivo, tal como ocorreu na hipótese dos autos.<br />
6. Não se está afirmando aqui que não tenha havido coisa julgada em relação à<br />
titularidade do imóvel e ao valor da indenização fixada no processo de<br />
conhecimento, mas que determinadas decisões judiciais, por conter vícios<br />
insanáveis, nunca transitam em julgado. Caberá à perícia técnica, cuja realização<br />
foi determinada pelas instâncias ordinárias, demonstrar se tais vícios estão ou<br />
não presentes no caso dos autos.<br />
7. Recurso especial desprovido.<br />
(REsp n. 622.405/SP. Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em<br />
14/08/2007, DJ 20/09/2007, p. 221) – cabimento.<br />
Agravo regimental. Recurso especial. Precatório complementar. Juros moratórios.<br />
Incidência até o depósito da integralidade da dívida. Coisa julgada. Relativização<br />
da coisa julgada. Não aplicação.<br />
I – Havendo expressa determinação na sentença exequenda, já transitada em<br />
julgado, da inclusão dos juros moratórios no precatório complementar, não há<br />
mais espaço para discussão sobre os referidos juros, em virtude do princípio da<br />
coisa julgada.<br />
II – Esta c. Corte entende que estão fora do alcance do parágrafo único do artigo<br />
741 do CPC as sentenças transitadas em julgado anteriormente a sua vigência,<br />
ainda que eivadas de inconstitucionalidade. Precedente (EREsp n. 806.407/RS,<br />
DJU de 14/4/2008). Agravo regimental desprovido.<br />
(AgRg nos EDcl no REsp n. 1012068/RS. Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta<br />
Turma, julgado em 17/06/2008, DJe 04/08/2008.)
182<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Postos todos os posicionamentos, em que pese o tecnicismo em exteriorizálos<br />
aos olhos do leitor, aquele que veda incondicionalmente o fenômeno da<br />
abstratização é o que deve prosperar.<br />
Com efeito, desconsiderar a coisa julgada “inconstitucional” ou “injusta” parece<br />
uma fidalga tentativa a princípio, mas cuja boa vontade dos que a defendem não<br />
sopesa uma consequência temerária em segundo instante. Isto porque, se há uma<br />
decisão inconstitucional, como “último suspiro” do litigante inconformado, há a<br />
possibilidade de recurso extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal, de modo<br />
que, se por algum motivo não houver tal possibilidade, é porque a decisão não é de<br />
fato inconstitucional ou a parte não foi capaz de utilizar em seu “leque de cartas” o<br />
recurso extraordinário por desídia própria. Desta forma, desconsiderar atipicamente<br />
a res judicata inconstitucional não seria a “atividade saneadora ao julgado aviltante”,<br />
como se subintitula a relativização, mas sim um prêmio à incompetência daquele que<br />
esteve diante de uma suposta decisão inconstitucional e, quando realmente pôde,<br />
nada fez. É mais fácil jogar a culpa no Judiciário. Ou, ainda, alegar-se-ia que mesmo<br />
o STF, guardião da Constituição pátria, pode equivocar-se em seu posicionamento?<br />
Porque, se afirmativa a resposta, pode-se dizer que o povo estará diante de uma<br />
grave situação: nem mais na mais alta cúpula judicial do País poder-se-á confiar nas<br />
palavras de um pronunciamento final.<br />
Por outro lado, o ato de abstratizar uma decisão injusta se daria meramente<br />
por motivos metajurídicos, principiológicos, fenomenológicos ou, simplesmente, não<br />
legislados; ao passo que, caso se modificasse a decisão antes cristalizada, a injustiça<br />
ficaria “trocando de lado” infindavelmente; ou alguém discorda de que, se for<br />
possível relativizar a coisa julgada uma vez, este mesmo pronunciamento relativizado<br />
não poderá sê-lo novamente, e novamente, enquanto houver argumentos das partes?<br />
Com maestria, sobre a questão opinou Barbosa Moreira (2008: 245-246):<br />
Suponhamos que um juiz, convencido da incompatibilidade entre certa sentença<br />
e a Constituição, ou da existência, naquela, de injustiça intolerável, se considere<br />
autorizado a decidir em sentido contrário. Fatalmente sua própria sentença<br />
ficará sujeita à crítica da parte agora vencida, a qual não deixará de considerála,<br />
por sua vez, inconstitucional ou intoleravelmente injusta. Pergunta-se: que<br />
impedirá esse litigante de impugnar em juízo a segunda sentença, e outro juiz<br />
de achar possível submetê-la ao crivo de seu próprio entendimento? O óbice<br />
concebível seria o da coisa julgada; mas, se ele pôde ser afastado com relação<br />
à primeira sentença, por que não poderá sê-lo quanto à segunda? É claro que<br />
a indagação não se porá uma única vez: a questão poderá repetir-se, em princípio,<br />
ad infinitum, enquanto a imaginação dos advogados for capaz de descobrir<br />
inconstitucionalidades ou injustiças intoleráveis nas sucessivas sentenças<br />
(grifou-se).
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 183<br />
Ademais, “abrir” o artigo 485 do Código de Processo Civil a novos incisos,<br />
contrariando sua condição de numerus clausus, pode tornar a ação rescisória<br />
mais um “recurso” da parte derrotada contra o que lhe é desfavorável, e não é<br />
esse seu objetivo. Pode-se observar que o artigo 485 é situacional, e apenas para<br />
situações esporádicas que eventualmente possam ocorrer. Assim, a única<br />
modificação que este autor entende plausível, reiterando as palavras do brilhante<br />
doutrinador José Carlos Barbosa Moreira, é admitir, no caso da precisão técnica<br />
que somente se torna possível após já existir decisão consolidada, que o prazo da<br />
rescisória seja contado a partir da obtenção desse laudo “saneador”. A modificação,<br />
portanto, seria no artigo 495, e não no artigo 485 do Diploma Adjetivo.<br />
Em epítome, admitir a ação rescisória contra decisões “injustas” ou “inconstitucionais”<br />
a transformaria em mais um “recurso” (se é que assim se pode dizer)<br />
relutante e/ou meramente protelatório, ou seja, a título ilustrativo, admite-se a<br />
modificação da coisa julgada injusta ou inconstitucional no artigo 485 do CPC, e<br />
quando acabarem as armas da parte perdedora, ainda lhe sobrará a ação rescisória<br />
como chance derradeira.<br />
Isto é, senão arriscado demais à supremacia do Judiciário como poder, mais<br />
um duro golpe na luta da Justiça pelo processo civil teleológico e contra a morosidade<br />
processual.<br />
4. LINHAS DERRADEIRAS<br />
Por todo o explanado, apesar da demonstração de posicionamentos diversos<br />
(o da possibilidade irrestrita de relativização, o da possibilidade da relativização<br />
somente ante um pronunciamento inconstitucional, o pendor pela inclusão de novos<br />
incisos no artigo 485 do Código de Processo Civil, e o que defende a vedação absoluta<br />
às hipóteses de relativização), perfilha-se este autor ao último posicionamento.<br />
Isto porque, em primeiro lugar, do contrário, fica a impressão da possibilidade<br />
de criação de um “mecanismo revisor amplíssimo”. Ora, em observando tal hipótese,<br />
verifica-se a existência de uma situação espectral: a coisa julgada, antes atributo<br />
de tranquilidade (em regra) ao litigante vencedor e de resignação ao perdedor,<br />
perderia este efeito diante da possibilidade de desconstituição.<br />
Em que pesem as melhores intenções dos que a defendem, parece um tanto<br />
abstrata sua admissão no ordenamento jurídico. Fala-se hodiernamente em “processo<br />
civil teleológico (ou finalístico)” e em “função social do processo”, de maneira que,<br />
pelo primeiro, deve-se zelar pela evicção de protelações desnecessárias e por um<br />
resultado o mais próximo possível do status quo ante; e pela “função social”, temse<br />
que é preciso observar a condução do processo da maneira mais equânime
184<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
possível. Falar em flexibilização da coisa julgada parece, por critério de exclusão,<br />
mais próximo do segundo item, ou seja, os valores “celeridade processual” e<br />
“segurança pelo resultado” são substituídos pelo valor “justiça social”.<br />
Contudo, a ideia da função social deve ser acoplada ao processo civil de<br />
resultado, para que ambos sejam interpretados harmoniosamente. Do contrário,<br />
admitir o casualismo da coisa julgada pode levar à seguinte situação: revisa-se a<br />
decisão transitada em julgado por ela ter ferido o princípio da razoabilidade, por<br />
exemplo, mas fere-se a ideia contemporânea do processo civil teleológico, vez que<br />
mesmo o resultado, pelo qual tanto se busca, não é mais absoluto.<br />
Ademais, valer-se de elementos fenomenológicos e “empossá-los” na<br />
condição de desestruturadores da res judicata pode ser arriscado, vez que, por<br />
não estarem previstos em codificação alguma, são passíveis de interpretações<br />
diversas, e nem sempre a diversidade é positiva. Isto porque os próprios conceitos<br />
de “justiça” e “constitucionalidade” são relativizados. Assim, na opinião deste autor,<br />
um instituto somente pode ser relativizado quando esta metamorfose for<br />
unicamente benéfica. Para que isto ocorra, é preciso que o “elemento relativizador”<br />
seja absoluto, o que não ocorre na hipótese da relativização da coisa julgada, pois<br />
os conceitos de “justiça” e “constitucionalidade”, elementos relativizadores da coisa<br />
julgada, são relativos, e não absolutos como necessitariam ser.
Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência? 185<br />
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A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 187<br />
13<br />
A reserva legal como<br />
instrumento de efetividade da<br />
proteção da biodiversidade<br />
The environmental legal reserve<br />
as a tool on effective protection<br />
of biodiversity THIAGO FELIPE S. AVANCI<br />
Advogado; mestrando em Direito, pela Universidade Católica de Santos – Unisantos, área de<br />
concentração em Direito Ambiental; bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de<br />
Instituições Privadas de Ensino Superior, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal<br />
de Nível Superior Prosup/Capes. E-mail para correspondência: thiagoavanci@terra.com.br.<br />
RESUMO<br />
O debate sobre restringir ou não o direito de propriedade continua atual: a quem<br />
cabe suportar este ônus? O presente artigo objetiva expor argumentos favoráveis à<br />
reserva legal, bem como rebater alguns argumentos contrários a esta. Este estudo<br />
tem o propósito, ainda, de demonstrar a importância deste instituto como garantidor<br />
da biodiversidade.<br />
Palavras-chave: reserva legal, função social da propriedade, limitação da propriedade,<br />
biodiversidade.<br />
ABSTRACT<br />
Is it possible to restrict the right of property? And, if it is so, who shall bear this<br />
burden? This manuscript’s objective is to expose pros of the Environmental Legal<br />
Reserve, and, as well, to confront some arguments against this institute. Finally, the<br />
objective is to demonstrate the importance of this institute as a tool that guarantees<br />
the biodiversity.<br />
Keywords: environmental legal reserve, social function of property, restrictions on<br />
property, biodiversity.
188<br />
1. INTRODUÇÃO<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
A importância – ou não – da reserva legal sempre foi objeto de muitos<br />
estudos sob os mais diversos embasamentos: biológicos, ecológicos, jurídicos e,<br />
neste caso, com preponderância de direitos individuais, tais como sociais e coletivos.<br />
Objetiva-se demonstrar que este instrumento de efetividade do direito ao meio<br />
ambiente ecologicamente equilibrado é, sem sombra de dúvida, um dos mecanismos<br />
pelo qual a proteção à biodiversidade (ou diversidade biológica) será preservada.<br />
A reserva legal (RL) constitui um grupo constitucionalmente chamado de<br />
espaços especialmente protegidos (artigo 225, parágrafo 1º, III), neste podendo<br />
se enquadrar, ainda, as áreas de preservação permanente (APPs) e as unidades<br />
de conservação (UC). É necessário, contudo, distinguir a função jurídica de cada<br />
um destes espaços especialmente protegidos.<br />
Ao contrário das unidades de conservação, que objetivam a conservação ou<br />
a preservação 1 de áreas maiores ou menores de um determinado ecossistema<br />
dentro de um bioma 2 , a reserva legal possui esta mesma função de proteção, porém<br />
disseminada por todas as propriedades rurais do País. Em assim sendo, por mais<br />
que o Poder Público se esforce na criação de unidades de conservação (que<br />
demandam verbas para sua criação e manutenção), nunca será capaz de criar<br />
tanto desta modalidade de espaço especialmente protegido quanto o necessário<br />
para a manutenção da biodiversidade e do equilíbrio ecológico no Brasil. Reside<br />
nesta necessidade a reserva legal.<br />
Em linhas gerais, o artigo 225 da Constituição declara que o direito ao meio<br />
ambiente ecologicamente equilibrado é um direito e dever de todos. A reserva<br />
legal, enquanto faceta da função social da propriedade, constitui-se em efetiva<br />
limitação desse direito em benefício da coletividade.<br />
Mediante isto, a reserva legal será analisada como sendo um instrumento de<br />
garantia à conservação da biodiversidade.<br />
1 Em fortes cores e apertada síntese, o conservacionismo de Gifford Pichot (século XIX) estabeleceu<br />
como meta o uso racional dos recursos naturais, procurando benefício para a maioria, inclusive para<br />
as gerações futuras; o preservacionismo de Aldo Leopold (século XX) objetivava a natureza intocável<br />
pela ação humana, preservando-a como ela é. Assim sendo, no presente artigo, a palavra<br />
“preservação” foi utilizada com o sentido de manutenção integral e a palavra “conservação”, com o<br />
sentido de usar os recursos da natureza de forma racional.<br />
2 Bioma é um conjunto de ecossistemas com características similares em função de clima, altitude,<br />
latitude, regime hidrográfico, solo etc.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 189<br />
2. BIODIVERSIDADE<br />
2.1. Análise conceitual<br />
Há, ainda hoje, uma dificuldade de comunicação entre os cientistas do Direito e<br />
os cientistas da Biologia e Ecologia. Em função desta dificuldade, os conceitos sobre<br />
biodiversidade tendiam a ser limitativos, uma vez que não abarcavam todos os aspectos<br />
deste objeto. Antes da Convenção da Diversidade Biológica (CDB) – Rio/92, não era<br />
incomum ler que biodiversidade é ou a variedade de vida existente na Terra ou a<br />
variedade de vida, em diferentes aspectos, existente na Terra 3 . Mesmo após a CDB,<br />
ainda permanecia uma tendência da comunidade científica de, tal e qual seus<br />
antecessores, estabelecer conceitos semelhantes, mas puramente quantitativos 4 .<br />
Rompendo com esta tendência conceitual, a CDB alargou o leque de<br />
elementos componentes do conceito de biodiversidade, nos termos do artigo 2º:<br />
Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de todas as<br />
origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e<br />
outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte;<br />
compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de<br />
ecossistemas.<br />
Em verdade, este conceito revela que a ausência de diálogo entre os cientistas<br />
pode levar a uma impropriedade etimológica. Ao observar a parte final do conceito<br />
apresentado pela CDB, tem-se que há a inclusão da expressão “diversidade (...)<br />
de ecossistemas” 5 . Ainda no artigo 2º da CDB, que foi reproduzido pela Lei do<br />
Sistema Nacional de Unidades de Conservação – Snuc (Lei n. 9.985/00, artigo 2º,<br />
inciso III), é dado o conceito como sendo “um complexo dinâmico de comunidades<br />
vegetais, animais e de microorganismos e o seu meio inorgânico que interagem<br />
como uma unidade funcional”. Eis a impropriedade. Etimologicamente, biodiversidade<br />
(biodiversidade, contração de diversidade biológica = do grego bios, vida;<br />
oikus, casa/lugar) necessariamente deve estar associada à vida, ao passo que<br />
incluir em um conceito de biodiversidade o termo “ecossistema” automaticamente<br />
se inclui, também, “o seu meio inorgânico”.<br />
3 Neste sentido: GASTON, Kevin J. & SPICER, John I. Biodiversity: an introduction. 2. ed. Malden, MA:<br />
Blackwell Publishing. 2004. p. 3-4; e WILSON, Edward O. Biodiversity. Washington: National Academy<br />
Press, 1988.<br />
4 “Andy Dobson (1996: 132) definiu biodiversidade como sendo a “soma de todos os diferentes tipos<br />
de organismos que habitam uma região, tal como o planeta inteiro, o continente africano, a Bacia<br />
Amazônica, ou nossos quintais” (tradução do autor). Apud MAGALHÃES (2006: 24).<br />
5 No original, em inglês: “Biological diversity” means the variability among living organisms from all<br />
sources including, inter alia, terrestrial, marine and other aquatic ecosystems and the ecological<br />
complexes of which they are part; this includes diversity within species, between species and of ecosystems.
190<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Afora esta pequena impropriedade que a CDB cometeu 6 , seria possível dizer,<br />
acertadamente, que podem ser percebidos três elementos no conceito de<br />
biodiversidade, os quais, somados, servem de conceito a este objeto: variedade genética;<br />
variedade de espécies; variedade de vida em ecossistemas. Com isto, fica abarcada<br />
a variabilidade: de indivíduos, de espécies e de indivíduos e espécies na comunidade.<br />
Neste sentido, Wilson (1988), revendo o conceito quantitativo dado em 1988, agora<br />
forneceu um conceito qualitativo que permite a visualização dos três elementos acima<br />
descritos, em que biodiversidade pode ser definida como toda a variação hereditária,<br />
em todos os níveis de organização, desde os genes de uma determinada<br />
população ou espécie, passando pelas espécies dentro de um todo ou<br />
de parte de uma comunidade e, finalmente, englobando as próprias comunidades<br />
que compõem a parte viva dos multivariados ecossistemas do mundo 7 .<br />
2.2. Aspectos da biologia e ecologia acerca da biodiversidade<br />
Muito se fala em biodiversidade e em sua importância em função de um<br />
valor intrínseco 8 . Se analisada sob um ponto de vista biocêntrico, a manutenção<br />
da biodiversidade é fundamental como medida de manutenção da própria<br />
biodiversidade, ou melhor, da vida como um todo no planeta Terra. Explicando<br />
melhor: a extinção de espécies é um evento que ocorre naturalmente. Todavia, a<br />
extinção de espécies por fatores naturais (salvo eventos esporádicos de extinção<br />
em massa) ocorre gradativamente, permitindo que espécies dependentes daquela<br />
espécie em processo de extinção consigam se adaptar às novas condições.<br />
É a amplitude da biodiversidade que faz com que estas espécies, em processo<br />
de adaptação, consigam fazê-lo de modo eficaz. Esta biodiversidade é importante,<br />
neste caso, sob duas perspectivas distintas: a primeira é a biodiversidade genética,<br />
garantindo que indivíduos mais bem adaptados às novas condições possam perpetuar<br />
a espécie; a segunda, a biodiversidade de espécies, em que se verifica uma maior<br />
probabilidade de substituição daquela espécie em extinção nos processos ecológicos<br />
e na cadeia alimentar.<br />
Sob um ponto de vista jurídico e, pelo fato mesmo, necessariamente, antropocêntrico,<br />
tem-se que é por meio da conservação da biodiversidade, que se permitirá a<br />
6 Neste sentido, MAGALHÃES (2006: 24).<br />
7 REAKA-KUDLA; WILSON & WILSON (1997: 1): “(…) is defined as all hereditarily based variation at all<br />
levels of organization, from the genes within a single local population or species, to the species<br />
composing all or part of a local community, and finally to the communities themselves that compose<br />
the living parts of the multifarious ecosystems of the world.”<br />
8 Preâmbulo da CDB.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 191<br />
continuidade da existência do animal Homo sapiens no planeta Terra, uma vez que<br />
serão mantidos processos ecológicos necessários à agricultura, pecuária e pesca –<br />
base da alimentação humana – e até mesmo processos regulatórios do clima<br />
(temperatura, pluviosidade etc.). O equilíbrio dos diversos processos é tênue, de maneira<br />
que a menor alteração que resulte em extinção de espécies na base da cadeia alimentar<br />
ou na base dos processos naturais fará ruir toda a pirâmide sobre a qual se ergue.<br />
Como já foi dito, o processo de extinção de espécies é algo natural, que,<br />
independentemente da vontade humana, sempre ocorreu e sempre ocorrerá. No<br />
entanto, com a efetiva ação humana, os processos de extinção de espécies aumentaram<br />
drasticamente e de maneira muito mais acentuada. Repetindo o já dito acima,<br />
quanto mais rápido um processo de extinção, maior a probabilidade de que as espécies<br />
dependentes daquela não consigam se adaptar, o que gera um efeito dominó, com<br />
danos possivelmente irremediáveis ao bioma de que fazem parte.<br />
O impacto antrópico hodierno vai além da extinção de uma espécie apenas.<br />
Com o desenvolvimento tecnológico, necessidades de expansão da civilização<br />
(fronteira agrícola, avanço desenfreado urbano, busca de matérias-primas), há<br />
extinção de ecossistemas e biomas inteiros em questão de anos ou décadas.<br />
Quer por seu valor intrínseco, sob uma perspectiva ética, filosófica ou<br />
religiosa, quer sob um prisma jurídico e antropocêntrico, é por meio da biodiversidade<br />
que há maior probabilidade de a vida se sustentar no planeta Terra.<br />
2.3. Biodiversidade e Direito nacional<br />
Todo o ordenamento jurídico, nacional e internacional desenvolveu uma série<br />
de normas que visam a proteger a biodiversidade pelos motivos já expostos no item<br />
anterior. É necessário frisar que um instrumento normativo não necessariamente<br />
mencionará a expressão “biodiversidade” ou “diversidade biológica”, mas, ainda<br />
sim, esta será objeto de sua tutela, direta ou indiretamente. Por óbvio, é possível<br />
afirmar que todo instrumento normativo que tutele a proteção ambiental resultará<br />
em proteção à biodiversidade, visto que é parte essencial e fundamental à manutenção<br />
de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.<br />
Mediante isto, é necessário encontrar nas normas nacionais e internacionais<br />
objetos de tutela específicos da biodiversidade. Reporta-se ao conceito de biodiversidade<br />
para encontrar estes objetos específicos: variedade genética, variedade de<br />
espécies e variedade de vida em ecossistemas. Bem assim, qualquer norma nacional,<br />
tratado ou declaração internacional que verse sobre proteção genética, proteção<br />
de espécies e proteção da vida ou da vida em ecossistemas estará, por força de<br />
consequência, tutelando a biodiversidade, independentemente de citar esta palavra.
192<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Eis que, quando a Constituição Federal declara, no artigo 225, caput, que<br />
é direito de todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o qual deve ser<br />
preservado para as presentes e futuras gerações, pressupõe-se que, para a<br />
prevalência deste direito, deve ser assegurada a biodiversidade. Neste mesmo<br />
sentido, quando o parágrafo 1º, incisos I, III e IV, determina que é obrigação do<br />
Poder Público preservar e restaurar os processos ecológicos e prover o manejo<br />
ecológico das espécies e dos ecossistemas; definir espaços especialmente<br />
protegidos; exigir estudo prévio de impacto ambiental; bem como o parágrafo 4º<br />
daquele mesmo artigo define diferentes biomas e ecossistemas como patrimônio<br />
nacional, enfim, todos são uma faceta da biodiversidade, qual seja, a “diversidade<br />
de vida em ecossistemas”. Por outro lado, ficaria bem representada a faceta<br />
“variedade genética” no artigo 225, parágrafo 1º, inciso II, no qual consta a<br />
preocupação com o patrimônio genético nacional. Finalmente, a faceta “variedade<br />
de indivíduos” pode ser encontrada no inciso VII do mesmo parágrafo 1º, em<br />
que se determina ser obrigação do Poder Público proteger a fauna e a flora,<br />
vedando práticas que possam extinguir espécies ou que submetam animais a<br />
maus-tratos.<br />
Nota-se, com isto, que, muito embora a Constituição Federal não tenha, em<br />
momento algum, usado a expressão biodiversidade, ainda sim é um excelente<br />
exemplo de instrumento de sua tutela. E, para citar algumas outras leis que também<br />
lidam com o tema e não necessariamente o nomeiam, encontram-se os seguintes<br />
dispositivos legais: o Código Florestal (Lei n. 4.771/65); a Lei de Proteção à Fauna<br />
ou Código de Caça (Lei n. 5.197/67); Lei das Estações Ecológicas e das Áreas de<br />
Proteção Ambiental (Lei n. 6.902/81); Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n.<br />
6.938/81); Lei de Proteção aos Cetáceos (Lei n. 7.643/87); Decreto sobre Medidas<br />
de Proteção à Mata Atlântica (Decreto n. 750/93); Lei do Sistema Nacional de<br />
Unidades de Conservação (Lei n. 9.985/00); a Política Nacional da Biodiversidade<br />
(Decreto n. 4.339/02); a Lei das Florestas Públicas (Lei n. 11.284/06).<br />
3. RESERVA LEGAL COMO INSTRUMENTO<br />
DE EFETIVIDADE DA PROTEÇÃO DA BIODIVERSIDADE<br />
3.1. Conceito de reserva legal e diferenciação com área<br />
de preservação permanente e com unidade de conservação<br />
“Reserva legal”, “área de preservação permanente” e “unidade de conservação”<br />
são, indubitavelmente, exemplos de áreas especialmente protegidas a que se<br />
refere o inciso III do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição. Esses três institutos<br />
jurídicos têm finalidade comum mediata de garantir um meio ambiente ecologica-
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 193<br />
mente equilibrado, sendo instrumento de manutenção da biodiversidade e,<br />
consequentemente, dos processos ecológicos. O que diferencia cada um destes<br />
institutos é seu fim imediato. Neste artigo, a análise dos outros dois institutos se<br />
dará de modo superficial, dado que o objeto central é a reserva legal.<br />
Do conceito dado às “áreas de preservação permanente” no artigo 1º,<br />
parágrafo 2º, inciso II, do Código Florestal (incluído pela MP n. 2.166-67, de 2001),<br />
podem-se extrair alguns aspectos conceituais: é uma área protegida; pode estar<br />
coberta ou não por vegetação nativa, ou seja, pode encontrar-se desmatada, com<br />
vegetação exótica ou com vegetação nativa, mas ainda sim será APP; possui a<br />
função específica (ou imediata) de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a<br />
estabilidade geológica, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações<br />
humanas; e apresenta função auxiliar de preservar a biodiversidade, o fluxo gênico<br />
de fauna e flora.<br />
Muito embora o legislador não tenha especificado ou diferenciado as funções<br />
da APP, é necessária uma análise dentro de um contexto legislativo. Da leitura do<br />
artigo 2º e do artigo 3º do mesmo Código Florestal 9 , percebe-se um fim específico<br />
da APP: preservar uma parte inorgânica frágil de um ecossistema por meio da<br />
preservação de sua parte orgânica, com o fim de se garantir o bem-estar das<br />
populações humanas. Não parece correto dizer que a preservação de uma montanha<br />
por meio de uma APP vise, imediatamente, à conservação da biodiversidade. Mais<br />
acertado será dizer que a preservação da biodiversidade é um instrumento que<br />
dará estabilidade geológica à referida montanha. E, da mesma forma, nascentes,<br />
mata ciliar, dunas, restingas, enfim, toda a biodiversidade que sustém os sistemas<br />
inorgânicos de um ecossistema.<br />
A Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, tal e qual as APPs<br />
e a reserva legal, também possui um fim mediato de garantir a existência de um<br />
meio ambiente ecologicamente equilibrado, manter a biodiversidade e proteger<br />
espécies ameaçadas, dentre outros aspectos (artigo 4º, incisos I e II, da Lei n.<br />
9.985/00). Seu fim específico, no entanto, será conservar 10 um determinado espaço<br />
territorial e seus recursos ambientais com características naturais relevantes, nele<br />
9 Com exceção do artigo 3º, alíneas “g” e “f”, que atribuem às APPs a função de proteger sítios de<br />
excepcional beleza e de asilar exemplares da fauna ou da flora ameaçados de extinção, o que se<br />
explica devido à falta de áreas especialmente protegidas – a lei do Snuc é de 2000 – quando da edição<br />
original do código, em 1965.<br />
10 O legislador andou bem ao utilizar a expressão “conservar” ao invés de “preservar”. Deveras, o<br />
Snuc lida com preservação e com conservação, porém o instituto mais amplo abarca o mais específico,<br />
sendo certo que, dentro da ideia de conservação, há necessidade de preservação para manutenção do<br />
desenvolvimento sustentável.
194<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
incluindo as águas jurisdicionais (artigo 2º, inciso I, da mesma lei). Deveras, esta<br />
ideia de conservação de um determinado ecossistema e bioma por meio do<br />
estabelecimento de um local dotado de relevantes características naturais é o que<br />
difere “unidades de conservação” da “reserva legal”. Nas unidades de conservação,<br />
a atuação será feita em escala reduzida, uma vez que é impossível ao Poder Público<br />
criar, administrar e manter de unidades de conservação em quantidade necessária<br />
à manutenção de todos os processos ecológicos e climáticos. Eis aí a necessidade<br />
da reserva legal.<br />
Conforme já foi dito, a função imediata da reserva legal é similar à das<br />
unidades de conservação, no que tange à conservação de um determinado<br />
ecossistema e bioma. Difere, no entanto, a maneira como esta conservação se<br />
dará num e noutro instituto: nas unidades de conservação, muito embora possam<br />
ter área maior do que a reserva legal de uma propriedade, se somadas as reservas<br />
legais de todas as propriedades, tem-se que a área total deste instituto será,<br />
certamente, maior. Assim, conclui-se que a reserva legal promove uma proteção<br />
em maior escala aos ecossistemas e biomas.<br />
É interessante notar que a reserva legal não é fruto de uma simples<br />
“delegação” do Poder Público aos particulares de um dever que lhe competia. O<br />
artigo 225, caput, da Constituição Federal impõe concomitantemente ao Poder<br />
Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente<br />
ecologicamente equilibrado para a atual e futuras gerações. Em virtude disso, o<br />
legislador infraconstitucional está exercitando norma constitucional ao estabelecer<br />
a restrição da propriedade com a reserva legal.<br />
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito e dever de<br />
todos, constituindo-se em verdadeiro direito difuso ou direito fundamental de terceira<br />
geração. Em função disso, é necessária a imposição de limites à propriedade,<br />
direito típico de primeira geração de direitos fundamentais, de modo que esta esteja<br />
condizente com sua função social (direito fundamental de segunda geração) e com<br />
sua função ecológica (direito fundamental de terceira geração). O direito individual<br />
perde força em detrimento do direito social e do direito da coletividade. Bem assim,<br />
a reserva legal é uma limitação do direito de propriedade, situada em uma terceira<br />
geração de direitos fundamentais.<br />
Em suma, a reserva legal possui função mediata de realização do direito<br />
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e função imediata de<br />
garantir o uso sustentável dos recursos naturais; conservar e reabilitar os processos<br />
ecológicos; conservar a biodiversidade e abrigar e proteger a fauna e a flora nativas<br />
(artigo 1º, parágrafo 2º, inciso III, do Código Florestal).
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 195<br />
3.2. A coletividade e a reserva legal:<br />
constitucionalidade ou a tragédia dos comuns?<br />
Muitos autores, dentre eles Gandra S. Martins (2009), defendem que a<br />
reserva legal é inconstitucional porque transfere a um grupo muito pequeno – qual<br />
seja, o de proprietários rurais – o dever de manter a reserva legal 11 . O argumento<br />
utilizado é que o artigo 225 da Constituição Federal impõe o dito dever ao Poder<br />
Público e à coletividade. Ocorre que coletividade, no entender de Gandra S. Martins,<br />
não se constitui apenas em “um pequeno número de proprietários. Coletividade<br />
representa, no País, a comunidade geral, ou seja, 175 milhões de brasileiros, e não<br />
umas poucas centenas de milhares de grandes, médios e pequenos proprietários” 12 .<br />
O argumento é quase convincente, porém os defensores desta tese não levam em<br />
consideração que a interpretação da Constituição e de princípios gerais de direito<br />
deve ser feita em bloco, e não isoladamente. Três são os contrapontos que devem<br />
ser observados quando o tema é reserva legal e coletividade: enriquecimento ilícito<br />
dos proprietários, isonomia aristotélica e restrição justificada de um direito individual.<br />
A tragédia dos comuns ensinou a todos que existe uma tendência humana<br />
em se apropriar do lucro, transferindo os prejuízos à coletividade (ubi emolumentum,<br />
ibi onus) e cuja resposta jurídica foi a teoria do risco. Se assim não fosse, estarse-ia<br />
utilizando um modelo que prima pelo enriquecimento ilícito, ou seja, um modelo<br />
por meio do qual a sociedade arcaria com o ônus e o proprietário, apenas com o<br />
gozo. Tendo em vista que o Direito pátrio veda o enriquecimento ilícito, tem-se, por<br />
força de consequência, que aquele que irá receber os lucros também deverá arcar<br />
com o ônus. Com a reserva legal, a situação é a mesma. Senão veja-se: é fato que<br />
toda a coletividade, nela inclusa os próprios proprietários, irá se beneficiar com a<br />
instituição da reserva legal; porém, também é fato que os proprietários de terra são<br />
os únicos da coletividade que retiram daquela terra os lucros de sua exploração.<br />
Assim sendo, se existe uma porção da coletividade que recebe um único gozo (o<br />
meio ambiente ecologicamente equilibrado) e existe outra porção da mesma<br />
coletividade que obtém mais do que um gozo (o lucro da exploração da terra e o<br />
meio ambiente ecologicamente equilibrado), é compatível com a vedação ao<br />
enriquecimento ilícito que esta última porção da coletividade receba o ônus de<br />
arcar com a instituição e a manutenção da reserva legal.<br />
11 Ainda neste sentido, VIEIRA DUTRA, Ozório. O discurso ideológico e a ilegalidade da “reserva<br />
legal”. Disponível em: . Acesso em: 09 de novembro<br />
de 2009.<br />
12 GANDRA S. MARTINS, Ives. A defesa do meio ambiente. Valor Econômico, 25/03/2004. Disponível<br />
em: . Acesso em: 09 de novembro de 2009.
196<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Deveras, tal princípio está muito ligado à isonomia aristotélica, defendida na<br />
Constituição brasileira. Aquele que possui maiores condições deve arcar com um<br />
ônus maior e, em contrapartida, aquele que possui condições mais limitadas deve<br />
arcar com um ônus menor. Não parece associado à ideia de isonomia o fato de um<br />
trabalhador urbano, que ganha muitas vezes um salário igual ou inferior a um salário<br />
mínimo, tenha que arcar com um novo tributo ou tenha que ver uma parcela de<br />
seus tributos ser destinada à criação e à manutenção de reserva legal de um<br />
latifúndio em que nunca sequer sonhou estar. Muito embora este trabalhador, citado<br />
no exemplo, receba o gozo do meio ambiente ecologicamente equilibrado, a solução<br />
de sobretaxá-lo mostra-se absolutamente incompatível com a isonomia jurídica (e<br />
até mesmo tributária). Caberá ao referido trabalhador urbano promover o meio<br />
ambiente ecologicamente equilibrado por outros meios, e não arcando com o ônus<br />
deste instrumento, a reserva legal.<br />
Sempre que se fala em restrição de um direito individual, automaticamente se<br />
associa tal aspecto à ideia de Estado autoritário. Não é o caso. É princípio básico de<br />
direito que o interesse público prepondera sobre o particular. 13,14 Para a construção<br />
de uma sociedade igualitária, livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da<br />
marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do<br />
bem de todos (artigo 3º, incisos I, III e IV, da Constituição Federal), é necessário que<br />
direitos limitem direitos. Bem assim, os direitos coletivos limitam os direitos sociais<br />
que limitam, por sua vez, os direitos individuais. Aqui surge um paradoxo: muitos<br />
proprietários de terra estão dispostos a respeitar os direitos do trabalhador rural<br />
(direito social ou direito fundamental de segunda geração), aceitando arcar com os<br />
ônus decorrentes da relação de emprego; paralelamente, muitos destes mesmos<br />
proprietários de terra não reconhecem e, por conseguinte, não estão dispostos a<br />
arcar com os ônus decorrentes da manutenção do meio ambiente ecologicamente<br />
equilibrado (direito coletivo ou direito fundamental de terceira geração).<br />
Assim sendo, em resumo, não há inconstitucionalidade alguma na reserva<br />
legal. Trata-se de um instrumento de proteção ambiental, um ônus, destinado a<br />
quem é proprietário de terra, que recebe, além do gozo, que é o meio ambiente<br />
ecologicamente equilibrado, o lucro pela utilização daquela terra.<br />
13 Ao contrário do afirmado por Vieira Dutra: “Não existe mais prevalência do interesse público e<br />
coletivo sobre o interesse particular”. Op. cit.<br />
14 O Projeto de Lei n. 5.397/09 propõe uma solução interessante: a remuneração por serviços ambientais.<br />
Esta solução, da forma como apresentada, não parece contrária ao sistema jurídico nacional, já que<br />
“os instrumentos econômicos serão concedidos sob a forma de créditos especiais, recursos, deduções,<br />
isenções parciais de impostos, tarifas diferenciadas, prêmios, financiamentos” etc. Porém, entendese<br />
que esta remuneração deve ser feita no que diz respeito às realizações que vão além das obrigações,<br />
ou seja, as realizações voluntárias. Disponível em: . Acesso em: 03 de novembro de 2009.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 197<br />
3.3. Peculiaridades sobre a reserva legal<br />
3.3.1. Estabelecimento de porcentagens em biomas<br />
Apontou Granziera (2009) que a ideia do estabelecimento da reserva legal<br />
não é nova. O Código Florestal de 1934 (Decreto n. 23.793/34) estabelecia a<br />
proibição de derrubada de 25% (um quarto) de vegetação nativa da área da<br />
propriedade, sendo passível o infrator, inclusive, de detenção e multa (artigo 86<br />
daquela lei) 15<br />
. O Código Florestal de 1965 revogou a referida lei de 1934, e, em sua<br />
redação original, não havia a disciplina deste instituto. Com o advento da Lei n.<br />
7.803/89, o termo reserva legal foi instituído e o instituto foi revivificado, já que a<br />
antiga redação do artigo 16 do Código Florestal de 1965 apenas havia instituído a<br />
proteção às “florestas particulares”. Nela, foram fixados valores de reserva legal<br />
em 50% para as regiões Norte e para a parte norte da região Centro-Oeste (antiga<br />
redação do artigo 44 do Código Florestal) e 20% para o restante do Brasil (antiga<br />
redação do parágrafo 2º do artigo 16 da mesma lei).<br />
Com a edição da Medida Provisória n. 1.511, de 25 de julho de 1996, a<br />
porcentagem de reserva legal relativamente ao bioma Amazônia foi mantida nos<br />
50% estabelecidos pela Lei n. 7.803/89. Esta porcentagem se manteve até a edição<br />
da Medida Provisória n. 2.080/00, quando foi fixada nova porcentagem àquele<br />
bioma, 80% (redação então dada ao artigo 44 do Código Florestal). Com a edição<br />
da Medida Provisória n. 2.166/01 e a efetivação legislativa das medidas provisórias<br />
por meio da Emenda Constitucional n. 32, este valor de 80% é o vigente para<br />
aquele bioma (artigo 16, I, do Código Florestal) 16 .<br />
No que tange ao cerrado, com o advento da Medida Provisória n. 1.736/99,<br />
o legislador excepcionou o cerrado localizado na chamada Amazônia Legal.<br />
Estabeleceu, assim, 50% de reserva legal para o bioma Amazônia e 20% para o<br />
bioma Cerrado, localizados na Amazônia Legal. Com a edição da Medida Provisória<br />
n. 2.080/00, foi fixada nova porcentagem àquele bioma, os atuais 35% (artigo 16,<br />
inciso II, do Código Florestal).<br />
Com a Exposição de Motivos n. 19/96, apresentada por Luiz Felipe Lampreia,<br />
então Ministro das Relações Exteriores, e por José Israel Vargas, então Ministro<br />
da Ciência e Tecnologia, o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso<br />
15 In: Direito Ambiental. São Paulo: Atlas, 2009. p. 355.<br />
16 O Projeto de Lei n. 1.876/99 objetiva a redução da reserva legal do bioma Amazônia da Amazônia<br />
Legal para 50% (e, possivelmente, o aumento da reserva legal para o bioma Cerrado, na mesma<br />
região, para o mesmo valor): “Artigo 6º. A reserva legal respeitará a seguinte proporção em relação<br />
à área de cada imóvel: I – cinquenta por cento na Região Amazônica; II – vinte por cento nas demais<br />
regiões.”. Disponível em: . Acesso<br />
em: 03 de novembro de 2009.
198<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
passou a observar a necessidade de aumento da área de reserva legal no bioma<br />
Amazônia situado na Amazônia Legal. A referida exposição de motivos levou em<br />
conta um extenso estudo realizado principalmente na região Norte do País, no que<br />
dizia respeito ao avanço desenfreado da fronteira agropastoril, bem como à<br />
derrubada de árvores para a indústria madeireira.<br />
Assim, a referida exposição de motivos afirmou que:<br />
(...) para reverter o quadro de crescimento do ritmo do desflorestamento na<br />
Amazônia, é necessária não apenas a adoção de um conjunto de medidas que<br />
permitam, de um lado, intensificar o monitoramento e vigilância, em especial<br />
nas áreas críticas, e de outro lado, reduzir a pressão antrópica sobre o meio<br />
ambiente com a fiscalização dirigida e eficiente, como, também, promover a<br />
reorientação da atividade produtiva para um modelo de uso sustentável dos<br />
recursos naturais da região 17<br />
.<br />
Por esta razão, seria necessária, dentre outras medidas, a “alteração do<br />
artigo 44 do Código Florestal, ampliando a reserva legal para, no mínimo, 80% de<br />
cada propriedade rural da região amazônica constituída de fitofisionomias florestais,<br />
onde não será permitido o corte raso; (...)” 18 .<br />
O bioma Amazônia possui uma característica de fragilidade muito peculiar.<br />
Apesar da exuberância de vida, a densa vegetação se sustenta em um solo<br />
excessivamente pobre e ácido. Com o passar de milhares de anos e decomposição<br />
vegetal, o solo amazônico ganhou uma relativamente fina camada de solo rica em<br />
nutrientes. Esta camada de solo se sustenta por conta da fixação das raízes vegetais<br />
e em função do ciclo de vida das formações vegetais. Com a eliminação das<br />
formações vegetais nativas, a região passaria a sustentar uma savana e,<br />
posteriormente, o processo resultaria na desertificação. O solo daquela região é<br />
muito diferente dos solos das regiões Nordeste, Sul e Sudeste que, há 500 anos,<br />
sustentam lavouras plantadas em regime contínuo.<br />
De uma forma ou de outra, o legislador não objetiva a inviabilidade econômica<br />
da terra quando estabelece uma reserva legal de 80%. Objetiva, sim, que o<br />
proprietário de terra adote medidas de preservação integradas com o seu<br />
desenvolvimento econômico. É possível a utilização econômica da área de reserva<br />
legal desde que previsto e observado o plano de manejo. O que não é possível para<br />
este bioma, em função de suas características frágeis, é o corte raso da mata<br />
17 Disponível em: “Código Florestal Brasileiro – Blog” . Acesso em: 03 de novembro de 2009.<br />
18 Idem.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 199<br />
nativa. O bioma Amazônia, afora sua importância em termos de biodiversidade, é<br />
determinante no clima do Brasil e da América do Sul, de maneira que, se for<br />
relegado à desertificação, todo o continente e o mundo irão padecer.<br />
Nesta mesma época, percebeu-se a importância do bioma Cerrado, como<br />
sendo fonte de biodiversidade muito peculiar e de equilíbrio igualmente delicado.<br />
Além do mais, o bioma Cerrado mostra-se como importante área de transição<br />
entre o bioma Amazônia e os demais biomas do Brasil. Por estas razões, o Executivo<br />
estabeleceu proteção ligeiramente maior do que a ordinariamente atribuída ao<br />
restante do País, fixando a porcentagem de 35% de reserva legal.<br />
3.3.2. Posse e averbação<br />
O artigo 1º, parágrafo 2º, inciso III, do Código Florestal determina que a<br />
reserva legal deve existir tanto em caso de posse quanto no caso de propriedade.<br />
Neste último caso, a reserva legal deverá ser averbada à margem da matrícula do<br />
imóvel. Tendo em vista a óbvia ausência de documentação de detentores de posse<br />
rural, o legislador resolveu a questão determinando que o possuidor se comprometa<br />
com a manutenção da reserva legal mediante assinatura de termo de ajustamento<br />
de conduta – TAC. Por meio do referido documento, com força de título executivo,<br />
é estabelecida a localização da reserva legal, suas características ecológicas básicas<br />
e a proibição de supressão de sua vegetação, tudo conforme consta no artigo 16,<br />
parágrafo 10, do Código Florestal.<br />
A averbação, prevista no parágrafo 8º do artigo 16 do Código Florestal,<br />
possibilita a fixação e consequente estabilidade da reserva legal em uma determinada<br />
área da propriedade rural. A exigência da averbação é imediata 19 , porém somente<br />
será punida administrativamente após 11 de dezembro de 2009, nos termos do<br />
artigo 152 do Decreto n. 6.514/08 20 . Assim, o equilíbrio biológico propiciado pela<br />
reserva legal será mantido, independentemente da transmissão, do desmembramento<br />
ou da retificação de área. Alguns magistrados interpretaram que há apenas a<br />
necessidade de averbação da reserva legal em áreas onde seja encontrada formação<br />
19 Muito embora o Código Florestal não estipule prazo, isto não significa a desobrigação de averbar<br />
a reserva legal. No item 4, “a”, deste artigo, será visto que a Lei n. 7.803/89 reinstituiu a reserva legal<br />
no País. Assim, ao contrário, significa que a reserva legal deverá ser averbada imediatamente à<br />
vigência daquela lei ou, quando muito, dentro de um prazo razoável. Passados 20 anos daquela lei,<br />
ainda se discute a necessidade de averbação ou não deste instituto...<br />
20 O governo sinaliza possibilidade de prorrogação do prazo para imposição da referida multa<br />
administrativa pela não averbação da reserva legal para 11 de junho de 2010. Último Segundo, 28/10/<br />
2009. Disponível em: . Acesso em: 10 de novembro<br />
de 2009.
200<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
vegetal nativa. Porém, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, sobre a averbação<br />
da reserva legal, que “é dever do proprietário ou possuidor de imóveis rurais, mesmo<br />
em áreas onde não houver florestas, adotar as providências necessárias à<br />
restauração ou à recuperação das formas de vegetação nativa” 21 , sendo certo que<br />
“a exigência de averbação da reserva legal à margem da inscrição de matrícula do<br />
imóvel, no ofício de registro de imóveis competente, não se aplica somente às<br />
áreas onde haja florestas, campos gerais ou outra forma de vegetação nativa” 22 .<br />
3.3.3. Localização<br />
Eis aqui outra diferença fundamental entre as APPs e a reserva legal, recapitulando<br />
os conceitos de ambos os institutos. A APP, pelo fato de ter uma função<br />
imediata de garantir a preservação de um determinado recurso natural inorgânico,<br />
é automaticamente fixada por força do conteúdo dos artigos 2º e 3º do Código<br />
Florestal. Diferentemente, o artigo 16, parágrafo 4º, do Código Florestal, por interpretação<br />
inversa, confere ao proprietário da terra escolher o local em que será<br />
constituída a reserva legal, desde que aprovada pelo órgão ambiental competente,<br />
atendidos alguns critérios. Com isto, deve ser observado o plano de bacia hidrográfica,<br />
o plano diretor municipal, o zoneamento ecológico-econômico e outras categorias<br />
de zoneamento ambiental. Além disto, a reserva legal deve estar em<br />
proximidade com outras reservas legais, APPs, UC ou outra área legalmente protegida,<br />
com o fim de criar os chamados “corredores ecológicos”, que possibilitam a<br />
conservação da biodiversidade por meio do fluxo gênico.<br />
3.3.4. Plano de manejo florestal sustentável<br />
Tendo em vista a conservação da biodiversidade, dos recursos naturais, dos<br />
processos ecológicos e a proteção da fauna e da flora nativas, o legislador impôs a<br />
impossibilidade de supressão em corte raso das formações vegetais dentro da<br />
reserva legal (artigo 16, parágrafo 2º, do Código Florestal e artigo 10 do Decreto n.<br />
5.975/06). No entanto, isto não significa que o proprietário da terra irá ficar impedido<br />
de utilizar aquela área de reserva legal. Em verdade, o mesmo artigo 16, parágrafo<br />
2º, do Código Florestal impõe ao proprietário a elaboração de um plano de manejo<br />
florestal sustentável – PMFS. Nos termos o artigo 2º, parágrafo único, do Decreto<br />
n. 5.975/06, é o documento técnico que determinará as diretrizes para a administra-<br />
21 RMS n. 22.391/MG. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 2006/0161522-1. Relator(a)<br />
Ministra Denise Arruda (1.126). Órgão julgador T1 – Primeira Turma, data do julgamento, 04/11/<br />
2008, data da publicação/Fonte DJe, 03/12/2008.<br />
22 Idem.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 201<br />
ção daquela reserva legal, visando à obtenção de benefícios econômicos, sociais e<br />
ambientais. Assim sendo, manejo florestal sustentável é, nos termos do artigo 3º,<br />
inciso VI, da Lei n. 11.284/06:<br />
(...) a administração da floresta para a obtenção de benefícios econômicos,<br />
sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do<br />
ecossistema objeto do manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente,<br />
a utilização de múltiplas espécies madeireiras, de múltiplos produtos<br />
e subprodutos não madeireiros, bem como a utilização de outros bens e serviços<br />
de natureza florestal; (...)<br />
Tem-se, pois, que o PMFS constitui-se em um verdadeiro estatuto destinado<br />
àquela determinada área de reserva legal, elaborado com o fim de estabelecer<br />
normas de conduta do proprietário, possibilidade de extração vegetal, possibilidade<br />
de corte, possibilidade de exploração turística, tudo levando em conta a capacidade<br />
de absorção de impactos do referido ecossistema. De fato, constitui-se infração<br />
administrativa, prevista nos artigos 48, 51 e 51A do Decreto n. 6.686/08: impedir<br />
ou dificultar a regeneração natural de reserva legal; destruir, desmatar, danificar<br />
ou explorar qualquer tipo de vegetação nativa em área de reserva legal; executar<br />
manejo florestal sem autorização prévia do órgão ambiental competente, enfim,<br />
infrações puníveis com multa que variam de R$ 1.000,00 a R$ 5.000,00 por hectare<br />
ou fração, dependendo da infração.<br />
3.3.5. A pequena propriedade e a reserva legal<br />
O artigo 1º, parágrafo 2º, inciso I, conceitua pequena propriedade rural (ou<br />
posse rural familiar) como sendo aquela explorada por força do trabalho pessoal do<br />
proprietário ou posseiro e de sua família. A atuação de outros trabalhadores nestas<br />
áreas é admitida, o que normalmente ocorre em épocas de colheita. Porém, esta<br />
ajuda de terceiro deve necessariamente ser eventual. A definição restringe, ainda, no<br />
tocante à renda bruta, que esta deverá ser proveniente, no mínimo, 80% de atividade<br />
agroflorestal ou do extrativismo. Finalmente, há limitação da área da propriedade:<br />
• cento e cinquenta hectares, se localizada nos Estados do Acre, Pará,<br />
Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e nas regiões<br />
situadas ao norte do paralelo 13ºS, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao<br />
oeste do meridiano de 44ºW, do Estado do Maranhão ou no pantanal matogrossense<br />
ou sul-mato-grossense;<br />
• cinquenta hectares, se localizada no polígono das secas ou a leste do<br />
meridiano de 44ºW, do Estado do Maranhão; e<br />
• trinta hectares, se localizada em qualquer outra região do País.
202<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Nota-se que o legislador procurou privilegiar os proprietários de terra que<br />
foram, nas décadas de 1950, 1960, 1970 e 1980, para a região Norte, atendendo<br />
aos incentivos de ocupação promovidos pelos programas governamentais de<br />
desenvolvimento da Amazônia e da região Norte (Sudam 23 etc.). Por este motivo,<br />
houve ampliação da área da pequena propriedade para aqueles Estados. No chamado<br />
“polígono das secas”, a motivação é clara: o legislador objetiva promover incentivos<br />
para que o proprietário permaneça em sua terra, gozando do status de pequena<br />
propriedade terras com até 50 hectares ou 350 mil metros quadrados.<br />
Mais uma vez mostrando sensibilidade, o legislador estabeleceu permissivo<br />
para as pequenas propriedades incluírem o plantio de espécies arbóreas frutíferas<br />
ornamentais ou, mesmo, espécies exóticas industriais, tudo com o fim de facilitar a<br />
viabilidade econômica da terra. O parágrafo 3º do artigo 16 do Código Florestal<br />
exige, no entanto, que o plantio destas espécies seja feito de modo intercalado ou<br />
em consórcio com as espécies nativas.<br />
Com efeito, apesar do permissivo para aumento e manutenção da viabilidade<br />
econômica da terra, o legislador não afastou o fim da reserva legal, determinando<br />
que haja, de modo intercalado ou em consórcio, a existência de espécies nativas.<br />
Em sede de interpretação lógico-linguística, os sistemas intercalar e consorcial<br />
pressupõem que haja, pelo menos, metade de um grupo principal e outra metade de<br />
outro grupo. Assim, deve ser respeitada pelo menos a metade de espécies nativas,<br />
uma vez que é o grupo principal, posto que o fim da reserva legal é a conservação de<br />
um ambiente natural 24 . Nada obstante, se o órgão ambiental entender que determinada<br />
área, de extrema sensibilidade ecológica, não pode ser alterada, sob pena de grave<br />
prejuízo ambiental, poderá e deverá estabelecer porcentagem superior ao mínimo de<br />
50%, decisão que deve prevalecer. No entanto, o órgão ambiental não poderá conceder<br />
autorização para manejo com espécies exóticas em porcentagem que ultrapasse o<br />
mínimo de 50% para a cobertura vegetal nativa.<br />
Outro exemplo de proteção que a legislação ambiental fornece ao pequeno<br />
proprietário encontra-se na questão da recomposição de área de reserva legal,<br />
situação em que o órgão ambiental estadual deverá oferecer suporte técnico para<br />
implementação desta medida (artigo 44, parágrafo 1º, do Código Florestal). Além<br />
desta, pode-se citar outro exemplo de proteção ao pequeno proprietário no que<br />
23 Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia.<br />
24 Neste sentido, o Projeto de Lei n. 4.524/2004 e o Projeto de Lei n. 4.091/2008 objetivam a fixação<br />
de porcentagem de manutenção de 50% de vegetação nativa em áreas protegidas exploráveis<br />
economicamente. Disponível em: .<br />
Acesso em 03 de novembro de 2009.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 203<br />
tange à averbação graciosa da reserva legal, nos temos do parágrafo 9º do artigo<br />
16 da mesma lei.<br />
3.3.6. Cômputo de APP como RL<br />
Mais uma vez mostrando interesse pela manutenção da viabilidade econômica<br />
de uma área rural, o legislador estabeleceu determinados limites a extensões de<br />
terra especialmente protegidas que, se somadas, não poderão ultrapassar determinada<br />
porcentagem. Em outras palavras, estas áreas especialmente protegidas, mais<br />
especificamente as APPs, poderão ser computadas como reserva legal em determinadas<br />
situações. Bem assim, o parágrafo 6º do artigo 16 do Código Florestal autoriza<br />
o cômputo de áreas de preservação permanente como reserva legal em propriedades<br />
rurais em que aquelas primeiras, somadas, atinjam porcentagem superior a 25 :<br />
• 80% sobre a propriedade rural situada na Amazônia Legal;<br />
• 50% sobre a propriedade rural situada no restante do País;<br />
• 25% sobre a pequena propriedade rural com menos 50 hectares, localizada<br />
no polígono das secas;<br />
• 25% sobre a pequena propriedade rural com menos 30 hectares, localizada<br />
em qualquer outra região do País.<br />
No entanto, esta exceção não muda o regime jurídico de uso e proteção<br />
nas APPs computadas como reserva legal: o parágrafo 7º do artigo 16 do Código<br />
Florestal institui uma reserva legal com regime jurídico de uso e proteção de<br />
APP. Exemplificando, uma propriedade rural situada em qualquer lugar do Brasil<br />
(exceto na Amazônia Legal) que possua APPs em porcentagem de 45% de sua<br />
área terá que instituir uma reserva legal de 5,1% pelo menos. Neste exemplo, as<br />
APPs naquela área rural (45% da área) serão consideradas reserva legal, porém<br />
com regime diferenciado de APP; deverá o referido proprietário instituir reserva<br />
legal propriamente dita em porcentagem de 5,1% de sua área, reserva legal esta<br />
que terá regime tradicional. Com isto, esta propriedade terá uma área de reserva<br />
legal de 50,1%.<br />
25 Neste caso, muito embora o legislador não tenha especificado, trata-se de porcentagem superior, e<br />
não igual e superior. Isto porque as propriedades rurais situadas na Amazônia Legal já possuem<br />
reserva legal de 80%. Assim, se fosse incluído o valor inicial (por exemplo, 80%), automaticamente<br />
todas as propriedades na Amazônia Legal teriam 1% pelo menos de sua área enquadrada nesta<br />
exceção de cômputo de áreas protegidas, o que seria ilógico dentro do contexto legal.
204<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Se uma determinada propriedade, por outro lado, contiver APPs que totalizem<br />
área superior àquelas instituídas no parágrafo 6º do artigo 16 do Código Florestal,<br />
por exemplo, 90%, ainda assim deverão ser mantidas tanto as APPs quanto a<br />
reserva legal com regime de APP. Neste exemplo, 50,1% da propriedade será<br />
considerada reserva legal com regime jurídico de APP e o restante, 39,9%, continuará<br />
sendo APP propriamente dita. Este mecanismo de compensação especial não<br />
autoriza, por exemplo, que o proprietário desta fazenda mantenha apenas 50,1%<br />
da área de sua propriedade que constitui APP e derrube para utilização o restante.<br />
3.3.7. Possibilidades ao proprietário no caso de RL inferior ao mínimo:<br />
recomposição, regeneração, compensação (condomínio e<br />
servidão) e doação de áreas para o Estado para desapropriação<br />
nas unidades de conservação? 26<br />
A lei ambiental federal prevê quatro hipóteses para o restabelecimento da<br />
área de reserva legal em porcentagem inferior à legalmente exigida. Estas medidas<br />
podem ser adotadas isolada ou conjuntamente, todas previstas no artigo 44 do<br />
Código Florestal. Em uma primeira análise, poder-se-ia interpretar que a legislação<br />
federal não estabelece uma ordem de preferência na aplicação destes<br />
mecanismos, uma vez que, no caput do artigo 44 da citada lei, consta a expressão<br />
“deve adotar as seguintes alternativas, isoladas ou conjuntamente”. Entrementes,<br />
não é o caso. Em uma análise contextual da lei, observando o fim precípuo da<br />
reserva legal como sendo instrumento de manutenção da biodiversidade e<br />
resguardo de uma parte de um ecossistema e bioma, observa-se ser necessário<br />
o respeito à ordem imposta pela lei, ou seja, preferencialmente recomposição e<br />
regeneração, secundariamente compensação e, por fim, a doação de áreas para<br />
regularização fundiária 27 . Já que não houve estabelecimento claro na ordem de<br />
26 O Projeto de Lei n. 1.876/99 apresenta algumas soluções interessantes, como oferecer “incentivo” à<br />
recomposição da reserva legal bem como assegurar de seu registro, previstas em seu artigo 7º: o parágrafo<br />
1º do referido projeto decreta que são nulos todos os atos notariais relativamente àquele imóvel que não<br />
averbou sua reserva legal; o parágrafo 2º consolida o que a jurisprudência já vinha julgando, ao efetivamente<br />
declarar que as áreas de reserva legal não recompostas são tributadas normalmente pelo Imposto sobre a<br />
Propriedade Territorial Rural – ITR; o parágrafo 3º apresenta uma das melhores soluções para o problema,<br />
pois estabelece que todos os estabelecimento oficiais ficam proibidos de fornecer crédito aos proprietários<br />
que não tenham regularizado sua reserva legal. Disponível em: . Acesso em: 03 de novembro de 2009.<br />
27 O Projeto de Lei n. 6.424/05 propõe a reforma do Código Florestal, permitindo a recuperação de<br />
reservas legais com espécies exóticas, anistia para os desmatamentos realizados antes de julho de<br />
2006 (sem obrigatoriedade de recuperação) e definição das áreas de preservação permanentes pelos<br />
poderes locais. Disponível em: .<br />
Acesso em: 03 de novembro de 2009.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 205<br />
aplicação destes mecanismos, cabe ao órgão ambiental responsável estipular a<br />
melhor solução ao bioma e ecossistema, não cabendo a escolha do mecanismo<br />
apenas pela vontade do proprietário.<br />
A recomposição é o processo pelo qual se restaura um determinado pedaço<br />
devastado de um ecossistema. O inciso I do artigo 44 estabelece que a recomposição<br />
se dará com o plantio de espécies nativas, de forma que, a cada três anos, a<br />
décima parte da área total da reserva legal da propriedade seja recuperada. Esta<br />
recuperação é dificultosa, uma vez que as espécies vegetais se dividem de acordo<br />
com suas características e capacidade de sobrevivência ante as condições. Assim,<br />
existem espécies pioneiras (ou formações pioneiras), ou seja, espécies melhor<br />
adaptadas às condições de terreno e clima propiciam condições mais favoráveis<br />
para que outras formações vegetais tenham condições de ali se instalar. O legislador<br />
observou esta necessidade natural e estabeleceu o concessivo de que, para a criação<br />
da mata secundária, sejam utilizados, em um primeiro momento, formações<br />
pioneiras, mesmo que exóticas (caso em que serão utilizadas de modo temporário),<br />
as quais irão propiciar condições às demais formações vegetais nativas (artigo 44,<br />
parágrafo 2º, do Código Florestal).<br />
A regeneração, por sua vez, diferentemente da recomposição, pressupõe a<br />
existência de vegetação nativa, a qual se encontra mais ou menos atingida ou<br />
devastada. Este mecanismo também tem como objetivo a recondução daquela<br />
determinada área ao status quo ante o impacto (normalmente antrópico), de forma<br />
a restabelecer o ecossistema original. A sua viabilidade será observada pelo órgão<br />
ambiental competente, o qual poderá determinar o isolamento da área em regeneração,<br />
tudo nos termos do parágrafo 3º do artigo 44 do Código Florestal. Esta<br />
legislação federal ainda protege áreas em regeneração, estabelecendo a proibição<br />
da “implantação de projetos de assentamento humano ou de colonização para fim<br />
de reforma agrária, ressalvados os projetos de assentamento agroextrativista,<br />
respeitadas as legislações específicas” (parágrafo 6º do artigo 37A) e a criminalização<br />
das ações de “impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e<br />
demais formas de vegetação”, contravenção passível de pena de três meses a um<br />
ano ou multa (artigo 26 e alínea “g”).<br />
A compensação prevista no artigo 44, inciso III, do Código Florestal implica<br />
a não instituição da reserva legal em uma dada propriedade rural mediante o<br />
estabelecimento desta mesma reserva legal em “outra área equivalente em<br />
importância ecológica e extensão, desde que pertença ao mesmo ecossistema e<br />
esteja localizada na mesma microbacia”.<br />
A importância da localização da área em que será instituída a reserva<br />
legal compensada está em consonância com a finalidade daquele instituto. Ora,
206<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
se a reserva legal tem como função a conservação ambiental de uma determinada<br />
fatia de um ecossistema de um bioma, seria ilógico promover a conservação de<br />
outro ecossistema ou, ainda, de outro bioma. Assim, o legislador optou por<br />
estabelecer como critério o estabelecimento dentro de uma microbacia, já que<br />
os cursos de água e formações lacustres são determinantes para a formação de<br />
um ecossistema. Outro motivo para a instituição da reserva legal compensada<br />
na mesma microbacia encontra-se na (delicada) relação floresta-solo-água, ou<br />
seja, no equilíbrio do ciclo hidrológico que somente se dá com o estabelecimento<br />
de formação da vegetação nativa. Na absoluta impossibilidade de compensação<br />
na mesma microbacia, o legislador concede permissivo de o órgão ambiental<br />
estabelecer a reserva legal na “maior proximidade possível entre a propriedade<br />
desprovida de reserva legal e a área escolhida para compensação, desde que na<br />
mesma bacia hidrográfica e no mesmo Estado” (parágrafo 4º do artigo 44 do<br />
Código Florestal), e desde que também respeitadas as demais condicionantes<br />
fixadas no inciso III do artigo 44.<br />
A servidão florestal (artigo 44A) e o condomínio (parágrafo 11 do artigo 16)<br />
são exemplos legalmente previstos de medidas de compensação 28 . Sem que haja<br />
aprofundamento incompatível com o conteúdo deste artigo, é necessário destacar<br />
alguns pontos acerca destes dois institutos, todos observados por normativa do<br />
Código Florestal. Assim, se forem estabelecidos, deverão se encontrar dentro de<br />
uma mesma microbacia (artigo 44, III); respeitar a reserva legal e a APP da<br />
propriedade que receberá, por compensação, a reserva legal da outra propriedade<br />
(artigo 44-A); ser aprovados pelo órgão ambiental (artigo 16, parágrafo 11); e ser<br />
averbados no Registro de Imóveis (artigo 16, parágrafo 8º).<br />
A última medida para restabelecimento da área de reserva legal em<br />
porcentagem inferior à legalmente exigida é a doação de áreas para o Estado<br />
para regularização fundiária das unidades de conservação, prevista no artigo<br />
44, parágrafo 6º. Inicialmente, a Medida Provisória n. 2.166-67/01 desonerava<br />
o proprietário da necessidade da reserva legal pelo período de 30 anos. Porém,<br />
com a Lei n. 11.428/06, a referida norma foi alterada para uma desoneração<br />
definitiva. Por este mecanismo, o proprietário que não possui reserva legal<br />
poderá comprar uma determinada área equivalente à sua reserva legal em<br />
uma unidade de conservação que, muito embora de domínio público, ainda<br />
possua processos de expropriação pendentes de regularização. Em outras<br />
28<br />
Tecnicamente, a doação de áreas para o Estado para regularização das unidades de conservação<br />
também seria uma medida de compensação, porém, dadas as suas características peculiares, será<br />
observada como categoria separada.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 207<br />
palavras, o Estado delegou ao particular a permissão de não instituir a reserva<br />
legal (em suas próprias terras) se “ajudar” o Poder Público a pagar as<br />
indenizações de expropriação das terras particulares situadas no interior das<br />
unidades de conservação de domínio público.<br />
A problemática é a seguinte: muito embora unidades de conservação tenham<br />
fim mediato idêntico à reserva legal, sua função imediata é diferenciada.<br />
Hodiernamente, não há respeito a uma ordem dos processos de restabelecimento<br />
da reserva legal, ou seja, o órgão ambiental dificilmente impõe que primeiramente<br />
seja estudada a possibilidade de recomposição ou de regeneração da área. Desta<br />
feita, em não havendo benefício de ordem para tentativa de aplicação da<br />
recomposição e da regeneração de uma área, a doação de áreas pendentes de<br />
regularização fundiária pode vir a ser utilizada em larga escala como permissivo<br />
para a não implementação da reserva legal. Não há, aqui, um posicionamento<br />
contrário a esta medida: se por um lado esta medida pode (e deve) ser mantida, por<br />
outro lado deve ser utilizada apenas na mais absoluta impossibilidade de se<br />
restabelecer a reserva legal por outras formas. Assim, cabe ao órgão ambiental o<br />
bom senso em sua utilização.<br />
4. CONCLUSÃO<br />
Foi visto exaustivamente que a reserva legal é instrumento de consecução<br />
da conservação da biodiversidade. Sua função peculiar é distinta das outras<br />
modalidades de espaços especialmente protegidos. Toda vez que um determinado<br />
direito individual é limitado para a realização de um direito social ou coletivo<br />
(transindividual), haverá comoção dos detentores do referido direito individual.<br />
Historicamente, mutantis mutandi, um bom exemplo desta comoção é aquela<br />
efetuada pelos ricos industriais no período anterior às leis trabalhistas. Em um<br />
primeiro momento, aqueles se opuseram às tentativas de estabelecimento de<br />
condições de trabalho humanamente aceitáveis, uma vez que isto implicaria a<br />
diminuição do lucro (mais-valia marxista). Contudo, posteriormente, estes mesmos<br />
industriais perceberam que o empregado satisfeito com seus ganhos e com seu<br />
ambiente de trabalho é capaz de fornecer um lucro ainda maior.<br />
No caso da proteção ambiental, a sistemática é a mesma. Neste primeiro<br />
momento, os empresários, agricultores e pecuaristas se opõem ao estabelecimento<br />
de medidas ambientais que irão reduzir prima facie o seu lucro. Contudo, ainda<br />
não houve o insight de que o “fim do mundo com as condições de suportar a vida<br />
humana” (o que certamente se dará com a devastação dos recursos naturais) não<br />
é lucrativo... O que as gerações passadas diziam ser um evento que, se ocorresse,
208<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
o seria em um futuro longínquo, a geração presente observa que o futuro longínquo<br />
não é tão distante assim: o futuro é agora.<br />
A reserva legal é um dos mecanismos necessários ao impedimento da perda<br />
da biodiversidade, mediante a manutenção de uma pequena área de um determinado<br />
ecossistema. Mesmo nos casos em que a área de reserva legal é substancialmente<br />
grande (como ocorre no bioma Amazônia), a conservação de um bioma frágil<br />
prepondera sobre os interesses econômicos da exploração das atividades<br />
agropastoris. Ao contrário do afirmado por alguns autores 29 , o interesse público<br />
(mais precisamente o interesse da coletividade) prepondera sobre o interesse privado,<br />
já que o Brasil ainda é um Estado democrático de direito, e não uma anarquia ou<br />
um sistema político-econômico liberalista que se pauta em “laissez faire, laissez<br />
aller, laissez passer”.<br />
29 Vide nota 13.
A reserva legal como instrumento de efetividade da proteção da biodiversidade 209<br />
REFERÊNCIAS<br />
DOBSON, Andrew P. Conservation and biodiversity. New York: Scientific<br />
American Library, 1996.<br />
GANDRA S. MARTINS, Ives. A defesa do meio ambiente. Valor Econômico, 25/03/<br />
2004. Disponível em: . Acesso<br />
em: 09 de novembro de 2009.<br />
GASTON, Kevin J. & SPICER, John I. Biodiversity: an introduction. 2. ed. Malden,<br />
MA: Blackwell Publishing, 2004. Disponível em: . Acesso em: 03 de novembro de 2009.<br />
GRAZIERA, Maria Luiza Machado. Direito Ambiental. São Paulo: Atlas, 2009.<br />
LEME MACHADO, Paulo Afonso. Direito Ambiental brasileiro. São Paulo: RT, 1982.<br />
MAGALHÃES, Vladimir Garcia. Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB): a<br />
necessidade da revisão do seu texto, substituindo o termo “recursos genéticos” por<br />
“recursos biológicos” nos artigos 1º, 9º, 15, 16 e 19. Revista Eletrônica do Curso<br />
de Direito da UFSM, v. 1, n. 1, p. 16-32, Santa Maria, março, 2006. Disponível<br />
em: . Acesso em: 03 de<br />
novembro de 2009.<br />
REAKA-KUDLA, Marjorie L.; WILSON, Don E. & WILSON, Edward O. Biodiversity<br />
II: understanding and protecting our biological resources. Washington: Joseph Henry<br />
Press, 1997. Disponível em: . Acesso em: 03 de novembro de 2009.<br />
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994.<br />
VIEIRA DUTRA, Ozório. O discurso ideológico e a ilegalidade da “reserva legal”.<br />
Disponível em: . Acesso em: 09 de<br />
novembro de 2009.<br />
WILSON, Edward O. Biodiversity. Washington: National Academy Press, 1988.
210<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Anotações
RESENHA 211<br />
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito.<br />
Apresentação de Celso Lafer. 1. ed. Barueri: Manole, 2007. 285 páginas.<br />
Da estrutura à função:<br />
novos estudos da teoria do direito<br />
From structure to function: new<br />
studies of the theory of law<br />
JOÃO OTÁVIO BENEVIDES DEMASI<br />
Advogado; mestrando em Direito Internacional, pela Faculdade de Direito da Universidade<br />
de São Paulo – Fdusp; membro do Fórum Latino-Americano de Jovens Árbitros da<br />
International Chamber of Commerce – ICC; membro efetivo da Comissão de Comércio<br />
Exterior da Ordem dos Advogados do Brasil/seção São Paulo – Comex-OAB-SP.<br />
O objetivo desta resenha é extrapolar as análises meramente descritivas e<br />
expressar a essência da obra em referência pela síntese dos valores encontrados,<br />
de modo a deixar latitude analítica a cada leitor.<br />
O livro Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito, de<br />
Norberto Bobbio, foi traduzido para o português e lançado no Brasil pela Editora<br />
Manole em seminário realizado na Bovespa, 1 com a presença da ilustre flor<br />
acadêmica tributária do filósofo do Direito e sociólogo italiano. Na composição da<br />
mesa do seminário, estavam Celso Lafer, apresentador da obra; Mario Losano,<br />
seu prefaciador, discípulo direto de Bobbio; Tércio Sampaio Ferraz Júnior, um<br />
admirador da obra de Bobbio; e Carlos Mariano, presidente da Bovespa e acolhedor<br />
da ideia de criação do espaço Norberto Bobbio na respectiva entidade, celebrado<br />
com o lançamento desta tradução no Brasil.<br />
Os dez ensaios abordam aspectos variados sob os seguintes títulos: A função<br />
promocional do Direito; As sanções positivas; Direito e as ciências sociais; Em<br />
direção a uma teoria funcionalista do Direito; A análise funcional do Direito:<br />
tendências e problemas; Do uso das grandes dicotomias na teoria do Direito; A<br />
grande dicotomia; Teoria e ideologia na doutrina de Santi Romero; Estrutura e<br />
função na teoria do Direito de Kelsen; Tullio Ascarelli. Os 10 ensaios de caráter<br />
jurídico, histórico, sociológico e filosófico examinam temas jurídicos vistos pelo<br />
prisma da Sociologia, mas sempre fundamentados na Filosofia do Direito.<br />
1 Bolsa de Valores de São Paulo. A partir de 2008, passou a se chamar Bolsa de Valores, Mercadorias<br />
e Futuros – BM&FBovespa.
212<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Bobbio fez uma leitura transdisciplinar e pôs de lado a visão estritamente<br />
jurídico-sistemática do Direito, criada pela obra de Kelsen, para expressar o Direito<br />
inserido na Sociologia de tal modo que traz à tona a finalidade e a função do<br />
Direito, não só como instrumento de manutenção e propagação de sistemas sociais,<br />
mas também como institucionalizador jurídico de atividades econômicas sob a fumaça<br />
do bom Direito.<br />
Imbuído desta ideia, o autor em tela serviu seus ensaios de uma franqueza e<br />
de uma variedade de autores de linhas ideológicas distintas para somar, em um mosaico<br />
integrativo, não discriminatório e sempre acolhedor da melhor razão, demonstrativo<br />
de uma liberdade de pensamento singular para uma realidade na qual imperava a<br />
guerra fria. A escritura dos ensaios transmite uma pessoalidade do referido autor que<br />
faz com que se sinta Bobbio em um diálogo constante com o leitor.<br />
Bobbio, aliás, é um gênio: construiu e reconstruiu a teoria kelseniana do<br />
ponto de vista histórico, jurídico e sociológico e filosófico; expôs uma polivalência<br />
e multiplicidade de leituras raras aos juristas para, finalmente, implodir Kelsen e,<br />
entre a neblina e os escombros, expressar visões de tal modo que realizou o adágio:<br />
o aluno supera o mestre. Na metáfora da palavra, Bobbio fez como a série de<br />
quadros de Picasso sobre “Las meninas”, de Velásquez, ou traduziu para o piano e<br />
orquestra “Quadros de uma exposição”, de Mussorgsky. Bobbio peneirou a<br />
eternidade de Kelsen, Hart ou Vivante, mas foi além, como Debussy, e deixou uma<br />
impressão pessoal de Ascarelli e de sua magna opera jurídica modelar, capaz de<br />
fazer dos leitores filhos e irmãos de um mesmo espírito acadêmico, atos à moda de<br />
Ascarelli, tal qual um moto perpetuo de Paganini – inquietante, dilacerante do<br />
Direito posto nacional e comparado, procurador e legador de uma verdade d’alma<br />
científica não só jurídica, mas também humana. Uma lição de vida.<br />
O livro é um cume e um ponto de inflexão bobbiano. A cada capítulo, o<br />
Direito é posto dentro da sociedade sob o escrutínio de ser um fenômeno dinâmico,<br />
promocional de uma humanidade melhor destinada ao bem comum e à realização<br />
individual promovida pelo Estado bonificador, e não mais sancionador e repressor.<br />
Bobbio perscrutou e promoveu um Direito destinado a atender, cada vez mais,<br />
às paulatinas e difíceis e complexas necessidades de um Estado nacional não mais<br />
regulador de todos os direitos e obrigações individuais e coletivas, mas obrigado a dar<br />
liberdade às relações contratuais privadas individuais e empresariais, perante uma<br />
estrutura jurídica estanque a se transformar para promover interesses gerais maiores.<br />
Imagina-se haver, nesta obra, uma solução para a crise do Estado de bemestar<br />
social que se avizinhava na década de 1970, com o aumento do preço do barril<br />
de petróleo, tendo em vista não mais se aceitar, implicitamente, que setores sociais se
RESENHA 213<br />
beneficiassem do Estado sem nada contribuir com o que estimulava a reforma do<br />
edifício jurídico então vigente para a multiplicação das normas de condutas bonificadas,<br />
com o fito de estimular o gênio criador do ser humano em sua esfera empreendedora.<br />
Tais valores estão realmente a ser vistos, a exemplo do que ocorre na maioria das<br />
nações. A França está a superar esta questão há mais de 20 anos. No Brasil, a<br />
Constituição de 1988 é garantidora, mas ainda pouco promotora de um direito<br />
bonificador. Como Bobbio disse, somente a partir de 1960 o Direito deixou de ser um<br />
fenômeno repressivo e sancionador para ser promotor e bonificador.<br />
Quem faz boas ações vai para o céu. De acordo com Bobbio, cabe ao Estado<br />
estimular que sejam dadas ao cidadão condições de boas ações. Bobbio pensou que<br />
deve o Estado instrumentalizar a estrutura jurídica com a função de conduzir o homem<br />
a fazer boas ações. São exemplos disso: a diminuição geral do valor cobrado sobre a<br />
renda empresarial e individual; a criação de leis com alíquotas menores para pesquisa<br />
e desenvolvimento de firmas de nanotecnologia e biotecnologia, de modo a estimular,<br />
bonificar e conduzir ações privadas com a função de promover o bem-estar individual<br />
pelo lucro obtido e, consequentemente, o bem comum.
214<br />
1. Os trabalhos devem ser inéditos no Brasil.<br />
The papers must be unpublished in Brazil.<br />
2. Na análise dos trabalhos, será levada em conta<br />
a pesquisa, a linguagem, a relevância do tema<br />
e a contribuição do autor para o tema.<br />
On the papers analysis, it will be taken on<br />
relevance the research, the language, the<br />
relevance of the subject and the author’s<br />
contribution for the theme.<br />
3. Os textos devem ser digitados em fonte Times<br />
New Roman, corpo 12 (doze),<br />
espaçamento 1,5 (um e meio) e recuo na primeira<br />
linha de 1 cm (um centímetro).<br />
The papers must be keyed on Times New Roman<br />
12, 1,5 space (between lines) and 1 cm<br />
paragraph.<br />
4. A configuração da página deve ser papel tamanho<br />
A4, com margem superior e esquerda<br />
de 3 cm (três centímetros) e margem inferior<br />
e direita de 2 cm (dois centímetros).<br />
The configuration page is 3cm (superior and<br />
left) and 2 cm (bottom and right), on A4 size.<br />
5. Junto com o trabalho, deve ser enviada, por email,<br />
uma autorização simples de publicação<br />
na Revista do Direito da <strong>USCS</strong>.<br />
With the paper, must be sent, by e-mail, a<br />
publishing authorization, specially for the<br />
<strong>USCS</strong> Law Magazine.<br />
6. Os artigos devem possuir de 10 (dez) a 15<br />
(quinze) laudas. Excepcionalmente, poderão<br />
ser aceitos trabalhos acima de 15 (quinze)<br />
laudas. Não serão aceitos trabalhos com menos<br />
de 10 (dez) laudas.<br />
The articles have to content 10 to 15 pages.<br />
Exceptionally, could be accepted bigger<br />
papers. Paper with less than 10 pages won’t<br />
be accepted.<br />
7. As avaliações dos trabalhos enviados são de<br />
competência exclusiva do Conselho Editorial<br />
da revista, sendo que sua decisão é soberana e<br />
irrecorrível.<br />
The paper evaluation is a exclusive<br />
prerogative of the magazine council and its<br />
decision is sovereign.<br />
8. As citações devem se restringir ao estritamente<br />
necessário e ser feitas segundo o determinado<br />
pela ABNT, no estilo nota de rodapé.<br />
<strong>REVISTA</strong> DE DIREITO DA <strong>USCS</strong><br />
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
The quotes could be used only when strictly<br />
necessary e have to obey the ABNT rules<br />
(www.abnt.com.br), on footnote style.<br />
Exemplo/Example:<br />
CHIAVENATO, I. Administração nos novos tempos.<br />
São Paulo: Atlas, 1999. p. 32.<br />
Para citações maiores (superiores a três linhas,<br />
segundo a ABNT), deve-se fazer um recuo e alterar<br />
o espaçamento entre linhas, mantendo-se o<br />
tamanho da letra (12). Ver o exemplo abaixo:<br />
For bigger quotes (above 3 lines), it have to do<br />
a retreat and change the space between lines,<br />
keeping the letter size (see the example below):<br />
De outra parte, em análise econômica do direito,<br />
com base no princípio da “reserva do<br />
possível”, pois a efetivação do direito à saúde<br />
importa gastos financeiros e recursos de outra<br />
ordem (material humano e equipamentos), poder-se-ia<br />
defender que somente o administrador,<br />
dentro de sua discricionariedade, poderia<br />
implementar as políticas públicas que dizem<br />
com o direito à saúde; no entanto, o Supremo<br />
Tribunal Federal, já deixou assente que<br />
(...) a cláusula da “reserva do possível – ressalvada<br />
a ocorrência de justo motivo objetivamente<br />
aferível – não pode ser invocada, pelo<br />
Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente,<br />
do cumprimento de suas obrigações<br />
constitucionais, notadamente quando, dessa<br />
conduta governamental negativa, puder resultar<br />
nulificação ou, até mesmo, aniquilação de<br />
direitos constitucionais impregnados de um<br />
sentido de essencial fundamentalidade” (cf. RE<br />
n. 410.715-AgR / SP, Rel. Min. Celso de Melo,<br />
unânime, J. 22.11.2005, p. 11/12).<br />
9. A referência bibliográfica deve ser inserida ao<br />
final do artigo, segundo o disposto no item<br />
anterior.<br />
The bibliography reference mus be insert at the<br />
end of the paper, just like the number 8 above.<br />
10. Os artigos devem trazer, obrigatoriamente, em<br />
português e inglês, título, resumo (máximo de<br />
50 palavras) e palavras-chave (máximo de quatro),<br />
bem como sumário, somente em português.<br />
Articles, in a mandatory way, have to show a<br />
title – if the text is in english, the title is only in<br />
english – abstract (50 words maximum) and<br />
a summary.
RESENHA 215<br />
Segue exemplo./ See the example.<br />
A questão dos portadores de deficiência<br />
e sua concreta inserção no mercado de<br />
trabalho: o caso do Posto Ecobrasil em<br />
São Sebastião, SP<br />
The handicapped people issue and its concrete<br />
insertion on the work market: the EcoBrasil<br />
Gas Station case in São Sebastião, SP<br />
Antonio Celso Baeta Minhoto<br />
RESUMO<br />
A caracterização de um grupo social como<br />
minoria; as peculiaridades da situação do<br />
portador de deficiência como grupo<br />
minoritário; o caso do Posto EcoBrasil em<br />
São Sebastião e a inserção dos portadores de<br />
deficiência no mercado de trabalho local.<br />
Palavras-chave: portadores; deficiência;<br />
inserção social; trabalho.<br />
ABSTRACT<br />
The characterization of a social group as a<br />
minority; the handicapped people particular<br />
situation as a minority group; the EcoBrasil gas<br />
station case in São Sebastião and the<br />
handicapped people insertion on the local work<br />
market.<br />
Keywords: handicapped people; deficiency;<br />
social insertion; work.<br />
12. Serão aceitos artigos em português, espanhol, inglês<br />
e italiano. Nos textos em português, as citações<br />
em língua estrangeira deverão ser traduzidas pelo<br />
autor, sob sua responsabilidade pessoal.<br />
It will be accepted articles in portuguese,<br />
spanish, english and italian. Quotes in other<br />
languages must be translated by the author,<br />
under his-her personal responsibility.<br />
13. Logo ao final de seu nome, lançado no artigo, o<br />
autor deverá inserir uma nota de rodapé e, nesta,<br />
relatar seu currículo de modo sucinto, destacando<br />
formação acadêmica em nível de pós,<br />
atividades profissionais e acadêmicas e referência<br />
a, no máximo, um livro de sua autoria.<br />
As a first footnote, the author have to indicate<br />
his-her resume, in a brief version, with his-her<br />
principal and professional occupations and,<br />
if is the case, a reference of a book of his-her<br />
authorship.<br />
14. Todos os artigos devem ser enviados por email<br />
ao seguinte endereço eletrônico:<br />
antonio@baetaminhoto.com.br.<br />
All the papers must be sent to:<br />
antonio@baetaminhoto.com.br.<br />
15. Para os artigos publicados, constará, ao lado<br />
do(s) nome(s) do(s)(as) autor(es)(as), seu(s)<br />
respectivo(s) e-mails.<br />
For the published papers and beside the<br />
author(s) name(s), will be registered his(her)<br />
e-mail(s).<br />
17. O desatendimento de quaisquer dos requisitos<br />
aqui dispostos implicará a recusa liminar do<br />
trabalho.<br />
The non-observation of any of this<br />
requirements involves the immediately papers<br />
refusal.
216<br />
Revista <strong>USCS</strong> – Direito – ano X - n. 17 – jul./dez. 2009<br />
Anotações