BENSUSSAN uma ética do indecidível - escritura: linguagem e ...
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<strong>uma</strong> <strong>ética</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>indecidível</strong><br />
Gérard Bensussan<br />
41
<strong>uma</strong> <strong>ética</strong> <strong>do</strong> <strong>indecidível</strong><br />
Gérard Bensussan 1<br />
« Roma não está em Roma, ela está toda onde eu estou ».<br />
-Nacionalidade ?<br />
-Variável !<br />
« Minha cabeça está no espaço, mas o espaço inteiro em minha cabeça ».<br />
Essas duas proposições, bem conhecidas, a primeira de Corneille, a segunda<br />
de Schopenhauer – às quais poderíamos indefinidamente acrescentar outras<br />
– abrem perspectivas perfeitamente desconjuntadas e seus registros são tão<br />
disparata<strong>do</strong>s que seria evidentemente cômico querer as reunir segun<strong>do</strong> um<br />
senti<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> <strong>uma</strong> significação pertinente. Sua associação visa, todavia,<br />
e apesar de tu<strong>do</strong>, à produção ou à sugestão de um efeito de desencaixe, isto<br />
é, a <strong>uma</strong> indecidibilização de toda situação ou localização homogêneas.<br />
Como decidir <strong>do</strong> lugar? E como localizar ou circunscrever <strong>uma</strong> decisão? E<br />
quem decidirá da decisão? Onde é o lugar, onde está a decisão? Qual estatuto<br />
conceder ao lugar que se faz lugar aqui, lá, alhures? A indecidibilidade desloca<br />
enquanto é ela mesma <strong>uma</strong> autodivisão contínua, isto é, enquanto não se<br />
decide, salvo para se programar ou performar-se. No que diz respeito a isso,<br />
e contra um certo uso linguageiro derridiano, ela não desenha nenh<strong>uma</strong> lei<br />
nem se constrói em teorema, ela não inaugura nenhum tipo de axiologia ou<br />
axiotopologia. Ela dessitua e desregra.<br />
1 Professor de filosofia da Université Marc Bloch – Strasbourg II.<br />
42
Um lugar sem (aí) ser<br />
Diremos então, para começar, que o <strong>indecidível</strong> consiste em não<br />
co-locar 2 . Não sobre o mo<strong>do</strong> de <strong>uma</strong> simples negatividade que tomaria<br />
o avesso <strong>do</strong> co-locar ou <strong>do</strong> dar-lugar para indicar a via dial<strong>ética</strong> <strong>do</strong> Lugar<br />
de to<strong>do</strong>s os lugares. Mas segun<strong>do</strong> a operação de <strong>uma</strong> entreabertura, de um<br />
entredistanciamento. A porta <strong>do</strong> <strong>indecidível</strong> não estará jamais aberta ou<br />
fechada. Nem cerrada nem escancarada, ela desafia a prescrição convencional<br />
(« não é necessário senão <strong>uma</strong> porta... ») e assim desenha, apesar de tu<strong>do</strong>,<br />
alg<strong>uma</strong> coisa como um lugar que não se dá nem se faz. « Alg<strong>uma</strong> coisa como<br />
um lugar » não é fácil de figurar ou sugerir. Eu diria, sonhan<strong>do</strong> aqui muito<br />
precisamente com Heidegger, que o <strong>indecidível</strong> abre um lugar sem ser, um<br />
lugar sem (aí) ser ou, em to<strong>do</strong> caso, sem poder aí deter-se como em um só<br />
lugar. Em um texto de 1951, Construir, Habitar, Pensar, o autor de Sein und Zeit<br />
propôs <strong>uma</strong> meditação profunda <strong>do</strong> ser <strong>do</strong> Lugar. Aí ele determina o Lugar<br />
como « o que não existe antes » de sua colocação na posição ou no espaço pelo<br />
que aí se constrói3 . Como escreve Heidegger, o Lugar não devém um Lugar<br />
senão « graças à ponte », para retomar um exemplo recorrente desse texto. O<br />
espaço não é o que faz face aos homens como um objeto exterior, e não é mais<br />
<strong>uma</strong> experiência interior que seria da ordem da representação. Conviria, pelo<br />
contrário, reportar-lhe a essência ao que o limita e o organiza, a isso que abole<br />
« o espaço a si pareci<strong>do</strong>, quer se acresça ou se negue » (Mallarmé) para fazer<br />
« um » espaço « coloca<strong>do</strong> » (verstattet) por um lugar que aí dispõe os confins.<br />
O lugar confere então seu ser, ou sua reunião « quadripartite », aos espaços<br />
que nós habitamos. Ele é sempre um lugar-sede. Por outro la<strong>do</strong>, o lugar <strong>do</strong><br />
<strong>indecidível</strong> é certamente um não-lugar, um lugar sem comandante, sem cauda<br />
nem cabeça. O <strong>indecidível</strong> decapita o lugar de seu ser, porque dele destitui a<br />
essência localizável, decidível, e nele dissemina a citação4 a sua aumentação<br />
interminável. De alg<strong>uma</strong> maneira, o <strong>indecidível</strong> tem portanto « a ver » com<br />
o lugar. Mas de qual lugar pode tratar-se? E por que esse ter-a-ver, de que<br />
maneira e sobre qual mo<strong>do</strong>? É a decisão que vem aqui cindir. O <strong>indecidível</strong>,<br />
com efeito, não é tal senão em « seus lugares », mais de um lugar, sempre, e os<br />
ditos lugares são os lugares mesmos da decisão, ou os lugares de seu não-lugar,<br />
de alg<strong>uma</strong> maneira. O <strong>indecidível</strong> nomeia então, fora de toda figura, o que se<br />
faz lugar entre os lugares.<br />
2 O autor joga com as expressões<br />
‘faire lieu’ e ‘<strong>do</strong>nner lieu’. Embora<br />
ambas possam ser traduzidas por<br />
‘dar lugar’ no português, optou-se<br />
pelo neologismo e hifenização<br />
<strong>do</strong> verbo ‘colocar’, de mo<strong>do</strong> a<br />
assinalar a diferença entre as duas<br />
expressões. (N. <strong>do</strong> T.)<br />
3. Essais et conférences, Gallimard,<br />
p. 182-3, trad. A. Préau .<br />
4. O autor faz um jogo com o<br />
termo ‘assignation’, que em francês<br />
quer dizer tanto citação (no<br />
senti<strong>do</strong> jurídico) quanto hipoteca<br />
(no senti<strong>do</strong> de <strong>uma</strong> garantia<br />
jurídica, igualmente, constituída<br />
ela mesma por um lugar).<br />
43
Na trajetória derridiana, o <strong>indecidível</strong> obtém e retira seus problemas<br />
de <strong>uma</strong> travessia e de <strong>uma</strong> meditação <strong>do</strong> espaço da verdade de <strong>uma</strong> <strong>escritura</strong>.<br />
Que baste aqui reenviar ao pharmakon, ao hymen ou, ainda, e melhor ainda,<br />
à flutuação. Um traço de indecidibilidade se marca e se remarca na operação<br />
po<strong>ética</strong> mallarmaica segun<strong>do</strong> a leitura que desenvolve « La <strong>do</strong>uble séance » 5 .<br />
Esse traço subtrai. Ele inaugura <strong>uma</strong> condição e <strong>uma</strong> possibilidade: subtrairse<br />
à pertinência e à autoridade da verdade, aí onde a filosofia, e para além<br />
dela toda sorte de <strong>escritura</strong>s, não autorizariam o acolhimento de semelhante<br />
subtração. Trata-se, portanto, também de fazer lugar a esse não-lugar da<br />
filosofia, mas não reverten<strong>do</strong> a verdade ou inverten<strong>do</strong> os signos, nem dan<strong>do</strong>lhe<br />
lugar em <strong>uma</strong> nova <strong>escritura</strong> ou em novos « valores ». Fazer lugar a esse<br />
não-lugar consistirá em deslocar o rastro da <strong>escritura</strong> de tal maneira que aí se<br />
inicie um « des-encaixe » 6 , e em primeiro « lugar » um desencaixe <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>.<br />
« Enquanto depende deles, enquanto neles se <strong>do</strong>bra, o texto [mallarmaico]<br />
joga então <strong>uma</strong> dupla cena. Ele opera em <strong>do</strong>is lugares absolutamente<br />
diferentes, mesmo que eles não sejam separa<strong>do</strong>s senão por um véu, a <strong>uma</strong> só<br />
vez atravessa<strong>do</strong> e não atravessa<strong>do</strong>, entreaberto » 7 .<br />
Essa dupla cena, ou essa « estrutura bífide » 8 , é dita e longamente descrita<br />
por Derrida como « <strong>do</strong>is sem um » 9 . Esta matriz, por assim dizer, <strong>do</strong> <strong>do</strong>issem-um<br />
significa fortemente a intenção expressamente antidial<strong>ética</strong> aberta<br />
pela possibilidade de proposições indecidíveis. Aqui <strong>uma</strong> grande sutileza é<br />
requerida, pois se trata, com efeito, de esboçar proposições a que o idioma<br />
metafísico não pode ar lugar e que não terão posição senão acontecimental,<br />
como configurações inadmissíveis e singulares. A manobra antiespeculativa<br />
é tão sutil que ela deve passar por <strong>uma</strong> « dial<strong>ética</strong> imitada » 10 sobre a qual<br />
é capital não se equivocar. Com efeito, a estrutura de hymen e a lógica da<br />
suplementaridade que ela vai introduzir parecem elas mesmas constantemente<br />
levadas pela passagem decidida, decisiva, a um ultrapassamento. Elas evocam<br />
ultra-passagem de <strong>uma</strong> na outra, de <strong>uma</strong> nas duas, a qual reconstituiria, sem<br />
falhar, <strong>uma</strong> unidade de verdade na contradição dial<strong>ética</strong> e sublimaria o <strong>do</strong>is<br />
<strong>do</strong> <strong>do</strong>is-sem-um em um um-com-<strong>do</strong>is, asseguran<strong>do</strong> assim a « felicidade »<br />
especulativa <strong>do</strong> <strong>indecidível</strong>, de um <strong>indecidível</strong> que houvesse cedi<strong>do</strong> à tentação<br />
dial<strong>ética</strong> <strong>do</strong> decidível nela houvesse se efetua<strong>do</strong>. Derrida é muito claro sobre<br />
esse ponto: « é necessário sustentar a crítica sobre o conceito de Aufhebung<br />
ou relève que, como motor último de toda dialeticidade, permanece o<br />
5. La dissémination, Seuil, 1972,<br />
p. 215-347.<br />
6. Ibid., p. 238<br />
7. Ibid., p. 273.<br />
8. Genèses, généalogies, genres et<br />
le génie. Les secrets de l’archive,<br />
Paris, Galilée, 2003, p. 43 – esta<br />
estrutura bífide caracterizaria a<br />
forma literária enquanto, para<br />
ela, “seu segre<strong>do</strong> é ainda melhor<br />
sela<strong>do</strong> e <strong>indecidível</strong> quan<strong>do</strong> não<br />
consiste, em última análise, em<br />
um conteú<strong>do</strong> oculto, mas em<br />
<strong>uma</strong> estrutura bífida que pode<br />
guardar em reserva <strong>indecidível</strong><br />
isso mesmo que ela confessa,<br />
mostra, manifesta, exibe, expõe<br />
indefinidamente.”<br />
9. La dissémination, ed. cit.,<br />
p. 334 – grifo meu.<br />
10. Ibid., p. 282.<br />
44
ecobrimento o mais sedutor, o mais « relevante », porque o mais semelhante<br />
a esta gráfica [aquela da suplementaridade e <strong>do</strong> hímem]. É por isso que<br />
pareceu necessário designar a Aufhebung como a meta decisiva. » 11 Não mais<br />
<strong>do</strong> que um lugar-sede (Heidegger), o lugar fora-de-lugar <strong>do</strong> <strong>indecidível</strong> não é<br />
um lugar de passagem (Hegel). Ele não garante nem trânsito nem transação<br />
entre <strong>do</strong>is espaços releváveis em um lugar dialeticamente habitável. O desencaixe<br />
que ele efetua é <strong>uma</strong> dis-tensão, isto é, <strong>uma</strong> temporalização da<br />
temporalidade da hesitação, <strong>do</strong> suspenso, da interrupção, da oscilação. Esse<br />
tempo é passividade, afecção, destituição – <strong>do</strong> decidível pelo <strong>indecidível</strong>. Por<br />
ele indica-se o que vem desassegurar to<strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio, que é sempre <strong>do</strong>mínio<br />
<strong>do</strong> tempo e da presença, empresa sobre um porvir decidi<strong>do</strong> ou a decidir. Mas<br />
esse tempo « bífi<strong>do</strong> » emprega também <strong>uma</strong> tomada, o vencimento de <strong>uma</strong><br />
tomada de decisão, antes mesmo que ela o seja, antes de toda significação.<br />
Eu diria <strong>do</strong> <strong>indecidível</strong> que ele é o tempo da decisão. Nela ele dis-põe, em<br />
to<strong>do</strong> caso, o quase-transcendental como busca, como « espera sem desígnio<br />
em vista », para retomar <strong>uma</strong> sentença de Levinas a propósito <strong>do</strong> tempo,<br />
justamente. Portanto ele desfaz, evidentemente, toda possibilidade de senti<strong>do</strong><br />
como pressuposição, como disponibilidade, como reserva preliminar, quer<br />
como aquilo de que se pode assegurar-se antes mesmo de possuir algo a<br />
resolver ou a decidir. Não há <strong>indecidível</strong> senão <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> e não há decisão<br />
senão sobre o senti<strong>do</strong> e no tempo: o desencaixe não pode ocorrer senão como<br />
deslocamento em direção a um certo in-sensato ou ainda como temporização<br />
<strong>do</strong> tempo da decisão <strong>indecidível</strong>. Dito de outra forma, o <strong>indecidível</strong> se deporta<br />
de <strong>uma</strong> só vez para além ou para aquém de to<strong>do</strong> saber decisional ou<br />
de toda organização sensata da solução, da resolução, da boa decisão. Podese<br />
sem hesitar determinar esses usos como éticos ou prático-éticos. Sempre<br />
tenho que decidir sobre o que não sei, no elemento mesmo de um não-saber<br />
ou de um não-senti<strong>do</strong>, no balanço angustia<strong>do</strong> entre as escolhas igualmente<br />
decidíveis (ou indecidíveis, pois). Toda decisão se toma, ou ela toma aquele<br />
que a « toma », em <strong>uma</strong> temporalidade <strong>do</strong> aban<strong>do</strong>no, isto é, em um abismo de<br />
indecidibilidade. De outro mo<strong>do</strong>, Derrida o assinalou forte e frequentemente,<br />
a decisão aí não é <strong>uma</strong>. Se ela sabe já o que tem a fazer, ela não faz senão<br />
preceder a ela mesma até seu topos, sua possibilidade sempre-já atualizada.<br />
Ela obedece portanto a um sempre mais-de-um (ou de <strong>uma</strong>) ou a um entreos-<strong>do</strong>is.<br />
11. Ibid., p. 303-4.<br />
45
Flutuação<br />
Desse sintagma maior <strong>do</strong> <strong>indecidível</strong>, a flutuação de « La <strong>do</strong>uble<br />
séance » oferece algo como um quase-conceito, radicalmente concorrente<br />
da relève: « flutuação entre os textos : a flutuação, suspenso aéreo <strong>do</strong> véu, da<br />
gaze ou <strong>do</strong> gás...evolui segun<strong>do</strong> o hymen. Cada vez que ela aparece, a palavra<br />
flutuação sugere a sugestão mallarmaica, desvela com dificuldade, muito<br />
próxima de desaparecer, a indecisão <strong>do</strong> que permanece suspenso, nem isso<br />
nem aquilo, entre aqui e lá... Entre os <strong>do</strong>is, confusão e distinção... A hesitação<br />
de um « véu », de um « voo », de um « obstáculo » » 12 . Esta indecisão, em não<br />
se decidin<strong>do</strong>, impede a decisão em sua indeterminação inata e a engaja no<br />
que ela tem de incalculável. Ela forma em última instância <strong>uma</strong> <strong>ética</strong> que se<br />
poderia nomear <strong>uma</strong> <strong>ética</strong> da flutuação. É necessário guardar-se de entender<br />
demasia<strong>do</strong> apressadamente a expressão em um mau senti<strong>do</strong>, como o mau<br />
flutuar <strong>do</strong> eterno indeciso ou a infeliz indecisão <strong>do</strong> fraco. Em jogo sobre sua<br />
dupla cena dividida sem remédio, « sem um », implica<strong>do</strong> em sua estrutura<br />
bífida e adial<strong>ética</strong>, o <strong>indecidível</strong> atribui e expõe a decisão e a responsabilidade<br />
às oposições, às distinções, às fronteiras, aos cortes « entre os <strong>do</strong>is » (conceitos,<br />
territórios, línguas...). A <strong>ética</strong> da flutuação não se deixa aproximar senão<br />
como truque da ubiquidade e, para dizer tu<strong>do</strong>, marranismo. Poder-se-ia<br />
determinar elipticamente o marranismo como jogo ético <strong>do</strong> <strong>indecidível</strong> e<br />
<strong>do</strong> impartilhável, oculto sob a moral exibida de <strong>uma</strong> decisão publicamente<br />
partilhada. A <strong>ética</strong> marrana da flutuação é o mercúrio prático-moral ao uso<br />
daqueles que se mantém alhures, os exila<strong>do</strong>s <strong>do</strong> lugar-uno, os tenentes <strong>do</strong><br />
mais de um lugar. Ela é, pois, sob certos aspectos, <strong>uma</strong> <strong>ética</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s<br />
– menos em um senti<strong>do</strong> político imediato que a prenderia em <strong>uma</strong> oposição<br />
termo a termo <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>s <strong>do</strong>minantes, que em <strong>uma</strong> figura que<br />
Derrida nomeia em algum lugar, em <strong>uma</strong> conversa, « estratégia <strong>do</strong> vivente »,<br />
ou ainda « estratégia <strong>do</strong> desejo ». Se se pode dizê-lo assim, a máxima aí seria:<br />
« você não me pegará! », em to<strong>do</strong> caso não aí onde eu teria podi<strong>do</strong> me reunir<br />
to<strong>do</strong> em um, e não de imediato, pois, divisível, eu voo, eu velo e eu salto13 . O<br />
desencaixe que se pode daqui em diante qualificar de marrano produz um<br />
diferimento, um distanciamento ético. O <strong>indecidível</strong> contém um recurso,<br />
12. Ibid., p. 292-3.<br />
13. O autor faz aqui um jogo<br />
com os verbos: je vole, je voile e je<br />
voltige, dificilmente preservada em<br />
português. (N. <strong>do</strong> T.)<br />
46
<strong>uma</strong> reserva, <strong>uma</strong> guarda, mas também um risco sem mesura, <strong>uma</strong> extrema<br />
exposição, esses se entre-implican<strong>do</strong> por aquelas. A morte pode sempre deterse<br />
no encontro de <strong>uma</strong> decisão que resolveria para um contra o outro desejo,<br />
mesmo para um no outro, para o um <strong>do</strong> <strong>do</strong>is, como na dial<strong>ética</strong> <strong>do</strong> mestre e<br />
<strong>do</strong> escravo. Mas ela bem pode também encarnar-se, retorcida e inesperada,<br />
na quase-desaparição <strong>do</strong> lugar realizada pela indecisão suspensiva <strong>do</strong> « nem<br />
isso nem aquilo ». Aconteceu que Derrida relaciona expressamente a lógica<br />
da flutuação <strong>ética</strong> e da suplementarização desconstrutiva a um biografema<br />
preciso, a experiência de <strong>uma</strong> francesidade <strong>indecidível</strong>, de <strong>uma</strong> nacionalidade<br />
flutuante, outorgada e retomada, concedida e ameaçada: « os Judeus da Argélia<br />
de minha geração [os quais] não eram, de mil maneiras, indecidivelmente,<br />
nem franceses nem não-franceses » 14 . Eu me permito aqui adicionar ou incluir<br />
o seguinte: após a guerra, e <strong>uma</strong> vez reestabeleci<strong>do</strong> o decreto Crémieux, que<br />
lhe restituía seus direitos civis de Francês, Léon Bensussan, meu tio, um desses<br />
Judeus da Argélia da geração de Derrida, respondia a um funcionário que lhe<br />
questionava qual era sua « nacionalidade »: « variável ! ». Indecidível, portanto,<br />
ou ainda: mais de <strong>uma</strong>, isto é: não tenho senão <strong>uma</strong> e não é a minha! A <strong>ética</strong> <strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s, como <strong>ética</strong> marrana, irônica, impaciente, certamente diz respeito<br />
a <strong>uma</strong> certa recusa, mesmo à língua e seus retornos, de dar crédito a resulta<strong>do</strong>s<br />
obrigatórios e institucionalmente enquadra<strong>do</strong>s, tais como são propostos às<br />
pertencenças exclusivas, às escolhas, às alternativas entre os conceitos, os<br />
opostos contraditórios, às figuras ou mesmo às <strong>do</strong>bras internas às figuras.<br />
Assim, não é necessário « escolher seu campo » e seu sedentarismo. Isso seria,<br />
em menos de <strong>do</strong>is, renunciar. Seria necessário, pelo contrário, atravessar a<br />
khôra, o que abre o lugar, to<strong>do</strong>s os lugares, e faz nascer ao acontecimento de<br />
<strong>uma</strong> decisão. O « nem isso nem aquilo » não significa o aban<strong>do</strong>no resigna<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is – é o inverso. Importa que se tenha fortemente o esse e o aquele<br />
na curvatura mesma da decisão <strong>indecidível</strong>, mais precisamente confiar-se a<br />
ambos, às suas instâncias decisivas.<br />
O tempo <strong>do</strong> outro: venha, me ame<br />
14. « Abraham, l’autre ». In:<br />
Judéités, dir. J.Cohen et R.Zagury-<br />
Orly, Galilée, 2003, p. 28.<br />
47
Conformar-se da decisão, sem poder decidi-la ou mesmo decidir quanto<br />
a decidir sem confiar em quem quer que seja – entre o <strong>indecidível</strong>, por onde<br />
o lugar <strong>do</strong> cortar se desloca, e a decisão combinada, programada e calculada<br />
nos efeitos que espera, se insinua nada menos que o outro, o outro da vontade<br />
autônoma, o outro <strong>do</strong>nde fulgura o que há lugar de decidir. Se o <strong>indecidível</strong> é<br />
o tempo da decisão, esse tempo é sempre o tempo de um outro. Esta restituição<br />
da decisão no <strong>indecidível</strong> <strong>do</strong> tempo de um outro não significa, novamente, um<br />
consentimento inerte a minha própria despossessão e ao confisco de minha<br />
potência de agir – como se pura, simplesmente e de <strong>uma</strong> ponta à outra, eu<br />
deixasse fazer o outro em « preferin<strong>do</strong> não » 15 decidir. O <strong>indecidível</strong> emprega<br />
<strong>uma</strong> configuração bem diferente, <strong>uma</strong> vez que se mantém, foi dito, nos lugares<br />
mesmos da decisão e de seu desencaixe. Eu faço, eu ajo, me mantenho sempre<br />
à borda <strong>do</strong> decidir e nele me sustento tão longe quanto posso. E, no entanto,<br />
eu « sei » que nada o fará : « minha » decisão obedece a coisa totalmente outra<br />
que a minha liberdade, minha capacidade de iniciativa, minha consciência<br />
antecipante – salvo se limitar-se, Derrida aí insiste sem cessar, a um programa<br />
ou a um projeto, os quais serão eles mesmos incessantemente frustra<strong>do</strong>s, pelos<br />
azares <strong>do</strong> outro e pelas imprevisibilidades <strong>do</strong> tempo, pelo resto estritamente<br />
<strong>indecidível</strong> de toda decisão. Decidir, ter a decidir, é deter-se diante <strong>do</strong> outro,<br />
fazer com o outro, como se diz. O <strong>indecidível</strong> é sempre já toma<strong>do</strong> por esse<br />
fazer-com. Uma decisão desligada desse com seria <strong>uma</strong> decisão « frágil » e<br />
já comprometida, já decidida à contra-corrente dela mesma. Os acessos<br />
indecidíveis da decisão, o que a bordeja antes dela e depois dela, podem ser<br />
aproxima<strong>do</strong>s em <strong>uma</strong> certa língua messiânica, ou, muito mais precisamente,<br />
nos clarões messiânicos que toda palavra falada manifesta em sua força<br />
cotidiana.<br />
« Venha » é <strong>uma</strong> dessas explosões da língua das quais Derrida aplicouse<br />
a fornecer <strong>uma</strong> análise « subtrativa », tanto quanto semelhante sintagma<br />
seria de <strong>uma</strong> só vez subtraí<strong>do</strong> à ordem que o porta, à língua que o proíbe e o<br />
autoriza de <strong>uma</strong> só vez. Eu aí ajuntaria a analítica rosenzweigiana <strong>do</strong> « Ameme<br />
», que atesta <strong>uma</strong> proximidade acentuada e mesmo <strong>uma</strong> profunda afinidade<br />
« estelar » com o comentário derridiano. Esses <strong>do</strong>is curiosos imperativos<br />
presentes na segunda pessoa <strong>do</strong> singular, « venha », « ame-me », impõem <strong>uma</strong><br />
15. O autor faz aqui um jogo<br />
com os verbos: je vole, je voile e<br />
je voltige, dificilmente preservada<br />
em português. (N. <strong>do</strong> T.)<br />
48
aparente impossibilidade em um requerimento no entanto muito simples : a<br />
língua lhes é inóspita e ela é no entanto o que os acolhe. Eles formam a instância<br />
de um chama<strong>do</strong> que eu apreen<strong>do</strong> dizen<strong>do</strong> a tal outro para « vir » ou para me<br />
« amar ». Eu « deci<strong>do</strong> » dizer, e dizer imperiosamente, porque não posso fazer<br />
de outra forma, não posso dizer n<strong>uma</strong> não-língua. É-me necessário dizer<br />
na língua <strong>do</strong> outro, na outra língua que eu jamais falarei. Tu<strong>do</strong> nesse dizer<br />
é portanto radicalmente golpea<strong>do</strong> de indecisão ou de <strong>indecidível</strong> : a vinda, o<br />
amor, o vin<strong>do</strong>uro e o ama<strong>do</strong> a que me remeto. O dizer, aqui, não tem outro<br />
senti<strong>do</strong> senão o <strong>indecidível</strong> ao qual ele se expõe. Escutemos as duas vozes tão<br />
próximas e tão díspares a um só tempo, de Derrida, e então de Rosenzweig.<br />
« Venha não é <strong>uma</strong> modificação de vir […] Por consequência<br />
minha « hipótese » não designa mais <strong>uma</strong> operação lógica ou<br />
científica. Ela descreve sobretu<strong>do</strong> o avanço insólito de venha<br />
sobre vir. É um passo a mais ou a menos sob vir. É subtrair alg<strong>uma</strong><br />
coisa em toda posição, tal como ela se propaga e recita através <strong>do</strong>s<br />
mo<strong>do</strong>s <strong>do</strong> vir ou da vinda, por exemplo, o porvir, o acontecimento,<br />
o advento, etc., mas também através de to<strong>do</strong>s os tempos e mo<strong>do</strong>s<br />
verbais <strong>do</strong> ir-e-vir. Venha não dá <strong>uma</strong> ordem, ele não procede<br />
aqui de nenh<strong>uma</strong> autoridade, de lei nenh<strong>uma</strong>, de nenh<strong>uma</strong><br />
hierarquia […] Uma « palavra », deixan<strong>do</strong> inteiramente de ser<br />
<strong>uma</strong> palavra, desobedece à prescrição gramatical ou linguística,<br />
ou semântica, que lhe determinariam ser – aqui – imperativo,<br />
presente, a tal pessoa, etc. Eis <strong>uma</strong> <strong>escritura</strong>, a mais arriscada<br />
que seja, subtrain<strong>do</strong> alg<strong>uma</strong> coisa à ordem da <strong>linguagem</strong> que ela<br />
aí <strong>do</strong>bra em retorno com um rigor muito suave e inflexível […]<br />
Venha não é um imperativo, não é um presente. Não sê-lo, eis o<br />
que o que não lhe confere <strong>uma</strong> sorte de selvageria não linguística<br />
deixan<strong>do</strong> o acontecimento venha em liberdade. Isso insiste, pelo<br />
contrário, na língua de maneira singular, inquietan<strong>do</strong> todas as<br />
seguranças linguísticas, gramaticais, semânticas. Venha não dá<br />
<strong>uma</strong> ordem no presente a <strong>uma</strong> pessoa » 16 .<br />
« O amor não é somente livre oferenda? E eis que se o comanda?<br />
Sim, certamente, não se pode comandar o amor; nenhum terceiro<br />
pode comandá-lo nem obtê-lo pela força. Nenhum terceiro<br />
o pode, mas o único o pode. O coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor não pode<br />
vir senão da boca <strong>do</strong> amante. Somente aquele que ama pode<br />
dizer: Ame-me […] O amor daquele que ama não possui outra<br />
palavra para expressar-se senão o coman<strong>do</strong> […] O coman<strong>do</strong><br />
16. Parages, Galilée, 1986, p. 25-<br />
6. Não <strong>do</strong>u conta alg<strong>uma</strong> aqui<br />
da referência blanchotiana da<br />
sentença.<br />
49
no imperativo, o coman<strong>do</strong> imediato, jorra<strong>do</strong> <strong>do</strong> instante e já<br />
em vistas de devir sonoro no instante de seu jorrar – pois devir<br />
sonoro e jorrar são <strong>uma</strong> e mesma coisa no amor –, o « ame-me »<br />
<strong>do</strong> amante, eis a perfeitamente pura <strong>linguagem</strong> <strong>do</strong> amor. Então<br />
quan<strong>do</strong> o indicativo tem detrás de si todas as circunstâncias que<br />
fundaram a objetividade e o passa<strong>do</strong> aparece como a forma a<br />
mais pura, o coman<strong>do</strong> é um presente absolutamente puro, sem<br />
nada que o prepare. E não somente sem nada que o prepare, mas<br />
absolutamente sem premeditação. O imperativo <strong>do</strong> coman<strong>do</strong> não<br />
faz previsão nenh<strong>uma</strong> para o porvir; ele não pode imaginar senão<br />
a imediatez da obediência. Se ele fosse pensar em um porvir ou<br />
um « sempre », não seria em nada um coman<strong>do</strong>, não seria <strong>uma</strong><br />
ordem, mas <strong>uma</strong> lei ». 17<br />
Apesar das oscilações muito significativas quanto ao uso de alguns<br />
termos, « comandar », « presente », « pessoa », que se poderia facilmente<br />
explicar sem apaga-las nem força-las, essas duas meditações engajam-se, cada<br />
<strong>uma</strong> à sua maneira, sobre a estreita passagem <strong>do</strong> acontecimento de <strong>uma</strong> palavra<br />
viva, urgente e impossível, arrancan<strong>do</strong>-se à ordem da língua. É em virtude<br />
desta potência de arrancamento da palavra de sua « ordem », de <strong>uma</strong> palavra<br />
à distância dela mesma, distanciada dela mesma, que pode-se aqui (« aqui »,<br />
como insiste Derrida) evocar a messianidade da injunção indecisa, carregada<br />
pelo instante e absolutamente não premeditada. A « subtração » para Derrida<br />
ou o « devir-sonoro » para Rosenzweig são mo<strong>do</strong>s ou exercícios de palavra<br />
em direção ao outro por onde o <strong>indecidível</strong> (« o avanço <strong>do</strong> venha sobre vir »<br />
o qual, como « ame-me », não faria « previsão nenh<strong>uma</strong> para o porvir ») abre<br />
fora-da-lei à resposta <strong>do</strong> outro. Este é de fato o decisor <strong>do</strong> <strong>indecidível</strong>, atan<strong>do</strong><br />
o tempo e a espera, o incerto e o iminente.<br />
1. O <strong>indecidível</strong> é o tempo da decisão (dizer: « venha », « ameme<br />
»).<br />
2. Esse tempo <strong>indecidível</strong> é o tempo de um outro (a quem eu digo :<br />
« venha », « ame-me »).<br />
3. Esse outro ordena algo como <strong>uma</strong> esperança (de que isso venha<br />
e de que isso ame, logo em seguida).<br />
17. Franz Rosenzweig, L’étoile de<br />
la Rédemption, trad. Derczanski /<br />
Schlegel, Paris, 2. ed., Seuil, 2003,<br />
p. 251-2. Acrescento que Derrida<br />
aventa, ele mesmo, a possibilidade<br />
de que as duas sentenças sejam<br />
assim justapostas, quan<strong>do</strong> afirma,<br />
repetidamente, “eu amo sempre o<br />
que eu amei”.<br />
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Esta tripla articulação permite compreender melhor ou melhor<br />
determinar a <strong>ética</strong> da flutuação ou a <strong>ética</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s/marranos que<br />
colocou-se em questão. Para dizer a coisa mesma, <strong>uma</strong> certa messianicidade<br />
sem messianismo é muito profundamente implicada em <strong>uma</strong> possível <strong>ética</strong><br />
<strong>do</strong> <strong>indecidível</strong>, para além mesmo de seus espera<strong>do</strong>s derridianos estritos. É<br />
necessário precisar de <strong>uma</strong> vez o conteú<strong>do</strong> da esperança no que ele se aglomera<br />
ao tempo e ao outro no <strong>indecidível</strong> – não a esperança em geral, portanto, mas<br />
a esperança pelo <strong>indecidível</strong> ou esperança enquanto ela comanda toda decisão<br />
vivente.<br />
Esperar pelo <strong>indecidível</strong><br />
Não se espera senão pelo que está em tensão no instante mesmo<br />
em que o esperar se estabelece, de <strong>uma</strong> vinda, de um amor. Dito de outro<br />
mo<strong>do</strong>, não se espera pelas coisas longínquas – ou então trata-se de <strong>uma</strong><br />
esperança que constitui o esquema pelo qual se imagina o porvir e se dá<br />
seu conceito. Espera-se portanto pelo que é muito próximo, seja o mais<br />
incalculável, o mais não-pré-determinável, o mais im-pré-pensável, pelo<br />
que está o mais carrega<strong>do</strong> de espera e de inquietude, no instante. De um<br />
la<strong>do</strong> « venha, ame-me » não pode dizer-se senão a partir de <strong>uma</strong> vinda já<br />
vinda, um amor já aí – não se poderia endereçar-se a quem se apresenta,<br />
que não entenderia, nesse senti<strong>do</strong>, nem o vir, nem o amar, nem a imperiosa<br />
injunção. É bem necessário que alg<strong>uma</strong> coisa dessa espera esteja já contida<br />
no endereçamento que dela jorra para que ela possa somente proferir-se.<br />
Mas, por outro la<strong>do</strong> e ao mesmo tempo, esta atualização prévia não efetua<br />
nenh<strong>uma</strong> reatualização automática, ela não é nem tem garantia de nada.<br />
Pelo contrário, ela exacerba a questão de sua renovação <strong>indecidível</strong>, ela exige<br />
que eu não saiba decidir, isso de que não há lugar para mim « decidir », que<br />
é requeri<strong>do</strong> e improvável a um só tempo. O esperar condensa assim o mais<br />
próximo e o mais <strong>indecidível</strong> em <strong>uma</strong> intensidade temporal inaudita. Aí,<br />
logo em seguida, isso acontece, isso vai acontecer; mas o acontecimento,<br />
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colocan<strong>do</strong>-se assim na espera imediata dele mesmo, se suspende em sua<br />
irresolução de cada instante : venha, ame-me. Assim aproxima<strong>do</strong> em sua<br />
condensação instantânea, o esperar se encontra descarrega<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os<br />
cálculos, de to<strong>do</strong>s os investimentos de senti<strong>do</strong> e de todas as determinações<br />
racionalizantes que o sobremarcam tão logo ele lide com as coisas distantes.<br />
Ele poderia então escapar muito bem tanto de sua constante depreciação<br />
pela filosofia e pelos filósofos quanto de sua redução concomitante a <strong>uma</strong><br />
virtude teológica, religiosa ou laica. A decisão ela mesma poderia ser o objeto<br />
de <strong>uma</strong> distribuição inédita. Não se « decide » senão pelas coisas longínquas,<br />
na ilusão <strong>do</strong> programa e da empresa. Quanto mais o objeto da decisão de<br />
aproxima <strong>do</strong> instante <strong>do</strong> cortar, até confundir-se em um <strong>indecidível</strong>-im-prépensável,<br />
mais a decisão dá lugar a um confiar-se à tensão insigne <strong>do</strong> tempo<br />
e ao esperar de <strong>uma</strong> de-tensão. É esse movimento de um dizer ininvestível<br />
pela espera e atencipação que atesta o mo<strong>do</strong> gramatical <strong>do</strong> imperativo da<br />
segunda pessoa <strong>do</strong> singular, o único que possa manifestar <strong>uma</strong> ordem sem<br />
ordem, um endereçar sem espera, <strong>uma</strong> afirmação e <strong>uma</strong> positividade sem<br />
dial<strong>ética</strong> e sem processo preventivo.<br />
Há no <strong>indecidível</strong> <strong>uma</strong> aquiescência plena ao <strong>do</strong>is-sem-um – de que<br />
foi dito que não se acomodava nem com <strong>uma</strong> resignação a um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is,<br />
nem autorizava um ultrapassamento especulativo <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is no um, nem<br />
renunciava a agir e a decidir. Uma « razão », no senti<strong>do</strong> em que Pascal podia<br />
escrever que trabalhar « pelo incerto » era o único fazer razoável, o único<br />
fazer « para amanhã » – <strong>uma</strong> « razão », portanto, joga indecidivelmente contra<br />
as racionalidades da decisão amadurecida e refletida: « Quantas coisas faz-se<br />
pelo incerto, as viagens sobre o mar, as batalhas! Pois eu digo que não seria<br />
necessário nada fazer <strong>do</strong> to<strong>do</strong>, pois nada é certo... Quan<strong>do</strong> se trabalha para<br />
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o amanhã e para o incerto, age-se com razão » 18 . A afirmatividade essencial 19<br />
<strong>do</strong> <strong>indecidível</strong> e a gloriosa incerteza que o acompanha permitem que se<br />
possa a ela associar o esperar pelo iminente, o quase-já-lá, o impossível.<br />
Elas obrigam mesmo a se colocar ao la<strong>do</strong> desta esperança e a tentar pensar<br />
<strong>uma</strong> <strong>ética</strong> desse esperar, flutuante, marrana e messiânica, votada à injunção<br />
<strong>indecidível</strong> <strong>do</strong> outro, vinda dele e a ele endereçada.<br />
(tradução de Daniel Barbosa Car<strong>do</strong>so)<br />
18. Pensées (452/130), Œuvres<br />
complètes, Pléiade, p. 1216.<br />
19. Reenvio o leitor, se posso, a<br />
“Oui, la survie... Note sur le carré<br />
affirmatif de la déconstruction”.<br />
In: Rue Descartes, “Pensar com<br />
Jacques Derrida”, dir. J. Cohen,<br />
n° 52, Paris, 2006.<br />
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