13.05.2013 Views

A guerra do Trapia - Juarez Leitao

A guerra do Trapia - Juarez Leitao

A guerra do Trapia - Juarez Leitao

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

A GUERRA DO TRAPIA<br />

UMA FAZENDA DE MARANGUAPE ENFRENTA 0 GOVERNO DO<br />

CEARA<br />

<strong>Juarez</strong> <strong>Leitao</strong><br />

0 segun<strong>do</strong> decenio <strong>do</strong> seculo XX, especial mente o perfo<strong>do</strong> que se<br />

estendeu de 1912 a 1914, foi de marcante agitac;ao polftica no Ceara.<br />

Em janeiro de 1912 era deposto pela populac;ao de Fortaleza o<br />

comenda<strong>do</strong>r Nogueira Accioly, o ate entao mais poderoso politico <strong>do</strong><br />

Ceara, pois comandara por 16 a nos uma das mais fortes oligarquias regionais<br />

da Republica Velha, gerada ainda nos ultimos anos <strong>do</strong> Imperio.<br />

Realizada, em seguida, a eleic;ao para governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, con­<br />

sag rou-se nas urnas o coronel Marcos Franco Rabelo, com tres quartos<br />

da votac;ao.<br />

Militar de carreira, sem conhecer o traquejo manhoso da polftica,<br />

comec;ou a enfrentar problemas, a partir <strong>do</strong> referenda da Assembleia<br />

Legislativa que oficializaria sua eleic;ao, em que precisava obter 16 vo­<br />

tos <strong>do</strong>s 30 que formavam o colegio <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s. Conseguiu apenas<br />

13 votos e, mesmo assim, tomou posse, ten<strong>do</strong>, porem, que fazer algumas<br />

concessoes ao aciolismo oligarquico.<br />

Muitos lfderes que o haviam apoia<strong>do</strong> na grande frente de opo­<br />

sic;ao para derrubar o Accioly comec;aram a se mostrar descontentes,<br />

porque nao se sentiram satisfatoriamente contempla<strong>do</strong>s nos cargos<br />

que pleiteavam no Governo. Foi assim que nasceu um novo parti<strong>do</strong>,<br />

os Marretas, juntan<strong>do</strong> os insatisfeitos com antigos adversarios, to<strong>do</strong>s<br />

prontos para marretear o Rabelo.<br />

A populac;ao de Fortaleza, que continuava dan<strong>do</strong> apoio ao coronel<br />

Franco Rabelo, considerou espurio o comportamento <strong>do</strong>s dissidentes<br />

e passou a agredir os marretas, inclusive promoven<strong>do</strong> ataques as<br />

suas residencias.<br />

171


No interior, os velhos coroneis aciolistas, come


0 respeito que desfrutava em Maranguape as vezes confundia-se<br />

com o temor que despertava naqueles que nao queriam apostar em<br />

contraricHo. Havia uma mfstica em relac;ao ao lfder, uma considera­<br />

c;ao que beirava o absur<strong>do</strong>. Certa vez o coronel chegou atrasa<strong>do</strong> ao<br />

cinema. A exibic;ao estava pelo meio. Ao perceber sua entrada, o pro­<br />

prietario pediu licenc;a a plateia e rebobinou a fita para que o coronel<br />

Manoel de Paula assistisse o filme <strong>do</strong> comec;o.<br />

Ao tomar conhecimento <strong>do</strong> ocorri<strong>do</strong>, o Cel. AntOnio Botelho de<br />

Sousa, deputa<strong>do</strong> estadual e outro expressivo nome da polftica local,<br />

resolveu tambem chegar atrasa<strong>do</strong> ao cinema. Como o proprietario<br />

nao se manifestasse ante sua presenc;a, exigiu tratamento semelhante<br />

ao que fora da<strong>do</strong> ao coronel Manoel de Paula, isto e, o recomec;o <strong>do</strong><br />

filme. Foi atendi<strong>do</strong>. Ninguem era <strong>do</strong>i<strong>do</strong> para experimentar a reac;ao<br />

<strong>do</strong>s poderosos naqueles duros tempos <strong>do</strong> coronelismo.<br />

Nos finais de 1913 esboc;ou-se uma rebeliao em Acarape. 0 governa<strong>do</strong>r<br />

Franco Rabelo, de imediato, enviou um pelotao da Polfcia<br />

Militar aquela localidade para prender os rebela<strong>do</strong>s. Entretanto, antes<br />

que a polfcia chegasse, os sediciosos de Acarape, a frente o Dr. AntOnio<br />

Pompeu e o Dr. Antonio Pompeu Pequeno, com mais 22 pessoas,<br />

fugiram para Maranguape, homizian<strong>do</strong>-se na Fazenda <strong>Trapia</strong>, onde<br />

contaram com o apoio <strong>do</strong> proprietario, um corajoso correligionario.<br />

Avisa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> paradeiro <strong>do</strong>s rebeldes, a forc;a militar, obedecen<strong>do</strong><br />

a ordem <strong>do</strong> Governo, no dia 19 de janeiro de 1914, cercou a pro­<br />

priedade <strong>do</strong> coronel Manoel de Paula e dele exigiu que entregasse os<br />

chefes politicos procura<strong>do</strong>s. Entrincheira<strong>do</strong> na sede da fazenda com<br />

duzentos combatentes, num morrote estrategico, cerca<strong>do</strong> por far<strong>do</strong>s<br />

de algodao prensa<strong>do</strong>s em sua fabrica de descaroc;amento, o coronel<br />

recusou entregar os amigos que estavam sob sua protec;ao.<br />

Cria<strong>do</strong> o impasse, o comandante militar deu ordem de fogo, imediatamente<br />

respondida pelos combatentes <strong>do</strong> <strong>Trapia</strong>. Uma fazenda de<br />

Maranguape estava em <strong>guerra</strong> com o Esta<strong>do</strong>.<br />

Foram tres dias de cerra<strong>do</strong> tiroteio. Na fazenda cercada to<strong>do</strong>s<br />

participavam da resistencia. Enquanto os homens atiravam, as mu-<br />

173


!heres recarregavam os cartuchos. A arma principal era um rifle ame­<br />

ricana, muito utiliza<strong>do</strong> por alguns fazendeiros, conheci<strong>do</strong> por "papa<br />

amarelo", com capacidade para 14 balas calibre 44. Consta que o<br />

coronel Manoel de Paula tinha mais de cem armas dessas em sua fa­<br />

zenda, alem de muitas espingardas "lazarinas", aquelas de carregar<br />

pela boca . Havia tambem pistolas "parabellum" e garruchas de media<br />

e pequeno porte.<br />

A populac;ao de Maranguape estava apreensiva e tentava manter<br />

um certo esta<strong>do</strong> de neutralidade, mas os rapazes <strong>do</strong> Tiro de Guer­<br />

ra foram, queren<strong>do</strong> ou nao, incorpora<strong>do</strong>s ao batalhao sitiante, cujo<br />

comandante era o tenente Augusto Correia Lima, conheci<strong>do</strong> como<br />

Correia Bracinho.<br />

Francisco Braz de Araujo, em relata publica<strong>do</strong> em 1959 (" Maranguape<br />

de Outros Tempos"), descreve: "Muitos rapazes de Maran­<br />

guape, pertencentes ao Tiro de Guerra local, ingressaram as fileiras<br />

da tropa. E, numa tarde turva e de expectativa pelo desfecho da luta,<br />

sob os toques dissonantes de uma velha corneta, a tropa movia-se<br />

lentamente como unidade regular pela estrada poeirenta em que se<br />

divisava e pouco a pouco iam-se desaparecen<strong>do</strong> os acenos <strong>do</strong>s ulti­<br />

mos solda<strong>do</strong>s improvisa<strong>do</strong>s rumo ao <strong>Trapia</strong>. Na imaginac;ao eu ja tinha<br />

a visao da luta, o entrechoque das armas, como teria depois com a<br />

chegada a Maranguape <strong>do</strong>s romeiros <strong>do</strong> Padre Cicero, naquela arrancada<br />

dantesca <strong>do</strong> sertao as portas de Fortaleza."<br />

174<br />

A essa altura <strong>do</strong> conflito, os diretores da Casa Boris, importante<br />

firma compra<strong>do</strong>ra de algodao de quem o coronel Manoel de Paula<br />

era cliente, resolveram interferir, median<strong>do</strong> um acor<strong>do</strong>. A ideia<br />

era conseguir a rendi


Aproveitan<strong>do</strong>-se, entretanto, da tregua, o tenente Correia Lima<br />

ordenou urn ataque inespera<strong>do</strong> e ocupou as trincheiras da fazenda,<br />

<strong>do</strong>minan<strong>do</strong> os combatentes. Urn mora<strong>do</strong>r da fazenda, rapaz de 21<br />

anos, conheci<strong>do</strong> como Ze Galinha, tentou desobedecer a rendic;:ao,<br />

concitan<strong>do</strong> os companheiros a resistencia, mas foi grosseiramente<br />

abati<strong>do</strong> por um tiro de escopeta dispara<strong>do</strong> por um solda<strong>do</strong> <strong>do</strong> batalhao<br />

oficial. To<strong>do</strong>s foram presos e tiveram as armas apreendidas.<br />

Conduzin<strong>do</strong> os prisioneiros e as armas para o centro de Maranguape,<br />

de onde tomariam o trem para Fortaleza, o comandante da<br />

operac;:ao militar deixou propositadamente para tras o coronel Manoel<br />

de Paula, que se dirigira ao seu quarto para trocar de roupa. Quan<strong>do</strong><br />

saiu, o proprietario descobriu que na fazen<strong>do</strong> s6 tin ham fica<strong>do</strong> ele, as<br />

mulheres e as crianc;:as.<br />

Quan<strong>do</strong> se viu isola<strong>do</strong> de seus companheiros, o altivo coronel nao<br />

aceitou a liberdade. Toman<strong>do</strong> o seu cavalo dirigiu-se a cidade e exigiu<br />

ser preso como to<strong>do</strong>s os outros. E o foi. Recolhi<strong>do</strong> ao quartel <strong>do</strong> 23°.<br />

Batalhao de Cac;:a<strong>do</strong>res, em Fortaleza, ali permaneceu ate a queda de<br />

Franco Rabelo, ocorrida a 10 de marc;:o de 1914.<br />

Uma semana antes, o seu adversario, Joaquim Correia Sombra<br />

fora deposto da lntendencia e expulso de Maranguape pelos jagunc;:os<br />

<strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Floro Bartolomeu que, depois de derrotarem as forc;:as <strong>do</strong><br />

governo Rabelo no Cariri, vinham num embalo vitorioso se aproximan<strong>do</strong><br />

da capital para o golpe final.<br />

0 coronel Manoel de Paula Cavalcante voltou triunfante a Maranguape<br />

e, nesse mesmo ano de 1914, foi eleito prefeito de sua terra,<br />

exercen<strong>do</strong> o mandata ate 1918.<br />

Quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>eceu, atingi<strong>do</strong> por um cancer agressivo, ficou muito<br />

magro, s6 a pele e os ossos. Um homem da rua, por desinformac;:ao<br />

sabre a <strong>do</strong>enc;:a, ao ve-lo tao raquitico, comentou: "Vejam como sao<br />

as coisas. 0 coronel Manel de Paula, que deu comida a tanta gente naquela<br />

casa cheia de fartura, com esse neg6cio de politica ficou pobre<br />

e esta af, morren<strong>do</strong> de fame, seco feito um sebito!"<br />

175


Faleceu em sua fazenda <strong>Trapia</strong>, no dia 22 de abril de 1934, aos<br />

60 anos de idade e ficou na memoria de seus conterraneos como um<br />

exemplo de bravura, orgulhosamente proclama<strong>do</strong>.<br />

As razoes pelas quais se bateu o Patriarca <strong>do</strong> <strong>Trapia</strong> podem ser discutfveis,<br />

ja que se ligavam a uma velha e injustificada oligarquia; mas o<br />

seu mo<strong>do</strong> de operar correspondia perfeitamente ao que o imaginario<br />

popular considera como valentia, lealdade e respeito aos compromissos<br />

assumi<strong>do</strong>s. Os remotos e arraiga<strong>do</strong>s valores da altivez sertaneja.<br />

176

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!