AUTO DA INFÂNCIA - Encontros de Dramaturgia

AUTO DA INFÂNCIA
Luis Alberto de Abreu
Atenção: Texto registrado e distribuído em caráter puramente de uso e leitura
PESSOAL. Todos os direitos reservados aos detentores legais dos direitos da
obra. Para a representação e comercialização legal da peça, entrar em contato
com o autor através do e-mail: luabreu@uol.com.br
1

TODOS OS PERSONAGENS, À EXCEÇÃO DE CÉU E BIEL,
USARÃO MÁSCARAS QUE SERÃO COLOCADAS PELOS
NARRADORES APENAS NO MOMENTO DA AÇÃO.
TODOS, À EXCEÇÃO DE CÉU E BIEL, SERÃO
NARRADORES.
TODOS OS NARRADORES SERÃO ANIMAIS: CAVALO,
CACHORRO, GATO, PATO, ETC. ISSO NÃO SIGNIFICA
QUE OS NARRADORES DEVEM SE CARACTERIZAR
ATRAVÉS DE FIGURINOS OU DE OUTROS ACESSÓRIOS
COMO ANIMAIS. NÃO SE TRATA DE UMA COMPOSIÇÃO
REALISTA. A IDÉIA É QUE OS NARRADORES TENHAM UM
FIGURINO VISTOSO, BONITO, VERSÁTIL E QUE, TODOS
JUNTOS, FAÇAM UMA COMPOSIÇÃO ESTÉTICA. (VER
PALHAÇOS DE 8 ½ DE FELLINI). A IDÉIA DE QUAL ANIMAL
CADA NARRADOR REPRESENTA SERÁ DADA POR UM (OU
ALGUNS) ELEMENTOS CORPORAIS (GESTO, ANDAR, VOZ,
ETC.) A IDÉIA É A RAPIDEZ E LIVERDADE DO JOGO
INFANTIL DO FAZ-DE-CONTA.
Cena 1 – A história começa com imagens de sonho
ENTRA EM CENA UM NARRADOR-CAVALO. OLHA
FIXAMENTE PARA ALÉM DA ÁREA DA CENA, TENTANDO
VISLUMBRAR ALGO DISTANTE COM A MÃO EM PALA.
CAVALO Ei! Ei! Ei! Ei! Ei! Eiiiiiiiihhhhh! (PÕE A MÃO EM COVO ATRÁS
DA ORELHA, A ESCUTAR.) Tem alguém aí? Tem ou não
tem? (FAZ UMA FIGA E FALA RITMADAMENTE COMO NAS
BRINCADEIRAS INFANTIS) Sem mentir, sem se esconder,
sem me assustar! Se tiver alguém pode falar, se não falar vai
2

VOZ Tem, sim!
ficar mudo, pelo papo do papudo, barriga do barrigudo, jogo eu,
não joga tu essa praga de urubu, viva o rabo do tatu! Um, dois,
três; quatro, cinco, seis; sete oito nove para doze faltam três!
(GIRA O BRAÇO COM A MÃO FECHADA E JOGA A PRAGA
PARA A ÁREA FORA DA CENA. SILÊNCIO. CAVALO DÁ DE
OMBROS.) Ninguém! É que ainda é dia! (PAUSADAMENTE
COMO SE NINASSE A PLATÉIA) Faz de conta, então, que o
sol está se fechando, devagarinho, como se fecha o olho e o
mundo, fica escuro como um muro negro numa noite sem luz e
sem lua. Pela janela vemos a rua... escura... tão escura que se
o olho apura nada se vê. ( ENCOLHE-SE TODO) Estou com
medo! (FALA BAIXINHO, COM MEDO) Tem alguém aí? (UMA
VOZ, FORA, RESPONDE)
CAVALO (ASSUSTA-SE) Não tem, não! Fala que é mentira!
VOZ Não é, não!
CAVALO Quem é, então? (BRAVO, COM MEDO) Não vale assustar!
Não é caveira de defunto que vem junto com fantasma, nem é
bruxa com asma que não gosto desse assunto! Quem vem lá?
Quem é que eu vejo?
VOZ É a névoa! ( A ÁREA DE REPRESENTAÇÃO COMEÇA A SE
ENCHER FUMAÇA DE GELO SECO)
CAVALO A névoa do sono! (ENTRA UM CACHORRO NARRADOR
ESPARGINDO FUMAÇA PELO AMBIENTE)
CACHORRO É a névoa do sono que vem como manto/ num doce acalanto/
fechar nosso dia/ macia a coberta, a cama, se apagou a luz, a
vela, a chama, vem o sono no colo da mãe, canção de ninar,
“nana, meu filho, pra que despertar”?’
3

CAVALO Do fundo da noite vem sono trazendo nos olhos seu dono e
senhor: o sonho! Esse senhor vem sentado num trono,
montado na lua, puxado por uma carruagem de estrelas que
cruza o céu escuro da noite, deixando um rastro luz.
CACHORRO (LATE PARA A LUA) Também vejo! Sete fadas brancas, sete
fadas negras, todas lindas, leves como flocos de nuvens,
lançam com as mãos poeira de estrelas sobre o mundo.
(CACHORRO E CAVALO LANÇAM PÓ BRILHANTE AO AR)
Então, os olhos das crianças se fecham para o sol e para o dia
e se abrem para o bom escuro da noite e do sonho! (OLHA
PARA FORA) Lá vêm elas voando silenciosas como nuvens no
céu! Lá vêm elas como cavalos de asas que pisam o ar. Lá
vêm elas, avançam, navegam sem peso, sopradas pela brisa
em nossa direção. (CAVALO E CACHORRO ABREM OS
BRAÇOS COMO SE AS SAUDASSEM) Bem-vindas, imagens
do sonho! (NARRADORES COM MÁSCARAS DE FOLIA DE
REIS ENTRAM CARREGANDO LENÇOS, PANOS,
BANDEIRAS E FLÂMULAS QUE ORA ESVOAÇAM NA ÁREA
DE REPRESENTAÇÃO, ORA SE JUNTAM COMPONDO
IMAGENS. OS NARRADORES CHAMAM BIEL)
NARRADORES Biel! Biel! Biel! (ENTRA BIEL E CAMINHAM, UM TANTO
ASSUSTADO, ENTRE AS IMAGENS. PÁRA AO VER UM
URUBU-REI QUE ENTRA GRASNANDO E O CHAMA. BIEL
SORRI E NUM SALTO ACROBÁTICO, AJUDADO POR
NARRADORES, PULA SOBRE O URUBU-REI. BIEL, NAS
COSTAS DO URUBU-REI E AJUDADO POR OUTRO
NARRADOR VOA PELO PALCO)
CACHORRO E foi naquela noite... (COÇA A ORELHA COM A PATA E COM
OS DENTES TENTA ALCANÇAR UMA PULGA NO DORSO.)
E foi naquela noite que o menino Biel teve um sonho especial:
Montou um magnífico urubu-rei que bateu as asas e começou
a subir. Mais alto que o muro do quintal, mais alto que a casa,
4

mais alto que o poste luz. Teve medo, teve tontura, mas se
agarrou firme ao pescoço do pássaro. (O PÁSSARO GRASNA
MEIO ESGANADO PELO MENINO) E subiu. E girava e subia
cada vez mais alto no céu. Vista de cima sua casa ficava
pequenina e seus pais acenavam. Riu, tocou o dedo nas
nuvens e se preparava para voar em direção à lua, aos astros,
asteróides e cometas do sistema solar, lá no espaço infinito,
quando olhou para baixo e viu algo que o assustou:
CAVALO Levou um susto pra cachorro!
CACHORRO E teve um medo cavalar! (SEUS PAIS COLOCAM MÁSCARAS
DE OGRO E BRUXA)
CAVALO Ele viu seu pais transformados em ogro e bruxa terríveis que
OGRO E BRUXA Mentira!
comiam crianças cruas, com brócolis, cheiro verde, batatas
sauté, temperadas com óleo diesel!
OGRO Eu não gosto de brócolis!
BRUXA E eu não como criança crua! Que nojo! Só assada na
manteiga!
BIEL Desce, desce logo. (O URUBU-REI ESVOAÇA PELO PALCO
E POUSA. O MENINO DESCE.) Mãe! Pai! (O OGRO E A
BRUXA RAPIDAMENTE ESCONDEM AS MÁSCARAS.)
MÃE Já acordou, filhinho?
PAI Que bom! Vamos estudar, meu filho, que o tempo urge e o
BIEL Mãe!
futuro não espera! Mais dez anos e você faz dezoito!
Vestibular, emprego, uma boa carreira, uma profissão lucrativa!
O preparo é agora, estudo, rapaz!
5

MÃE Essas coisas quem decide é seu pai!
BIEL Eu quero brincar!
MÃE Na rua não pode, seu moço! Calçada é perigo, tem cachorro e
tem troço! No pátio do prédio você cai e quebra o pescoço!
Fica em casa, mas não trepa nos móveis, não quebra as
coisas, não me irrite, não corra, não grite!
BIEL Pega meu trem elétrico?
MÃE Tá guardado, você vai estragar! Senta na sala e veja TV.
PAI E, depois, estudo! Uma carreira promissora, filho! O mercado
está competitivo e você tem de se preparar!
Estude! Prepare! Dê duro! Encare o futuro de frente
O mundo é uma boca cheia de dentes
Mastiga, tritura e mói
Os sonhos do imprevidente!
Acorda, Biel! Não perca tempo em sonhar!
BIEL Vocês não são meus pais! (OS PAIS SE OLHAM E RIEM. BIEL
SE AFASTA, MAS LOGO FECHA OS OLHOS E PARALISA
COMO SE TIVESSE PRESO A UM PESADELO.) Não! Não!
Não! (MÃE E PAI VÃO ATÉ ELE. MÃE O SACODE
GENTILMENTE)
MÃE Acorda, Biel!
BIEL Pai! Mãe! Eu sonhei que vocês...
MÃE Foi só um sonho, meu filho! (BIEL ABRE OS OLHOS)
PAI Não foi nada, filho! Ainda é noite, volta a dormir! Amanhã vai
PAI E MÃE Dorme, criança
ser outro dia! (A MÃE E O PAI CANTAM UM ACALANTO)
Que o dia vai chegar
6

Coberto de luzes
Num leve despertar
(BIEL FECHA OS OLHOS E EM PÉ SE AJEITA DE LADO E
RESSONA. OS PAIS TROCAM OLHARES.)
PAI Amanhã vai ser outro dia! (A MÃE RI. OS DOIS OLHAM AS
MÁSCARAS DE BRUXA E OGRO NAS MÃOS E SE
ENTREOLHAM DE FORMA SIGNIFICATIVA. A CENA É
OBSERVADA PELA EMPREGADA CEIÇÃO)
Cena 1- A revelação da verdade
CAVALO Do que eu sei dessa história, a noite seguiu tranqüila, sem
sobressalto e sem mais nenhum pesadelo. E nela, Biel, dormiu
como se ainda flutuasse nas costas do urubu-rei no escuro
bom da noite de lua.
CACHORRO E foi assim: passou um tempo, dois tempos, três tempos. A lua
cruzou o céu, os vagalumes apagaram suas lanterninhas e o
escuro do céu ficou dono do mundo. Para quem nunca viu um
dia nascer a coisa é assim:
CAVALO Primeiro um viralatas late. (CACHORRO FICA ARRELIADO E
LATE DE MÁ VONTADE) Um galo canta. (ENTRA UM
NARRADOR-GALO. CANTA) E um cavaleiro rosado vem
galopando no ar céu tingindo tudo de reflexos cor de rosa e o
céu fica lindo de se ver. Dali a pouco, vem um outro cavaleiro
branco, de armadura branca, montado num cavalo branco que
espalha pelo mundo uma névoa branca como leite. E o mundo
fica fresco e puro e sem mancha, molhado com gotinhas de
orvalho. Depois, no meio do branco brilham os raios de um
7

cavaleiro dourado que vem galopando lá de longe, do
horizonte. Ele traz o sol que é o imperador do dia!
CACHORRO Foi assim que nasceu o dia na casa de Biel! (BIEL DESPERTA,
LAVA-SE, ESCOVA OS DENTES, ETC, ENQUANTO OS DOIS
NARRADORES SE DESENTENDEM)
CAVALO E ia ser um dia de cão!
CACHORRO Por que dia de cão? O senhor tem alguma coisa contra os
cães? Foi mordido por algum cachorro? Algum cachorro
levantou a pata, assim, (MOSTRA) perto da sua perna?
CAVALO É modo de falar!
CACHORRO Modo de falar, é? Amigo falso, cavalo manco, faca sem fio,
joga tudo no rio!
CAVALO Seja Rex, Duque, Lulu ou Lorde, cachorro que late não morde!
CACHORRO Não provoca que sou cachorro de cara e dente e focinho pra
frente!
CAVALO E eu sou cavalo corado e capaz, com os olhos do lado e rabo
pra trás! (OS DOIS COMEÇAM A LATIR E A RELINCHAR E
AMEAÇANDO UMA BRIGA. O NARRADOR-GALO CANTA E
CONTINUA A NARRAÇÃO.)
GALO Do que sei dessa história, o dia de Biel foi mesmo um dia de
cachorro e trouxe uma verdade que doeu como um coice de
cavalo! Lá está vindo a velha Ceição, a antiga e boa
empregada da família. Pelo que eu sei, ela não traz boas
notícias para Biel. (ENTRA CEIÇÃO.)
CEIÇÃO Biel, vem cá que eu vou lhe contar uma história. (BIEL VEM
CORRENDO, FELIZ, E SENTA-SE AO PÉ DE CEIÇÃO) Quem
me contou essa história foi uma pulga que morava na milésima
terceira dobra do paletó de um andarilho. Num lugar bem
8

longe, bem pra lá do mar Operenciano vivia numa casinha
pobre, mas bonita, um casal que queria muito ter um filho. Ela
e o marido pediram tanto, tanto, com tanta vontade e fé que
seu pedido voou pelo ar, atravessou desertos e florestas até
chegar do outro lado do mundo, aos ouvidos de uma deusa
que era a mãe de todos os seres. Ela ouviu e soprou de volta.
E o sopro da deusa voou, voou até chegar ao casal que
respirou aquele sopro divino. E para alegria do casal a mulher
ficou esperando um filho. O pai ficou tão feliz que deu uma
festa, bebeu demais e espalhou um segredo: o filho que ia
nascer ia achar um grande tesouro. Não foi preciso mais nada:
assim que o menino nasceu um casal vizinho, invejoso, roubou
a criança e se revirou pelo mundo afora que ninguém mais viu
nem achou.
BIEL E a mãe?
CEIÇÃO A mãe chorou, rezou, procurou, mas não encontrou nem tico
de rastro, nem pedaço de sombra, nem meia notícia do filho.
BIEL Coitada! E, depois?
CEIÇÃO Depois, chamou uma velha e fiel empregada, entregou uma
carta e disse: Vai, vasculhe metade do mundo, cada rua, cada
caminho, cada casa até encontrar meu menino. Essa carta
será a prova de que sou a mãe e de que ele é o filho. Então, a
empregada foi procurar na metade do mundo e a Mãe e o Pai
na outra metade. E foi só eles botarem o pé no caminho que a
casinha, de tristeza, deu um estalo, as paredes racharam e o
telhado desabou. E ficou só poeira.
BIEL (IMPACIENTE) E acharam o menino?
CEIÇÃO Vai escutando. O que eu sei que aquela empregada perguntou
pras pessoas do caminho, perguntou para a chuva que cai em
quase todo mundo, perguntou para o vento que sopra em todo
9

lugar, mas ninguém deu notícias. Mas o sol que ilumina todo o
mundo, em uma manhã, atravessou a janela de um
apartamento onde não entrava vento nem chuva e viu o
menino, que agora já tinha sete anos. E contou para a velha
empregada. Mais do que depressa ela se empregou naquela
casa. (CEIÇÃO PARA DE CONTAR)
BIEL E como acaba a história?
CEIÇÃO Não sei, mas agora a história chega ao seu momento mais
importante. (CEIÇÃO MOSTRA A BIEL AS MÁSCARAS DE
BRUXA E DE OGRO.)
BIEL São do meu sonho!
CEIÇÃO Não foi sonho! Tenha coragem, Biel. (CEIÇÃO LHE ESTENDE
A CARTA)
BIEL É a carta? Você é a empregada, Ceição? (COMEÇA A
CHORAR) É mentira! (CEIÇÃO O ABRAÇA)
CEIÇÃO É verdade, Biel! Eles não são seus pais! Eles só querem o seu
tesouro!
BIEL Não sei de tesouro nenhum!
CEIÇÃO Mas vai achar! É a profecia que está marcada no seu nome!
BIEL Fugir pra onde?
Fuja, Biel! Tenho medo do que esse ogro e essa bruxa podem
fazer com você! Eles não demoram a chegar.
CEIÇÃO Pro mundo! Vai procurar seus pais!
BIEL Sozinho? Mas como vou reconhecer meus pais?
CEIÇÃO Vai ser difícil. Antigamente era mais fácil, mas hoje, não se
sabe que bruxo faz essa magia, pais de papel passado se
transformam em padrastos dos filhos e quando menos se
10

espera descobre-se no peito de uma madrasta, um coração de
mãe.
BIEL Não entendo direito!
CEIÇÃO Aos poucos vai entender. Olhe nos olhos das pessoas que é
por eles que se vê o coração.
BIEL Vem comigo pra me ajudar!
CEIÇÃO Só você pode fazer isso! Tenha coragem, tenha fé, tenha
esperança!
BIEL O mundo é perigoso!
CEIÇÃO É, mas não tanto quanto falam! Vai, menino! (ENTREGA-LHE
BIEL Tenho medo!
A CARTA) Nunca se separe dessa carta! Só sua verdadeira
mãe sabe o que está escrita nela!
CEIÇÃO Coragem! Mesmo com medo, vai! Dá um abraço! (BIEL
ABRAÇA FORTE CEIÇÃO.) Ninguém nunca está só, Biel! É só
olhar do lado e perceber! (OUVE-SE FORA AS VOZES DO
OGRO E DA BRUXA)
OGRO OFF O dia vai ser hoje! (A BRUXA RI)
CEIÇÃO Vai, meu menino! Vai! (ENTREGA-LHE UMA PEQUENA
MOCHILA. BIEL SAI CORRENDO)
Cena 2 – Outras crianças e outros padrastos
ENTRA O NARRADOR-PORCO RONCANDO E FUÇANDO
PRA LÁ E PRA CÁ A PROCURA DE COMIDA.
11

PORCO Do que eu vi, do que eu sei e do que me contaram a história
seguiu assim: (APONTA PARA ONDE CHEGAM A BRUXA E O
OGRO. OS DOIS INTERROGAM CEIÇÃO.)
BRUXA Cadê o menino?
CEIÇÃO Ele descobriu tudo e fugiu! (MOSTRA-LHES AS MÁSCARAS.
OS DOIS AS PEGAM E AS COLOCAM EM SEUS ROSTOS)
BRUXA Pra onde ele foi, sua imprestável! (CEIÇÃO APONTA A
DIREÇÃO CONTRÁRIA.) Eu vou por aqui, você vai por ali.
(INDICA AO OGRO A DIREÇÃO CERTA POR ONDE BIEL
SAIU) Se achar o menino traga-o são e salvo. (O OGRO RI,
CONTENTE E VAI SAINDO.) E inteiro! Sem comer nenhum
pedaço! (O OGRO SAPATEIA O CHÃO COM RAIVA. PARA
CEIÇÃO.) Vai acender o forno! Ou ele revela que tesouro é
esse ou vira leitão pururuca! (CEIÇÃO SAI.)
PORCO (REVOLTADO) Ei!
OGRO Cozinhar, fritar, grelhar, assar, pra quê? Me deixa, pelo menos,
comer um dedo cru, uma mão, um braço, uma perninha dele
com vinagrete?
BRUXA Ah! Que nojo, seu porco!
PORCO Você tem alguma coisa contra porcos, leitões, javalis e outros
parentes meus?
BRUXA É só modo de falar! (AO OGRO) Vamos, rápido! (OS DOIS
SAEM. )
PORCO Modo de falar! Essa bruxa é uma cachorra ordinária! E aquele
ogro é um cavalo. (CACHORRO E CAVALO SURGEM)
CACHORRO Que é que você tem contra cachorros?
CAVALO E contra cavalos?
12

PORCO Nada! É só modo de falar! Mas volto à história porque neste
instante o menino Biel já esta longe caminhando na estrada do
mundo! (SURGE A ESTRADA DO MUNDO. BIEL VAI
CANTANDO)
BIEL O mundo não é tão feio como se pinta
Nem tão mau como se acha
É só uma caixa
Com tintas de muitas cores
Não é só cinza
Nem só rosa
Nem só dores
É só uma caixa de tintas, no fundo
E se ele me pinta
Com suas cores
Com minhas cores
Também pinto o mundo!
(ENQUANTO BIEL CANTA SURGE UM CORO DE MENINOS
E MENINAS QUE CANTA JUNTO COM ELE. O CORO ESTÁ
ATRÁS DE JANELAS, SUAS CASAS.)
CORO Ei, menino, onde é que vai?
BIEL Procuro meus pais pelo mundo.
CORO No fundo, esse também é nosso desejo
Mas aqui estamos presos
Desde que nossos pais sumiram.
BIEL Fugiram? Foram roubados? Transformados?
CORO Uns estão no trabalho
Pra ganhar o sustento
Outros buscaram atalhos,
Fugiram, se foram com o vento
13

MENINA Veja a extravagância!
Meu pai mudou de um momento
Pra outro
Não o reconheço,
E quanto mais cresço
Mais cresce a distância.
O rosto é o mesmo
Mas a alma foi embora
Perdida, à esmo, lá fora,
No mundo.
BIEL Então, vamos comigo procurar nossos pais.
CORO O mundo é grande
E somos pequenos
Nem ao menos
Temos um guia
Aí, nos perdemos
Logo anoitece e o dia
Se vai nessa estrada sem fim
A vida é assim,
Ficamos aqui.
BIEL Pois eu, na procura,
vou ao fim
Do mundo e retorno.
E torno a andar
Enquanto houver
Vida em mim!
E se apenas restar
Só um sopro no fim,
Meu sopro no vento
Vai procurar meus pais
por mim!
14

CORO Nós temos medo!
Somos pequenos
A noite logo chega
Traz o escuro, sereno, friagem.
Temos medo de pôr o dedo, o nariz
Pra fora de casa.
Vai, Biel, e nos traga
O segredo
De tanta coragem!
BIEL (PARA SI) Não tem segredo nem coragem. Estou é duro de
Cena 3 – A cidade
medo, mas não quero nem falar. (COMEÇA A ESCURECER)
Que a noite corra e chegue logo chegue amanhã cedo. Preciso
é andar, apesar do medo, apesar de não saber pra onde andar.
(OLHA PARA A CARTA E A GUARDA NOVAMENTE) Anda,
Biel, que é preciso andar!
(ENTRAM OS QUATRO ANIMAIS NARRADORES,
MARCHANDO JUNTOS E CANTANDO)
TODOS Óinc!, Irri-iii-rriiim! Cucurucú! Au, au!
O mundo não é tão mau!
Não tem coisa melhor
GALO Que ciscar na rua
CAVALO Que pastar na praça
CACHORRO Que latir pra lua
PORCO Fuçar e fazer arruaça!
15

TODOS Óinc! Cucurucucu! Au, au! Irri-iii-rriiim!
A noite não é tão ruim!
GALO Tem estrelas no céu!
CAVALO O ar é sempre mais puro!
CACHORRO O orvalho cai como véu!
PORCO Tem sempre uma luz no escuro!
TODOS Au, au! Irri-iii-rriiim! Óinc! (PAUSA. MENOS O PORCO.) Óinc?
PORCO (AFIRMATIVO) Óinc!
GALO Por minhas penas!
CACHORRO Por meus pelos
CAVALO Por minha crina!
TODOS (À EXCEÇÃO DO PORCO)
Porco burro!
Óinc não tem rima! (PORCO SOCA O AR INCONFORMADO.
RETOMAM O CANTO)
Óinc! Irri-iii-rriiim! Au, au! Cucurucú!
Eu, nós, eles e tu!
Atenção que estamos perto
Antes que seja tarde
Silêncio! Olhos abertos
Que chegamos na cidade!
(OS NARRADORES ANIMAIS DESFRALDAM BANDEIRAS
COM PRÉDIOS E CORREM PELO PALCO E ENVOLVEM
BIEL QUE ENTRA UM TANTO ASSUSTADO E OUTRO
TANTO CURIOSO OLHANDO OS ESTANDARTES QUE OS
ANIMAIS NARRADORES PORTAM. ESTES LOGO MUDAM O
JOGO E CORREM COM FARÓIS, BUZINAS DE CARROS E
16

TAMPAS DE PANELAS COMO VOLANTES . BRINCAM DE
CARRO, TROMBAM E DISCUTEM, FREIAM, FAZEM
CURVAS, ACELERAM. TUDO É SEGUIDO PELO OLHAR
ASSUSTADO E CURIOSO DE BIEL. AO FIM, OS CARROS
“PERCEBEM” BIEL E AVANÇAM PARA ELE QUE CORRE
PELO PALCO. ENCURRALAM BIEL E QUANDO VÃO PARA
O AVANÇO FINAL UMA MENINA NEGRA, CÉU, ENTRA
CORRENDO E O PUXA DE LADO. OS CARROS PASSAM AO
LARGO TIRANDO UMA FINA DE BIEL.)
CÉU Você é tonto, moleque?
BIEL Não sou moleque, tenho nome!
CÉU Quem tem nome não tem fome
Igual você que nem parece homem
Com essa cara de tonto! Dorme no ponto
Que jacaré te abraça!
BIEL Rá, rá, rá, que graça! Pelo menos não sou menina de rua!
CÉU Minha casa é a mesma que a sua! A parede é o muro, o piso é
a calçada, o teto é a lua e a ladeira é a escada!
BIEL Tenho casa, sim!
CÉU E porque não está nela?
BIEL Fugi!
CÉU E por que?
BIEL Não interessa!
CÉU Não tem pressa que logo você ganha o seu! Mal agradecido!
BIEL Ei, ei!
(AFASTA-SE. BIEL A CHAMA)
17

CÉU Que foi?
BIEL Desculpa.
CÉU Só isso?
BIEL Obrigado.
CÉU Mais nada? (BIEL PENSA E DEPOIS TIRA A MOCHILA E A
BIEL Quer?
ABRE. TIRA DELA UM SANDUÍCHE)
CÉU A hora é boa. (SENTAM-SE E DIVIDEM O LANCHE.)
BIEL Meu nome é Biel e o seu?
CÉU Céu! (BIEL RI.) Tá rindo do que? Biel! Nome de tonto!
BIEL Vem de Gabriel, nome de anjo!
CÉU Grande coisa! Sou Maria do Céu, então viemos do mesmo
lugar! ( ENTRA O NARRADOR-PATO GRASNANDO,
SACUDINDO O RABO, ABRINDO E FECHANDO
RAPIDAMENTE A BOA A PROCURA DE COMIDA. CÉU COM
UM GESTO ESPANTA O PATO QUE VOLTA DE NOVO. ELA
LHE JOGA UM PEDAÇO DE PÃO. O PATO COME.
SUBITAMENTE BIEL COMEÇA A CHORAR BAIXINHO. O
PATO VÊ E SE COMOVE TAMBÉM MAS CHORA DE
MANEIRA CÔMICA. )
CÉU (IRRITADA) Bebê-chorão! Vou embora!
BIEL Porque? Você não chora?
CÉU Não!
BIEL É que eu não sei onde estão meus pais.
18

CÉU Os meus eu sei muito bem. Morreram igual meu avô! (BIEL SE
ESPANTA)
BIEL Nossa! Morreram como?
CÉU Não sei, não quero saber, tenho raiva de quem sabe! Tchau!
BIEL Não vai, por favor!
CÉU Então não chora! (VOLTA E SENTA-SE JUNTO DE BIEL.
PATO AFASTA-SE DELES E COMEÇA A NARRAR.)
PATO Enquanto eles ficam ali, sozinhos na noite, eu conto pra vocês
tudo o que sei e o que não sei. Porque na minha conta que
soma tudo o que lembro menos o que esqueci, multiplicado
pelo que invento, dividido pelo que acrescento, mais as
mentiras que ouvi, a verdade verdadeira dessa história de
mentira foi assim: Do lado de lá do mundo, onde o sol se deita
os pais de Biel continuam procurando o menino, do lado de cá,
à espreita, estão a Bruxa e o Ogro. E aqui a situação não se
ajeita!
CÉU Você não sabe nada! É um besta!
BIEL Besta, não! É que sou pequeno, tenho só sete anos!
CÉU Eu tenho oito. Eu decido, você obedece! A gente vai pras
montanhas.
BIEL E por que?
CÉU Porque tem uma profecia no meu nome. Vou encontrar um
tesouro que é uma caixa cheia de jóias e brilhantes!
BIEL Mentira! Eu é que vou encontrar. Foi por isso que me
roubaram!
CÉU Mentira, não! Foi minha vó que falou!
19

BIEL Você não tem nem vó!
CÉU Tenho, sim! Mora lá nas montanhas!
BIEL Mentirosa!
CÉU Não sou! (PATO INTERROMPE COM AUTORIDADE)
PATO Quááá! (CÉU E BIEL FALAM JUNTOS)
CÉU Foi ele que começou!
BIEL Foi ela que começou! A profecia do tesouro é minha!
PATO Não se sabe por que, mas é verdade confirmada que toda
criança no momento em que nasce recebe, junto com o nome,
a profecia de um tesouro.
BIEL Toda criança?
PATO Sem faltar uma!
CÉU E que tesouro é esse?
PATO Não sei, sou pato não sou criança! Às vezes é ouro, às vezes
mais valioso, sem preço!
BIEL E onde está?
PATO É bebé? Mamar na vaca você não qué! Além de ganhar quer o
endereço?! Vai procurar!
CÉU Dá ao menos um dica, uma direção!
PATO (SAINDO) Tomem nota: Sigam ao norte, virem ao sul, dêem a
volta, dobrem a leste e quebrem a oeste! Trilhem a rota até
chegar onde Judas perdeu as botas! (SAI. AS CRIANÇAS
FICAM PERPLEXAS. ENTRA UM CASAL DE VELHOS)
VELHA O que fazem sozinhos rua, meus netinhos?
20

VELHO Tão crianças e já perdidos no mundo!
CÉU Tô perdida, não! Estou indo pra casa da minha avó nas
montanhas!
VELHA E você, menino, o que faz com essa menina rueira? Não vê
que ela é má companhia?
VELHO Ela é estradeira, pobre, gente de má fama e má valia. E,
depois, o dia inda demora nascer...
VELHA A noite inda vai longe e esconde estranhos ruídos, zumbidos....
(OUVEM-SE RUÍDOS, CRIANÇAS SE ASSUSTAM. )
VELHO Inesperados perigos... terríveis inimigos... e horríveis umbigos!
CÉU E BIEL Umbigos? (VELHA DÁ UM BELISCÃO NO VELHO)
VELHO É... Umbigos horríveis com enormes barrigas atrás, pernas
embaixo, cabeça no alto com focinho e dentes, rapaz!
VELHA E mais! Cães que uivam (UIVOS), gente sem sombra e
sombras sem gente que são parentes de vultos escuros que
espreitam em cada esquina, menina!
CÉU (FAZ FIGA) Credo em cruz, água e sal! Sem medo da noite,
nem das ruas, nem do mal!
VELHO Não adianta figa, reza, nem sinal! Essa noite é especial! Olha a
lua vermelha no alto... (CRIANÇAS OLHAM. OUVE-SE UM
GEMIDO. AS CRIANÇAS SE ASSUSTAM) Calma! Sem
sobressalto!
VELHA É só uma alma... penada
Que arrasta grossas correntes pelas estradas.
Volta pra casa, menino!
21

VELHO Ou seu destino será um só: a barriga do mundo e os dentes
das sombras que mordem sem dó! (AS CRIANÇAS FICAM
ASSUSTADAS, AFASTAM-SE E SAEM CORRENDO. VELHO
E VELHA RIEM E TIRAM A MÁSCARA REVELANDO AS
MÁSCARAS DO OGRO E DA BRUXA QUE TRAZEM POR
BAIXO.)
VELHA Crianças são fáceis de assustar!
V ELHO Tem muita imaginação! (OUVE-SE UM RUIDO. OS DOIS SE
PÕEM EM ALERTA.)
VELHA Que foi isso? (OUVEM-SE MAIS RUÍDOS. SONS
DESENCONTRADOS) São correntes arrastadas?
VELHO Lobos? Ladrões? Umbigos terríveis? (OS SONS DE
CORNETAS, TAMPAS, ETC,. TORNAM-SE MAIS INTENSOS
E DESENCONTRADOS)
VELHA Almas penadas! (OS DOIS GRITAM E CORREM SAINDO DA
ÁREA DE REPRESENTAÇÃO. ENTRA UM ESTRANHO
CORTEJO DE MÚSICOS (?) BATENDO TAMPAS DE
PANELAS, ASSOBIOS, CORNETAS, ETC, FAZENDO UMA
BALBÚRDIA DOS DIABOS. NO CENTRO DO CORTEJO,
PUXADO SOBRE CARROÇA COLORIDA UM HOMEM DE
CARTOLA E FRAQUE. CIRCUNDAM A ÁREA DE
REPRESENTAÇÃO ENQUANTO O HOMEM ANUNCIA.)
CARTOLA Deliciosos, dourados, dulcíssimos, doces! Saborosos, secos e
suculentos salgadinhos! Belas, brilhantes e baratíssimas
bijuterias! Grifes de grandes, graciosas marcas usadas nas
roupas do rei de Roma que ratos não roem! Escolham
crianças! Brinquedos que brincam sozinhos! Riquezas em
ouro! Tesouros, jóias e prata dos mouros! (ENTRAM CÉU E
BIEL. O HOMEM OFERECE A ELES ENQUANTO O
CORTEJO CANTA E DECLAMA.)
22

CORTEJO E CARTOLA
Delícia, doces, dourados salgadinhos
Quase de graça
Bolos e tortas
De finas massas
Bela, brilhante, burlante propaganda
Que lhes abraça
Sorria, veja, queira
Não adia, agora, deseja!
Chora, esperneia, peça!
Essa é a maneira eficaz
De conseguir mais
Brinquedos, delícias, sabores,
E cores da moda!
Soda sabor guaraná,
Batata sabor churrasco
Damasco sabor limão
Arroz sabor feijão
Laranja sabor ananás!
Brinquedo sabor melancia
Lichia aroma salame
Queijo sabor cenoura
Menta sabor inhame!
Aqui qualquer um ganha
Escolha o que quiser!
Bata o pé,
Faça manha!
É quase de graça
Doce, salgado, ouro.
Aqui é a caça
Ao tesouro!
23

(BIEL ESCOLHE UM BRINQUEDO E CÉU ESCOLHE UM
DOCE COLORIDO. LUZ CAI FUNDO MUSICAL CONTINUA E
EMENDA NA MÚSICA DA CENA SEGUINTE.)
Cena 4 – Mundo dos padrastos
UMA FÁBRICA. CRIANÇAS TRABALHAM FAZENDO DOCES
E BRINQUEDOS OU CAVANDO O CHÃO A PROCURA DE
OURO. ENTRE ELES ESTÃO BIEL QUE MARTELA MADEIRA
PARA FAZER UM BRINQUEDO E CÉU QUE MEXE DOCE
NUM TACHO. CRIANÇAS CANTAM CANSADÍSSIMAS.
CRIANÇAS Passa hora, cruza o sol,
Passa a noite cai o orvalho
De cansaço aqui eu passo
Dia e noite no trabalho.
Malho, mexo, serro, talho
Dia e noite no trabalho!
(PADRASTO PASSA AO FUNDO E GRITA)
PADRASTO Produção! A vida é dura pra quem é mole e o trabalho
enobrece!
BIEL Mas cansa! (MENINOS COM MEDO PÕEM O DEDO NA
BOCA E FAZEM “PSIU”)
CÉU E não enche a pança!
PADRASTO Quem falou? Ah!, se eu pego! Eu surro só pra ouvir ai, só pra
CÉU Quem é ele?
ver gemer, só pra escutar urro! Sou padrasto e não sou pai! Ao
trabalho! (SAI. CRIANÇAS AUMENTAM O RITMO)
24

MENINO Não ouviu? Aqui é o Mundo dos padrastos! Aqui criança
trabalha, apanha, fica de castigo!
MENINA É aqui que criança chora e mãe não vê!
BIEL Como é que eu vim parar aqui?
MENINO Você não escolheu brinquedo com o Cartola?
MENINA (PARA CÉU) Você escolheu doce. Vão trabalhar nisso pelo
resto da vida!
MENINO E fiquem felizes! Se tivessem escolhido ouro... olha lá!
(APONTA OS MENINOS QUE CAVAM)
MENINA Se tivessem escolhido dinheiro estariam pedindo esmolas nas
ruas e faróis... Ou fazendo coisa pior para enriquecer os
padrastos. (RAPIDAMENTE ELES SUSTAM A CONVERSA E
COMEÇAM A CANTAR E A TRABALHAR. LOGO, AO FUNDO,
PASSA O PADRASTO, OLHA O TRABALHO E SAI.)
CRIANÇAS Passa hora, cruza o sol
Passa o dia, a noite avança
Perca toda esperança
Quem aqui entrou.
Malho, mexo, serro, talho
Dia e noite no trabalho!
BIEL Mas somos escravos!
MENINA Somos!
BIEL Vamos fugir!
MENINO Voltar atrás é impossível, à frente há um deserto sem uma gota
de água, depois a esfinge, um monstro terrível! É melhor ficar
aqui!
MENINA E se passarem pelos dois, vem o Mundo dos mortos!
25

BIEL E CÉU Ave!
CÉU Então não há esperança?
MENINA Dizem que existe um Mundo das crianças. Mas ninguém nunca
viu. É só lenda!
(CRIANÇAS COMEÇAM A TRABALHAR. LOGO PADRASTO
ENTRA, OBSERVA UM TEMPO E, DEPOIS, SAI.)
CRIANÇAS Passa hora, cruza o sol
O mundo é o que é
Adultos são o que são
Somos só crianças
Num mundo sem coração.
Malho, mexo, serro, talho
Dia e noite no trabalho!
CÉU Eu aqui não fico!
MENINO Não tem pra onde ir! O mundo tem poucos pais e muitos
padrastos!
BIEL Eu vou encontrar meus pais!
CÉU Eu vou encontrar minha vó!
MENINA Quem foge e é pego leva surra de tirar a pele!
CÉU Que o calor do sol me queime e o frio da noite me gele,
Aqui não fico!
MENINO O mundo é o que é!
MENINA Adultos são o que são!
BIEL Adultos são o que são
Crianças serão... ou não! (GRITA) Vamos, Céu!
26

(OS DOIS LARGAM O TRABALHO E SAEM CORRENDO.
PADRASTOS CORREM ATRÁS DELES PELO PALCO, MAS
NÃO OS ALCANÇAM.)
PADRASTOS Eles voltam! Ah!, se voltam! Ao trabalho!
(CRIANÇAS TRABALHAM E CANTAM.)
CRIANÇAS Passa hora, cruza o sol,
Passa a noite cai o orvalho
De cansaço aqui eu passo
Dia e noite no trabalho.
Malho, mexo, serro, talho
Dia e noite no trabalho!
Cena 5 – O deserto e a esfinge
(BIEL E CÉU CAMINHAM CANSADOS PELO DESERTO. A
CERTA ALTURA CÉU PÁRA E SENTA-SE)
CÉU Só Céu e areia e andar por horas
Sem chegar ao fim.
Nada!
Nem árvore pra descanso
Nem remanso de rio de água fresca!
Só a crespa caminhada!
Ah!, Cansei de viver assim!
Volta ou vai em frente, Biel,
Eu fico aqui!
BIEL Temos de ir, Céu!
CÉU Pra onde? Olha em volta!
Não temos casa,
27

Nem rumo, nem ajuda
A fome é grande
A sede aguda
A vida é essa
E nada muda!
BIEL Não fala assim! A gente perdeu casa, os pais, mas esperança
CÉU Que foi, Biel?
a gente não pode perder nunca! (TENTA LEVANTAR CÉU.)
Levanta, Céu! Levanta! (BIEL TEM UMA VERTIGEM E CAI.
CÉU SE LEVANTA NUM PULO)
BIEL Não posso mais.
CÉU Você que falou pra não perder a esperança.
BIEL Esperança eu tenho. Não tenho é força.
(CÉU COM ESFORÇO COLOCA BIEL NAS COSTAS E
CAMINHA CARREGANDO O MENINO. ANDAM EM
CÍRCULOS PELA ÁREA DE REPRESENTAÇÃO. UMA
ESFINGE, MONSTRO HORRIVEL, FEITO DE MASTROS,
PANOS E MÁSCARA ENTRA NA ÁREA DE
REPRESENTAÇÃO.)
ESFINGE Estou sentindo cheiro de gente! Quem ousa entrar em meus
domínios! (CÉU E BIEL PARALISAM ASSUSTADÍSSIMOS.)
Ah! Carne pra minha fome! Crianças pra minha pança! Gente
amiga pra minha barriga! (AVANÇA. AS CRIANÇAS GRITAM)
CÉU Não nos coma, não, seu monstro!
ESFINGE Não me chame de monstro! Sou uma esfinge! E como qualquer
um que não responda a três perguntas! Primeira: Duas
companheiras vão à compasso. Uma perna na frente, atrás
28

outro passo. (CRIANÇAS PENSAM UM POUCO REPETINDO
A PERGUNTA. BIEL FAZ O GESTO COM OS DEDOS)
BIEL A tesoura! (ESFINGE SE IRRITA)
ESFINGE Segunda pergunta: O que é que é: no campo é verde, no
caminho é preto e em casa é vermelho? (CRIANÇAS
PENSAM.) Não adianta, vocês não acertam! Vou começar a
comer pelos dedos do pé da menina!
CÉU É carvão! É verde quando é árvore, preto quando foi queimado
e vermelho quando vira brasa! E vai comer os pés de uma
centopéia pra ver se é bom! (CRIANÇAS VIBRAM, ESFINGE
URRA DE RAIVA E COMEÇA A BRIGAR COM ELA
PRÓPRIA.)
ESFINGE Responde essa: O que é que se põe na mesa, corta, parte e
reparte, mas não se come? (ESFINGE BRIGA CONSIGO)
Essa não, burro! Essa é fácil!
BIEL É o baralho! (CRIANÇAS FESTEJAM)
CÉU Agora deixa a gente passar!
ESFINGE Não!
BIEL Trato é trato!
ESFINGE Fiz trato e faço destrato!
CÉU Não é justo!
ESFINGE Vocês são crianças fugidas, talvez até criminosas!
BIEL Não somos!
ESFINGE A sorte vai dizer. Proponho um novo contrato: (ESCREVE)
Escrevo num papelzinho “culpado”, no outro “inocente”. Dobro
e misturo bem misturado nas mãos. Quem escolhe? Se vocês
29

tirarem o papelzinho “inocente”, estão livres. Se tirarem o
papelzinho “culpado” vou comer um de vocês cru com salada
de ervilhas e grão de bico! Quem escolhe?
CÉU Ele escreveu culpado nos dois papéis, Biel, eu vi.
BIEL Então, não tem jeito, estamos perdidos! (PAUSA. CÉU TEM
UMA IDÉIA)
CÉU Não! A esperança não morre! Minha vó mandou pegar esse
daqui, mas como sou teimosa escolho esse daqui! (CÉU PEGA
UM DOS PAPEIS. )
ESFINGE (COM VOZ MELÍFLUA) Abre e lê o que está escrito nele,
menina! (CÉU FAZ UM POUCO DE SUSPENSE, DEPOIS
RAPIDAMENTE O PÕE NA BOCA E ENGOLE,)
ESFINGE Que é que você fez, sua enxerida?
CÉU Engoli. Você não escreveu “culpado” em um e “inocente” no
outro? Abre o papel na sua mão. Se nele estiver escrito
“culpado” como eu acho que está, no papel que eu engoli
estava escrito inocente! (A ESFINGE FICA PERPLEXA)
ESFINGE Mas... mas... (BIEL CAI NA GARGALHADA E ABRAÇA CÉU.
O OGRO E A BRUXA QUE FORMAM A ESFINGE DISCUTEM.
BIEL DESCONFIA) Chega! Acabou a brincadeira! Ou você
volta pra casa, menino, ou vou comer os dois já, sem fritar nem
tostar!
ESFINGE (BRUXA) Que nojo! Nem morta! Mal passado como picanha
ainda aceito! Cru, nunca! (BIEL PUXA UM DOS PANOS QUE
FORMAM A ESFINGE.)
BIEL É a bruxa e o ogro! Vam´bora, Céu! (OS DOIS CORREM.
OGRO E BRUXA SAEM DISCUTINDO)
30

OGRO Não se come verdura crua? Peixe cru? Pernil cru? Porque um
pobre ogro não pode comer criança crua?
BRUXA Porque é asqueroso! Criança defumada ou flambada, eu ainda
aceito. Cru, nunca!
OGRO Pra que estragar o prato? Nos melhores restaurantes do
mundo dos ogros se come criança crua! É muito mais saudável
e não dá colesterol! (SAEM.)
Cena 6 – O mundo dos mortos
PORCO E aí?
PATO Não vi nada!
(PENUMBRA. ENTRA O NARRADOR-PORCO, PATA ANTE
PATA, OLHA COM A MÃO EM PALA NUMA DIREÇÃO E
GRUNHE E TREME DE MEDO. FAZ UM SINAL PARA FORA
DE CENA. OUVE-SE UM GRASNADO E ENTRA O
NARRADOR-PATO. PORCO APONTA NA DIREÇÃO EM QUE
OLHOU. CACHORRO OLHA.)
PORCO (COM MEDO) Ai! Lá é o Mundo dos mortos e almas são
invisíveis! Se você não está vendo nada, quer dizer que elas
estão todas lá! (PATO OLHA ASSUSTADO AO REDOR) Que
foi?
PATO Não estou vendo nada aqui também!
PORCO Ai! Então, elas estão aqui!
PATO Ali também não vejo nada! E lá! E acolá! Não vejo nada em
nenhum lugar!
31

PORCO São elas! Socorro! Polícia! (GRITAM E CORREM PRA LÁ E
PRA CÁ ESPAVORIDOS)
PATO Padre! Pastor! Pai de santo! (OUVE-SE UM TROPEL DE
CAVALO. OS DOIS PARAM A GRITARIA. PATO GRITA,
ASSUSTADO.) Mula sem cabeça! (OS DOIS RETOMAM A
GRITARIA. OUVE-SE UM UIVO. PARAM.)
PORCO Lobisomem! (ABRAÇAM-SE E TREMEM DE MEDO. PATO
ABRE OS OLHOS ASSUSTADO)
PATO Agora estou vendo! É uma luz.
PORCO Grande?
PATO Pequena. É uma vela!
PORCO Ai! Fantasma!
PATO Alma penada! (ABRAÇAM-SE E TREMEM. ENTRAM
TATEANDO O ESCURO O CAVALO E O CACHORRO. O
CACHORRO CARREGA UMA VELA. CACHORRO UIVA) É o
fantasma de um lobisomem!
CAVALO Que os dois estão fazendo abraçadinhos no escuro? (OS DOIS
PERCEBEM O CAVALO E CACHORRO. PORCO EMPURRA
PATO.)
PORCO É briga, mas já terminou! Pra que a vela?
CACHORRO Para o escuro! Estamos perto do Mundo dos mortos!
PATO Não fala disso!
CAVALO Não tenham medo. Quando um morto aparece, primeiro se
forma uma névoa... depois ventania... (COMEÇA A SE
FORMAR-SE NÉVOA E SOPRA O VENTO)
CACHORRO Um ou dois gritos de agonia... (OUVEM-SE)
32

CAVALO E ruídos, brados, risadas... (RUIDOS, RISADAS)
CACHORRO Toca um sino... (OUVE-SE UM SINO)
CAVALO (PERCEBENDO ALGUMA COISA FORA DE CENA) E logo se
vê o vulto de uma alma penada! (OS OUTROS NARRADORES
OLHAM E TREMEM COMICAMENTE. SAEM CORRENDO E
CRUZAM COM BIEL E CÉU QUE ENTRAM. ELES,
ESPANTADOS, DÃO PASSAGEM AOS QUATRO.)
BIEL Estou com medo, Céu.
CÉU Eu também!
BIEL Vamos voltar!
CÉU Não. O único jeito é ir em frente até achar o Mundo das
crianças. Lá a gente vai ficar livre da fome, do trabalho, da
tristeza, dos padrastos. Dizem que lá, todo adulto é pai e toda
mulher adulta é mãe. Ou a gente segue em frente ou estamos
perdidos.
BIEL Então, vamos! (CÉU PERMANECE PARADA.) Vamos, Céu!
CÉU Você viu, Biel?
BIEL Vi. Vam’ bora.
(CÉU COBRE OS OLHOS COM AS MÃOS. BIEL OLHA NA
DIREÇÃO QUE CÉU OLHAVA E ESTATELA OS OLHOS AO
VER CAMINHANDO NA DIREÇÃO DELES UM VELHO
NEGRO. BIEL FECHA OS OLHOS IMEDIATAMENTE.)
CÉU Estou dura, tesa e presa! (PAUSA. O VELHO CONTINUA SE
APROXIMANDO DELES.) Vê se ele já foi embora.
BIEL Tô com medo! Vê você que é mais velha que eu!
CÉU Sou mais velha, mas sou mulher. Você não é homem?
33

BIEL Sou só um pouquinho. Só quando crescer vou ficar homem
inteiro.
CÉU Vou dar só uma olhadinha. (COM ESFORÇO ABRE UM OLHO,
DEPOIS O OUTRO. NÃO VÊ NINGUÉM, O FANTASMA ESTÁ
DO OUTRO LADO. ALEGRA-SE, MAS ESTATELA DE SUSTO
QUANDO O VÊ.) Ai! (REPARA NAS MÃOS DO FANTASMA)
Ele é negro!
FANTASMA (PESAROSO) Por que vieram até aqui, crianças? (OS DOIS
SE ASSUSTAM. CÉU SE ENCOLHE E FECHA OS OLHOS)
BIEL Responde você!
CÉU Já ouvi essa voz! (CÉU ABRE OS OLHOS.) Essas mãos! A
mesma cicatriz! (LENTAMENTE E COM MUITO MEDO CÉU
LEVANTA OS OLHOS PARA O FANTASMA.) Vô?!!
FANTASMA Mariazinha do Céu?!! (CÉU ABRE OS BRAÇOS PARA
ABRAÇÁ-LO)
CÉU Que saudades, vô!
FANTASMA Não, Céu, não me abrace! Sou só ar, imagem, vento, só
lembrança e pensamento.
CÉU O senhor é uma boa lembrança que guardo do mundo. O
senhor e a vó! É meu vô, Biel! (BIEL ABRE OS OLHOS)
FANTASMA (PESAROSO) Porque vieram aqui, neste lugar de onde
ninguém volta?
CÉU Era a único caminho para chegar ao Mundo das crianças.
FANTASMA Não deviam ter feito isso! Agora, um de vocês vai ter de ficar.
Você, que é minha neta, segue, o menino fica! (AS CRIANÇAS
ARREGALAM OS OLHOS. OS OLHOS DE CÉU COMEÇAM A
LACRIMEJAR)
34

CÉU Não, vô, não faz isso!
FANTASMA É a lei deste lugar, Céu! Quem vem a esse mundo deixa aqui
um bem precioso. O menino vai deixar a vida. (BIEL E CÉU
COMEÇAM A SOLUÇAR) A não ser que você tenha outro bem
tão preciso pra deixar aqui, menino. (BIEL COMEÇA A
CHORAR E TIRA A CARTA DE SUA MÃE DAS ROUPAS)
CÉU A carta, não, Biel! Como você vai reconhecer sua mãe no
mundo? (OLHA O AVÔ E PEDE) Vô?!
FANTASMA É a lei, Céu, nada posso fazer!
CÉU Então, eu fico. Corre, Biel! (BIEL SE MANTÉM IMÓVEL.
DEPOIS, ENTREGA A CARTA AO FANTASMA.)
FANTASMA Vocês foram corajosos. É justo que ganhem o prêmio.
Esqueçam o sofrimento, o cansaço, as agruras! Sigam com
esperança! Eu abro pra vocês o portal do Mundo das crianças!
(FAZ UM GESTO E O PALCO TODO SE ILUMINA AO SOM
DE MÚSICA MAJESTOSA. O VELHO SE AFASTA
ENQUANTO ANÕES INVADEM O PALCO CANTANDO,
BRINCANDO, FAZENDO MALABARES, SOPRANDO
BOLINHAS DE SABÃO, CARREGANDO SKATES, PIÕES,
PIPAS, PULANDO CORDA E OUTROS BRINQUEDOS
INFANTIS.)
Cena 7 – Mundo das crianças
ANÕES Benvindos! Benvindos!
São lindos os dias
As noites sem medo
35

Café quente logo cedo
Pão, pudim e alegria.
Festa, uma por dia,
Ninguém xinga, ninguém surra
Nem grita “criança burra!”
Aqui nunca tem castigo
É castelo, é abrigo
De todo sonho infantil.
Ninguém cresce, ninguém morre
Toda hora é corre-corre
De brinquedo e diversão!
Sobremesas aqui são mil,
Sorvetes mil e duzentos
Trinta tipos de passeios
No período de um mês!
Gargalhada e travessura
O que é bom tem de fartura
Esse Mundo é de vocês
BIEL Uau! Conseguimos, Céu! Conseguimos! (ABRAÇAM-SE E
CÉU Tristeza?
ANÃO Nem pensar!
BIEL Trabalho?
BRINCAM COM OS ANÕES.)
ANÃO É só brincar! Aqui se voa no ar!
BIEL De verdade?
ANÃO De verdade. Logo vai aprender, logo vai levitar!
BIEL Uau!
36

CÉU Adultos?
ANÃO Não há! Não há! Não há!
Nem ordens, nem palmatória,
Nem cara feia, nem repreensão,
À noite contam-se histórias
Tudo é paz no coração.
TODOS BRINCAM DE RODA, PULA CORDA, BOLINHAS DE
GUDE ENQUANTO SE CANTAM UMA SÉRIE DE MÚSICAS
DE FOLGUUEDOS INFANTIS (“Có, có, có,” “ Que lindos
olhos”, “ Bela pastora”) FINALIZANDO COM “Romã, Romã”.
(CD Villa-Lobos para crianças, CD Baile do Menino Deus.)
BIEL Quero ficar aqui pra sempre!
CÉU Nunca mais voltar àquele mundo!
BIEL Vamos brincar de novo? Aqui é tão bom que nem me lembro o
que a gente tava procurando antes.
CÉU Vamos lá! Se a gente esqueceu é porque não tinha de lembrar!
(VOLTAM ÀS CANTORIAS E BRINCADEIRAS. A MÚSICA
CORRE ALTA E ALEGRE ATÉ QUE BRUSCAMENTE VAI
PARANDO COMO UM DISCO CUJA ROTAÇÃO DIMINUI. AS
CRIANÇAS ENTREOLHAM-SE, SUPRESAS. UM ANÃO
DESENROLA UM PERGAMINHO E FAZ UMA
PROCLAMAÇÃO.)
ANÃO Atenção para a proclamação do rei dos Anões:
Nossa pequena alteza lembra a todos que são proibidos
adultos em nosso mundo! (TODOS APLAUDEM.) E, para que
nosso mundo assim continue, as crianças de nosso mundo
param de crescer aos sete anos! Nossa pequena alteza
denuncia que um ser de oito anos invadiu nosso mundo! (AS
37

BIEL Corre, Céu!
PESSOAS SE ESPANTAM) E ordena que seja imediatamente
preso! (AS PESSOAS SE ENTREOLHAM, DEPOIS OLHAM
PARA BIEL E CÉU. BIEL ABRE OS BRAÇOS PARA
PROTEGER CÉU E GRITA.)
(CÉU TENTA CORRER, MAS LOGO É SEGURA E LEVADA A
JULGAMENTO.)
Cena 8 – Julgamento, expulsão e retomada da saga
(UM ANÃO DE PERUCA ANELADA COMO OS JUÍZES
INGLESES PRESIDE O JULGAMENTO)
JUIZ Quantos anos você tem, menina?
CÉU Oito!
JUIZ Culpada! Condenem a acusada!
BIEL Não é justo! Ela não fez nada!
JUIZ Fez! Já passou dos sete anos e vai continuar crescendo até
ficar adulta! (A PLATÉIA EMITE EXCLAMAÇÕES DE
ESPANTO E DESAGRADO)
BIEL Mas ela não tem culpa!
JUIZ Mas vai ter. Vai crescer
Virar adulta e endurecer o olhar!
Vai dar ordens como se tivesse poder!
Vai entristecer, inventar
E obedecer regras,
Muitas vezes sem sentido algum.
38

Vai se julgar superior,
Explorar crianças no trabalho,
Desistir de sonhar
Acreditar só no que
Seus curtos olhos
Podem ver
Só no que sua ambição
Pode ganhar.
CÉU Não vou ser nada disso!
BIEL Acreditem nela! É verdade! É minha amiga!
JUIZ As pessoas crescem. Poucas tornam-se pais. Muitos viram
padrastos. Não vamos correr esse risco, menino! Condenada!
( AS PESSOAS AGARRAM CÉU E A CONDUZEM EM
CORTEJO CANTANDO UMA MARCHA GRAVE QUE É
ACOMPANHADA POR UM SURDO.)
CORTEJO Condenada! Condenada!
Nas agruras do mundo
Vai perder a doçura
Do olhar!
Condenada! Condenada!
Vai perder o riso da infância
E no dia a dia
Gastar toda esperança!
Condenada! Condenada!
Vai crescer, correr riscos
Andar no fio da espada!
Condenada! Condenada!
(LEVAM CÉU ATÉ À DIVISA DO MUNDO DAS CRIANÇAS)
JUIZ Esta menina, Maria do Céu, é condenada a ser expulsa do
39
mundo da infância! (CÉU ATRAVESSA O LIMIAR E VOLTA-SE

E OLHA COM TRISTEZA O MUNDO QUE ABANDONA. FAZ
UM ACENO PARA BIEL.)
CÉU Tchau, Biel, fica bem. Aproveita a sua infância. (VOLTA-SE E
DISTANCIA-SE. BIEL A CHAMA.
BIEL Céu! (CÉU SE VOLTA E BIEL CAMINHA EM SUA DIREÇÃO)
CÉU Que está fazendo, Biel?
BIEL A gente começou juntos, a gente segue juntos.
CÉU Não seja louco!
JUIZ Não seja bobo, Biel! Fique aqui no Mundo da infância. Olha pra
cá! Vê o que está perdendo! (BIEL ESTICA A MÃO PARA
CÉU)
BIEL Me ajuda, Céu! (CÉU O SEGURA PELA MÃO. AS PESSOAS
DO MUNDO DAS CRIANÇAS CHAMAM POR BIEL. “Biel!”
“Fica, Biel!”
BIEL Vamos, Céu. Não vou olhar para trás! (OS DOIS SAEM)
Cena 9 – Novamente o deserto
(CÉU E BIEL CAMINHAM PENOSAMENTE PELO DESERTO.
CAVALO NARRA PARA O PÚBLICO)
CAVALO Do que ouvi e guardei dessa história, só sei dizer que não sei o
que eles sentiam no coração. Tristeza? Coragem? Cansaço?
Tudo isso mais um restico de esperança. Caminhavam no
deserto, quente, escaldante durante o dia. E logo veio o
cavaleiro negro trazendo a bandeira da noite. E mais um
40

CÉU Vamos, Biel.
cavaleiro azul trazendo a bandeira do frio. E mais um cavaleiro
branco trazendo a bandeira do vento. E os três cavaleiros
ameaçaram levar o restico de esperança que havia.
(CAVALEIROS AGITAM SUAS BANDEIRAS, NEGRA, AZUL E
BRANCA. O PALCO COMEÇA A SE ENCHER DE NÉVOA.
CÉU E BIEL CAEM AO CHÃO EXTENUADOS. CÉU SE
ERGUE E TENTA LEVANTAR BIEL.)
BIEL Estou cansado, estou com frio, estou com sono!
CÉU Não podemos ficar ao frio, ao vento... Acorda, Biel! (BIEL MEIO
QUE SE ERGUE, TENTA ANDAR APOIADO EM CÉU, MAS
AMBOS CAEM NOVAMENTE AO CHÃO.)
CAVALO Do que eu sei foi assim. Ali ficaram um tempo até que... (CÉU
TENTA SE REERGUER. SURGE UMA MULHER VESTIDA DE
BRANCO.)
CÉU Biel... Vamos, Biel!
MULHER (DE BRANCO) Vem comigo, crianças,
O cansaço pesa nos olhos
Durmam, sonhem, desistam
Vistam a cor da noite
E esqueçam... Esqueçam... Esqueçam...
(A MULHER VAI ATRAINDO AS CRIANÇAS PARA ELA. NO
ÚLTIMO INSTANTE CÉU REAGE.)
CÉU Não! (TENTA LEVANTAR BIEL) Acorda, Biel! Temos de sair
daqui! Acorda!
(COM ESFORÇO LEVANTA BIEL. LOGO UM VENTO
DISSIPA A NÉVOA E VÊ-SE UMA VELHA NEGRA QUE VEM
41

CANTANDO “O Anel” – CD Villa-Lobos para crianças”. A
VELHA PERCEBE E SE APROXIMA.)
VELHA Meu Deus do Céu!
CÉU Vó!
VELHA Maria do Céu!
(VELHA ACODE OS MENINOS E SAI COM ELES DA ÁREA
DE REPRESENTAÇÃO. CAVALO COMPLETA A
NARRAÇÃO.)
CAVALO E do que eu sei foi assim. (RELINCHA CHORANDO) Estou
emocionado. Não é porque eu sou um cavalo que eu não tenho
sentimentos! A avó de Céu acolheu as crianças com carinho,
sopa quente e cama quentinha. Até onde eu sei foi assim!
(ENTRA O CACHORRO)
CACHORRO Mas eu sei um pouco mais que me contaram, que me lembro e
não esqueci. Numa manhã de sol, Biel se despediu.
CÉU (TRISTE) Fica com a gente, Biel.
BIEL Vou procurar meus pais.
CÉU Mas sem a carta, como vai saber quem é sua mãe?
BIEL Tchau, Céu! Tchau, dona Vódacéu! Um dia eu volto. (CÉU E
BIEL SE ABRAÇAM. BIEL AFASTA-SE, CÉU SE VOLTA
CHORANDO.)
CÉU Do que eu sei e não inventei, foi assim: Fiquei triste, triste, mas
tristeza é boa quando prepara a alegria. Passou um tempo,
dois tempos, três tempos e, numa manhã, eu estava aqui sem
notícias quando um piolho que passou por estas terras, de
mudança, na cabeça de um andarilho, me contou de Biel. O
piolho disse que ele andou, procurou, varou chão e revirou
42

mundo até que... (ENTRA UM CASAL POBRE. A MULHER
CHAMA POR BIEL)
MULHER Menino! (BIEL A OLHA) Você por acaso não é um menino
roubado cuja ausência pesa o coração de uma mãe? Você tem
uma carta que diz assim?: meu filho, estou lhe procurando pelo
mundo...
BIEL Não tenho carta nenhuma!
MULHER É você? ... procurando pelo mundo e vou lhe encontrar numa
manhã de sol...
BIEL (DESESPERADO) Pára! A única carta que tinha, perdi.
MULHER É você!
BIEL Não sou! Adeus! (DÁ DOIS PASSOS PARA SAIR, VOLTA-SE)
Como vou saber que vocês não são padrastos disfarçados...
MULHER A carta dizia assim...
BIEL Não li a carta, não sei ler!
MULHER Escuta... Seu coração vai lhe dizer! ...vou lhe encontrar numa
manhã de sol. Não conheço seu rosto, mas vou adivinhar pelo
seu olhar...
BIEL E pela... (MULHER FAZ UM GESTO DE INCENTIVO) batida...
MULHER ...compassada de nossos corações. Ouça, meu filho,...
BIEL ...seu coração... nele está marcado...
MULHER ... o calor do meu ventre...
BIEL ... a tristeza da perda
MULHER/BIEL ... a certeza do encontro!
43

BIEL Mãe?
MÃE Filho! (ABRAÇAM-SE. MÚSICA GRANDIOSA. ENTRA
CACHORRO E PORCO)
CACHORRO E assim foi. Viveram felizes, juntos... mas Biel tem bicho
carpinteiro, não sossega o pé, não pode ver estrada, não
consegue ver linha do horizonte sem procurar saber o que tem
atrás. Um dia se despediu da mãe...
PORCO Abandonou a mãe e saiu pelo mundo? Sujeitinho ingrato, sem
vergonha! (MÃE DÁ UM CROC NA CABEÇA DO PORCO) Ai!
MÃE Não fala mal do meu filho! Meu tesouro já encontrei, como ele
vai encontrar o tesouro dele se não for procurar? (BIEL SAI
CAMINHANDO.) Ele volta. Mais encorpado, mais forte, mais
velho. Um filho sempre volta. (TODOS OS ATORES, COM
EXCEÇÃO DE BIEL E CÉU, OS DOIS FORA DE CENA,
CANTAM A CANÇÃO FINAL QUE É “O mundo não é tão feio
como se pinta... NO MEIO DA CANÇÃO BIEL SURGE E
REENCONTRA CÉU.)
Ribeirão Pires, 26 de janeiro de 2007
FIM
Qualquer utilização deste texto, parcial ou total,
deve ter a autorização do autor:
Luis Alberto de Abreu
Telefone: (0xx11) 4828-7230
e-mail: luabreu@uol.com.br
44