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A grande vó

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www.marcusmota.com.brA <strong>grande</strong> <strong>vó</strong>De Marcus MotaTexto publicado no meu livro A idade da terra e outrosescritos(Texto&Imagem, 1997).A peça explora imagens e figuras associadas a uma infância,como uma fábula de terror.Uma cama imensa com muitas roupas de cama, com todos os aparatos deuma cama patriarcal da qual os panos brancos e rendados vão para o chão edo chão se erguem para os céus, tomando o cenário inteiro, cama alta, da qualse pode ver em baixo bacias de metal cheias de água, cama como se dela tudoviesse, o quarto inteiro. Iluminação-cenário que realça sombras e luzes nofundo formando uma aura violeta cercando a cama; entre os imensostravesseiros, a <strong>vó</strong> dorme excessivamente maquiada, pálida, rugas, masmaquiada de prostituta . Gargalhada imensa e infindável misturando sua vozrouca de velha, sua voz de <strong>vó</strong> que é o que se espera dela, de morta, de agoniada morta, a morte bem viva falando por entre os desafios da respiração quedivide seu espaço com o riso espalhafatoso; nada de movimentos de braços - ocorpo ergue-se só no peito chamuscado de riso e falta de ar. A <strong>vó</strong> gargalha echora um pouco; após alterna um choro fininho por entre suas risadas. O papelda <strong>vó</strong> deve ser feito por um homem com mãos peludas. Entra a netinha. Ficaum pouco mais à frente da imensa cama tendo uma roupa de normalista. A <strong>vó</strong>permanece em sua agonia risonha coberta pelos lençóis até o meio do corpo ,entre os travesseiros altos. Na frente da cama deve haver um meio fio, umacalçada, um desnível no qual ela se senta e balança as pernas. Algumas vezesela vira os olhos para trás, para onde está a cama e a a<strong>vó</strong>; seu olhar é dequem já morreu; entre seu vestidinho curto e meias cumpridas, o rosto sempreo mesmo, só a voz alterna sua realidade emocional; ela é uma boneca, umcorpo sem alma. Sua fala deverá mostrar isso, como seu olhar já o faz.1


-- o coletor de imagens já vai passar. Dentro do seu saco cabem todas ascoisas do mundo. Ele vai andando e recolhendo tudo que vê. Dá muito trabalhoser coletor de imagens, tirar da terra o que as pessoas não querem mais ouesqueceram por aí. O saco volta e meia rasga e o chão volta a encher-se decoisas como antes. Eu fico aqui esperando sua passagem, torcendo para quecaia algo de bom, algo de diferente, algo para a saúde de vo<strong>vó</strong>, algo para ojardineiro que não janta com a gente. Acho que ele tem vergonha, acho que eleé o vovô que sumiu e nunca mais deixou de sumir lá dentro da casa dojardineiro que de dia e de noite não pára de ter luzes piscando piscandopiscando e eu não sei o que tem lá. O coletor de imagens podia passar edesligar a casa ou levar a casa com ele e levar o jardineiro e deixar vovô paraque essa velha que não consegue dormir pare de me atirar travesseiros e medeixe em paz. Sua respiração vazada em sangue e catarro sou eu que tenhode recolher; de nada adiantam as bacias espalhadas em todos os lados dacama; sempre esbarro em uma quando tenho de limpar o quarto, sempre, aminha vida inteira presa aqui limpando a sujeira de vo<strong>vó</strong>, a que não temninguém, a que o mundo deixou aqui prá mim, vinda pelo rasgão do saco docoletor de imagens.entra um menino de calças curtas e meias e suspensórios e chapeuzinho;senta-se do lado dela, balança os pés do mesmo modo. Torna seus olhos paratrás da mesma maneira. Após fica calado como ela e faz os mesmo gestos .Ajoelhasse no chão como se jogasse bolinha de gude e arrastasse como se searrastasse em uma guerra.- eu sou Alomar, o último herói da <strong>grande</strong> cidade desconhecida. Tenho em meucorpo mais tiros, os tiros de todas as guerras, de todas as guerras, que euparticipei de todas as guerras. Uma louca vontade de voltar para casa quandotudo terminar Só posso ficar do lado de fora de casa esperando chegar a noitepara voltar, ficar aqui atirando essas bolinhas umas nas outras até elas iremembora para sempre buscar outras para amanhã de manhã. Não posso dormirprecisovigiar o retorno dos que se foram. Ver se voltam inimigos ou amigos,eu Alomar, o último herói da <strong>grande</strong> cidade desconhecida; tenho mais feridasem meu corpo que as feridas todas de todas as guerras que participei, eu queparticipei de todas as guerras.(Ergue-se,salta,tropeça e cai, sangue desce daboca; a menina olha para ele e a fala dela move-se em irritação sem alterar oresto do rosto)


- vo<strong>vó</strong>, até aqui a senhora me persegue; não vou limpar mais nada; e nãoadianta se fingir de menino: a senhora é mulher e velha, velha mesmo; nuncamais vai andar e ter dentes. Recolha seus dentes e pare de fazer sujeira. Aquifora não pode, é o caminho do coletor de imagens. Recolha seus dentes, suavelha porca e imunda que faz a cama parecer o esgoto da rua. Sua velha loucae sem graça que vai morrer logo logo logo.- Eu não sou sua <strong>vó</strong>. Eu sou Alomar, o último guerreiro da <strong>grande</strong> cidade,aquele que protege o ninho das aves e sabe onde as formigas enterraram seusmortos. Estou ferido, venho de uma <strong>grande</strong> batalha e você deve me socorrer.começa a rir, a menina, como sua <strong>vó</strong> e continua a rir. A <strong>vó</strong> movimenta-se nacama, para melhor ver e falar, cessa seu ritual que passa para a menina.Quando uma falar a outra retoma o ritual de risos e lágrimas.- Meus netinhos, venham com vo<strong>vó</strong>; tenho doces, seios doces e um amorimenso debaixo dos lençóis. Há tanto tempo não recebo ninguém ... Que cheirohorrível empesteia a casa vindo daí de fora. Venham se esconder do velho quecorta as folhas e compra garrafas. Venham para as minhas bacias, para meucorpo sempre quente nessa cama.- Agora tenho duas <strong>vó</strong>s, duas <strong>vó</strong>s porcas, loucas e fedorentas. A vozinha de ládentro e a vozinha de cá fora. Mais trabalho para uma menininha brincando decasinha com duas velhas, sem ter tempo para as bonecas- E eu com duas mulheres e tanto ferimento sem ajuda, e ferido mortalmente.- Venham meus netinhos...(uma imensa tosse da <strong>vó</strong>, imitada agora por todos,todos que tossem e mudam de posição, como procurando ar, girando, comobrincando de roda. Sentam-se. A <strong>vó</strong> volta para sua cama. As cianças-bonecoconversam.)-Seu nome é qual mesmo ?-Alomar, o último...(as interrupções se fazem na menina e no menino agora demãos dadas como em uma dança de roda Quando um toma a voz, puxa asmãos do outro para si)-tá, tá eu sei, não precisa repetir isso de novo, esse nome engraçado e ridículo,nome que não é de gente da sua idade. De onde você aprendeu essa canção eessas mentiras todas, você que é uma criança como eu ?


-Afaste-se donzela e bruxa, a quem devo matar e salvar. Para longe de mimesses feitiços e esses cuidados. Você está enfeitiçada, marcada por suaprópria mágica. Se não estivesse tão ferido, mortalmente ferido eu...-tá, tá, tá, tá, eu sei: ergueria sua espada, você de cima de um cavalo debolinhas de gude e (movimenta-se como se galopasse num terreno baldio) emarcaria para sempre meu rosto de menina com as unhas de suas mãos...- Quem te ensinou tal linguagem que pereça de modo terrível. Os encantos dasprofundezas não podem atingir Elomar, o guardião da <strong>grande</strong> cidade, o último...- tá,tá,tá tá, vamos brincar, vamos atrás do coletor de imagens, o que nosabraça e conta histórias sempre as mesmas estórias que nunca consigolembrar, que é forte em sua voz e leve em abraços, o que pode nos levar devolta de onde viemos, há tanto tempo, o que pode nos salvar, nós , presosentre a rua e a casa.-Posso levar meus brinquedos ?- Mas é claro que não. O coletor de imagens virá buscar . Sempre levou osbrinquedos, é assim que ele brinca com a gente. (uma sombra de mãosaparece uma concha de mãos, mãos - pomba que voam e caem em vôorasante sobre as crianças. Que se jogam no chão assustadas, em seus rostosde mortos. No vôo das mãos-pomba eles se movimentam como se estivessemsendo levados, sequetradas pelas ciaturas das sombras, vagando sobre ummar escuro e infinito. Gritam por socorro, se alvoroçam em seus ais, frágeiscrianças no berço de quem é maior que eles, a vingança dos adultos, averdade do dia. Fala a <strong>vó</strong>)- Até quando esperar, meus os cuidados e as histórias. Fiz o mundo nascer emseus ouvidos e os sonhos e os dias. Apaguei a luz da escuridão, ergui os céusde uma nova manhã. Em minha cozinha fabriquei o bom calor das tardes dechuva que não acabavam mais. Minhas as histórias, o que poderia teracontecido, o que foi, fins e inícios, os sons dos ventos, quem chorouprimeiro.(Levanta-se e olha para o público, alheia às crianças em seussofrimento.) Estas foram as redes que no futuro iria levantar sobre a terra.(imita cianças em sua voz)“então era assim, vovozinha, o mal “ ”Conta de novoprá mim, vo<strong>vó</strong>, conta mais uma vez “ “de novo, de novo” E sempre o sim, umpouco de mim em cada boca, partes de mim estraçalhadas em cada pedido.Oraram como eu ensinei, acreditaram no que eu disse, escutaram meu


passado, perderam-se por minha causa. Meus meninos, estou aqui para contara última estória. Eu não era <strong>vó</strong>vo, eu fugi bem pequena da casa, semninguém, uma menina sem pai nem mãe, uma <strong>vó</strong>, a que sabe bem falar, dedoságeis, gorda, sempre o bem gordo e redondo, como biscoitos da <strong>vó</strong>vo, como ashistórias que se acabam. Vo<strong>vó</strong> era o Mal debaixo das camas, o olhar de dentrodos armários, o amiguinho que se foi, o parente que não veio, a carta que nãochegou, a primeira surra, um beliscão. Vo<strong>vó</strong> não veio mais. E encontrei vocêsem minha porta, embrulhados em jornal- alguém esqueceu disso. Agora é noitepara sempre, vocês mais pertos que minha cama longe. Cresceram bem, e nãoé preciso gritar: eu estou aqui.(grito maior ainda, ragando o teatro inteiro,rasgando a propria escuridão que os os embala. Forte luz que desabasobre opalco, lançando os meninos para longe, fazendo cair a vo<strong>vó</strong> no chão,apavorada, agora a vo<strong>vó</strong>-menina primeira. Entra um velho com chpéu de velhoe umsaco nas cotas, um velho com um imenso peso nas costas, assoviandouma canção de ninar desconhecida, a melodia de uma canção de ninar queacorda. Ele cruza o palco e se situa diante dos meninos e fala.)- Pronto ? já podemos voltar para casa ? Eu não demorei muito, não ? Quemsão vocês ?- Eu sou Alomar, o guardião da <strong>grande</strong> cidadade. Tenho...--Tá tá, tá, tá, tá. Chega, menino bobo, parece aquela velha que eu me esqueciqual o nome. E o senhor, não parece vo<strong>vó</strong>, mais pergunta muito. Estamosesperando al’gume, esperando a hora de voltar para casa, eu e meu irmão- Mas ainda é cedo. A noite acabou de ir embora. Não é dia, mas alguem selembrará de trazê-lo. O que fazem aqui tão tarde.- Prepare-se, senhor dragão misterioso e corcunda. Respoda: onde está ocoletor de imagens, por que você o comeu e nos quer devorá agora, se puderescapar de nossa emboscada ?- Isso mesmo. O que têm nesse enorme saco, um velho com duas costas, umvelho sem dentes, com cara de minha vo<strong>vó</strong>, outro velho porco e doente para eucuidar, uma menina que eu sou, volte outro dia.- Vocês não sabem ? há muito perigo, por isso sempre dormimos cedo, sempreos colocamos dentro de casa na cama. Nunca fiquem debaixo das cobertas, oudas camas, Deixamos muitas coisas pelos quartos que podem ferir. Oscaminhos já foram feitos, os quartos distribuídos. Batam nas portas, lavem os


dentes, falem baixo, algúem não gosta de vocês, não sabemos porque, ascrianças, porque vieram.. A casa, ela sempre esteve ali, quan...( enquantofalava, a vo<strong>vó</strong> levantou-se e o empurrou, fazendo cair e abrir o saco de suascostas. Dele caem sujeira, fotos rasgadas, penas, animais de brinquedo,cavalos e cães, e um banquinho. A crianças choram. O velho toma obanquinho e se senta, toma as crianças no colo como se fossem dois bonecose ele um ventríloco. A <strong>vó</strong> vai para trás do velho e acaricia suas costas,escutando com muito prazer cada estória que se segue, rindo, e chorando.Fala o menino)- Eu vim depois, eu sabia. Nunca andei de pôneis, mas todos andaram Erapreciso que eu disesse a verdade, que eu andei de pônei também, o cavalomenino,que não fala e obedece, eu em cima dele, pelos campos que vi na tv,um menino-homem em seu cavalo-menino, o menino agora dizendo o quedeve ser: eu andei de pônei, meus amigos, eu andei mesmo, como vocês, nóstodos , uma manada de pôneis pelas pradarias verdes, verdes, muita grama,todos correndo, o imenso mar de grama de se não ver o fim, meus amigos. Daíparamos na casa da tia Quêda, irmã de papai, a tia em sua velha casa docampo, sem luz, só o lampião cheiro-ruim e a longa noite sem olhos, os rostosdos barulhos. No escuro brilhava uma jóia rara, um relógio como eu nunca vi,meu relógio, agora era meu, não de tia Quêda, eu sei,. Eu trouxe o relógio, euvim de pônei branco. O meu relógio que melhor via na escuridão, do quarto detia Queda no sono de todo mundo. Meu relogio prometia coisas parta mim, se olevasse dali, daquela casa, meu relógio falava e ria e era doce e leve emminhas mãos, lá do quarto de tia Quêda, quando as históiras cessrão e tododforam dormi. O relógio me prometia o que eu sonhava e eu via em seu rosto devidro refletido não o tempo passando mas os desejos, não o pônei, agora euquero outras coisas, mais e mais, a minha tv do relógio, o meu rosto que sorria, o meu relógio que precisava levar. Levantei na escuridão e peguei o relógiodo quarto de tia Quêda, correndo sem olhar para trás, casa à fora, na noite demuitas estrelas. Perto do rio joguei o relógio, de manhã buscar, mas esquci. TiaQuêda morreu sem seu relógio, nas férias é bom pescar...(é interrompido pelamenina que se levanta)- tá, tá, tá, tá, tá... garoto mentiroso, o herói da <strong>grande</strong> cidade. Me ajuda aqui.Vamos levar o avô e a velha pra dentro.- (o coletor de imagens) Já é tarde, meninos, e ainda os armários não foramfechados. Olhem para para dentro, no fundo do quarto, vejam o que as portas e


as gavetas escondem, vejam as roupas em sua vida de escuridão. É o medo,meninos, é o medo. E ele sempre virá. Eu recolho o que jogam fora de dia masvolto de noite para trazer tudo de volta. Tudo aqui se faz, não fica perdido. Oshomens não descansam enquanto não rencontram seus brinquedos. Eu tragotudo para vocês, não se preocupem. Nem precisa me chamar. Cruzo as ruas,entro nas casas, e faço ver o que se escondeu.(a velha, indo em direção das crianças apavoradas) - Venham meus netinhos.As camas já estão prontas e eu tenho sede. Venham comigo cuidar da sede davo<strong>vó</strong>. Em meus braços os sonhos serão belos. Eu não durmo pensando nocorpo de vocês. Mesmo que eu espere, vocês crescerão, os dois netinhos paravo<strong>vó</strong>.(o coletor de imagens se aproxima das duas crianças e da vo<strong>vó</strong>, completandoum cerco de feras que rondam quem nada lhes deve) Contem tudo antes dacama, deixem tudo aqui para mim. eu preciso de tudo antes dos sonhos. Euquero é o dia, o dia que me tomaram, sujando os caminhos com essesabandonos. O lixo do mundo caindo da mãos das crianças . O que seria paraos olhos agora é pisado por todos nós que não vemos como o chão de umacriança é muito, é demais. Me devolvam, garotos, me devolvam o que eutrouxe de volta.(a <strong>vó</strong> se aproxima mais, fechando o cerco, empurrando os meninos e grita maisintensamente)- Vamos dormir, que ainda é cedo, vamos dormir antes quealguém o faça. Venham para cama, que eu vou contar umas histórias, osterríveis casos de doenças e mortes, a noite é longa corredor adentro.-(série de frases como confissões enquanto o menino e a menina sãoarrastados de cena) Eu juro que não foi eu, eu vi o menino expiando a tia lindade corpo branco como as águas só os pêlos fazendo a novidande, banhandosecomo ninguém outra o fez. O corpo branco escorrendo por entre o vão dasparedes de madeira, um olho só para tudo aquilo- eu juro que rezei tudo como devia, um pouco só a menos, alguns salmos adever, outro dia, no dia seguinte, neste não no próximo repetir as palavrasescritas, no silêncio alto de minha cabeça- eu juro que não fiz isso, isso tudo não, mas aquilo foi quase idéia minha, adeixar os meninos caírem do berço, contar seus movimentos, saber que


astaria eu olhar para o lado para vir a queda, meus olhos para uma lado quesabia o que havia por ali.- Mas meu era o ódio, chegar cedo em casa e ninguém. Quebrei as janelas esaí correndo pela garagem dizendo e perseguindo o ladão que quebrou asjanelas, tão iguais eu e ele em nossa corrida Ninguém nos viu só as janelasquebradas no chão.

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