Discurso de Posse - Portal da História do Ceará
Discurso de Posse - Portal da História do Ceará
Discurso de Posse - Portal da História do Ceará
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>Discurso</strong> <strong>de</strong> <strong>Posse</strong><br />
Napoleão Nunes Maia Filho<br />
Eminente Presi<strong>de</strong>nte, poeta ARTUR EDUARDO BENEVIDES, ilustres acadêmicos,<br />
quem ultrapassaria os umbrais <strong>de</strong>sta Aca<strong>de</strong>mia centenária, para ter<br />
assento entre os mais ilustres intelectuais <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>, sem ter <strong>de</strong> dissimular ou<br />
conter uma enorme emoção e um gigantesco orgulho, por <strong>de</strong>ssa forma obter<br />
para si próprio uma digni<strong>da</strong><strong>de</strong> vitalícia ou que se espraia até para mais além?<br />
Certamente ninguém o faria, Presi<strong>de</strong>nte, como sabem muito bem Vossa<br />
Excelência e o eminente Professor PEDRO HENRIQUE SARAIVA LEÃo, que<br />
maximizou os meus merecimentos, nessa sau<strong>da</strong>ção que mexeu com as minhas<br />
emoções mais escondi<strong>da</strong>s; nunca imaginei que as coisas que escrevi pu<strong>de</strong>ssem<br />
ser capta<strong>da</strong>s <strong>de</strong> maneira tão completa ou expostas com tanta e tão precisa fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
aos meus sentimentos.<br />
Sabe-o também (e quiçá mais <strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s) o acadêmico LuciANo<br />
MAIA que ninguém o faria, especialmente eu, que venho <strong>da</strong>s ban<strong>da</strong>s claras <strong>do</strong><br />
vale baixo <strong>do</strong> rio Jaguaribe, on<strong>de</strong> Deus plantou as suas percepções poéticas e<br />
ali fez a terra repousar sobre águas rasas, tão rasas que se cavan<strong>do</strong> o seu chão,<br />
logo a poucos palmos se acha o veio <strong>da</strong>s suas vertentes, isso nos aluviões <strong>da</strong><br />
Barra e adjacências, e profun<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-se por metros na sua superfície se encontram<br />
mananciais que os cataventos trazem à sua flor, na ilha <strong>do</strong> Limoeiro,<br />
on<strong>de</strong> está a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sse nome, com tantas bicicletas e sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s, expressão que<br />
surpreen<strong>de</strong>u e admirou, certa vez, ao mestre .ARTUR EDUARDO BENEVIDES, quan<strong>do</strong><br />
a disse <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> displicente e sincero.<br />
E assim também, Presi<strong>de</strong>nte, é a sua gente, a minha gente <strong>de</strong>ssa minha<br />
terra inesquecível, que se vulnera facilmente por emoções, abre as porteiras <strong>do</strong>s<br />
olhos e <strong>de</strong>ixam a alma verter as suas lágrimas honestas sob o em puxo incontrolável<br />
<strong>de</strong> um sentimentalismo muito forte; diria vai<strong>do</strong>samente, que também trago o<br />
coração fora <strong>do</strong> peito ou que em mim a natureza enloqueceu: sou to<strong>do</strong> coração.<br />
Permita-me, Presi<strong>de</strong>nte, dizer que esta emoção me avassala to<strong>do</strong> e atropela<br />
as sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> muitas pessoas, coisas e claros ambientes, <strong>da</strong>quela terra<br />
on<strong>de</strong> nasci, on<strong>de</strong> me criei, on<strong>de</strong> aprendi a ler e a rezar e vivi os meus ver<strong>de</strong>s<br />
anos, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> as surpresas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> me arrancaram, para me encanecer com as<br />
suas vicissitu<strong>de</strong>s, e para on<strong>de</strong> quero voltar, para on<strong>de</strong> vou voltar, quan<strong>do</strong> outro<br />
vier ocupar a Ca<strong>de</strong>ira 32 <strong>de</strong>sta augusta Aca<strong>de</strong>mia, em que agora me emposso,<br />
159
E ain<strong>da</strong>, mestre ARTUR, os meus irmãos EDINARDO, hoje no oriente<br />
eterno, os poetas LuciANO e VIRGÍLIO, estes sim reinventares mdgicos <strong>da</strong> len<strong>da</strong>,<br />
minhas irmãs MôNICA e HoRTÊNCIA, minhas cunha<strong>da</strong>s ANA MARIA e SocoR<br />
RO, e to<strong>do</strong>s os meus sobrinhos; e meus filhos MÁRIO HENRIQUE e MôNICA<br />
MARIA, segun<strong>do</strong> o sangue, e MARco, segun<strong>do</strong> a afeição, ao la<strong>do</strong> <strong>da</strong> mãe <strong>do</strong>s<br />
três, FÁTIMA, com quem dividi os anos <strong>de</strong>cisivos <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong>.<br />
Concor<strong>do</strong>, Presi<strong>de</strong>nte, que <strong>de</strong>va cessar agora essas reminiscências pessoais<br />
e assim o faço, para postar-me como convém, pois tenho perfeita consciência,<br />
que o meu ingresso nesta Aca<strong>de</strong>mia foz-me transitar <strong>do</strong> meu anonimato para<br />
o gran<strong>de</strong> palco <strong>da</strong>s intensas luzes que iluminam os eminentes pares <strong>de</strong>ste So<strong>da</strong>lício;<br />
faço isso, agora, Presi<strong>de</strong>nte, mas me permita só registrar a presença aqui <strong>da</strong>quela<br />
que me faz a vi<strong>da</strong> mais <strong>do</strong>ce e as noites mais tranqüilas ...<br />
2<br />
Presi<strong>de</strong>nte, uma mulher <strong>de</strong> to<strong>do</strong> incomum, uma sertaneja em quem se<br />
acumularam to<strong>da</strong>s as virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssa raça indômita, abriu-me a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ingressar nesta Aca<strong>de</strong>mia, na vaga que <strong>de</strong>ixou quan<strong>do</strong> se encantou e passou<br />
a não ser mais vista pelos nossos olhos mortais; RAcHEL DE QuEIROZ legitimou<br />
com a sua escritura ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e realista, ficcional e crítica, carismática e feminina,<br />
to<strong>da</strong>s as figuras matriarcais <strong>da</strong> nossa região e <strong>do</strong> nosso Esta<strong>do</strong>, <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-lhes<br />
a gran<strong>de</strong>za primitiva e forte <strong>de</strong>ssa gente <strong>de</strong> carne e osso, feita to<strong>da</strong> <strong>de</strong> sangue e<br />
<strong>de</strong> paixões, tosta<strong>da</strong> pelo nosso sol regional causticante e fortalece<strong>do</strong>r.<br />
Em agosto <strong>do</strong> ano <strong>de</strong> 1930, ano famoso na história política <strong>do</strong> Brasil,<br />
uma menina <strong>de</strong> 19 anos, forma<strong>da</strong> normalista na turma <strong>de</strong> 1925 <strong>do</strong> Colégio<br />
<strong>da</strong> Imacula<strong>da</strong> Conceição e eleita, mercê <strong>de</strong> sua beleza, Rainha <strong>do</strong>s Estu<strong>da</strong>ntes<br />
<strong>de</strong> Fortaleza, assombrou com um romance regionalista os sisu<strong>do</strong>s críticos literários<br />
<strong>do</strong> País, como ALcEu AMoRoso LIMA, e estarreceu, encantan<strong>do</strong>, poetas<br />
como AuGUSTO FREDERICO ScHMIDT, que confessou não ter encontra<strong>do</strong> em<br />
outro livro tanta emoção, tão pungente e amarga tristeza.<br />
O Quinze é um livro narrativo <strong>de</strong> puras ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong> precisa e certeira<br />
pontaria, juntan<strong>do</strong> as áreas instáveis <strong>da</strong> ficção e <strong>da</strong> <strong>de</strong>núncia, ao <strong>de</strong>screver<br />
ações naturais e espontâneas, centra<strong>da</strong>s numa mulher paradigmática, a sertaneja<br />
CoNCEIÇÃO, estranhamente sempre vesti<strong>da</strong> <strong>de</strong> branco, ajeitan<strong>do</strong> as suas<br />
tranças, arro<strong>de</strong>a<strong>da</strong> <strong>de</strong> personagens também espontâneos e típicos, como CHIco<br />
BENTO, para quem Deus só nasceu para os ricos, CoRDULINA, magra como<br />
a morte, coberta <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s panos brancos, MÃE INÁCIA, urdin<strong>do</strong> as suas ren<strong>da</strong>s,<br />
161
e os seus compadres e comadres, to<strong>do</strong>s forman<strong>do</strong> a gran<strong>de</strong> teia <strong>de</strong> alianças e<br />
leal<strong>da</strong><strong>de</strong>s no sertão brabo <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>, à mo<strong>da</strong> um feu<strong>da</strong>lismo extemporâneo, <strong>de</strong><br />
raízes e jeito rurais, como já se alvitrou.<br />
Será que tu<strong>do</strong> isso <strong>do</strong> primeiro livro <strong>de</strong> RAcHEL DE QuEIROZ são simbolismos,<br />
Presi<strong>de</strong>nte, são signos voluntários ou plano <strong>da</strong> autora, pistas para<br />
os seus pósteros rastrearem e <strong>de</strong>cifrarem o seu pensamento simbólico, será,<br />
Presi<strong>de</strong>nte, será?<br />
Será que o seu texto quase sem metáforas, enxuto e completo, sem a<br />
apoteose euclidiana <strong>da</strong> gente sertaneja, sem paródias, <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s várias<br />
formas <strong>de</strong> exclusão <strong>da</strong> mulher, no nível social, familiar e <strong>do</strong>s bens <strong>da</strong> cultura,<br />
traduz um secreto viés autobiográfico <strong>da</strong> autora, a fazer crer seja ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />
que to<strong>da</strong> escrita ficcional carrega, bem ou mal disfarça<strong>do</strong>, esse intuito?<br />
Eu não sei, Presi<strong>de</strong>nte, mas penso que não; penso que isso são as espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />
nor<strong>de</strong>stinas <strong>de</strong> RAcHEL DE QuEIROZ, que também se po<strong>de</strong> ver na<br />
sua <strong>de</strong>scrição muitas vezes corta<strong>da</strong> no meio <strong>da</strong> narrativa, numa mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong><br />
conversa tão ao gosto <strong>do</strong>s nossos contemporâneos, ain<strong>da</strong> hoje.<br />
No seu primeiro livro RAcHEL DE QuEIROZ não se filiou ao beletrismo,<br />
tão em voga na época, especialmente entre as moças ilustra<strong>da</strong>s, nem se valeu<br />
<strong>do</strong>s recursos <strong>da</strong> linguagem metafórica, nem cui<strong>do</strong>u <strong>de</strong> filiar-se a escolas, tendências,<br />
modismos ou estilos, no que permaneceu, aliás, durante to<strong>do</strong> o seu<br />
longo e profícuo percurso literário.<br />
Des<strong>de</strong> o começo até o fim foi sempre surpreen<strong>de</strong>nte à ca<strong>da</strong> nova obra,<br />
to<strong>da</strong>s tão vigorosas e lúci<strong>da</strong>s como a sua primeira, tanto que O Quinze pareceu<br />
ao gran<strong>de</strong> GRACILIANO RAMos, escritor ain<strong>da</strong> inédito (pois o seu Caetés só<br />
viria a.lume em 1933), coisa <strong>de</strong> homem, tão forte nele era o preconceito contra<br />
a presença <strong>de</strong> mulheres na literatura, como confi<strong>de</strong>nciou <strong>de</strong>pois o romancista<br />
<strong>de</strong> Vi<strong>da</strong>s Secas, dizen<strong>do</strong> que não há ninguém com esse nome (Rachel <strong>de</strong> Queiroz),<br />
que <strong>de</strong>ve ser mesmo é o pseudónimo <strong>de</strong> algum sujeito barba<strong>do</strong>.<br />
O notável MÁRIO DE ANDRADE também não escapou <strong>de</strong>sse espanto e,<br />
por certo, num momento <strong>de</strong> machismo paulistano, impressiona<strong>do</strong> com os 19<br />
anos <strong>da</strong> autora, à chamou <strong>de</strong> lindinha e, num arroubo <strong>de</strong> linguagem ou <strong>de</strong><br />
mo<strong>de</strong>rnismo, imaginou que to<strong>do</strong>s os livros anteriores sobre a seca ficavam na<br />
vala comum <strong>da</strong> literatice, disso não excluin<strong>do</strong> DoMINGOS ÜLÍMPIO, EUCLIDES<br />
DA CuNHA ou JosÉ AMÉRICO DE ALMEIDA, num aparente exagero.<br />
Notável, Presi<strong>de</strong>nte, mais notável é que a <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong> narrativa <strong>da</strong>quela<br />
menina cearense permaneceu em to<strong>da</strong> a trajetória <strong>de</strong> sua extensa obra literária,<br />
com uma constância tal que só se encontra mesmo nos outros ícones impere-<br />
162
cíveis <strong>da</strong> nossa intelectuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ontem e <strong>de</strong> hoje, como em MAcHADo DE<br />
Assis, em JosÉ DE .ALENCAR, em GRACILIANO RAMos, em JosÉ LINS DO R.Ê.Go,<br />
em JosÉ .AMÉRICO DE ALMEIDA, em AoÉLIA PRADO e, naturalmente, em CE<br />
CÍLIA MEIRELES, falan<strong>do</strong> com voz suave <strong>de</strong> coisas tormentosas e dsperas, mas sem<br />
espasmos e sem escatologias.<br />
E lembremos, Presi<strong>de</strong>nte, que RAcHEL DE QuEIROZ era uma moça<br />
muito bem nasci<strong>da</strong> em família <strong>de</strong>staca<strong>da</strong>, filha <strong>de</strong> DoNA CLOTILDE, leitora <strong>de</strong><br />
livros franceses, e <strong>do</strong> Juiz <strong>de</strong> Direito Dr. DANIEL DE QUEIROZ, porta<strong>do</strong>ra <strong>da</strong><br />
nobreza rural, além <strong>de</strong> singularmente bonita e educa<strong>da</strong>, o que po<strong>de</strong>ria tê-la<br />
leva<strong>do</strong> ao usufruto legítimo e natural <strong>do</strong> sucesso social, pela via <strong>da</strong> sedução,<br />
já que nela se cruzaram os olhos amen<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> ressaca <strong>de</strong> Capitu e a <strong>do</strong>çura<br />
<strong>do</strong>s lábios <strong>de</strong> Iracema; para se confirmar essa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, basta ver-se a sua foto <strong>de</strong><br />
1931, quan<strong>do</strong> recebeu, aos 21 anos, o prêmio Graça Aranha, ou a <strong>de</strong> 1932, no<br />
seu primeiro casamento.<br />
Diz-se, e ninguém contesta, que RAcHEL DE QuEIROZ, mesmo migrante<br />
<strong>da</strong>s suas plagas nativas, <strong>de</strong>las jamais se afastou e não apenas por ter conserva<strong>do</strong><br />
a sua fazen<strong>da</strong> Não me Deixes, em Quixadá, que isso é apenas um signo<br />
exterior, relevante, sem dúvi<strong>da</strong>, mas insuficiente, porque, como ela própria dizia<br />
se referin<strong>do</strong> ao seu ambiente natural, não se sai <strong>de</strong> lá, mesmo quan<strong>do</strong> se sai.<br />
Dos livros que escreveu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> O Quinze, o mais impressionante,<br />
como o consi<strong>de</strong>rou TRISTÃO DE ATHAÍDE, terá si<strong>do</strong> João Miguel, <strong>de</strong> 1932, publica<strong>do</strong><br />
pelo poeta SCHIMDT, on<strong>de</strong> está narra<strong>da</strong> com cores vibrantes e extremo<br />
realismo, com uma certa dureza e <strong>de</strong>sencanto, a saga <strong>de</strong> um preso em<br />
miseráveis ca<strong>de</strong>ias <strong>do</strong> interior, tema por si bastante para revoltas e emoções,<br />
mas nesse romance, a autora <strong>de</strong> 22 anos cruza as angústias <strong>do</strong> cárcere com as<br />
esperas, as frustrações e as <strong>do</strong>res <strong>do</strong> preso e <strong>de</strong> sua família, pon<strong>do</strong> na sua boca<br />
este discurso <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nte atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong>núncia:<br />
Q;tem é, no mun<strong>do</strong>, que ganha com a ca<strong>de</strong>ia? O governo<br />
fica com um poucos <strong>de</strong> homem nas costas, pra sustentar,<br />
e ain<strong>da</strong> por cima tem que pagar os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>da</strong> guar<strong>da</strong>.<br />
O patrão per<strong>de</strong> o seu emprega<strong>do</strong>, muita vez o seu homem <strong>de</strong><br />
confiança. A terra <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter quem limpe, quem broque,<br />
quem plante. Quantos alqueires <strong>de</strong> milho não se <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />
apanhar, por minha falta? E, agora, nós? De que serve para a<br />
gente a ca<strong>de</strong>ia? Só pra se ficar pior. A gente apren<strong>de</strong> a mentir,<br />
a se escon<strong>de</strong>r, a per<strong>de</strong>r o sentimento, <strong>de</strong> tanto aguentar <strong>de</strong>saforo<br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Per<strong>de</strong> o costume <strong>de</strong> trabalhar e, quan<strong>do</strong><br />
163
muito, foz esses servicinhos <strong>de</strong> mulher, assenta<strong>do</strong> no chão.<br />
E, viven<strong>do</strong> em tão md companhia, os que não são ruins <strong>de</strong><br />
natureza, e fizeram uma besteira sem saberem como, acabam<br />
iguais aos piores.<br />
Vale lembrar que foi a interdição <strong>de</strong>sse seu livro pelo Parti<strong>do</strong> Comunista,<br />
a que RAcHEL DE QuEIROZ se filiara, o que a levou a <strong>de</strong>siludir-se <strong>de</strong>sse<br />
cre<strong>do</strong>; a interdição <strong>do</strong>s seus então camara<strong>da</strong>s teria por razão a idéia central<br />
<strong>do</strong> romance, um crime em que um trabalha<strong>do</strong>r assassina outro, o que teria<br />
pareci<strong>do</strong> aos dirigentes partidários <strong>da</strong> época algo <strong>de</strong> to<strong>do</strong> <strong>de</strong>seducativo; <strong>de</strong><br />
qualquer sorte, as posteriores evoluções <strong>de</strong> suas convicções políticas, que a fizeram<br />
amiga <strong>de</strong> generais e governantes, po<strong>de</strong>m até constituir tema <strong>de</strong> pesquisa<br />
importante e conseqüente, mas por agora não aparenta ter a relevância que<br />
alguns lhe atribuem.<br />
O seu valor intelectual e a sua influência política ou <strong>de</strong> representação <strong>da</strong><br />
força feminina foram reconheci<strong>do</strong>s pelo Presi<strong>de</strong>nte Marechal CAsTELO BRANco,<br />
seu parente e seu amigo, que a convi<strong>do</strong>u para Ministra <strong>da</strong> Educação e<br />
Cultura <strong>do</strong> seu governo e <strong>de</strong>la recebeu a <strong>de</strong>sconcertante resposta Presi<strong>de</strong>nte, eu<br />
não nasci para ser uma mulher pública; com isso penso que fincava claramente<br />
a sua vocação intelectual, que veio a torná-la a primeira mulher a ingressar na<br />
vetusta Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras, em 1977, na vaga <strong>do</strong> jurista FRANCISCO<br />
CAvALCANTI PoNTES DE MIRANDA, este mestre inexcedível na originali<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />
na verticali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> seu gênio em to<strong>do</strong>s os ramos <strong>da</strong> Ciência <strong>do</strong> Direito e autor<br />
<strong>da</strong> maior obra jurídica escrita por uma só pessoa - esse monumental escritor<br />
<strong>da</strong>s Alagoas.<br />
Ela assumiu na ABL a ca<strong>de</strong>ira no. 5, que fora <strong>do</strong> poeta RAIMUNDO<br />
CoRREIA e, <strong>de</strong>pois, <strong>do</strong> cientista ÜSWALDO CRUZ, <strong>do</strong> crítico ALUÍSIO DE CAs<br />
TRO e <strong>do</strong> jurista CÂNDIDO MoTA FILHO, mas isso com a mais simples naturali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
que cerca as coisas espontâneas, sem nenhum alar<strong>de</strong>, sem fanfarra,<br />
sem exibir mais <strong>do</strong> que a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e o seu talento, assim abrin<strong>do</strong> as portas<br />
<strong>da</strong>quela veneran<strong>da</strong> instituição para a inteligência <strong>da</strong> mulher, por tanto tempo<br />
inexplicavelmente fecha<strong>da</strong>s.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista crítico-literário é possível i<strong>de</strong>ntificar em to<strong>do</strong>s os<br />
romances <strong>de</strong> RAcHEL DE QuEIROZ, <strong>do</strong> primeiro, <strong>de</strong> 1915, ao Memorial <strong>de</strong><br />
Maria Moura, em 1992, não somente a permanência admirável <strong>da</strong> sua constância<br />
temática e <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>talhismo <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong>s tipos humanos, sobretu<strong>do</strong><br />
<strong>da</strong>s mulheres fortes e <strong>de</strong>cidi<strong>da</strong>s, mas talvez e principalmente a completa ausência<br />
<strong>de</strong> artimanhas nas frases, a ausência total <strong>de</strong> subjetivismos, nisso transparecen<strong>do</strong><br />
164
que cruzou, com as suas bagagem e percepções, a visão apenas lírica <strong>da</strong> terra e<br />
encontrou a forma exata <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar objetivamente as iniqui<strong>da</strong><strong>de</strong>s, sem nutrir<br />
a sua escrita no que seria o sobejo <strong>do</strong>s autores regionalistas anteriores, mas bem<br />
próximos.<br />
RAcHEL DE QuEIROZ não hesitou, por exemplo, em se colocar pessoalmente,<br />
e com a maior sinceri<strong>da</strong><strong>de</strong>, no contraponto social e psicológico <strong>da</strong>s<br />
suas contemporâneas, como ao <strong>de</strong>screver a cisão entre as alunas <strong>do</strong> Colégio,<br />
no seu As Três Marias, <strong>de</strong> 1939:<br />
Ao centro, era o la<strong>do</strong> <strong>da</strong>s irmãs, gran<strong>de</strong>s salas claras e<br />
mu<strong>da</strong>s on<strong>de</strong> não entrávamos nunca. E além, ro<strong>de</strong>an<strong>do</strong> outros<br />
pátios, abrigan<strong>do</strong> outras vi<strong>da</strong>s antípo<strong>da</strong>s, lá estavam as casas<br />
<strong>do</strong> orfanato, on<strong>de</strong> meninas silenciosas, vesti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> xadrez humil<strong>de</strong>,<br />
aprendiam a trabalhar, a coser, a tecer as ren<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s<br />
enxovais <strong>de</strong> noivas que nós vestiríamos mais tar<strong>de</strong>, a bor<strong>da</strong>r<br />
as camisinhas <strong>do</strong>s filhos que nós teríamos, porque elas eram as<br />
pobres <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e aprendiam justamente a viver e a penar<br />
como pobres. Uma proibição tradicional basea<strong>da</strong> em não<br />
sei que remotas e complexas razões, nos separava <strong>de</strong>las. Só as<br />
víamos juntas na Capela, alinha<strong>da</strong>s nos seus bancos <strong>do</strong> outro<br />
la<strong>do</strong> <strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r, quietinhas e <strong>de</strong> vista baixa, porque as regras<br />
que lhes exigiam modéstia, humil<strong>da</strong><strong>de</strong> e silêncio, eram ain<strong>da</strong><br />
mais severas <strong>do</strong> que as nossas.<br />
Rachel <strong>de</strong> Queiroz não ficou no <strong>de</strong>nuncismo ilustra<strong>do</strong> e bem comporta<strong>do</strong><br />
e seguro, pois foi ela própria envolvi<strong>da</strong> pessoalmente no turbilhão que<br />
era o movimento <strong>de</strong> promoção feminina, sem cair na vulgari<strong>da</strong><strong>de</strong> ostensiva,<br />
viven<strong>do</strong> com a maior intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>, sem me<strong>do</strong> e sem ressalvas, sem a timi<strong>de</strong>z que<br />
po<strong>de</strong>ria até ser entendi<strong>da</strong>, o seu amor feminino e natural pelo seu companheiro<br />
Dr. ÜYAMA DE MAcEDO, seu segun<strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, fiel à sua paixão até o fim e<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, numa <strong>de</strong>voção afetiva que ain<strong>da</strong> agora se mostra exemplar.<br />
3<br />
Veja, Presi<strong>de</strong>nte, se não fosse a recomen<strong>da</strong>ção cerimonial <strong>de</strong> ser limita<strong>do</strong><br />
o tempo <strong>do</strong> meu discurso, eu até cometeria a gran<strong>de</strong> in<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za <strong>de</strong><br />
abusar, mais ain<strong>da</strong>, <strong>da</strong> paciência <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s e faria outros percursos investigativos<br />
sobre RAcHEL DE QuEIROZ, agora realmente imortal pela nossa reverência,<br />
torna<strong>da</strong> permanente, referência e nume <strong>da</strong> nossa literatura, lembradíssima,<br />
165
queridíssima, louvadíssima, como o foi pelo imperecível MA.NOEL BANDEIRA,<br />
que a colocou ao la<strong>do</strong> <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong><strong>de</strong> Santíssima:<br />
Louvo o Padre, louvo o Filho,<br />
o Espírito Santo louvo.<br />
Louvo Rachel, minha amiga,<br />
nata e flor <strong>do</strong> nosso povo.<br />
(. .. ).<br />
Louvo Rachel e louva<strong>da</strong><br />
uma vez louvo-a <strong>de</strong> novo.<br />
(. .. ).<br />
Louvo o Padre, louvo o Filho,<br />
O Espírito Santo louvo.<br />
Louvo Rachel, duas vezes<br />
louva<strong>da</strong>, louvo-a <strong>de</strong> novo.<br />
(. . .).<br />
Mas chega <strong>de</strong> louvação,<br />
porque por mais que a louvemos,<br />
nunca a louvaremos bem.<br />
Em nome <strong>do</strong> Pai e <strong>do</strong> Filho<br />
e <strong>do</strong> Espírito Santo. Amém.<br />
Presi<strong>de</strong>nte, agra<strong>de</strong>ço a Vossa Excelência e a to<strong>do</strong>s os eminentes acadêmicos<br />
<strong>de</strong>sta Aca<strong>de</strong>mia Cearense <strong>de</strong> Letras o me terem admiti<strong>do</strong> entre os<br />
seus membros; farei o que estiver ao meu alcance para estar a altura <strong>de</strong>ssa<br />
honraria.<br />
166<br />
Obriga<strong>do</strong>.