Edição (PDF) - Cândido
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Ilustrações:<br />
Guile Dias<br />
ali estava. Suspira e mira o vazio.<br />
“Esse ano sua mãe não vai sambar”,<br />
disse o médico dias atrás. “Quem<br />
sabe...”, desdenhou o filho, em silêncio.<br />
Ainda é sexta, ainda há sábado, domingo...<br />
mas e daí? Era ridículo imaginá-la<br />
enfiada numa fantasia, se requebrando<br />
num batuque! Há tempos ela já não ia<br />
ao culto, há anos ela abandonara a missa.<br />
De qualquer modo, achou grosseiro<br />
o tratamento do doutor. Todos sabiam<br />
que o sucesso da cirurgia era quase nenhum,<br />
mas ele não tinha o direito de<br />
dar uma sentença daquele jeito, frio,<br />
irônico, querendo se fingir de engraçado.<br />
Antes de ser uma paciente, a mãe<br />
era uma mulher com história, família,<br />
marido, filhos; filhos já criados, mas<br />
ainda vivendo sob o mesmo teto com<br />
ela. Agora viviam a seus pés, se revezando<br />
na vigília.<br />
A pele da mãe, alva, contrastava<br />
com a sua, morena. Ninguém entre<br />
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 19<br />
os cinco irmãos saiu à mãe. “Força da<br />
raça”, orgulhava-se o pai. Mas quando<br />
crianças sempre escutavam cochichos,<br />
bochichos, risadinhas. A mãe ficava<br />
transtornada, a cara avermelhada, e de<br />
brava passava a furiosa. Dava de dedo,<br />
saía pisando duro. Os meninos resolviam<br />
a seu modo, geralmente com punhos<br />
fechados e pontapés. As meninas<br />
é que sofriam mais, sofriam duas vezes:<br />
primeiro pelas ofensas, sempre com rimas,<br />
depois pelo destino, que não fez a<br />
pele delas, o cabelo, nada parecido com<br />
a mãe. Vez ou outra diziam que se odiavam<br />
por isso.<br />
Um senhor, de camisa azul e<br />
sapatos pretos, assoma à porta e pergunta<br />
como a mãe esta. Sem dar tempo<br />
ao filho responder, ele começa a dizer<br />
que somos todos egoístas, que não queremos<br />
que se vão aqueles que gostamos,<br />
que devemos agradecer pela própria<br />
vida, e que ele tinha feito isso quando o<br />
pai morrera, embora ele bebesse, jogasse<br />
e judiasse da mãe. Mais isso e aquilo<br />
outro, que há sim milagres na vida, que<br />
ninguém pode adivinhar nem prever os<br />
desígnios superiores, pois há um tempo<br />
para cada um na terra; e que por isso<br />
não devemos nos revoltar nem mesmo<br />
quando crianças, grávidas ou gente saudável<br />
morre. Tudo isso em dois minutos,<br />
mas pareceu um longo sermão, daqueles<br />
de quem precisa acreditar nas<br />
próprias palavras.<br />
A mãe se agita, parece engasgar-se<br />
com o próprio ronco. O filho a<br />
ampara, ergue seu pescoço, que já não<br />
suporta a própria cabeça. Olha sua boca<br />
entreaberta, seus olhos fechados. De repente,<br />
ela abre os olhos, revira-os e volta<br />
para encará-lo, como se suplicasse pelo<br />
último suspiro. g<br />
Rogério Ivano é professor universitário em<br />
Londrina, onde vive. É autor do livro de contos Os<br />
opostos se distraem e da biografia Haruo Ohara<br />
– Lavrador de imagens, com M. Losnak, entre<br />
outros. Participou do curta-metragem Satori Uso,<br />
premiado em Gramado em 2007.