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a marquezinha de cabeleira negra, de garcía márquez - UFMT

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A MARQUEZINHA DE CABELEIRA NEGRA, DE GARCÍA<br />

MÁRQUEZ<br />

Introdução<br />

LOPES, Iara Cardoso<br />

Neste artigo, apresento uma análise parcial do romance <strong>de</strong> Gabriel García Márquez, intitulado<br />

Del amor y otros <strong>de</strong>mônios (1996). Essa análise parte da seguinte indagação: On<strong>de</strong> e como se manifesta o<br />

realismo maravilhoso na referida obra? Usarei como referencial teórico Alejo Carpentier (2004), Irlemar<br />

Chiampi (1980) e Dasso Salvidar (2000).<br />

Após uma viagem à Europa, Alejo Carpentier, influenciado pelo Surrealismo 1 europeu e pela busca<br />

da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do povo latino-americano, <strong>de</strong>fine — em seu tão famoso prólogo <strong>de</strong> EL reino <strong>de</strong>ste mundo — o<br />

que é o realismo maravilhoso. Para o autor, tal período foi completamente diferente do realismo fantástico,<br />

uma vez que os escritores do realismo fantástico teriam que falsificar uma realida<strong>de</strong>, por assim dizer, forjar<br />

o real. Carpentier, antes <strong>de</strong> começar a escrever, passou <strong>de</strong> 9 a 10 anos lendo e pesquisando tudo que fosse<br />

referente à América Latina. Ele estudou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as cartas <strong>de</strong> informações dos conquistadores até os poetas e<br />

romancistas mais recentes.<br />

Na obra EL reino <strong>de</strong>ste mundo, no reinado <strong>de</strong> Henri Christophe, no Haiti, os negros são escravos<br />

<strong>de</strong> negros; os soldados se vestem com um estilo napoleônico; as damas <strong>negra</strong>s também se vestem com<br />

muita classe e elegância, como na última moda etc. Nesse evento, Carpentier tentou resgatar um momento<br />

histórico no continente, o afrancesamento e o sincretismo culturai que ocorreram durante o reinado <strong>de</strong><br />

Henri Christophe. O escritor cubano mostra não as fantasias ou invenções <strong>de</strong> sua mente, mas o conjunto <strong>de</strong><br />

objetos, situações, ritos e eventos que são particulares e peculiares à América Latina.<br />

A intenção <strong>de</strong>sse trabalho é mostrar, por meio da obra Del amor e otros <strong>de</strong>mônios, do colombia-<br />

no García Márquez, esse realismo maravilhoso. Os fenômenos mitológicos, supersticiosos, lendários até<br />

hoje fazem parte da cultura do povo hispanoamericano. Tais crenças são produto do hibridismo cultural-<br />

linguístico-i<strong>de</strong>ológico que ocorreu na colonização <strong>de</strong>sse povo, resultante da mescla <strong>de</strong> povos: índio, negro<br />

e europeu (branco). É <strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong> todos que tal hibridismo não ocorreu pacificamente; muito pelo<br />

contrário, o que suce<strong>de</strong>u foi um massacre dos povos que aqui estavam, ou seja, a imposição da cultura do<br />

colonizador ao colonizado. Para Chiampi (1980), a intenção evi<strong>de</strong>nte da nova novela latina é<br />

1 . Embora Carpentier critique essa estética, ele diz em entrevista a César Léante (1964) : “He dicho que me<br />

aparté <strong>de</strong>l surrealismo porque me pareció que no iba aportar nada <strong>de</strong> él. Pero el surrealismo si significó mucho para<br />

mi. Me enseñó a ver texturas, aspectos <strong>de</strong> La vida americana que no había advertido, envultos como estábamos en la<br />

ola <strong>de</strong> nativismo traída por Guiral<strong>de</strong>s, Gallegos, y José Eustasio Rivero. Comprendí que <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> ese nativismo había<br />

algo más; lo que llamo los contextos, contexto telúrico y contexto épico-político: el que halle la relación entre ambos<br />

escribirá la novela americana” (21-2) (apud Chiampi, 1980,p.39).<br />

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A Marquezinha De Cabeleira Negra, De García Márquez<br />

<strong>de</strong>slocar a busca imaginária do maravilhoso e avançar uma re<strong>de</strong>finição da so-<br />

bre-realida<strong>de</strong>: esta <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um produto da fantasia – <strong>de</strong> um “dépaysement”<br />

que os jogos surrealistas perseguiam – para constituir uma região anexada à<br />

realida<strong>de</strong> ordinária e empírica, mas só apreensível por aquele que crê ( 1980,<br />

p.36).<br />

1- O MARAVILHO DA AMÉRICA LATINA<br />

O cubano Alejo Carpentier, no prólogo do livro El reino <strong>de</strong> este mundo, <strong>de</strong>finiu, claramente, por<br />

meio dos personagens, da inserção dos mitos, da oralida<strong>de</strong> dos haitianos e dos fatos religiosos, o que con-<br />

si<strong>de</strong>ra como Maravilhoso. Segundo Carpentier (2004), o aspecto religioso é <strong>de</strong> suma importância para se<br />

crer no Maravilhoso: “para empezar, la sensación <strong>de</strong> lo maravilloso presupone una fe. Los que no creen en<br />

santos no pue<strong>de</strong>n curarse con milagros <strong>de</strong> santos(…)” (2004, p.10). Para o autor, o Realismo Maravilhoso<br />

é a essência da <strong>de</strong>finição do que vem a ser o povo latino-americano, ou seja, povo mestiço, povo <strong>de</strong> várias<br />

raças, costumes, crenças, rituais. O mesmo autor afirma que o Realismo Maravilhoso é algo particular da<br />

América Latina, uma vez que somente aqui po<strong>de</strong>-se vivenciar, <strong>de</strong> fato, o maravilho; por assim dizer, não há<br />

falsificação da realida<strong>de</strong>, não é ilusão — como faziam os surrealistas — mas aquilo que há <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro<br />

na América, <strong>de</strong> singular, <strong>de</strong> único, <strong>de</strong> fantástico. Segundo o autor,<br />

Lo real maravilloso se encuentra a cada paso en las vidas <strong>de</strong> hombres que ins-<br />

cribieron fechas en la historia <strong>de</strong>l Continente y <strong>de</strong>jaron apellidos aún llevados:<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> los buscadores <strong>de</strong> la Fuente <strong>de</strong> la Eterna Juventud, la áurea cuidad <strong>de</strong><br />

Manoa, hasta ciertos rebel<strong>de</strong>s <strong>de</strong> la primera hora o ciertos héroes mo<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong><br />

nuestras guerras <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia <strong>de</strong> tan mitológica traza como la coronela<br />

Juana <strong>de</strong> Azurduy (2004, p.12)<br />

Para Carpentier o realismo maravilhoso se distingue do fantástico europeu. Este é entendido como<br />

algo fantasioso, sem sentido, inverossímil, composto por elementos do cotidiano, todavia levado a uma at-<br />

mosfera <strong>de</strong> sonhos e ilusão, ou seja, é uma realida<strong>de</strong> artificial, produto da imaginação dos escritores. Aquele<br />

é a expressão literária do povo mestiço, do real latente, do cotidiano em estado bruto.<br />

A busca insaciável <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para a América Latina, bem como o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> romper com<br />

os mo<strong>de</strong>los literários europeus da época, fez com que na região latino-americana surgisse o Maravilhoso,<br />

tendo como principais escritores e precursores Alejo Carpentier, Miguel Ángel Asturias, Jorge Luís Bor-<br />

ges, Gabriel Garcia Marquez . Imediatamente, viu-se o “boom” da ruptura com o esquema tradicional do<br />

discurso realista.<br />

O realismo maravilhoso é formado pela união <strong>de</strong> elementos díspares, proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> culturas he-<br />

terogêneas. Isso é o que gera uma nova realida<strong>de</strong> histórica, proporcionando o rompimento com os padrões<br />

convencionais da racionalida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal. Segundo Chiampi, “o maravilhoso é, na criação literária, a in-<br />

tervenção <strong>de</strong> seres sobrenaturais, divinos ou legendários (<strong>de</strong>uses, <strong>de</strong>usas, anjos, <strong>de</strong>mônios, gênios, fadas)<br />

na ação narrativa ou dramática” (1980, p. 49, ênfase acrescentada). A diferença entre o maravilhoso e o<br />

fantástico está em que este inventa os seres sobrenaturais em sua criação literária, uma vez que não existem,<br />

e aquele não o faz, não artificializa, uma vez que a intervenção dos seres legendários ocorre <strong>de</strong> fato, pois


LOPES<br />

no Maravilhoso acontece, <strong>de</strong> fato, uma intervenção <strong>de</strong>sses seres divinos na vida cotidiana das pessoas. Tal<br />

fenômeno Carpentier consi<strong>de</strong>ra como algo natural da América Latina, o que seria impossível ao contexto<br />

europeu.<br />

O escritor colombiano Gabriel García Márquez constrói maravilhosamente, em seus romances, o<br />

Maravilhoso, como em Cien años <strong>de</strong> Soledad, novela que o consagrou como um gran<strong>de</strong> autor, dando-lhe<br />

reconhecimento literário e prestígio universal por parte da crítica e do público. García Márquez escreveu<br />

muitos romances e contos — El otoño <strong>de</strong>l patriarca, Crónica <strong>de</strong> una muerte anunciada, El amor en los<br />

tiempos <strong>de</strong>l cólera, Doce cuentos peregrinos — além <strong>de</strong> textos jornalísticos, o que lhe ren<strong>de</strong>u, em 1982, o<br />

prêmio Nobel <strong>de</strong> Literatura. Aqui irei tratar apenas da obra Del amor y otros <strong>de</strong>mônios, na qual analisarei a<br />

manifestação do realismo maravilhoso.<br />

2- UM POUCO SOBRE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ<br />

Gabriel García Márquez nasceu no dia 6 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1927, em Aracataca, Colômbia (Ilhas do Cari-<br />

be). De seu nascimento até os <strong>de</strong>z anos, viveu no casarão com os avós maternos (Tranquilina e Nicólas),<br />

as três tias e primos. Aos nove anos, leu pela primeira vez As mil e uma noites e ficou maravilhado,<br />

porque as histórias eram semelhantes às que sua avó contava. Muitas <strong>de</strong> suas narrativas são frutos das<br />

histórias inventadas pela avó, bem como das Histórias reais que o avô lhe contava. O avô falava do<br />

mundo real, já a avó do fantástico, do supersticioso.<br />

3- DE AMOR E OUTROS DEMÔNIOS: ONDE O MARAVILHOSO APARECE<br />

García Márquez narra a história <strong>de</strong> uma menina <strong>de</strong> 12 anos — Sierva María — que foi mordida por<br />

um cachorro raivoso e que vive um romance com um padre <strong>de</strong> 37 anos. Devido ao fato <strong>de</strong> os pais terem-na<br />

abandonado, ela é criada pelos escravos. Com isso, passa a absorver a cultura e os costumes dos escravos e<br />

a cultuar as divinda<strong>de</strong>s africanas.<br />

Nesse romance, García Márquez apresenta a dicotomia que há entre o mundo dos escravos e o dos<br />

brancos. Para o Santo Ofício, os rituais africanos eram consi<strong>de</strong>rados <strong>de</strong>moníacos, por isso o bispo afirmava<br />

que Sierva María estava possuída pelo <strong>de</strong>mônio. Entretanto, o que ocorria era que a menina, por ter sido<br />

educada pelas <strong>negra</strong>s da casa, fazia as mesmas coisas que seus moradores. Há a presença do maravilhoso,<br />

do insólito, do fantástico da América Latina. A realida<strong>de</strong> das personagens nos é transmitida com muita<br />

veracida<strong>de</strong>, uma vez que o autor aborda fatos do cotidiano mesclados com os rituais, as crenças, a religião,<br />

as danças, os escravos, os indígenas, os mestiços. Ou seja, mostra situações em que há uma intervenção<br />

das divinda<strong>de</strong>s na vida das pessoas. O plano espiritual exerce total e natural influência no plano terrestre.<br />

No prólogo, García Márquez inventa uma origem para a sua história. Diz que em 1949 foi ao con-<br />

vento <strong>de</strong> Santa Clara <strong>de</strong> Cartagena, on<strong>de</strong> encontrou a protagonista <strong>de</strong> sua novela: uma menina com uma<br />

<strong>cabeleira</strong> <strong>de</strong> 22 metros e 11 centímetros.<br />

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A Marquezinha De Cabeleira Negra, De García Márquez<br />

No primeiro capítulo, há um exemplo singular do realismo maravilhoso: “um cachorro cinzento<br />

com uma estrela na testa irrompeu pelos becos do mercado no primeiro domingo <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro, revirou<br />

mesas <strong>de</strong> frituras, <strong>de</strong>rrubou barraquinhas <strong>de</strong> índios e toldos <strong>de</strong> loterias (...)” (MÁRQUEZ, 1996, p.13, ên-<br />

fase acrescentada). Aqui temos um cotidiano bastante peculiar aos latino-americanos: são comerciantes,<br />

mercados negreiros, pessoas “indo e vindo”, barracas com mercadorias exóticas, carnes, animais etc., tudo<br />

isso em uma feira. O autor nos apresenta um espaço físico natural/pertencente à América Latina.<br />

Outro exemplo é o <strong>de</strong> uma abissínia que chegara no mesmo dia em que Sierva María havia sido<br />

mordida pelo cachorro. O narrador nos apresenta uma <strong>negra</strong> belíssima, <strong>de</strong> beleza não comum:<br />

uma beleza tão perturbadora que parecia mentira. Tinha o nariz afilado, o crâ-<br />

nio acabaçado, os olhos oblíquos, os <strong>de</strong>ntes intactos e o porte equívoco <strong>de</strong> um<br />

gladiador romano (...) puseram-na à venda por sua beleza apenas. O preço<br />

que o governador pagou por ela, sem regatear, e à vista, foi seu peso em ouro<br />

(MÁRQUEZ, 1996 p.14-15).<br />

Observa-se novamente a presença do maravilhoso, do extraordinário, do insólito que escapa ao<br />

curso ordinário das coisas e do humano. Ou seja, o maravilhoso é tudo aquilo que contém a maravilha,<br />

coisas admiráveis, que po<strong>de</strong>m ser belas, boas ou horríveis, contrapostas ao natural, ao comum, aos mo<strong>de</strong>los<br />

(CHIAMPI 1980).<br />

Sierva María foi criada por uma escrava/governanta <strong>de</strong> sua casa, uma vez que a sua mãe — Ber-<br />

narda Cabrera — bem como o seu pai — Dom Ygnacio <strong>de</strong> Alfaro y Dueños — “nem sabiam <strong>de</strong> sua exis-<br />

tência”, mesmo morando na mesma casa. A mãe somente preocupava-se consigo, e o pai não era diferente.<br />

A própria mãe lhe <strong>de</strong>u um nome <strong>de</strong> escrava: María Mandinga. A escrava que governava a casa, Dominga<br />

<strong>de</strong> Adviento, foi a responsável pela criação e educação da menina. Esta, quando para nascer, estava entre a<br />

vida e a morte, por isso Dominga fez uma promessa aos seus santos e orixás: caso a menina nascesse com<br />

vida, nunca iriam cortar o cabelo <strong>de</strong>la antes do seu casamento. Era por causa <strong>de</strong>ssa promessa que Sierva<br />

María tinha os cabelos compridos, quase chegando ao chão; era uma “<strong>cabeleira</strong>” enorme. Foi também Do-<br />

minga que a amamentou, batizou-a em Cristo e a consagrou a Olokun, divinda<strong>de</strong> ioruba <strong>de</strong> sexo incerto.<br />

Sierva María apren<strong>de</strong>u<br />

a dançar antes <strong>de</strong> falar, apren<strong>de</strong>u três línguas africanas ao mesmo tempo, a beber sangue<br />

<strong>de</strong> galo em jejum e a esgueirar-se entre os cristãos sem ser vista nem pressentida, como<br />

um ser imaterial ... pouco a pouco as escravas foram pendurando nela os colares <strong>de</strong> vários<br />

<strong>de</strong>uses, até o número <strong>de</strong> <strong>de</strong>zesseis (MÁRQUEZ, p. 66).<br />

Ela vivia em meios aos escravos, na senzala, no pátio. Tinha os costumes dos escravos, falava com<br />

total competência as diversas línguas africanas, dançava melhor que os próprios nativos, cantava com vozes<br />

<strong>de</strong> pássaros e animais, pintava a cara com fuligem, usava os colares <strong>de</strong> candomblé por cima do escapulário<br />

católico. Exemplo disso é sua festa, que foi celebrada na senzala, no mundo dos escravos:


LOPES<br />

naquele mundo opressivo em que ninguém era livre, Sierva María o era: só ela e só ali.<br />

Por isso era ali que se celebrava a festa, em sua verda<strong>de</strong>ira casa e com sua verda<strong>de</strong>ira<br />

família (...) dançava com mais graça e donaire que os africanos <strong>de</strong> nação, cantava com vo-<br />

zes diferentes da sua nas diversas línguas da África, ou com vozes <strong>de</strong> pássaros e animais,<br />

que <strong>de</strong>sconcertavam os próprios negros (MÁRQUEZ 1996 p.20).<br />

A jovem Sierva María é a expressão do realismo maravilhoso <strong>de</strong> García Márquez. Ela usava o esca-<br />

pulário, mas, também, os colares dos orixás. A sua fé era heterogênea, assim como a sua vida. Sua mãe era<br />

filha <strong>de</strong> um índio com uma branca, ou seja, era mestiça. Já o pai era um marquês branco, todavia <strong>de</strong>mente e<br />

tolo, sem autorida<strong>de</strong> nenhuma. Ela não sabia “ser branca”, ou seja, não <strong>de</strong>sfrutava dos “direitos”, não tinha<br />

o porte <strong>de</strong> uma marquesa, tampouco os costumes da socieda<strong>de</strong> branca. Embora ela fosse uma “marquesi-<br />

nha”, tivesse olhos azuis — como os do pai — e cabelos ruivos, não se comportava como uma sinhá, pois<br />

fora criada com os costumes dos negros, rusticamente. A menina comia junto com os negros, mentia como<br />

os negros, dançava, cantava, vestia-se como eles e ajudava nos trabalhos domésticos:<br />

ela estava ajudando a esfolar coelhos, o rosto pintado <strong>de</strong> preto, <strong>de</strong>scalça e com o turbante<br />

vermelho das escravas. Perguntou-lhe se era verda<strong>de</strong> que tinha sido mordida por um ca-<br />

chorro, e ela, sem a menor a dúvida, respon<strong>de</strong>u que não (MÁRQUEZ, 1996 p. 26).<br />

Sierva María era misteriosa e calada, sem expressões faciais, quase não sorria. Ela era consi<strong>de</strong>rada<br />

como uma menina estranha, não <strong>de</strong>ste mundo. Era uma espécie <strong>de</strong> branca, todavia <strong>negra</strong>. Sierva María se<br />

“entregara em segredo às ciências dos escravos, que a faziam mastigar emplastro <strong>de</strong> manajá, e a trancavam<br />

nua na <strong>de</strong>spensa <strong>de</strong> cebolas para afastar o malefício do cachorro” (MÁRQUEZ, 1996, p. 50). Fazia coisas<br />

esquisitas, como pôr uma boneca “morta” <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma bacia com água para assustar a sua mãe, andava<br />

quase sem fazer barulho com os pés, olhava com um olhar misterioso e assustador, era até capaz <strong>de</strong> matar,<br />

se fosse necessário; tirava os órgãos internos dos animais sem nenhum pudor ou nojo.<br />

Quando o pai <strong>de</strong> Sierva María ficou sabendo que ela havia sido mordida por um cachorro raivoso<br />

e que contraíra a doença, ficou <strong>de</strong>sesperado. Fez <strong>de</strong> tudo para salvar a vida da filha, embora não adiantasse<br />

nada. O marquês, então, diante <strong>de</strong> todo o sofrimento da filha, procura um médico, o Abrenuncio. Eles têm<br />

um primeiro encontro inusitado: quando o cavalo do médico morre. Diante disso, o marquês faz uma gen-<br />

tileza ao Abrenuncio: presenteia-o com outro alazão; o “cavalo morto tinha sido enterrado na antiga horta<br />

do hospital Amor <strong>de</strong> Deus, consagrada como cemitério <strong>de</strong> gente rica (...)” (MÁRQUEZ, 1996, p.44). Esse<br />

é mais um exemplo do realismo maravilhoso nessa obra: um cavalo que é enterrado em um cemitério, on<strong>de</strong><br />

os cristãos também são. “Foi uma afronta a nossa fé, senhor marquês — disse Delaura. – Cavalos <strong>de</strong> cem<br />

anos não é coisa <strong>de</strong> Deus” (I<strong>de</strong>m p.86).<br />

Após tentativas frustradas <strong>de</strong> recuperação da saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sierva María por parte do pai, ele <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />

entregá-la aos cuidados das freiras. Quando a menina chega ao convento das “Mortas Vivas”, aliás, <strong>de</strong><br />

Santa Clara, há alguns acontecimentos importantes a serem discutidos, como: seu encontro com os negros<br />

do convento que, <strong>de</strong> imediato, reconhecem os colares <strong>de</strong> macumba, usados por ela, e lhe falam em ioruba;<br />

as escravas a levam até a cozinha; veem seu pé machucado e perguntam o que havia acontecido. A menina<br />

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A Marquezinha De Cabeleira Negra, De García Márquez<br />

mente, diz que sua mãe havia feito aquilo com uma faca. Então lhe perguntam o nome; ela dá o nome <strong>de</strong><br />

<strong>negra</strong> – Maria Mandinga. Ela ajuda a <strong>de</strong>golar um cabrito que resistia a morrer — tira-lhe os dois olhos e<br />

corta-lhe os testículos; joga diabolô com os adultos e crianças e ganha <strong>de</strong> todos; canta em ioruba, em congo<br />

e em mandinga; no almoço, come os testículos e os olhos do cabrito.<br />

Sierva María era realmente uma branca-<strong>negra</strong>, uma menina que <strong>de</strong> branca tinha somente a cor.<br />

Quando ela chega ao convento e encontra os negros é como se tivesse encontrado os “seus”, o seu povo,<br />

a sua família. García Marquez nos mostra uma marquesinha completamente incomum para os padrões da<br />

socieda<strong>de</strong> cristã. É uma espécie <strong>de</strong> rompimento com os mo<strong>de</strong>los europeus, isto é, algo natural da América<br />

Latina, peculiar a esse povo mestiço.<br />

O belo, o maravilhoso, é notório nessa obra, ou seja, o autor <strong>de</strong>staca aquilo que é particular ao povo<br />

latino-americano. Aqui, no maravilhoso, o cavalo <strong>de</strong> cem anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, é real; uma menina branca-<strong>negra</strong><br />

com uma <strong>cabeleira</strong> assustadora, com po<strong>de</strong>res sobrenaturais e que fala e canta em línguas africanas, que<br />

dança melhor que os nativos, e que consegue ficar “invisível” para os cristãos, é real. Tudo isso existe, não<br />

como algo falsificado, fruto da ilusão e sonhos dos escritores, da simples imaginação, mas como algo do<br />

real, do cotidiano, da intervenção <strong>de</strong> seres sobrenaturais e, por questão <strong>de</strong> fé, da crença em sua existência.<br />

Até aqui, po<strong>de</strong>-se observar que essa obra, <strong>de</strong>ntre tantas outras, expressa a mestiçagem que resultou<br />

na “formação” i<strong>de</strong>ológica do povo latino-americano, que buscava por meio da literatura sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

O realismo maravilhoso surgiu na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar as peculiarida<strong>de</strong>s da América Latina, valorizar a<br />

mestiçagem, <strong>de</strong>finir a sua cultura no contexto oci<strong>de</strong>ntal, <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar-se perante as variadas formas <strong>de</strong><br />

colonização e <strong>de</strong> criar um sentido para sua realida<strong>de</strong> histórica. Foi isso que García Márquez fez em todos<br />

os seus romances e contos: buscou significar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse povo, tanto no aspecto histórico-político-<br />

social, quanto religioso ou mítico.<br />

A igreja católica exerce um gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r sobre a família <strong>de</strong> Sierva María, assim como sobre toda<br />

a socieda<strong>de</strong>. A igreja, representada pelo padre ou bispo, <strong>de</strong>tém autorida<strong>de</strong>, prestígio e po<strong>de</strong>r nessa época.<br />

Sua função era evangelizar, levar os perdidos — nesse caso, os negros e índios — para a verda<strong>de</strong>ira fé, a<br />

salvação, o único caminho certo. Ou seja, levá-los para o Deus dos brancos, dos europeus, dos civilizados.<br />

E é aí que entra a gran<strong>de</strong> questão: os negros e índios não podiam cultuar os seus <strong>de</strong>uses, as suas<br />

divinda<strong>de</strong>s, pois eram con<strong>de</strong>nados por suas práticas, por sua fé mística, pelos seus rituais <strong>de</strong> macumbas e<br />

por suas oferendas aos orixás, pela prática <strong>de</strong> vodu. Então aconteceu que “muitos dos traços das religiões<br />

africanas ou indígenas foram integrados no catolicismo latino-americano” (LAMBERT, 1979, p.18). O<br />

povo latino-americano surgiu a partir <strong>de</strong> uma mestiçagem fortíssima: índios, espanhóis e africanos, cada<br />

qual com costumes, cultura e religião completamente distintos. No que tange ao campo religioso, todos os<br />

países latino-americanos têm como religião oficial o catolicismo; todavia, há práticas, como no vodu <strong>de</strong><br />

Cuba, que são naturais dos rituais <strong>de</strong> macumba.<br />

Na obra Del amor e otros <strong>de</strong>mônios, as práticas <strong>de</strong> macumbas ocorrem em meio aos ritos católicos.<br />

Todavia, esses cultos africanos são con<strong>de</strong>nados pela igreja e é por isso que o bispo diz ao pai <strong>de</strong> Sierva<br />

María que ela está possuída pelo <strong>de</strong>mônio. Segundo o bispo, tal fenômeno era produto <strong>de</strong> ensinamentos<br />

que os escravos davam para a menina. O pai tenta cuidar da filha em casa, entretanto percebe que o bispo<br />

estava certo, que <strong>de</strong>ve obe<strong>de</strong>cer-lhe. Sendo assim, ele manda a menina para o convento, on<strong>de</strong> será muito<br />

maltratada, pois todos pensam que ela está possuída pelo “capeta”.


LOPES<br />

É no convento que Sierva María terá a sua primeira experiência amorosa. O padre Delaura fica res-<br />

ponsável por exorcizá-la. Todavia, quando chega à cela em que a marquesinha se encontrava, ele se assusta,<br />

pois é um lugar sujo, úmido, escuro e fedido: “(...) a cela <strong>de</strong> Sierva María exalou um bafo <strong>de</strong> podridão. A<br />

menina estava <strong>de</strong>itada <strong>de</strong> costas na cama <strong>de</strong> pedra sem colchão, amarrada <strong>de</strong> pés e mãos com correias <strong>de</strong><br />

couro” (MÁRQUEZ, 1996, p.122). Ele se compa<strong>de</strong>ce da marquesinha e faz varias intervenções junto à<br />

aba<strong>de</strong>ssa para melhorar algumas coisas na cela da menina. Depois <strong>de</strong> alguns encontros, o padre percebe que<br />

está apaixonado por Sierva María: “retirou-se para a biblioteca mais cedo que <strong>de</strong> costume, pensando nela,<br />

e quanto mais pensava, mais aumentavam suas ânsias <strong>de</strong> pensar. Repetiu em voz alta os sonetos <strong>de</strong> amor<br />

<strong>de</strong> Garcilaso (...)” (MÁRQUEZ,1996, p.131). A relação entre os dois é uma mistura <strong>de</strong> amor cristão com o<br />

amor pagão, uma vez que Sierva María representava o “<strong>de</strong>mônio” e o padre, o “ sagrado”.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Diante do que foi comentado, posso dizer que o realismo maravilhoso até hoje é visível e vivenciado pelo<br />

povo latino americano: vivenciado, na medida em que as suas crenças, superstições, valores religiosos — a<br />

sua fé em algo divino — são ainda fortemente cultuados e respeitados. Tais crenças fazem parte da i<strong>de</strong>nti-<br />

da<strong>de</strong> e da cultura <strong>de</strong>sse povo, por isso, para se crer em seres sobrenaturais, é necessário ter fé. É isso que<br />

encontramos na personagem Sierva Maria, fé em santos, nos <strong>de</strong>uses africanos, nas superstições etc. Ela<br />

simboliza a formação híbrida do hispano-americanismo, do homem índio colonizado, do europeu sob o sol<br />

latino-americano.<br />

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A Marquezinha De Cabeleira Negra, De García Márquez<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CHIAMPI, Irlemar. O realismo Maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.<br />

LAMBERT, Jacques. América Latina: estruturas sociais e instituições políticas. tradução <strong>de</strong> Lólio Louren-<br />

ço <strong>de</strong> Oliveira e Almir <strong>de</strong> Oliveira Aguiar. São Paulo: USP,1979.<br />

SALVÍDAR, Dasso. Gabriel García Márquez: viagem à semente. Tradução <strong>de</strong> Eric Nepomuceno. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Record, 2000.<br />

SOLANET, Mariana e Bergand, Luis Heitor. García Márquez para principiantes. Buenos Aires, Argentina:<br />

Era Naciente, 1999.<br />

MÁRQUEZ, Gabriel García. Do amor e outros <strong>de</strong>mônios. Tradução <strong>de</strong> Moacir Werneck <strong>de</strong> Castro. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Record, 1996.

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