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A formação do discurso psiquiátrico em Fortaleza no final do<br />
século XIX<br />
Resumo<br />
Roberta Kelly Bezerra de Freitas*<br />
Este trabalho apresenta elementos que constituem a formação do discurso psiquiátrico na<br />
cidade de Fortaleza no final do século XIX no período de 1874 -1886, através de uma<br />
campanha da Igreja Católica e da elite de cidade para construir o primeiro Asilo de Alienados e<br />
Mendicidade do <strong>Ce</strong>ará. Durante o período de construção do asilo, uma série de notícias sobre<br />
a loucura foram publicadas, inclusive as “cartas sobre a loucura”, que acabou se<br />
transformando no primeiro discurso científico sobre os “loucos” na capital, escritas pelo<br />
médico clínico geral o Sr. Dr. Francisco Montezuma em 1882 no jornal Gazeta do Norte. As<br />
cartas falam sobre as monomanias, o progresso da ciência, à loucura-moral, hipnotismo,<br />
religião, exorcismo e principalmente sobre as teorias de Filipe Pinel e J. E. Esquirol.<br />
Palavras-chave: asilo - loucura – psiquiátria<br />
1.0 – Uma campanha “contra” os loucos<br />
Em 1874, o Sr. Visconde de Cauhipe teve uma idéia, segundo Barão de Studart: “O<br />
Asylo de S. Vicente de Paulo é producto de sua creação, e sua iniciativa veio do facto de ter<br />
contemplado, errante e perseguida, andrajosa e faminta, uma pobre louca nas ruas d'esta<br />
cidade” 1 . A partir desta perseguição, surgiu um novo problema em Fortaleza: o que fazer com<br />
os loucos que perambulavam na cidade? Como podemos ver, na nota de reclamação que um<br />
fortalezense fez no jornal <strong>Ce</strong>arense no mesmo ano,<br />
*Roberta Kelly Bezerra de Freitas, mestranda em História Social na UFC, bolsista CAPES, orientanda do<br />
professor Dr. Antonio Gilberto Ramos Nogueira. Email: robertafreitas2001@yahoo.com.br.<br />
1 http://www.ceara.pro.br/cearenses/<strong>Ce</strong>arensesindex.asp?offset=1490
Gottoso 2 – Há mais de um anno transita pelas ruas da cidade um gottoso que<br />
esmola, sendo repetidas vezes accommettido do seu mal e rompendo as<br />
roupas até ficar em completa nudez. É um espetáculo triste e repugnante,<br />
que embora esteja a repetir-se, não há comtudo suscitado uma medida por<br />
parte das autoridades. Pedimos à administração da Santa Casa que faça<br />
recolher esse infeliz, dando-lhe um abrigo no hospital, onde pode ser<br />
mantido facilmente. Assim exerce um acto de caridade e evita para o público<br />
o escândalo de andar pelas portas um homem completamente nú. O infeliz<br />
não tem família, e vê-se na obrigação de sahir para haver o pão [sic]. 3<br />
O Gottoso que perambulava e tirava suas roupas pela cidade, passou a ser um<br />
problema. A exigência para a solução por parte das autoridades nos leva a crer que a polícia 4<br />
tinha certa obrigação de resolver essas problemáticas, pois nesse período os loucos eram<br />
encaminhados para dois lugares ou a Santa Casa de Misericórdia ou a Cadeia Pública. Observe<br />
o pronunciamento que a Santa Casa fez no jornal <strong>Ce</strong>arense em 1874:<br />
(...) o projecto de construir-se um edifício que sirva de azylo aos infelizes<br />
privados da rasão. Não estando, porém os recursos do patrimônio na<br />
medida da execução de tão grandiosa idea, pretende a mesa administrativa<br />
realisar, no dia 2 de dezembro vindouro, uma exposição dos donativos que,<br />
para esse fim, lhe forem enviados, e neste sentido, accendendo no pedido<br />
da mesa, nomeei em todas, as freguezias da província commissões<br />
encarregadas da acquisição de quaesquer offrendas liberalisadas pelo<br />
espírito humanitário dos nossos comprovicianos. 5<br />
E a partir deste lançamento teve inicio uma longa campanha para a construção do<br />
primeiro Asilo de Alienados e Mendicidade São Vicente de Paula, que contou com campanhas<br />
de caridade por parte da Igreja católica, exposição de objetos pessoais de pessoas ilustres da<br />
capital e até doações enviadas por testamento. Até mesmo o terreno onde foi construído o<br />
asilo foi obra de doação do Sr. Manoel Francisco da Silva Albano, que entregou para a Santa<br />
Casa, que era a principal <strong>org</strong>anizadora da obra, um terreno no Arronches (hoje Parangaba), a<br />
intenção de um local tão distante da cidade servia a um propósito, como podemos ver no<br />
trecho do jornal <strong>Ce</strong>arense:<br />
2 Provavelmente está forma de chamá-lo vem de gotoso relativo a quem tem gota, uma doença metabólica<br />
de manifestação articular renal e cutânea, associada à sobrecarga <strong>org</strong>ânica de ácido úrico. Cf.: Dicionário<br />
Larousse de língua portuguesa, 2005.<br />
3 CEARENSE, 05-03-1874.<br />
4 “O alienismo, a medicina social a engenharia, assim como a polícia e todo um conjunto de Instituições,<br />
conjugam esforços em direção à edificação de uma cidade higienizada, livre da peste e do perigo que<br />
reproduza em seu interior a imagem vitoriosa da ordem burguesa”. Cf.: CUNHA, op. cit. p. 27.<br />
5 Relatório do presidente da Província do <strong>Ce</strong>ará, Heráclito Alencastro da Graça (Barão de Ibiapaba), 01<br />
de julho de 1874, p. 13.
Consta que a presidência pretende mandar construir um grande edifício<br />
com as necessárias acomodações para o asylo de alienados e mendicidade<br />
aplicando a essa obra a quantia de 42:000$000, já agenciada para esse fim,<br />
e esforços do finado Visconde de Cauhype. É por certo uma idéia muito<br />
generosa, que merecerá grandes applausos. A realização dessa obra é de<br />
vantagens incontestável nas circunstâncias actuais: dopta a capital de mais<br />
um edifício importante: servirá para recolher nelle os loucos e mendigos<br />
que infelizmente abudam entre nós e dará trabalho a grande número de<br />
pessoas, matando assim á fome de muitas famílias. Além disso sahirá a<br />
obra por metade do que se poderia fazer em tempos normais. Informamnos<br />
também que o terreno destinado para o asylo, é no Outeiro dos<br />
Educandos, local bastante elevado e arejado, offerecendo todas as<br />
condições hygiênicas. (Sic) 6 .<br />
Os mendigos que enchiam as ruas de Fortaleza atrapalhavam sem dúvida os planos de<br />
progresso da elite local, o louco e o pobre eram facilmente confundidos nessa trama social.<br />
Para os olhos de muitos, suas atitudes eram poucos distintas. O melhor era retirá-los do centro<br />
da cidade e isolar o mais longe possível do espaço social. A nova necessidade de criar um asilo<br />
para os alienados atendeu exatamente a esse propósito.<br />
Surge junto com a criação do asilo a medicina-alienista na capital. O alienismo se<br />
revelou uma estratégia no processo de <strong>org</strong>anização e “aburguesamento” da sociedade de<br />
classe. A medicina social que se coloca a frente da assistência em favor dos pobres e<br />
medicalizando as práticas de internamento. O alienismo era o discurso decisivo para os<br />
médicos e a sociedade para normalizar o espaço urbano. A relação entre o surgimento e o<br />
desdobramento da medicina mental e da forma asilar com a problemática urbana é uma<br />
questão a ser enfrentada.<br />
1.1 – Um discurso para os loucos<br />
O primeiro discurso sobre a loucura em Fortaleza foi publicado em 1882, com as<br />
“cartas sobre a loucura”. 7 são publicações de dez cartas no jornal Gazeta do Norte lançadas no<br />
primeiro semestre do ano de 1882, pelo médico clínico geral Francisco Ribeiro Delfino<br />
Montezuma, que foi formado em medicina, nasceu no Icó em 27 de abril de 1839, e faleceu<br />
6 CEARENSE, 29 de Abril de 1876.<br />
7 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Edições Loyola, São Paulo, 2008.
em Fortaleza a 31 de agosto de 1892, filho de Antônio José Ribeiro e D. Tereza Delfina de<br />
Jesus. Formado pela faculdade de medicina do Rio de Janeiro, perante a qual defendeu a tese<br />
a 1° de dezembro de 1864, versando a Blenorragia (gonorréia). Foi um dos fundadores e<br />
orador oficial do Ateneu Médico Acadêmico, e médico interno da Casa de Saúde de N. Senhora<br />
da Glória no Rio de Janeiro. Foi Deputado Estadual do <strong>Ce</strong>ará por três biênios, foram os<br />
seguintes anos: 1876-1877, 1880-1881 e 1882-1883. Homem de cultura científica e literária<br />
deixou além da tese um trabalho sobre a operação cesárea e feticidio médico, publicado em<br />
1868, traduções de escritores ingleses e italianos, a que intitulou de Ornatos Poéticos, e uma<br />
gramática inglesa, estes últimos inéditos até hoje.<br />
As cartas possuem informações acerca da loucura, suas implicações na sociedade, seus<br />
métodos de cura, como identificar um louco na tessitura do aspecto social, onde os loucos<br />
passaram de invisíveis aos olhos dos leigos, para visíveis e facilmente identificados no espaço<br />
externo e interno da sociedade.<br />
Existem nas cartas as classificações das monomanias 8 (ter uma idéia fixa),<br />
pensamentos que circulavam na Europa nos cursos de psiquiatria, como doença ligada à<br />
moralidade, o médico alienista era um “higienista moral” 9 , se a Medicina realiza a higiene das<br />
coisas, dos espaços e dos corpos, a Medicina mental realiza a higiene das paixões. A<br />
preocupação aqui está ligada à inserção da moralidade nos indivíduos no espaço social, aquele<br />
que transgride essa regra deve ser isolado através do internamento, para prevenir a<br />
possibilidade desta ocorrência.<br />
São igualmente citadas e explicadas como loucura a “lypemania”, ”hlypochondria”,<br />
“monomonia alegre”, “monomania vaidosa” (velhos que pintam o cabelo de preto para<br />
esconder os fios brancos ou mulheres que são vaidosas, que querem ser magras, ou não dão<br />
atenção a todos os homens, porque são seletivas demais em suas escolhas), a "erotomania”,<br />
“nymphomania”, “satiríasis”, ”monomania do amor” (ciúme), a kleptomania, o alcoolismo,<br />
entre inúmeras outras contidas nas cartas. Todas essas doenças são classificadas no âmbito da<br />
degenerência moral 10 que ocorre no espaço urbano, ou seja, o indivíduo que não consegue<br />
8<br />
“Esquirol, a partir de 1819, ampliou o trabalho de Pinel com a noção de monomania, restringindo a sua<br />
aplicação mais uma vez aos delírios intelectuais localizados nos quais o paciente demonstrava quase<br />
sempre preocupações e comportamentos exagerados e, às vezes, violentos”. Cf.: HARRIS, Ruth.<br />
Assassinato e Loucura: medicina, leis e sociedade no Fin de Siécle. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 17<br />
9<br />
BIRMAN, Joel. A psiquiatria como discurso de moralidade – Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978, P.<br />
38.<br />
10<br />
A teoria da Degenerência Moral do alienista Morel está bem explicitada pela historiadora Maria<br />
Clementina: “Sua proposta é de uma “profilaxia preservadora”, voltada para a identificação e o combate
acompanhar o desenvolvimento e o progresso torna-se um ser passional, dominado pelas<br />
paixões, onde acaba perdendo a racionalidade, elemento este, essencial para o discurso<br />
alienista que estava surgindo.<br />
O louco que é identificado por esse discurso médico, ingressará no espaço asilar que<br />
está sendo criado para ele, e se defrontará com o novo sujeito social, o alienista. Que tem o<br />
poder onipotente no hospital para os loucos está presente em todos os momentos e em cada<br />
funcionário. Foucault tem uma teoria para este poder que foi baseado no modelo de espaço<br />
institucional proposto por Jeremy Bentham no final do século XVIII 11 , o chamado panotismo 12 ,<br />
que é a posição central da vigilância e da invisibilidade de quem vigia, fazendo com que aquele<br />
que é vigiado saiba que está sempre a mercê do olhar do vigilante. E esse mesmo princípio é<br />
desmembrado em seis instâncias: a sua invisibilidade que é a sua posição central de poder, o<br />
princípio da totalidade, pois ninguém deve escapar a sua ação, o princípio de minúcia, pois ela<br />
observa os mínimos detalhes, tanto que em uma das cartas do Dr. Montezuma, existe o<br />
seguinte comentário: “O exame minucioso da vida de cada homem é o único meio de chegar<br />
ao conhecimento exato do seu estado mental”; o princípio da saturação, pois ele virtualmente<br />
não descansa (e não dá descanso), o princípio da individualização, pois ela segmenta uma<br />
massa humana, até então informe em unidade individual e finalmente o princípio da<br />
economia, pois com pouco investimento obtém resultado 13 .<br />
Nesse sentido podemos perceber que o discurso psiquiátrico é voltado para excluir o<br />
louco da sociedade e ao mesmo tempo incluir, dentro de outra micro-sociedade, o espaço<br />
asilar é também uma instituição de seqüestro 14 , aonde o louco vai para passar de anormal para<br />
dócil e disciplinado. Mas como é esse local de sequestro? Vamos observar a descrição que o<br />
Dr. Montezuma faz de um asilo para doidos e sua discussão acerca do espaço interno e<br />
externo da sociedade:<br />
Entremos, porém em uma casa de doudos, penetremos em um hospital de<br />
loucos, estudemos essa forma de alienação mental. N’esses<br />
aos focos da degenerência. Um campo imenso de intervenção se abre para a medicina mental nas tarefas<br />
da prevenção e da profilaxia – atividades para as quais Morel conserva, significativamente, a designação<br />
de “tratamento moral” (...) Neste caso, um tipo de “racismo” que, transcrito para as relações de classe,<br />
tornou-se poderoso instrumento de normalização social à disposição da medicina e do alienismo<br />
reconciliados”. Cf.: CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do Mundo: Juquery a História de<br />
um Asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.<br />
11<br />
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. Raquel Rolnik. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 66.<br />
12<br />
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de<br />
Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 218.<br />
13<br />
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação – 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 79-81.<br />
14 Idem, p. 77.
estabelecimentos a desordem é a desordem, a harmonia que preside a<br />
sociedade é aqui desconhecida, o que vê-se? Um grande numero de seres,<br />
cada apresenta esta ou aquella excentricidade, n’esta predomina tal ou tal<br />
syntoma, n’aquelle observa-se tal ou tal exquisitice. Um salta outro ri, este<br />
dansa, aquelle canta, aqui é um individuo que exprime de um modo<br />
admirável com a maior facilidade palavra idéias incoherentes, truncadas,<br />
disparatadas, falla horas inteiras sem interrupção, seus discursos versão<br />
sobre todos os assumptos passando insensivelmente do sério ao ridículo, do<br />
alegre ao triste, do sublime ao rasteiro ou misturando-se: parece que<br />
aquelle cérebro doente tudo encandeia e admite como verdade. (Sic) 15<br />
Como é essa sociedade vista pelo alienista? Como esse discurso médico<br />
alcança o cotidiano da cidade de Fortaleza? O objeto da ciência é impensável sem o discurso<br />
científico, que constrói um sistema de conceitos que pela qual se define e tem existência real.<br />
São justamente através do saber psiquiátrico que surgem às argumentações, os métodos, os<br />
conceitos que definem o louco, “a doença mental é impensável fora do espaço definido pelo<br />
discurso psiquiátrico, que estabelece por suas normas e racionalidades” 16 . O louco passou a<br />
ser classificado e definido como tal, a partir do discurso do alienista. Ações e sentimentos que<br />
antes pareciam normais passaram a ser inseridos dentro do universo da insanidade, como<br />
podemos perceber na sexta carta do Dr. Montezuma:<br />
A idéia de grandeza, superioridade, e o egoísmo, predominão na<br />
monomania ambiciosa – Uns julgam-se imperadores, reis, generaes...trazem<br />
coroas, fabricão vestuários como os d’aquelles personagens e com elles<br />
adorsão-se, condecorações, pende-lhes do peito andão pausada<br />
gravemente e com a fronte erguida. (...) As paixões deprimentes, as idéias<br />
melancólicas annunvião os dias do que sofre de lypemania; São abatidos,<br />
tristes, taciturmos, sombrios, indolentes, apathicos. (...) Imagine-se um<br />
indivíduo que acredita viver entre riso, prazer, amor, ventura, delícias,<br />
riqueza, poder (...) e tereis um doente de monomania alegre. Os indivíduos<br />
de um e de outro sexo sofredores da monomania vaidosa ou de vaidade<br />
timbrão em tornarem-se bonitos, agradáveis, interessantes, são a<br />
personificação da vaidade. Segundo o prisma por que encarão a belleza<br />
alterão seus modos ordinários: os velhos mudam pintam de preto dos<br />
cabellos grisallhos ou brancos para transformarem-s em moços tornarem-se<br />
janotas e inspirarem o amor. (...) As mulheres toucão-se, vestem-se cada<br />
quala seu gosto à porfia querem-se mostrar-se qual a mais elegante, qual a<br />
mais dengosa, tem sua reserva, não é qualquer que merece os suspiros de<br />
seu coração, o meigo olhar de seus olhos, algumas recusam tomar alimentos<br />
para conservar o corpinho, esbelto e delicado. (...) A monomania erotica é o<br />
15 GAZETA DO NORTE, 1882.<br />
16 BIRMAN, Joel. A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978,<br />
p.18.
amor, não o amor physico que traduz pelo desejo de gozar do ser querido,<br />
mas o amor ideal, o amor casto, o amor puro. Os erotomanos são em geral<br />
alegres, conversadores, fallam constantemente no objeto de seus amores,<br />
quer verdadeiros, quer fhantasticos, pintão n’o com as qualidades, dotes,<br />
perfeições, encantos, os mais fascinadores. (...) Há, porém uma nevrose dos<br />
órgãos sexuais (satyriasis no homem, (nymphomania) na mulher, que pode<br />
a primeira vista impor de erotomania, mas desejo irresistível, insaciável,<br />
impudente, o obceno dos gestos, das palavras, a cohabitar, com pessoas<br />
muito aquém das qualidades e posições do doente, e às vezes este<br />
desespero brutal que leva a gozar do primeiro que encontrar empregando<br />
até violência tirão toda a duvida e confusão que possa haver. Muito diferem<br />
o homem satyrico e a mulher nymphomaniaca do homem e da mulher<br />
eretomanos. (Sic) 17<br />
Os sintomas descritos por Montezuma são voltados para moralidade, à postura sexual<br />
dos sujeitos, sua relação com os seus parceiros, sua tentativa de definir o melhor tipo de amor,<br />
fazendo uma condenação ao amor físico, voltado para satisfazer as paixões. Agora imaginem<br />
um controle de atitudes por parte da população, para policiar seus atos e evitar as acusações<br />
do médico e da sociedade de ser um louco. O homem que tenta ficar mais jovem e seduzir as<br />
mulheres passa a identificar na sua ação de vaidade um aspecto de doença, uma loucura, pior<br />
ainda, um desequilíbrio moral. A mulher que busca a beleza física, a magreza ou até mesmo o<br />
desprezo de homens que não inspiram seus interesses, passa a enxergar na sua atitude um ato<br />
de insanidade.<br />
A historiadora Maria Clementina Cunha (1996) comenta que a medicina mental vai<br />
constituir um discurso sobre todas as instâncias da vida, invadindo a esfera das relações<br />
pessoais para moldá-las segundo propósitos da ordem e da disciplina urbana. O caráter de<br />
intervenção social do discurso psiquiátrico alcança setores diversos, como família, instituições,<br />
escolas e principalmente o espaço urbano, onde os loucos são percebidos na cidade pela<br />
sociedade, que agora também se apropriou do discurso da medicina mental. É o olhar que<br />
vigia cada um, que faz interiorizar a vigilância sobre e contra si mesmo.<br />
1.2– Um local para os loucos<br />
O asilo foi finalmente construído em 1886, em um bairro distante dos arredores da<br />
cidade, conforme consta no jornal <strong>Ce</strong>arense de 27 de Agosto 1877:<br />
17 GAZETA DO NORTE, 1882.
A comissão nomeada pela mesa da Santa Casa de Misericórdia para<br />
escolher o local apropriado para edificação do asilo de allienados, constanos<br />
que deu seu parecer pronuciando-se pelo terreno oferecido Sr. Manoel<br />
Francisco da Silva Albano, em Arronches. Efetivamente o local preferido<br />
oferece todas as condições exigidas para um estabelecimento dessa ordem.<br />
Fica a margem da via – férrea de Baturité e próxima a lagoa da Porongaba e<br />
esses estabelecimentos são sempre construídos distantes dos grandes<br />
centros de movimento. (Sic) 18<br />
O fato de a obra ter sido realizada perto da linha férrea de Baturité coincide com outra<br />
problemática enfrentada por Fortaleza durante a construção do asilo, que foi a grande seca de<br />
1877-1879,<br />
Em termos de intensidade, duração, extensão ou mortalidade, no entanto,<br />
a seca de 1877 não se diferencia tanto de outros períodos de escassez, nem<br />
mesmo em termos de prejuízos econômicos. Mas, ao contrário destas<br />
épocas, a seca adentrou o mundo do poder constituído, avançou sobre o<br />
centro imaginário deste poder, sem respeitar-lhe os “canais competentes”,<br />
e atingiu o cerne da aventura civilizatória que a elite local imaginava<br />
experimentar neste momento. 19<br />
Segundo Neves (2000), a seca de 1877 atinge o “mundo do proprietário” que vivia um<br />
momento de crescimento econômico e de “aformoseamento” da capital. As novas concepções<br />
de espaço urbano implicavam na imposição de estratégias de disciplinarização. Com a entrada<br />
dos retirantes em Fortaleza, vindos da fome, miséria, suicídio e antropofagia, provocam na<br />
população urbana e nas autoridades uma reação, a angústia. De ver a cidade planejada ser<br />
invadida pela “fome” e principalmente pela destruição do “sonho burguês” de progresso e<br />
civilidade.<br />
Logo, depois de todo esse susto, os andrajosos deveriam ser utilizados em algum<br />
proveito para a elite da cidade, logo o ócio passou a ser substituído por trabalho, e diversas<br />
obras foram realizadas através da exploração dos retirantes. Inclusive o Asilo de Alienados e<br />
Mendicidade São Vicente de Paula,<br />
Imigrantes em Arronches – Segundo uma relação que nos forneceu o Sr.<br />
Sólon da Costa e Silva membro da comissão de socorro do Arronches,<br />
18 CEARENSE, 27-08-1877.<br />
19 NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no <strong>Ce</strong>ará. Rio de<br />
Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretária de Cultura e Desporto, 2000, P.25.
existem ali abarrocadas 363 famílias com 2.070 pessoas. Os homens validos<br />
acham-se da lagoa de Porongaba, abertura de roçado e etc. 20<br />
Das 2070 pessoas, algumas trabalhavam em obras no Arronche e outras na construção<br />
do Asilo de Alienados. Terminada a obra, as famílias que trabalharam na construção do São<br />
Vicente de Paula, passaram a morar no mesmo local, pois não tinham outro lugar para ir.<br />
A inauguração do Asilo foi assunto para os jornais e o Relatório de Província do <strong>Ce</strong>ará<br />
em 1886. No dia 1° de março ás 17h é inaugurado o Asilo de Alienados e Mendicidade São<br />
Vicente de Paula, segundo consta no relatório de Miguel Galmon Du Pin Almeida: “Fiz remover<br />
para o edifício de Arronches nove presos indigentes que se achavam recolhidos na cadeia<br />
publica da capital, dando a mesma ordem em relação aos que estivessem pelas cadeias do<br />
interior da província” 21 . Através desta citação, fica claro que os primeiros a serem recebidos no<br />
Asilo foram os presos indigentes e não os loucos. Essas e outras informações estão nos<br />
relatórios assim como, os nomes dos primeiros dirigentes do Asilo, o diretor Dr. Sr. José<br />
Theophilo Rabello, o diretor-facultativo Dr. Meton da França Alencar e para capelão o padre<br />
José Albano Sobrinho, que se ofereceu para trabalhar no local gratuitamente. Nascia na<br />
capital, mas um espaço de exclusão.<br />
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21 Relatório apresentado a Assembléia Legislativa provincial do <strong>Ce</strong>ará pelo Exm. Miguel Galmon Du Pin<br />
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