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Capítulo1

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Capítulo 1<br />

— Rápido, vistam-se, precisamos ir à vila imediatamente.<br />

Papai desligou o telefone e passou os dedos<br />

pelo cabelo.<br />

— À vila? — Mamãe se espantou, abaixando<br />

o jornal. — Estivemos lá faz pouco tempo.<br />

— Aconteceu uma coisa grave — disse papai<br />

ao se dirigir até o corredor e pegar seu casaco.<br />

O susto me revirou o estômago. O que poderia<br />

ter acontecido? Anteontem mesmo eu tinha<br />

voltado da aldeia, depois de passadas três semanas<br />

com meus avós. E tudo estava em ordem por lá.<br />

Desde que entrei na escola, há cinco anos,<br />

passo todas as minhas férias na vila. Mamãe gosta<br />

de viver na cidade, mas ela acha que respirar o<br />

ar da cidade durante muito tempo não é saudável


para crianças. E, para ela, o ar de Beirute é especialmente<br />

ruim, pois os carros circulam dia e noite e a<br />

cidade está sempre fedendo a escapamento. Até<br />

em casa, no sexto andar, é quase impossível abrir<br />

as janelas que dão para a rua, durante o horário de<br />

pico. Mas, quando estou com meus avós, posso<br />

encher os pulmões de verdade e, depois de alguns<br />

dias, não estou mais pálida.<br />

Calcei os sapatos de qualquer jeito e, ao mesmo<br />

tempo, tentei ajudar meu irmão, Amir, a se<br />

vestir. Na pressa, ele não estava conseguindo<br />

achar as mangas da sua malha. Como tantas vezes,<br />

ela estava do avesso.<br />

— Vocês podem fazer isso no caminho — papai<br />

lembrou, nos empurrando em direção à porta.<br />

— Agora fale o que está acontecendo — pediu<br />

mamãe, enquanto procurava as chaves do<br />

carro. — O que é tão terrível para precisarmos ir<br />

até lá imediatamente?<br />

— Vovó teve um sonho — retrucou papai.<br />

— Virgem Maria, rogai por nós! — pediu<br />

mamãe, que finalmente achou as chaves embaixo<br />

das coisas na mesa das roupas.<br />

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“Sim, por favor!”, concordei em silêncio,<br />

embora eu normalmente não seja nem um pouco<br />

supersticiosa, ainda mais com sonhos.<br />

A bem da verdade, quase nunca falamos de<br />

sonhos e coisas assim na nossa família. Mamãe<br />

sempre diz: “Sonhos são sonhos”. E papai acha<br />

que, se temos um sonho ruim, devemos nos deitar<br />

do outro lado, que ele já vai embora por conta<br />

própria. Amir acredita até que ele mesmo nem<br />

sonha, mas eu não consigo acreditar muito nisso.<br />

Com certeza ele não consegue é se lembrar das<br />

coisas na manhã seguinte.<br />

Mas quando vovó sonha é diferente, pois<br />

seus sonhos muitas vezes têm um significado<br />

especial. Vovó tem algo que as outras pessoas<br />

chamam de “terceiro olho”.<br />

Na família de meu pai, conta-se que esses<br />

sonhos premonitórios surgem a cada três gerações,<br />

e que o dom é sempre passado a uma mulher.<br />

Vovô, entretanto, acha que isso é mais uma<br />

maldição do que uma dádiva. Talvez eu também<br />

fosse achar horrível ter de adormecer toda noite<br />

com medo de sonhar com algo ruim e que depois<br />

se torna realidade.<br />

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Até aquele momento, tudo o que vovó Sara<br />

acreditou ter visto com seu terceiro olho tinha<br />

acontecido mesmo.<br />

Ela sonhou certa vez que o dia do Juízo Final<br />

tinha chegado. Os livros com as ações boas e más,<br />

pelas quais os homens vão ser julgados, foram<br />

abertos e descobriu-se que a vovó fazia parte dos<br />

pecadores. Por isso, ela foi jogada no Inferno.<br />

Depois de ter estorricado um tempo por lá, os<br />

pardais intercederam por ela:<br />

— Sara não deve ser condenada! No inverno,<br />

quando a neve ficou cobrindo os campos durante<br />

semanas, ela nos deu grãos e nos salvou de morrer<br />

de fome.<br />

Por causa desta intervenção, vovó passou<br />

imediatamente do Inferno para o Céu.<br />

Alguns dias depois do sonho, um trovão atingiu<br />

o celeiro, no momento em que a vovó acariciava<br />

sua égua, Sara II. Tudo pegou fogo e ardia,<br />

apenas as duas escaparam ilesas. O vovô achou<br />

que elas renasceram das cinzas como o pássaro<br />

Fênix! Embora essa comparação não seja lá muito<br />

adequada, pois o pássaro realmente pegou fogo<br />

antes de ressurgir das cinzas.<br />

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Naquela época, os moradores da vila disseram<br />

que o sonho do Inferno tinha sido mero acaso.<br />

Então vovó teve um segundo sonho, no qual<br />

uma voz dizia que, em três dias, um gigante viria<br />

do norte e provocaria uma grande destruição.<br />

Vovó avisou os moradores de toda a região<br />

logo em seguida, e evitou tudo o que vinha do norte.<br />

Ela chegou a ponto de segurar um pano na<br />

frente do nariz quando um vento soprava daquela<br />

direção.<br />

No terceiro dia depois do sonho, começou a<br />

chover no norte do país. Grandes tempestades<br />

caíam sobre a terra, e, num segundo, uma violenta<br />

torrente de água transformou os leitos secos<br />

em rios caudalosos, que formavam novos<br />

rios que chegavam até os campos da vila.<br />

Empolgadas e felizes da vida, as pessoas começaram<br />

a desviar o tão esperado e precioso líquido<br />

até suas hortas. Só vovó não fez isso. Pois<br />

vovó não parava de falar do seu sonho e alertava<br />

contra a água, que vinha do norte. Mas os moradores<br />

da vila não quiseram ouvi-la. Eles chegaram<br />

até a gozar do vovô, porque ele obedecia à<br />

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vovó e não aproveitava a oportunidade maravilhosa<br />

de irrigar os campos, embora eles realmente<br />

precisassem muito dessa água. Vovô,<br />

entretanto, reagia a todas as tentativas de fazê-lo<br />

mudar de idéia.<br />

Logo em seguida, de um dia para o outro, as<br />

plantas da terra irrigada murcharam, e apenas os<br />

campos dos meus avós foram poupados dessa<br />

estranha doença. Descobriu-se que, na época da<br />

grande chuva, um trem de carga tinha se envolvido<br />

num acidente na estrada e que os produtos<br />

químicos venenosos que tinham vazado contaminaram<br />

a água com que depois os campos foram<br />

irrigados.<br />

Dessa maneira, o “terceiro olho” de vovó tinha<br />

salvado a colheita da família.<br />

Desde aquela época, a maioria dos habitantes<br />

da vila Wad Al-Bassal levava os sonhos de vovó<br />

bastante a sério. Alguns respeitavam tanto o “terceiro<br />

olho” dela que seguiam minuciosamente<br />

todos os seus conselhos, não só os que vinham dos<br />

sonhos. E lhe desejavam não apenas o “Boa noite!”<br />

costumeiro, mas também “bons sonhos!”.<br />

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