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A Carne - Unama

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www.nead.unama.br<br />

indignação, sem ressentimento, indiferente quase, achando-se apenas ridícula a si<br />

própria por tê-lo arvorado um herói durante um longo acesso de extravagância<br />

histérica. Era um pobre diabo, caipirão, velhusco, achacoso. Caçava por caçar, sem<br />

intuição poética, bestialmente, como qualquer caboclo. Bebia pinga. Verdade era<br />

que tinha estado na Europa, mas ter estado na Europa não muda a constituição a<br />

ninguém. Ele era o que ela devia esperar que ele fosse, um tipo muito sem<br />

imponência, reles, abaixo até da craveira comum.<br />

Ao anoitecer recolheu-se, começou a arrumar os seus bronzes, os seus<br />

bibelots de marfim, de porcelana. Envolvia-os cuidadosamente, amorosamente em<br />

papel de seda, arranjava-os no fundo de um enorme baú americano que trouxera,<br />

calçava-os, protegia-os com jornais velhos fuxicados, com guardanapos, com<br />

lenços, com pequenas roupas. Tinha cuidados meticulosos, maternais, de amadora<br />

apaixonada. Por vezes esquecia-se a remirar embevecida uma jarrinha de Sévres,<br />

uma estatueta primorosa: no auge do entusiasmo beijava-a.<br />

Alta noite, muito tarde, estando já deitada ouviu um tropear de animais,<br />

passos de gente, tinidos de esporas.<br />

— Aí chega o bruto, disse consigo, e continuou a pensar na sua ida próxima<br />

para a cidade, e de lá para São Paulo.<br />

O tempo estava firme: a uma noite limpa, estrelada, fria, sucedera um dia como o da<br />

véspera, luminoso, assoalhado.<br />

Lenita levantou-se muito cedo, tomou um copo de leite, deu um passeio pelo<br />

pasto. De volta entrou no pomar a ver os figuinhos novos, os cachos tenros das<br />

vides.<br />

— De uma laranjeira-cravo, que se erguia folhuda desde o chão, viçosa,<br />

esparramada, esfuziou de súbito um tico-tico.<br />

Tem ninho, pensou consigo Lenita, e começou a procurar, abrindo, afastando<br />

os ramos.<br />

Deteve-se, aspirou o ar: sentia um cheiro bom de sabonete Legrand e de<br />

charuto havana.<br />

Deu volta à laranjeira e topou com Manuel Barbosa que se encaminhava para<br />

ela, risonho, palacianamente curvado, na mão direita o chapéu, na esquerda um<br />

cravo rubro, perfumado, esplêndido.<br />

Perto o charuto, que ele deitara fora, desprendia uma espiral de fumo,<br />

azulada, tênue.<br />

Lenita parou confusa, atônita, sem saber o que pensasse.<br />

O homem que aí vinha não era o Barbosa da véspera, era uma<br />

transfiguração, era um gentleman em toda a extensão da palavra.<br />

A testa alta, estreita, lisa, mostrava-se a descoberto, com uma zona muito<br />

alva à raiz do cabelo: esse, cortado, à meia cabeleira, recurvava-se a frente em uma<br />

elegante pastinha à Capoul, a que dava certo realce muitos fios cor de prata. O rosto<br />

era regularíssimo, estava muito bem barbeado. À palidez da véspera sucedera uma<br />

cor sadia de pele clara, mordida, bronzeada pelo sol. A boca, de tipo saxônio puro,<br />

encimada por um bigode cuidadosamente aparado e seu tanto ou quanto grisalho,<br />

abria-se em um sorriso bondoso e franco, mostrando dentes fortes, regulares, muito<br />

limpos. Estatura esbelta, pés delicados, mãos muito bem feitas, muito bem tratadas.<br />

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