ESAÚ E JACÓ - Fundação Biblioteca Nacional
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atribuiu a nota ao prazer que a dama traria de alguma aventura. Ainda me lembram as<br />
palavras dele: “Aquelas duas viram passarinho verde!” Mas se agora atribuía a nota à<br />
proteção da santa, não mentia então nem agora. Era difícil atinar com a verdade. A única<br />
verdade certa eram os dois mil-réis. Nem se pode dizer que era a mesma em ambos os<br />
tempos. Então, a nota de dois mil-réis equivalia, pelo menos, a vinte (lembra-te dos sapatos<br />
velhos do homem); agora não subia de uma gorjeta de cocheiro.<br />
Também não há contradição em pôr a santa agora e a namorada outrora. Era mais natural o<br />
contrário, quando era maior a intimidade dele com igreja. Mas, leitor dos meus pecados,<br />
amava-se muito em 1871, como já se amava em 1861, 1851 e 1841, não menos que em 1881,<br />
1891 e 1901. O século dirá o resto. E depois, é preciso não esquecer que a opinião do<br />
andador das almas acerca de Natividade foi anterior ao gesto do corredor, quando ele<br />
agasalhou a nota na algibeira. É duvidoso que, depois do gesto, a opinião fosse a mesma.<br />
CAPÍTULO LXXV / PROVÉRBIO ERRADO<br />
Pessoa a quem li confidencialmente o capítulo passado, escreve-me dizendo que a causa de<br />
tudo foi a cabocla do Castelo. Sem as suas predições grandiosas, a esmola de Natividade<br />
seria mínima ou nenhuma, e o gesto do corredor não se daria por falta de nota. “A ocasião faz<br />
o ladrão”, conclui o meu correspondente.<br />
Não conclui mal. Há todavia alguma injustiça ou esquecimento, porque as razões do gesto do<br />
corredor foram todas pias. Além disso, o provérbio pode estar errado. Uma das afirmações de<br />
Aires, que também gostava de estudar adágios, é que esse não estava certo.<br />
— Não é a ocasião que faz o ladrão, dizia ele a alguém; o provérbio está errado. A forma<br />
exata deve ser esta: “A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito.”<br />
CAPÍTULO LXXVI/ TALVEZ FOSSE A MESMA!<br />
Nóbrega saiu enfim do corredor, mas foi obrigado a deter-se, porque uma mulher lhe estendia<br />
a mão:<br />
— Meu senhor, uma esmolinha por amor de Deus!<br />
Nóbrega meteu a mão no bolso do colete e pegou um níquel, entre dois que lá havia, um de<br />
tostão, outro de dois. Pegou o primeiro, mas indo a dar-lho, mudou de idéia; não deu o<br />
níquel; disse à velha que esperasse, e entrou mais fundo no corredor. De costas para a rua,<br />
introduziu a mão na algibeira das calças e sacou um maço de dinheiro; procurou e achou uma<br />
nota de dois mil-réis, não nova, antes velha, tão velha como a mendiga que a recebeu<br />
espantada, mas tu sabes que o dinheiro não perde com a velhice.<br />
— Tome lá, murmurou ele.<br />
Quando a mendiga voltou do espanto, Nóbrega acabava de restituir o maço à algibeira e ia a<br />
querer sair. O que a mendiga então disse veio entremeado de lágrimas:<br />
— Meu senhor! Obrigada, meu senhor! Deus lhe pague! A Virgem Santíssima...<br />
E beijava a nota, e queria beijar a mão que lhe dera a esmola, mas ele a escondeu, como no<br />
Evangelho, murmurando que não, que se fosse embora. Em verdade, a palavra da mendiga<br />
tinha um som quase místico, uma espécie de melodia do Céu, um coro de anjos e fazia bem<br />
fitar-lhe os olhos encarquilhados, a mão trêmula, segurando a nota. Nóbrega não esperou que<br />
ela se fosse, saiu, desceu a rua, com as bênçãos da mulher atrás de si; dobrou a esquina, a<br />
passo rápido, e aí foi pensando não se sabe em quê.<br />
Atravessou a praça, passou a catedral e a Igreja do Carmo, e chegou ao Carceler, onde