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A nostalgia da cavalaria na escrita de Bernardim Ribeiro

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De Cavaleiros e Cavalarias. Por terras <strong>de</strong> Europa e Américas<br />

A Do<strong>na</strong>, a jovem escritora, Arima, a ama, as amigas <strong>de</strong> Avalor e as aparições que lhe falam em<br />

sonhos, to<strong>da</strong>s contribuem para o tesouro <strong>de</strong> clarividência e sensatez que o livro encerra. Nem tudo está<br />

perdido, graças a estas mulheres.<br />

E os homens?<br />

Admitindo esclareci<strong>da</strong>, nos termos que propus, a questão do lugar dos “dois amigos” no romance<br />

e comentado que foi o papel <strong>de</strong> Lamentor, <strong>de</strong> cavaleiro mo<strong>de</strong>lar e <strong>de</strong> fi gura matriz dos acontecimentos e<br />

perso<strong>na</strong>gens que lhe suce<strong>de</strong>m <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa, é altura <strong>de</strong> ver mais <strong>de</strong> perto o que se passa com Binmar<strong>de</strong>r<br />

e com Avalor.<br />

Um fato fun<strong>da</strong>mental i<strong>de</strong>ntifi ca Binmar<strong>de</strong>r, o próprio fato que está <strong>na</strong> origem <strong>da</strong> criação <strong>da</strong><br />

perso<strong>na</strong>gem, que é o seu abandono <strong>da</strong> condição <strong>de</strong> cavaleiro para adotar o disfarce <strong>de</strong> pastor. Com<br />

ele, instala-se no romance a ce<strong>na</strong> bucólica. A história <strong>de</strong> Binmar<strong>de</strong>r e Aónia é a mais longa e a mais<br />

dota<strong>da</strong> <strong>de</strong> um enredo típico <strong>da</strong> fi cção romanesca, abrangendo e<strong>na</strong>moramento, começo e progresso <strong>de</strong><br />

um entendimento amoroso que encontra aju<strong>da</strong>s e obstáculos, ruptura por causas exter<strong>na</strong>s e entra<strong>da</strong> do<br />

amante num <strong>de</strong>sespero extremo. É também a única que contém um discurso teórico explicativo <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia<br />

literária que representa. Apesar disso, a tese <strong>da</strong> predominância do gênero bucólico <strong>na</strong> Meni<strong>na</strong> e Moça<br />

tem <strong>de</strong>parado com oposição.<br />

Creio que bem fun<strong>da</strong><strong>da</strong>, porque os argumentos <strong>de</strong> que se vale respeitam exclusivamente a Binmar<strong>de</strong>r.<br />

As peripécias <strong>da</strong> aventura e as várias perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s que por ela passam não partilham<br />

a mesma fi liação. Ber<strong>na</strong>rdim experimenta um novo bucolismo, que não teve seguidores. A marca <strong>de</strong><br />

realismo quotidiano e a expressão minuciosa dos aci<strong>de</strong>ntes dos afetos e <strong>da</strong>s emoções femininos proce<strong>de</strong>m<br />

do mo<strong>de</strong>lo literário sentimental, castelhano e italiano, que ele a<strong>da</strong>ptou ao tema bucólico. É certo<br />

que a primazia <strong>da</strong><strong>da</strong> em todo o romance às perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s e a varie<strong>da</strong><strong>de</strong> e sutileza <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrição<br />

psicológica e <strong>da</strong> elaboração <strong>da</strong>s peripécias e dos caracteres têm para com este uma dívi<strong>da</strong> evi<strong>de</strong>nte. Mas<br />

tudo favorecia, neste caso, o seu aproveitamento especial numa aproximação entre os dois gêneros,<br />

que se revelou mais bem complementar. De uma parte, o gosto típico pelo exacerbamento emotivo no<br />

discurso dos pastores <strong>da</strong>s éclogas, que chegava a prescindir <strong>de</strong> assunto, tanto se sustinha <strong>da</strong>s sinuosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>da</strong> análise introspectiva, ia <strong>de</strong> par com o quase monopólio <strong>de</strong> vozes masculi<strong>na</strong>s, sendo mesmo a<br />

ausência <strong>da</strong>s pastoras um dos motivos poéticos mais explorados. Da outra, a concentração do interesse<br />

<strong>na</strong> complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> psicologia femini<strong>na</strong> tendo ganhado terreno, as perso<strong>na</strong>gens masculi<strong>na</strong>s tendiam<br />

a ser trata<strong>da</strong>s <strong>de</strong> modo <strong>de</strong>masiado trivial. Ber<strong>na</strong>rdim <strong>de</strong>senvolve com igual importância os caracteres<br />

masculinos e femininos, criando, neste contexto unicamente, um par <strong>de</strong> <strong>na</strong>morados que se e<strong>na</strong>moram<br />

com a mesma exaltação, se <strong>de</strong>sejam e comovem mutuamente com igual intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>, e que dizem um ao<br />

outro o que sentem sem hesitações.<br />

Disse bucolismo, mas, <strong>na</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que acontece é a <strong>de</strong>sconstrução <strong>da</strong> convenção bucólica. Um<br />

cavaleiro, vendo que a condição <strong>de</strong> cavaleiro constitui impedimento para chegar junto <strong>da</strong> ama<strong>da</strong>, veste-<br />

-se <strong>de</strong> pastor por amor. Como diz o texto, Binmar<strong>de</strong>r era um “pastor [...] que não era pastor” 25 . Pastores<br />

que não eram pastores eram também as perso<strong>na</strong>gens <strong>da</strong>s éclogas, que, como ele, sentiam e falavam<br />

como cavaleiros. Uma vez aclara<strong>da</strong> <strong>de</strong>ste modo a raiz do artifício, o poeta ganha espaço para oferecer<br />

provavelmente a melhor <strong>de</strong>fi nição jamais <strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>de</strong> poesia bucólica, ou <strong>da</strong>s “palavras pastoris” com que<br />

eram compostas as cantigas <strong>de</strong> Binmar<strong>de</strong>r: “cousas <strong>de</strong> alto ingenho, ou mais ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente <strong>de</strong> alta dor,<br />

postas e semea<strong>da</strong>s tão docemente por outras palavras rústicas, que a quem o bem olhasse ligeiramente<br />

enten<strong>de</strong>ria como foram feitas” e “o bom posto <strong>na</strong>quela baixeza <strong>de</strong> estilo, pela impressão <strong>da</strong> presunção<br />

que punha, comoveo mais asinha à compaixão, tanto po<strong>de</strong> a imagi<strong>na</strong>ção em to<strong>da</strong>s as cousas” 26 .<br />

25 I<strong>de</strong>m, p. 128.<br />

26 I<strong>de</strong>m, pp. 110-111.<br />

Marcia Mongelli - Congresso Cavalaria1.indd 616 14/03/2012 11:44:56

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