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A nostalgia da cavalaria na escrita de Bernardim Ribeiro

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De Cavaleiros e Cavalarias. Por terras <strong>de</strong> Europa e Américas<br />

Sobre um fundo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencanto moral e <strong>de</strong> melancolia metafísica, <strong>de</strong>senrola-se um discurso que<br />

vai buscar os mo<strong>de</strong>los e os valores cujo abandono é responsável pelo estado <strong>de</strong> coisas presente, entre os<br />

que representaram, <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>na</strong> literatura, os i<strong>de</strong>ais <strong>da</strong> <strong>cavalaria</strong>. Com esta expressão se continua então<br />

a <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>r um conceito em que se contami<strong>na</strong>ram, praticamente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu início, comportamento heróico<br />

e amor cortês. Mas convém lembrar alguns fatos sobrevindos no século XV que inevitavelmente<br />

a marcaram, para Ber<strong>na</strong>rdim, com outras to<strong>na</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Por um lado, o período já longo que se seguira à<br />

brilhante produção dos romances dos séculos XII e XIII, conduzindo à fi xação do conceito <strong>na</strong> plenitu<strong>de</strong><br />

do seu alcance, não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se refl etir em sensíveis alterações do modo como eram li<strong>da</strong>s essas<br />

obras que, no entanto, guar<strong>da</strong>ram a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seduzir leitores. Perdi<strong>da</strong> a esperança <strong>de</strong> encontrar<br />

semelhanças entre a vi<strong>da</strong> e a fi ção, as histórias dos cavaleiros do rei Artur divertiam, animavam conversas,<br />

por eles <strong>da</strong>vam-se nomes a homens e a animais, mas já não exaltavam nem incitavam à emulação.<br />

É mesmo <strong>de</strong> crer que se gerasse um movimento refl exo <strong>de</strong> si<strong>na</strong>l contrário entre os comportamentos<br />

reais dos cavaleiros e a evolução <strong>da</strong>s reações a esse mundo fi ccio<strong>na</strong>l passado, em que tão claramente se<br />

distinguia a honra <strong>da</strong> infâmia e a cortesia <strong>da</strong> arrogância. Um movimento que provocasse nessas reações<br />

mais ironia do que admiração, ou que as empurrasse para a redução <strong>da</strong>s antigas proezas a fantasias sem<br />

consequência.<br />

Diego <strong>de</strong> Valera, um cortesão culto e respeitado <strong>na</strong> sua época, autor <strong>de</strong> vários tratados didáticos<br />

sobre comportamento dos príncipes, nobreza e <strong>cavalaria</strong>, é severo a respeito dos cavaleiros do seu tempo<br />

(1412-1488):<br />

Ya son mu<strong>da</strong>dos por la mayor parte aquellos propósitos, con los quales la cavallería fue comenza<strong>da</strong>: estonce<br />

se buscaba en el cavallero sola virtud, agora es busca<strong>da</strong> cavallería para no pechar; estonce a fi n <strong>de</strong> honrar esta<br />

or<strong>de</strong>n, agora para robar el su nonbre; estonce para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r la república, agora para señorearla; estonce la or<strong>de</strong>n<br />

los virtuosos buscavan, agora los viles buscan a ella por aprovecharse <strong>de</strong> solo su nombre5 .<br />

A semelhança entre esta passagem do texto castelhano e o discurso em que se abor<strong>da</strong> o tema <strong>na</strong><br />

Meni<strong>na</strong> e Moça é manifesta, Ber<strong>na</strong>rdim <strong>Ribeiro</strong> exprimiu no mesmo tom a mesma visão do que à sua<br />

volta se passava. Nas crônicas ibéricas quatrocentistas há episódios envolvendo portugueses, castelhanos,<br />

franceses e ingleses que em <strong>na</strong><strong>da</strong> <strong>de</strong>smentem este quadro, acrescentando-lhe manifestações como<br />

falsi<strong>da</strong><strong>de</strong>, traição ou <strong>de</strong>srespeito do senhor. O contraste com a imagem <strong>da</strong> perfeição há muito perdi<strong>da</strong><br />

era, pois, extremo.<br />

Outro fato a ter em conta é o <strong>da</strong> eclosão <strong>da</strong> novela sentimental castelha<strong>na</strong>, que se costuma consi<strong>de</strong>rar<br />

i<strong>na</strong>ugura<strong>da</strong> com Siervo Libre <strong>de</strong> Amor, <strong>de</strong> Juan Rodríguez <strong>de</strong>l Padrón, <strong>de</strong> meados do século. Em parte,<br />

terá vindo ocupar, como entretenimento para a imagi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> nobreza, o vazio criado pela ausência <strong>de</strong><br />

novas histórias <strong>de</strong> amores e aventuras que se verifi cava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século anterior. Fixou-se nos amores,<br />

por infl uência <strong>de</strong> um interesse crescente pela expressão <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista femininos no discurso amoroso<br />

e por um correspon<strong>de</strong>nte aumento <strong>de</strong> protagonismo <strong>da</strong>s perso<strong>na</strong>gens femini<strong>na</strong>s <strong>na</strong>s peripécias do<br />

enredo romanesco. Assim, embora se tenha fornecido generosamente <strong>da</strong> matéria amorosa dos romances<br />

<strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>s, modifi cou-a <strong>de</strong> acordo com essa recente tendência. Às novelas juntam-se os tratados,<br />

cujo conteúdo doutrinário e didático, não raro tendo por tema o amor, ia ao encontro <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

conhecer e acompanhar uma evolução social sujeita a constante mu<strong>da</strong>nça, que não era fácil <strong>de</strong> satisfazer.<br />

Por último, <strong>na</strong> quarta déca<strong>da</strong> do século XVI (época mais provável <strong>da</strong> <strong>escrita</strong> <strong>da</strong> novela <strong>de</strong> Ber<strong>na</strong>rdim),<br />

qualquer elaboração <strong>de</strong> um pensamento sobre a <strong>cavalaria</strong>, cuja aura romanesca continuara a<br />

5 ESPEJO <strong>de</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ra Nobleza, In: Mario Pen<strong>na</strong>, Prosistas Castellanos <strong>de</strong>l Siglo XV, Madrid, Atlas (BAE, 116), I, 1959,<br />

cap. X, p. 107ª. Citado em Jesus D. Rodríguez Velasco, El Debate sobre la Caballería en el Siglo XV, p. 284.<br />

Marcia Mongelli - Congresso Cavalaria1.indd 608 14/03/2012 11:44:55

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