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A nostalgia da cavalaria na escrita de Bernardim Ribeiro

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De Cavaleiros e Cavalarias. Por terras <strong>de</strong> Europa e Américas<br />

Marcados por uma relação essencial com o tempo, não muito <strong>de</strong>fi ni<strong>da</strong>, mas o bastante para não se<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>scurá-la, estão os casos <strong>na</strong>rrados sucessivamente pela Do<strong>na</strong>: creio ser este um dos mais importantes<br />

princípios estruturais do romance. A este propósito, não se duvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> que seja fun<strong>da</strong>mental, como<br />

fator <strong>da</strong> alteração <strong>de</strong> registro, que as três histórias tenham entre si relações cronológicas precisas. São<br />

<strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>da</strong>s pelas relações <strong>de</strong> parentesco entre as perso<strong>na</strong>gens, usando um processo típico <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa<br />

<strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média para construir a sequência dos acontecimentos, certamente relacio<strong>na</strong>do com uma longa<br />

tradição <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> anotação <strong>de</strong> <strong>da</strong>tas. Sabemos o que aconteceu a Aónia <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nos ser conta<strong>da</strong><br />

a morte <strong>de</strong> Belisa, sua irmã mais velha, que enviuvou Lamentor; a fi lha <strong>de</strong>ste, Arima, <strong>na</strong>sci<strong>da</strong> quando a<br />

mãe morria, é a fi gura central <strong>da</strong> última história.<br />

Esta frágil inserção no tempo pela via genealógica tem um contraponto <strong>na</strong> clara localização, sempre<br />

a mesma, como é repeti<strong>da</strong>s vezes reafi rmado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o cenário <strong>da</strong> remota tragédia ocorri<strong>da</strong> com os dois<br />

cavaleiros amigos até ao vale e montes em que vivem solitárias as duas mulheres, uma <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança, a<br />

outra há alguns anos. Igualmente é esse o lugar em que Lamentor mandou construir o seu palácio, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> ali ter aportado com a peque<strong>na</strong> comitiva em que trazia a <strong>de</strong>safortu<strong>na</strong><strong>da</strong> Belisa prestes a <strong>da</strong>r à luz. Essa<br />

foi, pois, a habitação <strong>de</strong> Aónia até casar, e nela viveu Arima até, por um breve período, ir para a ilha<br />

on<strong>de</strong> fi cava o palácio do rei, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saíu e regressou para junto do pai, no fi m <strong>da</strong> sua história. Se for<br />

toma<strong>da</strong> à letra a informação que o texto antecipa sobre Binmar<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> que ele morreu junto do freixo on<strong>de</strong><br />

tantas vezes se foi pôr a meditar, aquela é a terra em que repousam o seu e o corpo <strong>de</strong> Belisa, tal como<br />

previsivelmemte os <strong>de</strong> Lamentor e Arima, que não parecem <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> se mu<strong>da</strong>r quando a <strong>na</strong>rração<br />

acaba, e o <strong>de</strong> Aónia, que casou com um homem que é <strong>de</strong>la <strong>na</strong>tural. Ape<strong>na</strong>s a respeito <strong>de</strong> Avalor paira a<br />

incerteza, pois não se sabe ao certo para on<strong>de</strong> foi ou que lhe aconteceu após separar-se <strong>de</strong> Arima, mas<br />

mesmo <strong>de</strong>le se insinua que, tendo <strong>de</strong>ixado o palácio <strong>da</strong> ilha para segui-la, se dirigiu <strong>na</strong> mesma direção,<br />

acabando por chegar à mesma terra. Podia-se arriscar ver nesta terra única, nesta terra <strong>de</strong> todos, uma<br />

alusão a Portugal, mas prefi ro abster-me <strong>de</strong> exercícios <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong> possíveis alegorias que não se<br />

livrariam certamente <strong>de</strong> erros injustíssimos.<br />

Há, apesar <strong>de</strong> tudo, um aspecto do discurso sobre esse lugar onipresente que tor<strong>na</strong> o contraste<br />

entre a fi xi<strong>de</strong>z do espaço e a sucessão no tempo ape<strong>na</strong>s aparente. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a terra, embora geografi<br />

camente a mesma, sofreu mu<strong>da</strong>nça, <strong>de</strong> <strong>de</strong>nsamente povoa<strong>da</strong> tornou-se erma, e <strong>de</strong>sapareceu a ilustre<br />

e anima<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que ali habitava em ricos palácios, o que signifi ca que também por ela o tempo<br />

passou, trazendo novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Como diz a <strong>na</strong>rradora, “mu<strong>da</strong>nça possue tudo” 15 .<br />

Se a tristeza <strong>de</strong>fi ne a atitu<strong>de</strong> anímica, tão consequência como arma, com que as mulheres enfrentam<br />

a vi<strong>da</strong>, e permanece como um diapasão emocio<strong>na</strong>l ao longo do texto, a mu<strong>da</strong>nça que igualmente<br />

o perpassa gera a consciência do tempo. Ela está <strong>na</strong> base <strong>de</strong> um pensamento sobre o mundo passado e<br />

presente que se encontrava manifesto <strong>na</strong> tradição literária e <strong>na</strong> literatura contemporânea do autor.<br />

Po<strong>de</strong>-se falar <strong>de</strong> dois movimentos. Um conduz a sucessão dos acontecimentos e <strong>da</strong>s circunstâncias<br />

num sentido inexorável, irreversível, <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência. Da antiga época em que os homens cumpriam com<br />

brio as virtu<strong>de</strong>s <strong>da</strong> <strong>cavalaria</strong>, passou-se à era <strong>da</strong> corrupção; nela <strong>de</strong>spontaram, a seu tempo, os dois cavaleiros<br />

que <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iramente afi rmaram a honra e a justiça, continuando <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>les os vícios a alastrar.<br />

Algo <strong>de</strong> paralelo se <strong>de</strong>u <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mulheres: <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> passa<strong>da</strong> em que as acompanhavam<br />

amigo e fi lho (respectivamente à mais nova e à mais velha), sobreveio o abandono, a solidão e a tristeza.<br />

Se elas souberam <strong>da</strong> <strong>cavalaria</strong> autêntica pelas histórias que ouviram contar, também nós, <strong>da</strong> <strong>cavalaria</strong>,<br />

sabemos pelos romances: neles houve heróis, cavaleiros ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros que ain<strong>da</strong> conviveram com os falsos,<br />

mas acabou o tempo que os comportava.<br />

15 I<strong>de</strong>m, p. 146.<br />

Marcia Mongelli - Congresso Cavalaria1.indd 612 14/03/2012 11:44:56

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