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A nostalgia da cavalaria na escrita de Bernardim Ribeiro

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De Cavaleiros e Cavalarias. Por terras <strong>de</strong> Europa e Américas<br />

a fé que em todolos outros se per<strong>de</strong>o”, e que uns “falsos cavaleiros” mataram à traição8 ; tendo aceitado<br />

“a alta empresa <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>r as aventuras <strong>de</strong>ste vale pera só aprazer às fermosas donzelas” 9 , viram-nos<br />

elas pela última vez num dia <strong>de</strong> má memória em que “se vestiram e concertaram ricamente pera verem<br />

os dois cavaleiros amigos” 10 ; “Mas se muito para sentir foi a morte dos dous, muito mais pera sentir foi<br />

a morte <strong>da</strong>s duas donzelas que a <strong>de</strong>saventura trouxe a tanta estreita, que não tão somente conveo aos<br />

dous amigos tomarem a morte por elas, mas ain<strong>da</strong> conveo a elas tomarem-<strong>na</strong> para si mesmas” 11 .<br />

O sentido <strong>de</strong>stas últimas palavras permanece misterioso. Entrega voluntária <strong>da</strong>s duas donzelas à<br />

morte, como prova suprema do seu amor exclusivo pelos cavaleiros? É difícil encontrar um contexto<br />

i<strong>de</strong>ológico para tal suposição. Sem alter<strong>na</strong>tivas, passo adiante.<br />

Salta à vista em to<strong>da</strong>s as expressões cita<strong>da</strong>s o relevo <strong>da</strong>do à amiza<strong>de</strong> entre os cavaleiros, essa<br />

amiza<strong>de</strong> masculi<strong>na</strong> que envolve respeito e leal<strong>da</strong><strong>de</strong>, que implica coragem para se aliar perante o inimigo,<br />

disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para partilhar triunfos e reveses, mansidão perante os erros, entusiasmo perante as<br />

virtu<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> que os romances arturianos são ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros tratados, e que <strong>na</strong> a<strong>da</strong>ptação específi ca à corte<br />

<strong>de</strong> Artur é emparelha<strong>da</strong>, no grau <strong>de</strong> obrigação, com a obediência e o amor ao senhor. O número <strong>de</strong> dois<br />

em que aparecem os membros <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> sexo tem aí, no lado masculino, justifi cação, pois a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

amigos assume um valor caracterizador tão essencial como os <strong>da</strong> coragem e <strong>da</strong> fi <strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> amorosa. Além<br />

disso, se são ape<strong>na</strong>s dois precisamente por serem exceção e os últimos representantes <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m <strong>da</strong><br />

<strong>cavalaria</strong> em estado puro, importa que não sejam menos <strong>de</strong> dois também para lembrar a dimensão social<br />

que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a origem fez parte <strong>da</strong> mesma or<strong>de</strong>m.<br />

“Privança <strong>de</strong> bons homens, leal<strong>da</strong><strong>de</strong>, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ardor, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira largueza, honesti<strong>da</strong><strong>de</strong>, humil<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

pie<strong>da</strong><strong>de</strong>, e outras coisas semelhantes a estas, pertencem ao cavaleiro, porque assim como se <strong>de</strong>ve<br />

reconhecer em Deus to<strong>da</strong> a nobreza, assim também ao cavaleiro se <strong>de</strong>ve atribuir tudo aquilo pelo qual<br />

a <strong>cavalaria</strong> recebe honra <strong>da</strong>queles que estão <strong>na</strong> sua or<strong>de</strong>m”, escreveu Ramon Llull (1232/35-1316?),<br />

no século XIII, no Livro <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> Cavalaria12 . Ao tor<strong>na</strong>r visíveis estes princípios <strong>na</strong> seleção dos<br />

atributos que garantem a representativi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos dois cavaleiros, Ber<strong>na</strong>rdim <strong>Ribeiro</strong> coloca no centro do<br />

seu horizonte teórico a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo cavaleiresco primordial.<br />

Este não esgota, no entanto, o domínio <strong>da</strong> injunção discursiva em Meni<strong>na</strong> e Moça. Mostra-o,<br />

para começar, a apropriação do discurso pelas duas mulheres que conversam sobre si mesmas e a vi<strong>da</strong>,<br />

contrapondo um olhar e uma consciência límpidos à <strong>de</strong>soladora <strong>de</strong>generescência do comportamento<br />

masculino. Elas não se limitam a lamentar o fi m <strong>de</strong> uma harmonia ecológica, social e psíquica, antes,<br />

insistem em aparecer uma à outra como possuidoras <strong>de</strong> uma sabedoria adquiri<strong>da</strong> através do sofrimento<br />

que elas próprias reconhecem como capaz <strong>de</strong> as levar a superar o seu efeito mais <strong>de</strong>strutivo. Para atingir<br />

esse alvo, contam com a difícil mas confortante aju<strong>da</strong> <strong>da</strong> tristeza, mais estado <strong>de</strong> alma do que sentimento,<br />

mo<strong>da</strong>liza<strong>da</strong> no discurso <strong>de</strong> ambas em infl exões <strong>de</strong>licadíssimas.<br />

O engenho retórico <strong>de</strong> Ber<strong>na</strong>rdim tor<strong>na</strong>-se tanto mais admirável quanto nunca ofusca o acento <strong>de</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> expressão: “Não tomeis <strong>da</strong>qui que não folgarei <strong>de</strong> ouvir a história, porque isso po<strong>de</strong>ra ser<br />

se não fora <strong>de</strong> tristeza, para que eu vou já agora achando o tempo curto, tanto folgo com ela. Por isso<br />

contai-a, senhora, contai-a, pois é triste, gastaremos o tempo <strong>na</strong>quilo para que no-lo <strong>de</strong>ram” 13 . Assim<br />

roga a mulher jovem, ansiosa já por ouvir a história prometi<strong>da</strong>. A mais velha começa, então, um pre-<br />

8 I<strong>de</strong>m, p. 71.<br />

9 I<strong>de</strong>m, p. 72.<br />

10 I<strong>de</strong>m, pp. 72-73.<br />

11 I<strong>de</strong>m, p. 71.<br />

12 Ramon Llull, Livro <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> Cavalaria, tradução <strong>de</strong> Artur Guerra, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992, p. 66.<br />

13 Ber<strong>na</strong>rdim <strong>Ribeiro</strong>, op. cit., p. 66.<br />

Marcia Mongelli - Congresso Cavalaria1.indd 610 14/03/2012 11:44:56

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