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Esta é uma verdadeira tragédia<br />
«Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver<br />
sobre factos e pessoas comparativamente recentes. [...]<br />
Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão<br />
modernos, também não sou tão desabusado contudo que me atreva a dar a uma composição em<br />
prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas<br />
as composições poéticas.<br />
O que escrevi em prosa, pudera escrevê-lo em verso; e o nosso verso solto está provado que é<br />
dócil e ingénuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. Mas sempre<br />
havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei<br />
porque é verdade - repugnava-me também pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que<br />
não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta<br />
harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande<br />
modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.<br />
Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem<br />
pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha,<br />
se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar pertencendo sempre ao antigo<br />
género trágico.<br />
[...]<br />
Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a<br />
rejeitar por impróprio da cena tudo quanto a severa crítica moderna indigitou como arriscado de<br />
se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe,<br />
por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!»<br />
Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa (lida em 6 de Maio de 1843 - nota de Garrett)<br />
Definição de Tragédia<br />
«É, pois, a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa extensão,<br />
em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas<br />
partes do [drama], [imitação que se efectua] não por narrativa, mas mediante actores, e que,<br />
suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.<br />
[...]<br />
Como esta imitação é executada por actores, em primeiro lugar o espectáculo cénico há-de ser<br />
necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopeia e a elocução, pois estes sãos<br />
os meios pelos quais os actores efectuam a imitação. [...]<br />
E como a tragédia é a imitação de uma acção e se executa mediante personagens que agem e<br />
que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e pensamento (porque é segundo<br />
estas diferenças de carácter e pensamento que nós qualificamos as acções), daí vem por<br />
consequência o serem duas causas naturais que determinam as acções: pensamento e carácter; e,<br />
nas acções [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é<br />
imitação de acções; e, por "mito", entendo a composição dos actos; por "carácter", o que nos faz<br />
dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam<br />
as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.<br />
[...]<br />
Porém, o elemento mais importante é a trama dos factos, pois a tragédia não é imitação de<br />
homens, mas de acções e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade<br />
reside na acção, e a própria finalidade da vida é uma acção, não uma qualidade. Ora os homens<br />
possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao carácter, mas são bem ou mal-aventurados<br />
pelas acções que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para
imitar caracteres, mas assumem caracteres para efectuar certas acções; por isso, as acções e o<br />
mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.<br />
[...]<br />
Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres.<br />
Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a<br />
sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco.<br />
A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma acção e, através dela, principalmente, [imitação]<br />
de agentes.<br />
Aristóteles, Poética, 49 b / 50 b<br />
Classificação de Frei Luís de Sousa<br />
«Garrett disse na Memória ao Conservatório que o conteúdo do Frei Luís de Sousa tem todas<br />
as características de uma tragédia. No entanto, chama-lhe drama, por não obedecer à estrutura<br />
formal da tragédia:<br />
• não é em verso, mas em prosa;<br />
• não tem cinco actos;<br />
• não respeita as unidades de tempo e de lugar;<br />
• não tem assunto antigo.<br />
Sendo assim, quase podemos dizer que é uma tragédia, quanto ao assunto. Na verdade,<br />
1. o número de personagens é diminuto;<br />
2. Madalena, casando sem ter a certeza do seu estado livre, e Manuel de Sousa,<br />
incendiando o palácio, desafiam as prepotências divinas e humanas (a hibris);<br />
3. uma fatalidade ( a desonra de uma família, equivalente à morte moral), que o<br />
assistente vislumbra logo na primeira cena, cai gradualmente (climax) sobre Madalena,<br />
atingindo todas as restantes personagens (pathos);<br />
4. contra essa fatalidade os protagonistas não podem lutar (se pudessem e assim<br />
conseguissem mudar o rumo dos acontecimentos, a peça seria um drama); limitam-se a<br />
aguardar, impotentes e cheios de ansiedade, o desfecho que se afigura cada vez mais<br />
pavoroso;<br />
5. há um reconhecimento: a identificação do Romeiro (a agnorisis);<br />
6. Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma<br />
palavra de conforto, parecem o coro grego.<br />
Mas, por outro lado, a peça está a transbordar de romantismo:<br />
1. a crença no sebastianismo;<br />
2. a crença no aparecimento dos mortos, em Telmo;<br />
3. a crença em agouros, em dias aziagos, em superstições;<br />
4. as visões de Maria, os seus sonhos, o seu idealismo patriótico;<br />
5. o «titanismo» de Manuel de Sousa incendiando a casa só para que os<br />
Governadores do Reino a não utilizassem;<br />
6. a atitude que Maria toma no final da peça ao insurgir-se contra a lei do<br />
matrimónio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba.<br />
Se a isto acrescentarmos certas características formais, como<br />
7. o uso da prosa;<br />
8. a divisão em três actos;<br />
9. o estilo todo, do princípio ao fim,<br />
teremos que concluir que é um drama romântico, com lances de tragédia apenas no<br />
conteúdo.»<br />
Barreiros, António José, História da Literatura Portuguesa, vol. II
Processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação<br />
da<br />
personalidade de Telmo<br />
«Não é o conflito das personalidades e dos sentimentos, particularmente da ambição e do<br />
amor, que sobressai no Frei Luís de Sousa ante a intervenção de uma fatalidade transcendente<br />
aos homens indefesos, independentemente de culpas ou responsabilidades humanas.<br />
O Romeiro é o enviado desta fatalidade: o aparecimento dele vem destruir toda a vida que se<br />
erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da<br />
sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. [...]<br />
Através dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria,<br />
sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a<br />
desencadear-se, no 2º acto, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho<br />
que os aniquilará. Quando Manuel de Sousa, num acto exemplarmente patriótico, decide<br />
incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João, está-se metendo na<br />
boca do lobo, porque é aquele o sítio onde naturalmente o Romeiro procurará D. Madalena e se<br />
identificará com o seu próprio retrato. O seu acto exemplar encaminha-o para a perdição.<br />
Mas o Frei Luís de Sousa ficaria muito diminuído se o reduzíssemos a esta história da<br />
Fatalidade exterior aos homens, que os esmaga de fora para dentro. Há uma personagem que<br />
conta com a vida de D. João e para quem portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a<br />
realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Pais, desenrola-se um<br />
processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Pais vivia no<br />
culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena o ter<br />
reconstruído a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu<br />
velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a<br />
sua vida afectiva sobre a morte do amo.<br />
O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efectivamente estava vivo<br />
em Telmo Pais era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena.<br />
Telmo Pais desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava<br />
assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor,<br />
Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D.<br />
João de Portugal. Por isso diz:<br />
- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo.<br />
A fatalidade exterior, ao mesmo tempo que objectivamente esmaga uma situação estabelecida<br />
entre os protagonistas, serve para despertar subjectivamente um processo psicológico de autorevelação<br />
e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Pais.»<br />
Saraiva, António José, História Ilustrada das Grandes Literaturas