14.11.2014 Views

Scarlatti e a música no reino dos melômanos - ECA - USP

Scarlatti e a música no reino dos melômanos - ECA - USP

Scarlatti e a música no reino dos melômanos - ECA - USP

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Scarlatti</strong> e a música <strong>no</strong> rei<strong>no</strong> <strong>dos</strong> melôma<strong>no</strong>s<br />

Luis Fernando Muniz Cirne<br />

<strong>ECA</strong>-<strong>USP</strong> – lufcirne@usp.br<br />

Resumo: Este artigo busca uma reflexão sobre a influência do ambiente e da trajetória de vida<br />

de Domenico <strong>Scarlatti</strong> em suas composições - 555 Sonatas para teclado com i<strong>no</strong>vações formais e<br />

estéticas para sua época.<br />

Há pouco material sobre a vida de <strong>Scarlatti</strong> - a fonte principal deste artigo é a sua biografia<br />

escrita por Ralph Kirkpatrick. Por ser uma das únicas fontes bibliográficas disponíveis, é<br />

prudente não tomá-la como “verdade absoluta”, uma vez que inexistem outros pontos de vista<br />

consistentes. Não abordar a questão, <strong>no</strong> entanto, aumenta o risco de se perpetuar uma visão<br />

incompleta sobre fatos históricos musicais.<br />

O texto apresentado a seguir utiliza o debate como instrumento teórico para uma melhor<br />

compreensão do processo criativo das Sonatas de <strong>Scarlatti</strong>.<br />

Palavras chave: <strong>Scarlatti</strong>, Sonatas para teclado, Composição, Música na Península Ibérica<br />

<strong>Scarlatti</strong> and the music in the melomaniac’s kingdom<br />

Abstract: This work establishes a reflection in the attempt to understand how the environment<br />

and Domenico <strong>Scarlatti</strong>'s life trajectory allowed him to produce compositions that brought<br />

formal and esthetic in<strong>no</strong>vations for his time: his 555 keyboard Sonatas.<br />

There is very little material on <strong>Scarlatti</strong>’s life. This article uses as it is main source the<br />

<strong>Scarlatti</strong>'s biography by Ralph Kirkpatrick. Since it is one of the very few sources of<br />

biographical information, it is prudent, however <strong>no</strong>t to take it as absolute truth once there is <strong>no</strong>t<br />

other points of view to make possible a more precise analysis. Not to broach the subject,<br />

however, would be risking perpetuating an incomplete vision of the historical facts and musical<br />

analysis.<br />

We utilize here the debate as a theoretical instrument to better understand the process<br />

through which <strong>Scarlatti</strong> composed his Sonatas.<br />

Key Words: <strong>Scarlatti</strong> - Sonatas for harpsichord - Composition - Music for the Iberian Peninsula<br />

O debate estético musical de Rousseau e Rameau <strong>no</strong> século XVIII<br />

Na famosa Querela <strong>dos</strong> Bufões, durante o século XVIII, Rameau e Rousseau<br />

discutiram sobre a primazia da harmonia sobre a melodia, tese defendida por Rameau<br />

<strong>no</strong> seu Traité de l’harmonie (RAMEAU, 1722, p.39) 1 e questionada por Rousseau <strong>no</strong><br />

Essai sur l'origine des langues, texto escrito inicialmente em 1754 e publicado em 1781<br />

(ROUSSEAU, 1781, p.176) . Rousseau defende a ideia segundo a qual a melodia é o<br />

elemento que guarda o tom vivo e apaixonado da voz em suas inflexões, os quais uma<br />

1 “Música é geralmente dividida em harmonia e melodia, mas a última é meramente uma parte da<br />

primeira e um conhecimento de harmonia é suficiente para o entendimento completo de todas as<br />

propriedades da música” (RAMEAU, 1722, p.39)


análise matemática e fria da harmonia colocaria a perder 2 . Mesmo defendendo teses<br />

antagônicas, ambos parecem entender a música como uma arte imitativa, muito próxima<br />

do pensamento de Charles Batteux, comentado por Dahlhaus em sua Estética Musical:<br />

“A estética da imitação do século XVIII, à qual Charles<br />

Batteux proporcio<strong>no</strong>u a versão mais rigorosa e mais eficaz, concebia<br />

a expressão afetiva musical como representação e descrição de<br />

paixões. Ao ouvinte cabe o papel de um expectador sere<strong>no</strong>, de um<br />

observador que julga da semelhança ou dissemelhança de uma<br />

pintura. Nem ele se sente exposto aos afetos que se encontram<br />

musicalmente representa<strong>dos</strong> nem o compositor revela o seu íntimo<br />

agitado numa manifestação ressonante, pela qual espera do ouvinte<br />

compaixão, simpatia.” (DAHLHAUS, 1986, p.59)<br />

A música, de acordo com Batteux em seu Les beaux arts réduits à un même<br />

principe, por sua falta de clareza, ocuparia uma posição me<strong>no</strong>r entre as artes e estaria<br />

fora do âmbito das Belas Artes. Sua forma puramente instrumental não seria mais que<br />

um “ruído agradável” - somente aliada ao texto, a música seria capaz de transmitir<br />

ideias claras sobre contextos defini<strong>dos</strong>. Desprovida de palavras, ela não seria capaz de<br />

representar nenhum objeto ou situação com clareza, sendo, portanto, uma arte obscura e<br />

imprecisa.<br />

O conceito de música absoluta e a auto<strong>no</strong>mização da música entre os séculos XVIII<br />

e XIX<br />

O conceito de música absoluta surgiu <strong>no</strong> final do século XVIII e se desenvolveu<br />

<strong>no</strong> decorrer do século seguinte. Pensadores do romantismo alemão, como Wilhelm<br />

Heinrich Wackenroder, Ludwig Tieck e E. T. A. Hoffmann desenvolveram a idéia de<br />

uma música “pura”, desvinculada de qualquer outra referência que não ela própria. A<br />

música pura, em oposição à música chamada “aplicada”, é a música que, para ser<br />

compreendida, não depende de nenhuma relação com quaisquer fatos objetivos da vida,<br />

2 “Esquecida a melodia e estando a atenção do músico voltada inteiramente para a harmonia, tudo se<br />

dirigiu pouco a pouco para este <strong>no</strong>vo objeto; os gêneros, os mo<strong>dos</strong>, as escalas, tudo recebeu uma <strong>no</strong>va<br />

fisio<strong>no</strong>mia: foram as sucessões harmônicas que regulamentaram a marcha das partes. Tendo essa marcha<br />

usurpado o <strong>no</strong>me de melodia, não foi possível ig<strong>no</strong>rar, de fato, nessa <strong>no</strong>va melodia, os traços de sua mãe;<br />

e tendo-se <strong>no</strong>sso sistema musical tornado assim, aos poucos, puramente harmônico, não é de espantar que<br />

o acento oral tenha sido prejudicado e que a música tenha perdido para nós quase toda a sua energia.”<br />

(ROUSSEAU, 1781, p.176)


e que revela a expressão artística mais elevada, pela sua capacidade de fazer sentir o que<br />

as palavras e imagens só conseguem descrever e mostrar 3 .<br />

Tieck, <strong>no</strong> ensaio Sinfonias, de 1799, comenta que:<br />

“(...) na música instrumental a arte é independente e livre, fixa para si<br />

própria as suas leis; contudo, o objetivo mais elevado segue<br />

inteiramente os seus impulsos obscuros e exprime o que há de mais<br />

profundo, de mais maravilhoso, com o seu brincar”(TIECK, 1799,<br />

p.58).<br />

Embora a idéia de música absoluta se consolide <strong>no</strong> século XIX como um<br />

conceito genuinamente romântico, o processo de auto<strong>no</strong>mização da música parece ter se<br />

iniciado, na prática, por alguns compositores nas décadas anteriores. O caminho que<br />

parte do ofício musical e chega à música absoluta <strong>dos</strong> compositores românticos passa<br />

certamente pela trajetória de compositores barrocos, pré-clássicos e clássicos.<br />

Domenico <strong>Scarlatti</strong> foi um precursor daquele processo e sua influência pode ser<br />

identificada em Liszt, Mendelssohn, Verdi e outros mestres.<br />

<strong>Scarlatti</strong>: apontamentos biográficos<br />

Domenico <strong>Scarlatti</strong> nasceu em Nápoles <strong>no</strong> dia 26 de outubro de 1685, mesmo<br />

a<strong>no</strong> em que nasceram Bach e Haendel, e foi o sexto <strong>dos</strong> dez filhos de Alessandro<br />

<strong>Scarlatti</strong> e Antonia Anzalone. Seu pai, Alessandro, já tinha demonstrado, aos vinte e<br />

cinco a<strong>no</strong>s, sua fecundidade musical e ainda jovem foi descoberto e lançado como<br />

compositor de ópera em Roma pela rainha Cristina da Suécia, a quem serviu como<br />

mestre de capela desde 1680. Meses antes de Domenico <strong>Scarlatti</strong> nascer, seu pai<br />

mudou-se para Nápoles. Domenico raramente conheceu a quietude na sua infância. Por<br />

um lado havia a casa com seus muitos irmãos, e, por outro, o pai re<strong>no</strong>mado que,<br />

compositor bem sucedido e bastante producente, frequentemente ensaiava com músicos<br />

3 “Centenas e centenas de obras musicais falam de alegria e prazer, mas em cada uma canta um gênio<br />

diferente e com cada melodia estremecem diferentes fibras do <strong>no</strong>sso coração. – Que pretendem os<br />

racionalistas timoratos e desconfia<strong>dos</strong>, que exigem a explicação por palavras de cada uma das centenas e<br />

centenas de obras musicais e não conseguem entender que nem todas têm um significado específico,<br />

como acontece na Pintura? Pretenderão eles aferir a linguagem mais rica pela mais pobre e reduzí-la a<br />

palavras, a ela, que despreza as palavras? Será que eles encheram o seu coração vazio apenas com<br />

descrições de sentimentos? Será que nunca perceberam <strong>no</strong> seu íntimo o cantar mudo, o baile de máscaras<br />

<strong>dos</strong> espíritos invisíveis?”. (WACKENRODER, 1799, p.41)


- muitos da própria família -, reunia-se com cenógrafos, libretistas, poetas e pintores<br />

(KIRKPATRICK, 1953, p.7).<br />

A educação musical de <strong>Scarlatti</strong> foi provavelmente desenvolvida <strong>no</strong> meio<br />

doméstico, por meio do contato e ensinamentos adquiri<strong>dos</strong> pelo convívio com outros<br />

membros da sua família, uma vez que não há registro <strong>no</strong>s conservatórios de Nápoles de<br />

que <strong>Scarlatti</strong> tenha recebido qualquer educação formal. Especula-se que tenha estudado<br />

com Bernardo Pasquini, o que parece bastante improvável. Pasquini era também um<br />

excelente cravista, vinha da escola de Palestrina e escrevia de maneira totalmente oposta<br />

a <strong>Scarlatti</strong>, o primeiro compositor a dedicar-se ao estudo das características do estilo<br />

livre do cravo. Entretanto, é bastante provável, que <strong>Scarlatti</strong> tenha recebido, de alguma<br />

fonte, instruções elementares sobre canto, baixo-contínuo, teclado e contraponto. Mais<br />

tarde foi solicitado por seu pai a auxiliá-lo <strong>no</strong> ofício de músico, arranjando e copiando<br />

músicas, afinando instrumentos, acompanhando ensaios e participando das inúmeras<br />

obrigações de um assistente.<br />

Em 1702, Domenico <strong>Scarlatti</strong>, então com pouco mais de 16 a<strong>no</strong>s, e seu pai<br />

deixam Nápoles, empreedendo uma viagem de quatro meses para Florença. A exemplo<br />

de seu pai, Alessandro, e de seu suposto professor Bernando Paquini, <strong>Scarlatti</strong> era um<br />

virtuose do teclado. É fato que, durante sua estadia na Itália, tenha feito uso<br />

especialmente do cravo para demonstrar suas habilidades ao público. É possível afirmar<br />

ainda que escreveu a maioria de suas mais de 500 sonatas pensando especificamente <strong>no</strong><br />

cravo. Mesmo assim, assume-se algum tipo de contato entre os <strong>Scarlatti</strong> e Cristofori –<br />

que em 1709 conclui o seu “cembalo col pia<strong>no</strong> e forte” – tenha ocorrido<br />

(KIRKPATRICK, 1953, p.14), já que nesta viagem, por ocasião do aniversário do<br />

príncipe Ferdinando de Médici, foram apresenta<strong>dos</strong> motetos em sua homenagem,<br />

compostos por Alessandro <strong>Scarlatti</strong>. Cristofori foi o inventor do pia<strong>no</strong>forte, instrumento<br />

para o qual <strong>Scarlatti</strong> também compôs muitas de suas Sonatas (OGEIL, 2006, p.61).<br />

Os <strong>Scarlatti</strong> se estabelecem em Roma em 1708, a serviço da rainha Maria<br />

Casimira da Polônia. Aos 23 a<strong>no</strong>s Domenico <strong>Scarlatti</strong> já era um exímio cravista,<br />

embora só dez a<strong>no</strong>s mais tarde tenha se apresentado publicamente por duas vezes, em<br />

Roma. Ele parece ter sido, <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong>, uma pessoa quieta e reservada, preferindo ficar<br />

à margem das atenções, tão poucos são os comentários sobre ele deixa<strong>dos</strong> pelos seus<br />

contemporâneos. Foi provavelmente nesta época que <strong>Scarlatti</strong> conheceu Haendel, com<br />

quem desenvolveria a mais importante amizade durante sua estadia na Itália. Eram<br />

ambos virtuoses do cravo e tinham a mesma idade. Também é possível identificar, nas


primeiras óperas compostas por ambos, uma grande proximidade estilística. Mais tarde,<br />

quando <strong>Scarlatti</strong> desenvolveu seu estilo próprio nas peças para cravo, poucas<br />

características se mantiveram em comum. Como não é possível datar as composições de<br />

juventude de <strong>Scarlatti</strong>, não é possível definir seu estilo de composição na época em que<br />

conheceu Haendel. Assim, não é possível afirmar se realmente houve uma troca de<br />

influências. Na primavera de 1708, Haendel estava em Roma apresentando sua<br />

Resurrezzione, composta a partir de um texto de Carlo Capeci. <strong>Scarlatti</strong>, um a<strong>no</strong> depois,<br />

também estava em Roma preparando seu oratório La Conversione di Clodoveo Re di<br />

Francia, sobre um texto do mesmo Capeci. Neste mesmo a<strong>no</strong>, Haendel deixou a Itália e<br />

os dois amigos não se encontraram <strong>no</strong>vamente.<br />

Durante seu último a<strong>no</strong> de serviços junto à rainha Maria Casimira, Domenico<br />

estabeleceu contato com o Vatica<strong>no</strong> e lá empregou-se na Basilica Giulia, em 1714.<br />

Logo em seguida serviu o embaixador português, Marquês de Fontes, em Roma.<br />

Em 6 de setembro de 1720, Domenico <strong>Scarlatti</strong> apresenta e dirige, em Lisboa,<br />

uma Serenata para o aniversário da rainha Marianna de Portugal. Um a<strong>no</strong> mais tarde,<br />

em 1721, aos 36 a<strong>no</strong>s e com exatamente a metade <strong>dos</strong> seus 72 a<strong>no</strong>s de vida, Domenico<br />

<strong>Scarlatti</strong> se estabelece em Lisboa, a serviço do rei D. João V, como mestre de capela e<br />

também para ser o preceptor musical de seu irmão mais <strong>no</strong>vo, Don Antônio, e de sua<br />

filha, a Infanta Maria Bárbara.<br />

<strong>Scarlatti</strong> e Maria Bárbara<br />

Recém-casada com o príncipe de Astúrias, Fernando VI, a princesa portuguesa<br />

Maria Bárbara muda-se para Madri em 1729, aos 18 a<strong>no</strong>s.<br />

Maria Madalena Bárbara Xavier Leo<strong>no</strong>r Teresa Antónia Josefa, nascida em<br />

1711, era filha do rei D. João V de Portugal e da arquiduquesa Marianna da Áustria -<br />

que depois de casada tor<strong>no</strong>u-se rainha de Portugal - e trouxe Domenico <strong>Scarlatti</strong>, seu<br />

preceptor musical desde 1721, para a corte espanhola . <strong>Scarlatti</strong> ficou a serviço de Maria<br />

Bárbara até o final de sua vida, em 1758.<br />

Os a<strong>no</strong>s de estudo e da prática do teclado com <strong>Scarlatti</strong> fizeram de D. Maria<br />

Bárbara uma exímia cravista. <strong>Scarlatti</strong> por sua vez, com 44 a<strong>no</strong>s, já era um compositor<br />

experiente, embora ainda não houvesse iniciado a composição importante de sua vida -<br />

as 555 Sonatas para teclado. Elas começam a ser compostas em 1738. Essercizi, por<br />

exemplo, dedicada ao rei D. João V. A partir dessas composições, <strong>Scarlatti</strong> passou a


escrever exclusivamente para sua aluna, produzindo ao longo desse período mais de 490<br />

Sonatas.<br />

O rei Felipe V morre em julho de 1746 e em outubro ascendem ao tro<strong>no</strong><br />

Fernando VI e Maria Bárbara. O casal real fez sua entrada em Madri com muita pompa,<br />

touradas e fogos de artifício. Maria Bárbara e Fernando VI tinham a música como o<br />

antídoto para o tédio e a depressão, males que martirizaram Felipe V. A ligação entre<br />

eles - especialmente Maria Bárbara - com a música foi inequivocadamente muito forte.<br />

Fernando e Maria Bárbara continuaram com as diversões às quais estavam acostuma<strong>dos</strong><br />

como príncipe e princesa de Astúrias. Ao assumirem o poder transformaram a corte de<br />

Madri em uma riquíssima “corte musical” e para lá foram trazi<strong>dos</strong> músicos <strong>no</strong>táveis de<br />

toda a Europa. O mais conhecido deles é o amigo de infância e conterrâneo de <strong>Scarlatti</strong>,<br />

o castrato Farinelli, que era o cantor mais bem pago da Europa e que, mesmo assim, foi<br />

contratado para longas temporadas em Madri e, posteriormente, para tratar <strong>dos</strong> eventos<br />

musicais da corte. Farinelli tinha inclusive bastante influência política junto ao rei e à<br />

rainha. Não existem relatos oficiais de que <strong>Scarlatti</strong> tenha-se ressentido por não<br />

comandar as produções musicais. Seu prestígio junto à rainha se dava em um nível<br />

mais íntimo. Ela foi sua musa inspiradora. Para ela, <strong>Scarlatti</strong> compôs sua extensa série<br />

de Sonatas.<br />

O reinado de Fernando VI e Maria Bárbara foi essencialmente um “reinado <strong>dos</strong><br />

melôma<strong>no</strong>s”. Enquanto estiveram <strong>no</strong> poder ocuparam-se quase que exclusivamente<br />

com a questão musical e as festividades. Domenico <strong>Scarlatti</strong>, preceptor e introdutor da<br />

arte musical à infanta Maria Bárbara, gozava cada vez mais de alto prestígio junto à<br />

rainha, não para o trabalho de coordenação <strong>dos</strong> eventos, mas sim por ser um mestre e<br />

amigo de muitos a<strong>no</strong>s. No itinerário anual do casal real que incluia Buen Retiro, o<br />

Pardo, Aranjuez e o Escorial, <strong>Scarlatti</strong> sempre os acompanhava, ou só a Maria Bárbara,<br />

<strong>no</strong>s casos em que o rei permanecia em Madri. Provavelmente muitas das Sonatas foram<br />

escritas nestas viagens (KIRKPATRICK, 1953, p.107).<br />

<strong>Scarlatti</strong>: Do ofício musical à música absoluta<br />

A corte musical espanhola contava com muitos músicos, compositores e<br />

instrumentistas, na maioria italia<strong>no</strong>s. Além de <strong>Scarlatti</strong> e <strong>dos</strong> residentes Corselli,<br />

Cerradini e Mele, também passaram pela corte compositores de óperas trazi<strong>dos</strong> por<br />

Farinelli. Nomes como Hasse, Galuppi, Jomelli e outros foram compositores cujas


óperas foram produzidas nessa época. Também eram habituais personalidades como o<br />

libretista Metastasio, o cenógrafo Amiconi, Antonio Jolli, Francisco Bataglioli, dentre<br />

outros.<br />

Toda essa produção musical, predominantemente operística, era obra do ofício e<br />

demandava horas diárias de trabalho, inclusive <strong>dos</strong> compositores. Frente a essa<br />

estrutura magistral para a produção da ópera e concertos, <strong>Scarlatti</strong>, cujas óperas escritas<br />

<strong>no</strong> passado demonstravam que decididamente aquele não era o seu métier, reservou-se<br />

ao convívio direto com a rainha Maria Bárbara, passando a não se preocupar com os<br />

ofícios musicais da corte, ocupando-se tão somente em escrever as Sonatas.<br />

Maria Bárbara não era uma diletante. Conhecia com muita profundidade o<br />

métier do teclado, tanto o cravo quanto o pia<strong>no</strong>forte, e tudo leva a crer que tenha sido<br />

uma instrumentista de altíssimo nível, quando focalizamos as Sonatas sob o ponto de<br />

vista do grau de dificuldade e sofisticação de concepção. Os procedimentos que<br />

<strong>Scarlatti</strong> utiliza, as formas que adota, demonstram uma liberdade composicional que só<br />

iria surgir a partir do final do Século XVIII, começo do XIX.<br />

A imensa curiosidade intelectual e musical de Maria Bárbara permitiu que<br />

<strong>Scarlatti</strong> utilizasse na sua composição elementos que extrapolavam os muros da corte,<br />

vin<strong>dos</strong> da música tradicional espanhola. <strong>Scarlatti</strong>, sabe-se, gostava de jogar e não raro<br />

passava <strong>no</strong>ites fora da corte, ao som das tavernas, do cante jondo e a música flamenca.<br />

Nas suas Sonatas, além de toda a tradição italiana, ouvimos sons típicos <strong>dos</strong> violões,<br />

gestos percussivos que evocam castanholas e melodias flamencas. Formalmente, em<br />

algumas composições ele expande a idéia da sonata mo<strong>no</strong>temática para propor uma<br />

sonata bitemática, com ideias constrastantes, precursora do que viria mais tarde se<br />

configurar como a sonata clássica. Essas i<strong>no</strong>vações só foram possíveis porque <strong>Scarlatti</strong><br />

teve total liberdade para quebrar as regras musicais pré-estabelecidas.<br />

Embora as Sonatas <strong>no</strong>s digam muito sobre <strong>Scarlatti</strong>, os documentos e estu<strong>dos</strong><br />

sobre sua biografia e obra são escassos. O cravista e acadêmico Ralph Kirkpatrick <strong>no</strong>s<br />

deixou uma excelente biografia de <strong>Scarlatti</strong> acompanhada de uma análise brilhante das<br />

suas Sonatas. Ainda assim, várias questões permanecem. Listamos algumas:<br />

1. Além da música espanhola e provavelmente Haendel, quais outras obras ou<br />

compositores podem ter influenciado <strong>Scarlatti</strong>?<br />

2. Que escritores, filósofos e poetas <strong>Scarlatti</strong>, ou mesmo Maria Bárbara leram?


3. As i<strong>no</strong>vações das suas Sonatas se deram de maneira espontânea ou foram<br />

conceituais?<br />

4. A possível leitura <strong>dos</strong> pensadores da primeira metade do século XVIII<br />

influenciaram <strong>no</strong> processo de composição das Sonatas?<br />

Um levantamento <strong>dos</strong> livros existentes na corte de Fernando VI poderia projetar<br />

alguma luz a essas questões. Saber o que Maria Bárbara lia, eventualmente estudava –<br />

além da música -, talvez traga alguma resposta de como isso pôde ou não ter<br />

influenciado a concepção estética das Sonatas.<br />

Outra questão diz respeito não aos pensadores de sua época, mas aos românticos<br />

do século XIX. Parece evidente a admiração e reverência de Maria Bárbara pelo seu<br />

professor de música, a ponto de pedir a seu pai que <strong>Scarlatti</strong> e sua família a<br />

acompanhassem à corte de Madri e que ele se ocupasse tão somente em compôr peças<br />

para teclado solo. Em sua juventude, <strong>Scarlatti</strong> foi tão ativo em to<strong>dos</strong> os campos da<br />

composição musical quanto seu pai, Allessandro. Escreveu desde trabalhos teatrais até<br />

música religiosa. Seu Stabat Mater para dez vozes e continuo é uma verdadeira obraprima.<br />

Compôs e produziu quinze óperas (algumas das quais se perderam ou estão<br />

incompletas), quinze obras religiosas, algumas obras vocais não religiosas e quarenta e<br />

cinco cantatas. Mas foi na música para cravo, à qual se dedicou completamente, que ele<br />

demonstrou sua grandeza e criou um ideal que se encontra entre os mais geniais de<br />

to<strong>dos</strong> os tempos. <strong>Scarlatti</strong>, <strong>no</strong>s seus últimos a<strong>no</strong>s, não compôs para os ofícios da corte<br />

mas sim para uma única pessoa, sua musa e intérprete. Dedicou-se tão somente à música<br />

pura, podendo desfrutar da liberdade de incluir em suas composições elementos<br />

inusita<strong>dos</strong> ou até mesmo estranhos às formas musicais convencionais. Pode-se, então,<br />

considerar que tenha produzido cem a<strong>no</strong>s antes o que <strong>no</strong> século XIX foi conceitualizado<br />

como “música absoluta”, a mais elevada das artes? De forma intencional ou não, a<br />

profunda e fértil interlocução entre <strong>Scarlatti</strong> e Maria Bárbara parece ter contribuído para<br />

o processo de auto<strong>no</strong>mização da música.<br />

Conclusão<br />

Parece provável que a singularidade da relação entre Domenico <strong>Scarlatti</strong> e a<br />

rainha Maria Bárbara, <strong>no</strong> que diz respeito à própria música e às suas particularidades,<br />

contribuiu para o processo de auto<strong>no</strong>mização da música, do qual <strong>Scarlatti</strong> foi um


importante precursor. Nesse sentido, <strong>Scarlatti</strong> teria desenvolvido o que posteriormente,<br />

dois séculos depois, os românticos apresentariam como música absoluta. Outro fator<br />

importante que pode ter contribuído para esse processo é o contexto <strong>dos</strong> debates<br />

filosóficos, artísticos e literários do período em que viveu.<br />

Ao antecipar o que viria a ser chamado de música absoluta, <strong>Scarlatti</strong> agiu de<br />

forma absolutamente espontânea? Ou foi o Zeitgeist (espírito do seu tempo) impregnado<br />

<strong>no</strong> meio artístico e cultural que lhe possibilitou desenvolver uma música inegavelmente<br />

i<strong>no</strong>vadora?<br />

Bibliografia<br />

BATTEUX, C. As Belas-Artes reduzidas a um mesmo princípio. Trad. N. Maruyama.<br />

São Paulo: Humanitas, 2009.<br />

DAHLHAUS, C. Musikästhetik. Köln: Hans Gerig, 1967. Trad. Portuguesa: Estética<br />

Musical. Lisboa: Ed. 70, 1991<br />

KIRKPATRICK, R. Domenico <strong>Scarlatti</strong>. Princeton: Princeton University Press, 1953.<br />

OGEIL, J. E. Domenico <strong>Scarlatti</strong>: A contribution to our understanding of his Sonatas<br />

through performance and research. Newcastle, UK: University of Newcastle.<br />

Auchmuty Library, 2006.<br />

RAMEAU, J.P. Traité de l’harmonie, 1722.<br />

ROUSSEAU, J. J. Ensaio sobre a origem das línguas. Trad. F. M. L. Moretto.<br />

Campinas: Ed. Unicamp, 2003.<br />

TIECK, L. in Música e Literatura <strong>no</strong> Romantismo Alemão (org. Rita Iriarte). Lisboa:<br />

Ed. Materiais Críticos, 1987.<br />

WACKENRODER, W. H. in Música e Literatura <strong>no</strong> Romantismo Alemão (org. Rita<br />

Iriarte). Lisboa: Ed. Materiais Críticos, 1987.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!