26.11.2014 Views

CULTURA - Ibase

CULTURA - Ibase

CULTURA - Ibase

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

C U L T<br />

<strong>CULTURA</strong><br />

Abdias Nascimento*<br />

A arte<br />

e os orixás 1<br />

FOTO: MARCUS VINI<br />

80 DEMOCRACIA VIVA Nº 34


U R A<br />

Minha pintura requer como básico o universo conceitual afro-brasileiro, a diferença cultural<br />

do negro que se sente africano mas que está nas Américas, no mundo equivocadamente<br />

europeu do Brasil. A ela também são relevantes os problemas sociais e humanos do negro<br />

num país que ele construiu para os outros.<br />

Os orixás resultam das minhas próprias reflexões<br />

e aventuras do espírito no rastro de um<br />

problema que, para mim, mais do que uma<br />

questão artística ou acadêmica, é uma exigência<br />

vital. Por isto, não me preocupam somente<br />

as formas estéticas, a distribuição de volumes<br />

no espaço ou o teor das cores. De primeiríssima<br />

importância é a peripécia espiritual e cultural<br />

do afro-brasileiro: a história e os deuses da<br />

religião exilada com meus antepassados.<br />

Nessa volta às fontes originárias da<br />

arte africana, não tenciono cometer o suicídio<br />

de um regresso histórico. Não advogo a<br />

reprodução de uma forma existencial pretérita.<br />

Meus orixás estão longe de se configurarem<br />

deuses arcaicos, petrificados no tempo e<br />

no espaço do folclore ou perdidos nas estratosferas<br />

da especulação teórica de cunho acadêmico.<br />

São presenças vivas e viventes. Habitam<br />

tanto a África como o Brasil e todas as<br />

Américas, no presente, e não nos séculos<br />

mortos. Surgem na vida cotidiana e nos assuntos<br />

seculares, legados pela história e pelos<br />

ancestrais. Por isso, os orixás recebem nomes<br />

de pessoas vivas, empenham-se na<br />

defesa dos nossos heróis e mártires e engajamse<br />

no processo de resgate da identidade, da<br />

liberdade e da dignidade de nosso povo.<br />

Espero que o meu esforço criativo contribua<br />

para esse processo, representando um<br />

instrumento operativo do saber, do conhecimento,<br />

da comunicação e da revelação do<br />

povo negro ao qual pertenço e das divindades<br />

que me inspiram e me sustentam: os orixás.<br />

Entre o orum e o aiyê 2 há um espaço de<br />

mistério ignorado pela vã racionalidade humana.<br />

Dele emerge minha pintura, num esforço para<br />

o resgate de algumas imagens-símbolo da trajetória<br />

sobrenatural e histórica que vem de um<br />

passado mítico para um presente e um futuro<br />

de humanidade plena. Pinto Ogum e me comunico<br />

com a divindade da justa vingança, companheiro<br />

de armas dos irmãos que lutam por liberdade<br />

e dignidade. Evoco Yemanjá, celebrando<br />

aquela que vigia a fertilidade de nossa gente,<br />

alerta contra a agressão contida em determinados<br />

controles de natalidade. Retrato Xangô, praticando<br />

a justiça, militante de todos os movimentos<br />

pela restauração dos nossos direitos<br />

fundamentais. Convoco Ossaim, cultivador das<br />

plantas medicinais, transmissor do saber<br />

farmacológico da mãe África, protetor da saúde<br />

de nossos irmãos e irmãs e da pureza do meio<br />

ambiente. Oxunmaré resume a alegria colorida<br />

e vital do nosso povo e expande a sua natureza<br />

lúdica. Oxum, doadora generosa do amor, enriquece<br />

nossas vidas com sua doçura dourada.<br />

Obatalá, em sua dualidade masculino-feminina,<br />

estrutura o ovo primal da criação e da procriação<br />

da espécie. E do além, muito além das nuvens<br />

do orum, Olorum nos observa...<br />

Axé!<br />

1 Texto extraído do livro-catálogo<br />

ilustrado da exposição<br />

Abdias Nascimento 90 Anos –<br />

Memória Viva, publicado pelo<br />

Ipeafro/ Instituto de Pesquisas<br />

e Estudos Afro-Brasileiros (Rio,<br />

2006). O Ipeafro, que guarda o<br />

acervo de Abdias Nascimento<br />

e realiza a exposição itinerante,<br />

gentilmente cedeu ao <strong>Ibase</strong> o<br />

uso das imagens dos orixás para<br />

esta edição especial.<br />

2 Orum: em iorubá, o domínio<br />

cósmico do criador, dos<br />

ancestrais, dos orixás e dos<br />

não nascidos. Aiyê: em iorubá,<br />

o universo material.<br />

JAN / MAR 2007 81


<strong>CULTURA</strong><br />

ABDIAS NASCIMENTO, Tema para Léa Garcia:<br />

Oxunmaré<br />

Buffalo, NY, EUA, 1971<br />

Acrílico sobre tela, 106 x 156 cm<br />

Acervo Abdias Nascimento / IPEAFRO<br />

Foto de Lula Rodrigues<br />

ABDIAS NASCIMENTO, Ideograma Adinkra<br />

Rio de Janeiro, 1992<br />

Acrílico sobre tela, 104 x 154 cm<br />

Acervo Abdias Nascimento / IPEAFRO<br />

Foto de Lula Rodrigues<br />

82 DEMOCRACIA VIVA Nº 34


A ARTE E OS ORIXÁS<br />

ABDIAS NASCIMENTO, Mulata Cor<br />

de Rosa: um Estudo para Oxum<br />

Middletown, EUA, 1970<br />

Acrílico sobre tela, 102 x 152 cm<br />

Acervo Abdias Nascimento / IPEAFRO<br />

Foto de Lula Rodrigues<br />

Trajetória viva de Abdias 3<br />

Há uma íntima ligação da produção cultural de<br />

Abdias Nascimento com a sua atuação cívica e<br />

política. Seus múltiplos talentos e formas de<br />

expressão voltam-se todos para o avanço da<br />

causa anti-racista. Na dramaturgia, na poesia e<br />

na pintura, no engajamento na luta internacional<br />

pan-africanista e na atuação como deputado<br />

federal, senador e secretário de Estado,<br />

Abdias desenvolve aspectos dessa luta à<br />

qual dedicou plenamente uma vida de 90 anos.<br />

Professor Emérito da Universidade do Estado<br />

de Nova York e Doutor Honoris Causa<br />

pelas Universidades do Estado do Rio de Janeiro<br />

e Federal da Bahia, Abdias Nascimento fundou<br />

o Teatro Experimental do Negro em 1944,<br />

organizou vários eventos históricos do movimento<br />

social anti-racista no Brasil e participou<br />

de atividades mundiais pan-africanistas. Cofundador<br />

do PDT, foi o primeiro secretário de<br />

Direitos Humanos e Cidadania do Governo do<br />

Estado do Rio de Janeiro (1999).<br />

Já na década de 1930, engajou-se na Frente<br />

Negra Brasileira e prosseguiu na luta contra<br />

o racismo, organizando eventos como o Congresso<br />

Afro-Campineiro, em 1938.<br />

Militante do antigo PTB, durante o regime<br />

militar de 1964 exilou-se nos Estados Unidos e<br />

na África até 1981. Professor das universidades<br />

Yale, Wesleyan, do Estado de Nova York<br />

nos Estados Unidos, e Ilé-Ifé, na Nigéria, ele<br />

participou do movimento internacional panafricanista,<br />

desenvolveu a criação artística e<br />

expôs suas pinturas.<br />

Atuou desde o exílio na criação do PDT. De<br />

volta ao Brasil, liderou a implantação em 1981<br />

da Secretaria do Movimento Negro do PDT.<br />

Primeiro deputado federal e senador afrobrasileiro<br />

a dedicar seus mandatos à luta contra<br />

o racismo (1983–87; 1991–1999), apresentou<br />

projetos de lei definindo o racismo como<br />

crime e criando mecanismos de ação compensatória<br />

para construir a verdadeira igualdade<br />

para os negros na sociedade brasileira.<br />

Tomou parte na 3 a Conferência Mundial<br />

contra o Racismo em Durban, África do Sul,<br />

em 2001.<br />

A partir da implementação da política de<br />

cotas na Universidade do Estado do Rio de<br />

Janeiro, em 2003, Abdias contribui para as<br />

iniciativas dos afro-brasileiros em diversos contextos,<br />

inclusive perante os tribunais da nação,<br />

defendendo o princípio da constitucionalidade<br />

da ação afirmativa por meio do<br />

amicus curiae, que permite a manifestação<br />

de representantes da sociedade civil no âmbito<br />

do processo jurídico.<br />

3 Texto extraído do livro-catálogo<br />

ilustrado da exposição<br />

Abdias Nascimento 90 Anos –<br />

Memória Viva, publicado pelo<br />

Ipeafro (Rio, 2006).<br />

JAN / MAR 2007 83


<strong>CULTURA</strong><br />

ABDIAS NASCIMENTO, Onipotente<br />

e Imortal: Adinkra Asante<br />

Rio de Janeiro, 1992<br />

Acrílico sobre tela, 154 x 104 cm<br />

Acervo Abdias Nascimento /<br />

IPEAFRO<br />

Foto de Lula Rodrigues<br />

ABDIAS NASCIMENTO, Oxum no seu Labirinto<br />

Buffalo, NY, EUA, 1971<br />

Óleo e acrílico sobre tela, 82 cm x 158 cm<br />

Acervo Abdias Nascimento / IPEAFRO<br />

Foto de Lula Rodrigues<br />

84 DEMOCRACIA VIVA Nº 34


A ARTE E OS ORIXÁS<br />

ABDIAS NASCIMENTO, Simbiose Africana nº 2<br />

Buffalo, NY, EUA, 1971<br />

Acrílico sobre tela, 64 x 94 cm<br />

Acervo Abdias Nascimento / IPEAFRO<br />

Foto de Lula Rodrigues<br />

ABDIAS NASCIMENTO, A Dupla Personalidade<br />

de Oxunmaré nº 2<br />

Buffalo, NY, EUA, 1971<br />

Acrílico sobre tela, 156 x 106 cm<br />

Acervo Abdias Nascimento<br />

Foto de Lula Rodrigues<br />

JAN / MAR 2007 85


<strong>CULTURA</strong><br />

ABDIAS NASCIMENTO, Padê de Exu<br />

Rio de Janeiro, 1988<br />

Acrílico sobre tela, 104 x 154 cm<br />

Acervo Abdias Nascimento /<br />

IPEAFRO<br />

Foto de Lula Rodrigues<br />

ABDIAS NASCIMENTO, Xangô Rodrigues Alves<br />

Middletown, EUA, 1970<br />

Acrílico sobre tela, 104 x 156 cm<br />

Acervo Abdias Nascimento / IPEAFRO<br />

Foto de Lula Rodrigues<br />

ABDIAS NASCIMENTO, A Flecha do<br />

Guerreiro Ramos: Oxossi<br />

Buffalo, NY, EUA, 1971<br />

Acrílico sobre tela, 152 x 102 cm<br />

Acervo Abdias Nascimento / IPEAFRO<br />

Foto de Lula Rodrigues<br />

86 DEMOCRACIA VIVA Nº 34

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!