Folha de Sala - Culturgest
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Dirige-se ao seu quarto e começa a<br />
vestir-se. Sai.<br />
Theodor começa a ver, ao longe, Hanna a<br />
aproximar-se, a passo também firme.<br />
Theodor Olá.<br />
Hanna Agora não. Daqui a uma hora no<br />
centro da cida<strong>de</strong>. Chamo-me Hanna.<br />
Verá que vale a pena. Estou na Rua Klirk<br />
Purch. Espero por si.<br />
Hanna afasta-se e retoma o seu passo<br />
acelerado.<br />
Mylia começa a sentir algo no estômago.<br />
Contorna a igreja. Tira do bolso um giz<br />
branco. Segurando o giz na sua mão<br />
direita, aproxima-se das traseiras da<br />
igreja. Subitamente, escreve com o<br />
giz na pare<strong>de</strong>, utilizando umas letras<br />
<strong>de</strong> tamanho muito pequeno, quase<br />
imperceptível: fome. Sente novamente<br />
uma intromissão forte do estômago.<br />
Baixa a mão, <strong>de</strong>ixa cair o giz.<br />
Mylia Vou morrer da dor que não<br />
consigo ouvir.<br />
Hinnerk na rua, repara em Kaas à sua<br />
frente. Observa-o durante algum tempo.<br />
Hinnerk e Kaas cruzam-se.<br />
Hinnerk Boa noite, rapaz.<br />
Kaas (com a voz enrolada) Busbeaaak.<br />
Meu pai, Busbeaaak<br />
Hinnerk O teu pai, é isso?<br />
Kaas Ssim.<br />
Hinnerk Não é bom andares sozinho <strong>de</strong><br />
noite. Vamos. Por este lado, o teu pai.<br />
Começam a andar.<br />
Mylia vê ao fundo uma luz, e ao lado<br />
direito uma cabine telefónica. Pára,<br />
dirige-se à cabine.<br />
Hinnerk, segurando no pescoço <strong>de</strong> Kaas,<br />
puxa-o para uma rua lateral, quase sem<br />
iluminação.<br />
Hinnerk Busbaak, é isso?<br />
Hinnerk continua a puxar o rapaz para<br />
a parte <strong>de</strong> trás <strong>de</strong> um prédio. Atira-o ao<br />
chão. Kaas tenta gritar. Desaparecem.<br />
Hanna dirige-se à casa <strong>de</strong> Hinnerk,<br />
preocupada. Toca à porta várias vezes,<br />
ninguém aten<strong>de</strong>. Sai do prédio a gran<strong>de</strong><br />
velocida<strong>de</strong> começa a andar mais<br />
<strong>de</strong>pressa. Está com medo.<br />
Mylia pega em moedas, põe uma na<br />
ranhura, marca um número, o sinal <strong>de</strong><br />
linha começa. Um telefone toca muitas<br />
vezes. Ernst aten<strong>de</strong>.<br />
Mylia Ernst, estou junto à igreja. És tu?<br />
Mylia <strong>de</strong>smaia.<br />
Ernst fecha a janela do seu sótão;<br />
rapidamente abre a porta e começa<br />
a <strong>de</strong>scer as escadas. Sai para a rua.<br />
Começa a correr em direcção à igreja<br />
com movimentos <strong>de</strong>scoor<strong>de</strong>nados. Vê<br />
o vulto <strong>de</strong> Mylia caído junto à cabine<br />
telefónica. Chegando ao pé do corpo<br />
<strong>de</strong>itado, agarra-se a ele.<br />
Hinnerk reaparece.<br />
2ª PARTE<br />
Mylia e Theodor<br />
Mylia Po<strong>de</strong> fazer perguntas.<br />
Theodor Não são perguntas, exames<br />
médicos.<br />
Mylia Perguntas.<br />
Theodor Todos po<strong>de</strong>m fazer perguntas.<br />
Mylia Faça as perguntas boas.<br />
Theodor Quais?<br />
Mylia Se alguma vez eu estive com um<br />
homem.<br />
Theodor E alguma vez esteve com um<br />
homem?<br />
Mylia Não.<br />
Mylia Vejo coisas que não existem,<br />
chamam-me louca.<br />
Theodor Ninguém vê o que o outro vê.<br />
Temos <strong>de</strong> acreditar.<br />
Mylia Consigo ver a alma.<br />
Theodor Ah! Então vê bem ao longe.<br />
Acredita em Deus?<br />
Mylia Ninguém vê o que o outro vê.<br />
Temos <strong>de</strong> acreditar.<br />
Theodor Um homem que não procure<br />
Deus é louco. E um louco <strong>de</strong>ve ser<br />
tratado.<br />
Mylia<br />
Mylia Em que página estava eu? Em<br />
que página estava escrito ‘a doença <strong>de</strong><br />
Mylia’, em que página estava escrito ‘a<br />
saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mylia’?<br />
Máquinas, técnicas, páginas e páginas <strong>de</strong><br />
diagnóstico e tratamento. Mas para ver<br />
o que se escon<strong>de</strong> e o que aí vem, não<br />
basta ser médico, tem <strong>de</strong> se ser santo ou<br />
profeta. E não és santo, nem profeta.<br />
Theodor<br />
Theodor Faço um estudo, recolho dados.<br />
Para compreen<strong>de</strong>r, ainda não percebi.<br />
Para chegar ao gráfico da relação entre<br />
o horror e o tempo, o pulsar do coração<br />
da História. Po<strong>de</strong>rei <strong>de</strong>pois pensar no<br />
mais importante: a fórmula. Uma fórmula<br />
clara, curta, serena. Sim, uma fórmula<br />
serena. Que permita prever, agir e não<br />
apenas contemplar ou lamentar. Que<br />
resuma as causas da malda<strong>de</strong> que<br />
existe sem o medo. Mylia, é preciso<br />
compreen<strong>de</strong>r: como sem medo se<br />
fizeram certas coisas?<br />
Perceber por fim se a História está<br />
doente ou saudável, se há progresso no<br />
estado clínico da História, ou se o estado<br />
do mundo piora, enfraquece, infecta.<br />
Se o horror estiver a diminuir seremos<br />
felizes daqui a cem gerações. Se o<br />
horror estiver a aumentar, esta História<br />
acabará, e outra História virá, outra<br />
História melhor. Mas se o horror for<br />
constante, então não haverá esperança.<br />
Tudo continuará igual.<br />
Hinnerk<br />
Coro Da guerra Hinnerk guardara dois<br />
objectos: a arma e o medo. Olheiras<br />
<strong>de</strong> animal nocturno, a marca essencial<br />
daquele rosto. Na rua diziam <strong>de</strong> Hinnerk:<br />
cara <strong>de</strong> assassino, cara <strong>de</strong> assassino.<br />
Baixava a cabeça para não ouvir. Por<br />
vezes, à janela, apontava às crianças ao<br />
fundo da rua.<br />
Hanna sai do coro.<br />
Hanna Sobrou da noite anterior.<br />
Coro Mas o medo aumentava. Algo o<br />
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